terça-feira, 25 de agosto de 2020

Roteiro primeira aula curso Trotsky e Stalin

Boa noite a todos.

Boa noite a todas.

Boa noite a quem nos acompanha aqui na sala zoom.

Boa noite a quem nos assiste online.

Cumprimento, também, a quem venha assistir este curso em outro momento.

Meu nome é Valter Pomar.

Sou professor de relações internacionais na Universidade Federal do ABC.

E integro a equipe de professores voluntários da Escola Latinoamericana de História e Política.

Neste momento damos início a mais um curso da Elahp, desta vez um curso intitulado “TROTSKY e STALIN: polêmicas sobre a luta pelo socialismo na URSS e no mundo”.

A Revolução de 1917, seus antecedentes, seus desdobramentos, a União Soviética e o movimento comunista internacional, são assuntos envoltos em imensa polêmica.

Esta polêmica começou já na época e prossegue até hoje, envolvendo desde inimigos declarados do comunismo, até cada uma das tradições vinculadas direta ou indiretamente a própria revolução, como é o caso dos anarquistas, dos socialistas revolucionários, dos socialdemocratas e dos comunistas.

Entre estes últimos, a Revolução de 1917 e seus desdobramentos também foi e segue sendo objeto de intensas polêmicas.

São inúmeros os protagonistas desta polêmica, que já dura mais de um século.

Entretanto, por diversos motivos, grande parte das pessoas salta a complexidade do debate, das alternativas e das personalidades envolvidas e, quando fala em Revolução Russa, pensa apenas ou principalmente em Lenin, em Trotsky e em Stálin.

Levando isto em consideração, neste ano de 2020, por ocasião do sesquicentenário do nascimento de Vladimir Ilich Ulianov, a Escola Latinoamericana de História e Política e a Caixa de Ferramentas ofereceram um curso intitulado LENIN, VIDA E OBRA.

Evidentemente, cuidamos de situar a pessoa Lênin, no contexto histórico. E cuidamos de afirmar este contexto, em particular a luta entre as classes, na sociedade russa, e a luta entre os Estados, em âmbito mundial, como as variáveis centrais.

No mesmo espírito do curso Lênin, vida e obra, a Elahp decidiu oferecer um curso sobre as polêmicas acerca da luta pelo socialismo na URSS e no mundo, tendo como fio condutor, desta vez, as posições defendidas por Trotsky e por Stalin, respectivamente.

Evidentemente, como fizemos no caso de Lenin, nosso propósito é abordar as polemicas que envolveram estas duas personalidades, no contexto mais amplo e determinante da luta entre as classes e da entre os Estados.

Evidentemente, este curso é feito neste momento específico, também porque foi num 21 de agosto de 1940, há 80 anos, que Trotsky foi assassinado no México, como parte de uma operação decidida pela cúpula do Partido Comunista da URSS, então encabeçada por Stálin.

A programação do curso “TROTSKY e STALIN: polêmicas sobre a luta pelo socialismo na URSS e no mundo” inclui 12 aulas, que terão 2 horas de duração, sempre começando as 21h e terminando as 23h, oferecidas simultaneamente na sala zoom e através do youtube.

Hoje, 24 de agosto, segunda, a aula terá como tema: A Revolução Russa de 1917, a história e a dissolução da União Soviética: contexto, personagens e múltiplas interpretações. O “lugar” de Stálin e Trotsky nesta história.

Esta primeira aula, introdutória, será ministrada por mim, Valter Pomar.

Amanhã, 25 de agosto, terça, a aula terá como tema: Trotsky, vida e obra e será ministrada pelo professor Valério Arcary.

Na quarta, 26 de agosto, a aula terá como tema: Stálin, vida e obra e será ministrada pelo professor Breno Altman.

No dia 27 de agosto, quinta, trataremos de O debate sobre a revolução permanente, antes e depois da Revolução de 1917. Neste caso, a aula será do professor Raul Pont e os comentários serão feitos por mim, Valter Pomar.

Na sexta-feira, 28 de agosto, o tema será O debate sobre o socialismo em um só país, nos anos 1920 e depois. O professor será o Antonio Eduardo, professor da UFRB e colunista do Diário Causa Operária. Os comentários ficarão a cargo de Breno Altman.

No sábado, 29 de agosto, falaremos de A história da Terceira Internacional. As polêmicas sobre a revolução alemã, sobre revolução chinesa e a guerra civil espanhola. Serei eu, Valter Pomar, quem ministrará esta aula.

No dia 30 de agosto, domingo, o tema será O programa de transição. A aula correrá por conta do professor Osvaldo Coggiola e os comentários ficarão a cargo do Breno Altman.

No dia 31 de agosto, segunda, falaremos de O debate sobre a natureza da URSS. Contaremos nesta aula com a professora Gloria Trogo, advogada e militante do PSOL. Os comentários serão, mais uma vez, de Breno Altman.

Na terça-feira, 1 de setembro, a professora Tatau Godinho falará de: A criação e a história da Quarta Internacional. As várias correntes do “trotskismo”.

No dia 2 de setembro, quarta-feira, o professor José Reinaldo de Carvalho falará de: O “stalinismo” depois de 1953.

Na quinta-feira, dia 3 de setembro, o professor Osvaldo Coggiola falará de O trotskismo na América Latina.

Finalmente, no dia 4 de setembro, sexta-feira, o curso será encerrado pela professora Iole Iliada, que nos falará de: O debate sobre Stalin e Trotsky nos tempos atuais.

O curso será encerrado, mas obviamente o debate prosseguirá.

Aliás, como vocês podem perceber, pelo temário e pela relação de professores e professoras, a Elahp buscou garantir a pluralidade.

Infelizmente, nosso convite não foi aceito por todos os que gostaríamos que participassem, como professores e professoras, deste curso.

Reafirmamos aqui, entretanto, nosso convite, cujo propósito é permitir que os alunos e alunas da Escola Latinoamericana de História e Política tomem contato, senão com todas, pelo menos com as principais tradições que participam deste debate.

Caso o convite que refiz agora de público seja aceito, estamos abertos a incluir novas aulas no curso. Ou a fazer um novo curso.

Após estas preliminares, darei agora início à aula sobre A Revolução Russa de 1917, a história e a dissolução da União Soviética: contexto, personagens e múltiplas interpretações. O “lugar” de Stálin e Trotsky nesta história.

*

Em março de 1917, o que era para ser uma grande manifestação em homenagem ao Dia Internacional da Mulher converteu-se numa greve geral que, após alguns dias, provocou a renúncia do Czar Nicolau e o fim da monarquia na Rússia.

Instala-se um governo provisório, que poucos meses depois é derrubado e substituído por um Conselho de Comissários do Povo, organismo eleito pelo Soviete de Deputados Operários, Soldados e Camponeses.

A maior parte dos comissários do povo são integrantes da facção “bolchevique” do Partido Operário Social-Democrata Russo.

As duas principais decisões do novo governo são relativas a paz e a terra.

Citando: “Objetivamente, o governo decreta a reforma agrária, acabando com o sistema feudal vigente no sistema agrário e realizando aquilo que, na época, era conceituada como uma reforma democrático burguesa”.

De 1917 até 1921, o governo soviético luta por sua sobrevivência, ameaçada de imediato pelos exércitos alemães, depois pelos exércitos “brancos” e seus aliados estrangeiros, e também pela desorganização da economia, após anos de conflito militar.

Neste período, é adotado o chamado “comunismo de guerra”, cuja expressão mais simples é a requisição forçada da produção dos camponeses, para alimentar as cidades e o Exército Vermelho.

O governo soviético consegue manter – a ferro e a fogo – apoio suficiente no proletariado e no campesinato, ao menos o suficiente para vencer a guerra civil.

Mas a vitória na guerra civil é acompanhada de insatisfações crescentes nas duas classes sociais que foram as grandes protagonistas da revolução de 1917: o proletariado e o campesinato.

No caso do campesinato, que constituía a imensa maioria da população russa, a insatisfação se traduz, inclusive, em reduzir a produção de alimentos, o que constitui uma ameaça mortal para o governo soviético.

Para tentar manter a aliança operário-camponesa e garantir o funcionamento da economia, o Partido Comunista Russo (denominação assumida, em 1918, pela já citada facção bolchevique do Partido Operário Social Democrata Russo)... o PC russo adota a NEP (Nova Política Econômica).

Segundo esta Nova Política Econômica, os camponeses passam a ter o direito de vender o excedente de sua produção, devendo apenas pagar impostos ao governo. Acabam as requisições forçadas. Os camponeses voltam a abastecer as cidades e a situação econômica melhora paulatinamente.

Citando: “Em relação à indústria, a partir da comprovação de que o setor ainda era muito atrasado, a NEP admite os investimentos privados e uma combinação entre investimentos estatais e investimentos privados, de modo a garantir o abastecimento de bens industriais”.

De 1921 até o final da década, além de lutar cotidianamente pela sobrevivência e de todas as tarefas práticas envolvidas nisto, o governo soviético em geral e os comunistas em particular participam ativamente das polêmicas sobre os caminhos da luta pelo socialismo no mundo e na Rússia (e na União das Repúblicas Socialistas Soviéticas, fundada em 1922).

Contra as expectativas alimentadas pela liderança bolchevique quando da tomada do poder em outubro de 1917, em nenhum outro país a revolução havia triunfado.

E, portanto, ao invés de ajuda, o que veio do Ocidente foi, principalmente, uma intervenção militar e um bloqueio político-econômico, conhecido pelo simpático nome de “cordão sanitário”.

O isolamento internacional tornava ainda mais difícil, o que já seria difícil por si só, afinal a sociedade russa era econômica, política e culturalmente atrasada, apontada pelos próprios bolcheviques como um país em que poderia ser mais fácil começar a revolução, mas onde seria muito mais difícil construir o socialismo.

Entre as várias polêmicas daquele período, uma das mais importantes dizia respeito a como ampliar a industrialização do país.

Vale lembrar que, embora a Rússia antes de 1917 tivesse um núcleo industrial muito poderoso, este núcleo industrial era uma ilha no oceano da pequena produção familiar camponesa.

E a Guerra Mundial, a Guerra Civil, o bloqueio e os próprios efeitos da Revolução tiveram como consequência prática enfraquecer o núcleo industrial e ampliar a pequena propriedade camponesa.

Para os integrantes do governo soviético e do Partido Comunista da URSS, a industrialização era essencial, não apenas por motivos de curto prazo, mas principalmente porque viam no desenvolvimento das forças produtivas parte importante do caminho que consolidaria o socialismo e permitiria caminhar em direção ao comunismo.

Na frase lapidar de um dirigente do governo soviético: sovietes mais eletrificação. Ou seja: o poder proletário e o desenvolvimento das forças produtivas.

Citando: “Esta postura seria acentuada, no final dos anos 20, frente a crise mundial capitalista e a ascensão do fascismo, que apontavam para dificuldades mundiais crescentes para o poder soviético”.

Grosso modo, houve um debate entre duas grandes alternativas, entre dois grandes caminhos que poderiam levar à industrialização.

O primeiro caminho previa um longo período de estímulo à pequena produção camponesa, cujo crescimento econômico geraria (supostamente) a dinâmica necessária para uma ampliação sustentável da indústria. Segundo esse caminho, o socialismo (e a industrialização) seriam construídos, mesmo que “a passo de lesma”.

O segundo caminho propunha reduzir o número de pequenas propriedades camponesas (que seriam reunidas em cooperativas ou fazendas coletivas), gerando assim o mercado (tanto de mão-de-obra, quanto de consumo) necessário para uma industrialização rápida. Segundo este caminho, tratava-se de fazer uma “acumulação primitiva” do socialismo.

O debate acerca dos rumos da industrialização soviética nos anos 1920, como todos sabemos, não teve nada de tranquilo ou acadêmico.

E o desfecho do debate foi determinado menos pelos argumentos e mais pelos fatos, mais precisamente pela chamada “crise da tesoura”, nome dado a um fenômeno ocorrido, com especial força, no final dos anos 1920, fenômeno que de maneira esquemática pode ser assim resumido:

1/a revolução russa de 1917 incluiu uma revolução agrária de imensas proporções, que resultou na criação de um grande número de pequenos minifúndios;

2/estes minifúndios eram basicamente autárquicos e demandavam muito pouco das indústrias e das cidades;

3/a medida que os minifúndios se abasteceram, pararam de comprar das indústrias;

4/e à medida que não necessitavam comprar, também reduziram sua produção e, portanto, vendiam menos às cidades;

5/gerando assim um duplo efeito: por um lado os preços agrícolas cresceram (pois havia menos produção e menos oferta) e de outro lado os preços industriais caíram (pois havia menos demanda).

6/a subida dos preços agrícolas e a queda dos preços industriais assumiam, nos gráficos, o formato de uma “tesoura”, daí o nome.

Frente a crise da tesoura, ocorrida no final dos anos 1920, a maioria da direção do Partido Comunista Russo optou pelo caminho da coletivização e industrialização forçadas.

O campesinato foi forçado manu militari a adotar formas coletivas de produção, seja em cooperativas, seja em fazendas estatais.

Com isto, aumentou a demanda de produtos industriais (o famoso exemplo do trator, inútil num minifúndio, indispensável numa grande propriedade) e, ao mesmo tempo, criou-se um excedente de mão de obra no campo, que foi convocada a incorporar-se no esforço de industrialização.

É bom dizer que um dos efeitos disto foi uma grave crise na produção agrícola, entre outras razões porque o campesinato resistiu à coletivização forçada.

Seja como for, teve início um brutal esforço de industrialização em larga escala.

As classes trabalhadoras como um todo, em particular o proletariado industrial, foram convocadas a fazer um brutal esforço produtivo.

Este duplo processo – coletivização e industrialização – causou uma imensa tensão na sociedade e no Estado soviético, bem como no Partido comunista soviético e na Internacional comunista.

Cabe ressaltar que a opção pela coletivização e pela industrialização rápida foi, do ponto de vista econômico-social, uma nova revolução.

Uma revolução “pelo alto”, que de certa forma rompeu a aliança entre proletariado e campesinato que havia sido vitoriosa em 1917.

Uma das resultantes desta revolução pelo alto foi que milhões de pessoas deixaram de ser pequenos proprietários e transformaram-se em proletários (industriais ou agrícolas).

O proletariado surgido deste processo não tinha a experiência política prévia, adquirida ao longo de muitas décadas, pelo proletariado que protagonizou a revolução de 1917.

Os novos proletários, bem como a maioria dos novos integrantes do Partido Comunista, eram em sua maioria recém-saídos das fileiras do campesinato.

Nesse contexto social, o Partido Comunista também sofreu grandes mudanças, a começar pela ampliação das suas fileiras.

Em 1917, quando a revolução começa, os bolcheviques eram menos de 15 mil. Em 1921, são mais de trezentos mil. No final dos anos 1920, o PC russo e as organizações de massa que ele dirige reúnem milhões de pessoas.

Em decorrência, o trabalho de educação política ganha uma nova dimensão. As escolas, o cinema, a rádio, as artes gráficas, a literatura são colocadas a serviço da formação destes milhões de “homens novos” do socialismo soviético.

Trata-se de incutir, em dezenas de milhões de pessoas, os valores da nova ordem. A fusão entre as “artes” e as necessidades educacionais e políticas do regime soviético dá origem, assim, ao chamado “realismo socialista”.

Outra dimensão importante é, citando, a “promoção do stakanovismo, isto é, do operário Stakanov, inovador que conseguiu elevar a produção a nível superior”.

As tradições marxistas russas também serão afetadas por essa dinâmica. Ao mesmo tempo que se faz um heroico esforço para resgatar, publicar e difundir as obras clássicas de Marx e Engels, entre outros; também ocorre um movimento de simplificação e de vulgarização do marxismo.

Seja como for, o efeito global deste processo foi, gostemos ou não das formas que assumiu, transformar a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas em uma potência industrial.

Durante a guerra,a URSS fará uma transferência massiva de sua indústria para os montes Urais, de modo a protegê-la da máquina de guerra nazista, torná-la capaz de produzir equipamentos militares modernos e, assim,” de derrotar a máquina nazista, na Segunda Guerra Mundial.

Vale lembrar que a Rússia czarista não sobreviveu aos efeitos sistêmicos da Grande Guerra, que hoje conhecemos como Primeira Guerra Mundial.

Já a URSS sobreviveu aos impactos sistêmicos da Segunda Guerra.

A decisiva contribuição dada na derrota dos nazistas durante a Segunda Guerra Mundial transformou a URSS em um dos polos do poder mundial, contrapondo-se durante a “guerra fria” aos Estados Unidos.

Naquela época, havia quem previsse que a União Soviética seria capaz de superar os Estados Unidos em um prazo mais ou menos breve.

E esta previsão, é bom dizer, era feita não apenas por comunistas, mas também por intelectuais e quadros políticos que defendiam a ordem capitalista.

Mas quando veio a crise dos anos 1970, o capitalismo reagiu, e não foi através de uma guerra global, como em 1914 e em 1939.

Retrospectivamente, é fácil de perceber os motivos disto.

Não fazia sentido uma guerra intercapitalista, pois de fato não existia, nos anos 1970, nenhuma outra potência disputando contra os Estados Unidos o papel de hegemon do mundo capitalista.

Por outro lado, uma guerra global do capitalismo contra o mundo socialista desembocaria, muito provavelmente, numa destruição mútua.

Ou, na pior das hipóteses para os capitalistas, poderia desembocar numa perigosa aliança entre o socialismo, o pacifismo, o feminismo, o antirracismo e o ambientalismo.

Por estes e outros motivos, a reação dos capitalistas a crise dos anos 1970 foi realizar um complexo “ajuste”, que incluiu:

1) uma nova rodada de exportações de capitais e de financeirização, favorecida pelo fim do padrão dólar-ouro adotado em 1944 nos acordos de Bretton Woods (uma moeda internacional que tem a si mesma como lastro é funcional para a especulação);

2) uma nova “revolução industrial”, com destaque para inovações na comunicação, eletrônica, informática e cibernética, que ampliaram a exploração e o controle sobre a força de trabalho mundial (força de trabalho que, hoje sabemos, alguns anos depois seria ampliada pela inclusão dos chineses e dos que viviam na URSS e no Leste Europeu);

3) um aprofundamento da corrida armamentista, o que, além de dar vazão à parte dos capitais acumulados, contribuiu para o colapso da URSS, uma vez que para a economia soviética, “a prioridade à produção bélica moderna, sugadora de altos investimentos, colocava em último plano o atendimento às demandas sociais por bens de consumo”;

4) a difusão da ideologia que hoje chamamos de neoliberalismo, criando um ambiente crescentemente favorável às privatizações e às alterações nas políticas sociais (o que também reduz os salários indiretos da classe trabalhadora).

Como reagiu o movimento socialista a esta ofensiva?

A reação imediata dos social-democratas europeus foi defender e adotar políticas de tipo keynesiano. Mas esses remédios já não provocavam os efeitos desejados. A crise continuou. Depois da ascensão dos neoliberais Reagan e Thatcher, os social-democratas europeus ainda ganharam importantes eleições na Europa. Mas seus novos governos mudaram de política e grandes parcelas da socialdemocracia aderiram a um ideário aparentado com o neoliberalismo.

E a tradição comunista, mais exatamente a sua versão soviética, como reagiu a ofensiva neoliberal?

Esta tradição tinha conseguido, como já dissemos, o prodígio de industrializar um país atrasado, ao mesmo tempo em que ampliou sensivelmente o nível de vida de sua população.

Para atingir estes objetivos, o socialismo soviético adotara um planejamento estatal extremamente centralizado, combinado com políticas de pleno emprego e restrições ao funcionamento do mercado. Além de recorrer a níveis de centralização política que provocaram danos à credibilidade do próprio socialismo, especialmente quanto à pretensão de constituir um tipo de democracia superior à existente no capitalismo.

Quando o campo capitalista ampliou a corrida armamentista, especialmente com o governo Reagan, a sociedade soviética foi colocada diante de uma enorme pressão. E quando o capitalismo deu um salto tecnológico, a URSS não quis ou foi incapaz de fazer as reformas que seriam necessárias para pelo menos manter a paridade.

E, na segunda metade dos anos 1980, quando houve uma tentativa de realizar as tais reformas, o ambiente interno e externo já havia deteriorado tanto que as reformas aceleraram o colapso e, em 1991, advém a dissolução da União Soviética.

Pouco antes e logo depois, todos os países socialistas do Leste Europeu, “que também haviam seguido a mesma orientação que desdenhava a produção de bens de consumo corrente”, mudaram seus governos e sua orientação econômico-social; é o caso da Alemanha Oriental (anexada em outubro de 1990 pela Alemanha Ocidental), da Hungria, Romênia, Bulgária, Tchecoslováquia, Iugoslávia, Polônia e Albânia.

Processo similar ocorreria com Angola, Moçambique e outros países africanos anteriormente alinhados à URSS. Do antigo mundo socialista, apenas China, Vietnã, Coreia do Norte e Cuba continuam até hoje governadas por partidos comunistas.

A debacle do socialismo soviético e a conversão da socialdemocracia ao liberalismo, mais a crise do desenvolvimentismo latino-americano e do nacionalismo africano, compõem o quadro inegável de vitória do chamado capitalismo neoliberal.

Portanto, embora tenha sido capaz de derrotar o tipo de capitalismo existente até a Segunda Guerra, e embora tenha sido capaz de concorrer com o capitalismo pós Segunda Guerra, o socialismo de tipo soviético não foi capaz de derrotar o capitalismo surgido a partir da crise dos anos 1970.

Seja como for, é preciso destacar que o tipo de socialismo que se instalou na URSS foi exitoso durante parte do século 20.

Exitoso não em comparação com algum parâmetro abstrato, com alguma teoria prévia, com algum sonho; mas na capacidade de enfrentar e/ou derrotar o capitalismo realmente existente no mesmo período.

O socialismo soviético foi vitorioso em Outubro e na Guerra Civil, suplantou o cerco imposto à União Soviética nos anos 1920 e 1930, assim como derrotou os nazistas durante a Segunda Guerra. Também foi capaz de enfrentar e – por algum tempo e em alguns aspectos – empatar com o capitalismo hegemônico entre o final da Segunda Guerra Mundial e os anos 1960.

Exemplos disso podem ser encontrados na corrida espacial e armamentista, no processo de industrialização, crescimento e desenvolvimento; na extensão dos direitos políticos e sociais, nos direitos da mulher, no combate ao racismo, nas políticas de saúde, educação pública e habitação; na ampliação do nível de cultura geral e política das massas.

Entretanto, como já dissemos, aquele socialismo de tipo soviético não demonstrou ser capaz de enfrentar e muito menos de derrotar o capitalismo que se tornou hegemônico a partir dos anos 1970.

Essa incapacidade de continuar competindo, enfrentando, empatando e eventualmente até derrotando o capitalismo tem relação não com o socialismo em geral, mas com o tipo de socialismo existente na URSS: um “socialismo estatal” em que não apenas os principais meios de produção, mas a quase totalidade dos meios de produção era de alguma maneira propriedade e comandada pelo Estado.

A partir de certo momento, o socialismo existente na URSS deixou de desenvolver as forças produtivas ao patamar necessário para enfrentar o capitalismo. Impôs um nível de centralização que foi se tornando economicamente, “burocratizado e ineficiente, porque não havia chegado ao patamar científico e tecnológico de poder atender a todas as necessidades sociais”, inclusive porque “não havia tratado a concorrência como um dos instrumentos para chegar a tal ponto”.

O que obviamente tem relação direta com a democracia, “tanto no sentido econômico, de atendimento das demandas, quanto” no sentido de controle social sobre o que produzir, como produzir e como distribuir as riquezas que são produzidas coletivamente. Portanto, não a relação com a democracia que os socialistas liberais imaginam existir.

A necessidade de fazer reformas no socialismo soviético foi apontada pelos seus próprios dirigentes, diversas vezes. Mas a combinação entre as resistências internas – não apenas de setores do partido e do governo, mas também de setores da classe trabalhadora – e uma espécie de “boom das commodities” fizeram com que o socialismo soviético deixasse as reformas de lado e “deitasse no berço esplêndido”.

Num certo sentido, os soviéticos viveram o seu melhor momento econômico e social nos anos 1970, o que contribuiu para não realizar as reformas no momento em que elas tinham grande chance de êxito.

Já nos anos 1980, os problemas eram muito maiores -- “com a escassez de bens de consumo criando o hábito social de ‘carregar sacolas para aproveitar qualquer oferta oportuna’ ”— e, portanto, as chances de uma reforma com êxito, muito menores.

Para agravar, a cúpula do PCUS decidiu começar as reformas pela chamada glasnost (“transparência”), enfraquecendo o poder do núcleo central do partido e do Estado. Acontece que num socialismo de tipo puramente estatal, “a questão central residia em realizar reformas econômicas (perestroika), que [entre outras mudanças] reintroduzissem o mercado como indutor do desenvolvimento e do atendimento das necessidades sociais, fazendo com que o comando e o planejamento central passassem a orientadores do processo econômico.

O resultado da opção “glasnost first” foi agravar os problemas, impossibilitando qualquer êxito na perestroika (reconstrução) econômica e resultando no colapso final.

O colapso da URSS foi uma dupla vitória do capital: uma vitória do capitalismo, mas também uma vitória de certas teses de Marx e Engels acerca do que era a transição socialista, sobre a necessidade de ter um alto nível de desenvolvimento das forças produtivas para poder transitar em direção a uma sociedade comunista etc.

O socialismo – ou seja, a transição ao comunismo – supõe a ampliação do controle da sociedade sobre o que produzir, como produzir e como distribuir. Mas, para que esse controle social não se converta num obstáculo ao desenvolvimento da capacidade de atender as necessidades sociais, é preciso que já tenha ocorrido e/ou que possa continuar ocorrendo o desenvolvimento das forças produtivas.

Uma estatização completa ou quase completa dos meios de produção pode, durante algum tempo, estimular esse desenvolvimento; mas também pode, em determinadas condições, se converter em um obstáculo para aquele desenvolvimento das forças produtivas e, inclusive, num obstáculo para a ampliação da democracia.

Por essas e outras razões, é possível dizer que o tipo de socialismo consolidado na URSS tinha tudo para não desembocar no comunismo, mesmo que abstraídas as circunstâncias externas.

Ainda assim, o socialismo originado da Revolução de 1917 cumpriu um papel histórico extremamente positivo, tanto internamente quanto externamente.

Por exemplo, contribuindo direta ou indiretamente para as lutas anticoloniais, anti-imperialistas, contra o nazismo, pela paz, na solidariedade a muitos povos que viviam sob ditaduras.

Várias décadas passaram-se desde o fim da URSS. E a Revolução Russa já é centenária. Apesar disso, debater a Revolução Russa de Outubro de 1917 e seus desdobramentos, segue sendo algo muito atual, por diversos motivos.

Vivemos m cenário internacional que possui algumas semelhanças com o que ocorreu no início do século XX: o declínio da potência hegemônica, a ascensão de novos polos de poder, o acirramento das contradições intercapitalistas, a importância do capital financeiro e do imperialismo.

Malgrado as óbvias diferenças, o ambiente de 2020 lembra em vários aspectos aquele que desembocou na Primeira Guerra Mundial. Uma das várias semelhanças entre hoje e a situação vigente há cem anos: a obscena desigualdade.

Como naquela época, vivemos em uma crise sistêmica; e momentos assim tornam inescapável certa “volta aos clássicos”.

E a Revolução Russa de 1917 é um caso clássico, do ponto de vista dos que estudam a dinâmica do capitalismo e de suas crises. Um caso tão clássico quanto o da Revolução Francesa de 1789, neste caso do ponto de vista dos que estudam a dinâmica do feudalismo e de suas crises.

Muitas das antigas questões voltaram a ser ou pelo menos a parecer ser essenciais, porque a crise de 2008 e o que veio depois colocaram com extrema força e urgência o debate sobre o capitalismo, sobre as crises de acumulação, sobre o capital financeiro, sobre o papel do Estado, sobre o imperialismo e as guerras.

Temas sobre os quais há contribuições relevantes feitas pelos revolucionários russos, antes e depois de Outubro de 1917.

De maneira mais geral, a análise marxista sobre o capitalismo voltou à moda. Análise que sempre foi muito cara para as diferentes tradições socialistas existentes na Rússia anarquistas, populistas, social-democratas e comunistas--, que dedicaram grande energia ao debate acerca do modo de produção capitalista, em particular à discussão sobre seu desenvolvimento e crises.

A história é conhecida: logo depois da primeira edição de O Capital, foi publicada uma tradução em russo.

A situação excêntrica do Império Russo, um pé na Ásia e outro na Europa, um pé no feudalismo e outro no capitalismo, um pé no atraso e outro na modernidade, obrigou os pensadores russos de todos os matizes a se debruçar sobre a relação desigual entre desenvolvimento econômico e desenvolvimento político, a dialética entre os diferentes tempos e conteúdos da (re)evolução política e da (re)evolução econômico-social.

Cabe lembrar, também, que a tradição socialista vitoriosa na Revolução de Outubro (os social-democratas da fração bolchevique, que em 1918 adotaram o nome de “comunistas”) investiu grande parte de suas energias no debate sobre o papel do proletariado na luta pela democracia e pelo socialismo.

Num país onde o proletariado era uma parcela diminuta da população, isto implicou em debater de maneira integrada a relação entre “proletariado” e “campesinato”, entre “cidade” e “campo”, entre “partido e classe”, entre “teoria” e “prática”, entre “ditadura” e “democracia”. Questões que certas tradições acadêmicas tentam abordar fragmentariamente, como “objetos” particulares da economia, da sociologia, da política, da cultura, da história etc.

Pouco mais de cem anos depois, acompanhando a difusão do capitalismo, a maior parte da população trabalhadora mundial é assalariada.

Um proletariado que continua “compartilhando” a condição de vítima da exploração capitalista com outra classe, a dos trabalhadores pequenos proprietários.

Um proletariado que se tornou mais universal, mas não se tornou mais homogêneo: tanto mundialmente quanto em cada país, segue composto por diferentes frações econômico-sociais (por exemplo: operários e não operários), atravessado por conflitos nacionais, étnicos, de gênero, geracionais, culturais e religiosos.

Características que fazem com que o debate sobre as formas de luta e de organização, de comunicação e cultura, especialmente a necessidade de partidos políticos “de novo tipo”, ganhe novamente grande importância no debate político contemporâneo.

E como fazer este debate, sem levar em conta o que disseram e fizeram os revolucionários russos?

Há cem anos, como hoje, muitos socialistas lamentavam a divisão nas forças da esquerda, as traições, as vacilações, o ambiente de confusão e divisão existente na classe trabalhadora. E deduziam daí que a revolução socialista seria adiada por muitos anos e décadas, pessimismo reforçado –na época, como hoje-- por uma interpretação tosca acerca dos caminhos pelos quais a quantidade se transforma em qualidade.

“Voltar aos 17” é também buscar descobrir que condições objetivas e subjetivas fizeram com que uma situação de “defensiva estratégica” fosse convertida numa “ofensiva revolucionária” que marcou a história do século XX.

Para os que vivemos na América Latina e Caribe, há mais uma causa que explica a retomada do interesse no debate sobre o socialismo em geral e sobre a Revolução Russa em particular.

Desde 1998 até hoje, vários países da região foram (e alguns ainda continuam sendo) governados por partidos que pretendem estar construindo o socialismo ou, pelo menos, caminhando em direção a ele.

Isto produziu uma retomada do debate sobre a transição socialista, debate que na América Latina e Caribe é temperado pelos pontos de contato que existem entre o populismo russo do século XIX e a “esquerda populista” do século XXI.

Os populistas russos, ao menos em sua versão clássica, acreditavam que seria possível construir o socialismo sem passar pelo capitalismo, tomando como ponto de apoio as tradições coletivistas do campesinato russo.

O marxismo russo iniciou sua trajetória combatendo essa teoria, mas o curso dos acontecimentos  levou uma parte dos marxistas russos a capitanear um experimento que foi considerado, por alguns de seus adversários no movimento social-democrata, uma variante do “populismo”.

Posteriormente, todas as chamadas revoluções socialistas do século XX ocorreram em países em que o capitalismo estava pouco desenvolvido. Recolocando novamente a questão: quais os vínculos entre a construção do socialismo e o desenvolvimento do capitalismo, nos planos da economia, da sociedade, da cultura e da política?

Responder de forma sólida a esta questão supõe revisitar o debate sobre a Revolução de Outubro, sobre o processo de construção da União Soviética, sobre as concepções e as práticas do movimento comunista ao longo do século XX. Debate que está sintetizado em expressões como: “transição”, “socialismo”, “socialismo real”, “ditadura do proletariado”, “estado operário burocraticamente degenerado”, “capitalismo de Estado”, “modo de produção asiático”, “stalinismo”, “totalitarismo”, “social-imperialismo”. Debate que reaparece nas diferentes caracterizações que se faz, hoje, acerca da República Popular da China.

Como tantas outras obras humanas, a Revolução Russa de Outubro de 1917 foi marcada por tragédias e crimes, lama e sangue, dor e violência, imperfeições e debilidades. Mas, diferente de outras obras humanas, a Revolução Russa de Outubro de 1917 foi também um esforço titânico para materializar os ideais de igualdade, liberdade e fraternidade. Metas algum dia compartilhadas pela burguesia, mas que desde há muito constituem parte do legado e patrimônio da classe trabalhadora.

Hoje, décadas depois do fim da URSS, parece mais evidente que a contribuição global da Revolução de Outubro de 1917 para a humanidade foi positiva. “Convicção” que pode ser sustentada com inúmeras “provas”, entre as quais a contribuição que a Revolução deu para a luta pelos direitos iguais para as mulheres; para a batalha por políticas públicas de saúde, educação, cultura, esportes, habitação e transporte; para a adoção do planejamento econômico; além da contribuição, direta e indireta, para a luta contra o imperialismo, contra o colonialismo, o racismo e o nazismo, assim como a luta em favor da paz. E também, acima de tudo, a tentativa de superar o capitalismo e iniciar a transição socialista em direção a uma sociedade comunista.

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O debate sobre a Revolução Russa envolve os antecedentes, seu contexto internacional, seus desdobramentos externos e internos; a Guerra Civil de 1918-1921, a Nova Política Econômica de 1921 a 1929, a coletivização forçada e a industrialização acelerada dos anos 1930; as transformações no Estado Soviético, no Partido Comunista da União Soviética (PCUS) e na Internacional Comunista; os efeitos da invasão nazista em 1941 e da Grande Guerra Patriótica, seguidas da formação de governos comandados por partidos comunistas em diversos países do Leste Europeu; a postura do PCUS e da URSS na Guerra Fria, sua relação com as diferentes forças da esquerda no plano mundial; as reformas e contrarreformas; e, finalmente, o colapso e desaparecimento da União Soviética entre 1989 e 1991.

Há quem sustente que a URSS colapsou entre 1989-1991 por culpa da direção do PCUS, que teria aplicado uma política de “traição ao socialismo”.

Outros relacionam o colapso à “estagnação” ocorrida entre 1964 e 1985, que teria esclerosado o que restava de vital na experiência socialista soviética.

Há quem aponte o dedo acusador para as afirmações contidas no “relatório secreto” ao XX Congresso do PCUS, em 1956, bem como às demais resoluções adotadas então.

E há quem considere que a origem última do colapso da URSS remonta as opções feitas pela maioria dos comunistas soviéticos, depois de 1924.

Claro que não faltam, também, os que acusam os bolcheviques como um todo. Segundo esta vertente de análise, o Partido Bolchevique, em outubro de 1917, teria dado um golpe de Estado e capturado para “fins partidistas” o que até então seria uma revolução popular, autêntica e democrática.

E, finalmente, há os que consideram que o “pecado original” estaria em tentar fazer um processo de transformação social por meios violentos.

Como é óbvio, as pessoas que darão aula neste curso não compartilham estes dois últimos pontos de vista. Mas temos diferentes opiniões acerca do restante.

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Durante grande parte do século 19, e no início do século 20, os revolucionários russos e europeus discutiam intensa e abertamente qual seria a natureza da Revolução Russa, porque eles estavam convictos de que a revolução viria. E mesmo os que achavam que esta revolução seria burguesa, supunham que ela se encadearia com a revolução socialista na Europa Ocidental.

Quanto a esta, a  social-democracia revolucionária no século 19 imaginava que o processo de transição socialista ocorreria em primeiro lugar nos países capitalistas avançados; seria intrinsecamente democrático; e – passada a fase inicial da tomada e consolidação do poder – transcorreria em condições pacíficas. Por quê?

Simplificadamente, porque se imaginava que a revolução socialista triunfaria em primeiro lugar nos países capitalistas mais desenvolvidos, onde o proletariado tendia a ser maioria relativa da população. Portanto, onde a ditadura do proletariado seria uma ditadura da maioria. De outro lado, como os países capitalistas mais avançados eram os grandes promotores do imperialismo e da guerra, sua transformação em países socialistas criaria um contexto propício à construção e evolução pacífica do socialismo.

Como sabemos, não foi isso o que aconteceu. A Revolução Russa veio e deu início a uma transição socialista, mas sem o concurso de uma revolução nos países da Europa ocidental.

A Revolução de 1917 e as demais revoluções socialistas do século 20 ocorreram em países onde o proletariado era minoria; onde o capitalismo era relativamente pouco desenvolvido; e foram vítimas de sistemática agressão econômica, política, ideológica e militar por parte das potências capitalistas.

Observando retrospectivamente, podemos dizer que havia duas alternativas lógicas: ou abrir mão temporariamente da revolução, esperando que o capitalismo “complete” as condições objetivas e subjetivas supostamente ideais; ou insistir na revolução e, portanto, achar maneiras de enfrentar o atraso econômico, o predomínio da pequena propriedade, o cerco e a agressão capitalistas, buscando responder como, nesse contexto, impedir o regresso do capitalismo e prosseguir na construção do socialismo.

Aceita esta segunda alternativa, decorre que – no caso da URSS dos anos 1920-- não seria possível prolongar indefinidamente a Nova Política Econômica, não apenas pelos motivos citados antes, mas também por conta dos sinais crescentes de que ocorreria uma nova guerra mundial.

E se a afirmação anterior é verdadeira, cabe perguntar como conciliar uma “verdadeira democracia socialista”, com os conflitos titânicos resultantes da decisão de realizar uma coletivização e industrialização acelerada, nas condições históricas em que se realizaram aquelas ações.

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O colapso da União Soviética possibilita uma “autópsia” de parte dos debates e das teorias acerca da natureza do socialismo soviético.

As teorias que falam do totalitarismo, por exemplo, foram completamente desmoralizadas.

Elas foram estimuladas durante a Guerra Fria, para tentar neutralizar o papel que a União Soviética jogou na luta contra o nazismo; para tentar sequestrar em favor dos Estados Unidos e em favor do capitalismo a luta pela democracia; e também para justificar a corrida armamentista, pois supostamente a única maneira de destruir um inimigo “totalitário” seria por meio da guerra.

As diversas variantes da “teoria” do totalitarismo chegaram a ter a força de um preconceito, sendo comum que até mesmo pessoas de esquerda continuem se referindo à União Soviética como “totalitária”.

A força dessa categoria aparece de maneira indireta nas teses que atribuem o fim da URSS a algum fator externo, como se a União Soviética fosse mesmo um monólito sem contradições internas, submetida a um controle “totalitário”, uma ditadura “total” que, semelhante ao nazismo, só poderia ser destruída a partir de fora.

Outro  (paradoxal) exemplo da influência que as teorias do totalitarismo tiveram e têm sobre pessoas de esquerda, é a crença de que os Estados e as sociedades produto das revoluções socialistas seriam “indestrutíveis” e “irreversíveis”, o que há quem diga inclusive sobre processos (revolucionários ou não) que estão em curso neste momento.

Mas a experiência da própria URSS demonstrou que as revoluções e as sociedades produto delas são reversíveis, também podem ser derrotadas.

O colapso da União Soviética mostrou, ainda, a artificialidade das teorias que advogavam a existência que naquela sociedade existiria outro modo de produção. Ou de que não seria socialismo, mas sim apenas capitalismo de Estado.

De fato, a hipótese de que a União Soviética era uma sociedade socialista, portanto que tentava realizar a transição entre o capitalismo e o comunismo, é perfeitamente suficiente para “enquadrar” e compreender o que ocorreu, desde 1917 até o colapso. Sem prejuízo, óbvio, de aceitar e reconhecer que a formação soviética também incluía o capitalismo de Estado e outras relações de produção.

O colapso de 1991 também mostrou as debilidades das teses que afirmavam que a URSS seria “o” modelo do socialismo realmente existente.

Quem acreditava nisso, depois do colapso muito facilmente passou a acreditar que o socialismo se demonstrara impossível, ou seja, que o fim da União Soviética (do suposto modelo) seria o fim de todo o socialismo.

Isso ajuda a entender, aliás, por que muitos dos partidários daquela tese passaram para o outro lado. Boa parte dos burocratas dos partidos que dirigiam o socialismo de tipo soviético mudaram de lado.

Seja como for, o fato é que a sobrevivência e a decolagem da China mostraram que o modelo soviético não era o único tipo, a única variante, do socialismo realmente existente.

Aliás, devemos ir além e dizer que nunca houve e segue não havendo “modelos”. Assim como a transição do feudalismo para o capitalismo seguiu diferentes caminhos e assumiu diferentes formas, também a transição socialista assumiu no passado e seguirá assumindo no futuro diferentes caminhos e formas.

Aliás, a trajetória da própria União Soviética é, em si mesma, uma demonstração de que é possível organizar de várias formas uma sociedade socialista.

Podemos dizer, finalmente, que o colapso da URSS também mostrou as debilidades das diferentes teses segundo a qual existiria ali um “estado operário burocraticamente degenerado”, que deveria ser resgatado por uma “revolução política”, mecanismo supostamente capaz de redemocratizar a experiência soviética e revitalizar o socialismo. Assunto que será desenvolvido em outras aulas deste curso.

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Até agora, falamos da Revolução Russa e de todo o restante, sem citar o nome de ninguém. Mas é óbvio que a história é a ação de homens e mulheres.

Em 1845, aquela famosa dupla sertaneja alemã afirmou, em A sagrada família, o seguinte: A história nada faz, ela “não possui nenhuma riqueza imensa”, “não trava nenhuma batalha”. É o homem, o homem vivo, real, que faz tudo isto, que possui e luta; a “história” não é uma pessoa à parte, que usa o homem para seus próprios fins particulares; a história nada é senão a atividade do homem que persegue seu objetivo…

E, 45 anos depois, em 1890, em uma carta, o sobrevivente da dupla sertaneja alemã diria o seguinte: “a história é feita de maneira que o resultado final sempre surge da conflitante relação entre muitas vontades individuais, cada qual destas vontades feita em condições particulares de vida. Portanto, é a intersecção de numerosas forças, uma série infinita de paralelogramos de forças, que resulta em um dado evento histórico. Isto pode ser novamente interpretado de modo equívoco, sendo visto como um produto de um poder que trabalha como um todo, inconscientemente e sem vontade. Cada vontade individual é obstruída por outra vontade individual e o que emerge é uma vontade final não antecipada pelas singularidades envolvidas.  Assim, a história procede na forma de um processo natural e é essencialmente sujeitas às leis do movimento. Mas do fato de que as vontades individuais — das quais os desejos que impelem pela constituição física ou externamente e, em último lugar, pelas circunstâncias econômicas (sejam pessoais ou aquelas da sociedade em geral) — não obtém o que querem, mas tem suas vontades amalgamadas em um sentido coletivo, um resultante comum, não deve ser concluído que seus valores são iguais a zero. Ao contrário, cada parte singular contribui para o resultado e é, em certo grau, envolvido com esta soma final”.

O que foi dito antes tem relação com o que buscaremos fazer neste curso: discutir a contribuição de cada parte singular para o resultado histórico.

Assim, de toda a população da Terra no período analisado, de toda a população da sociedade russa e soviética no período analisado, de toda as classes trabalhadoras russa e soviética no período analisado, de todas as correntes socialistas no período citado, do bolchevismo e comunismo soviético no período analisado, vamos nos debruçar sobre dois personagens singulares: Trotski e Stalin, cuja vida e obra serão abordados em outras aulas.

A revolução russa foi obra de dezenas de milhões. E destas dezenas de milhões, algumas dezenas de milhares destacaram-se na direção dos partidos, dos sovietes, do comissariado do povo, do Estado e do Exército Vermelho. Destas dezenas de milhares, um pequeno número, algo entre 5 mil e exatos 246, constituíam uma espécie de “velha guarda”. E desta velha guarda, há pelo menos 7 que são impossíveis de não citar: Nikolái Ivánovich Bujarin; Lev Borisovich Kamenev; Vladimir Ilich Lenin; Iosif Stalin; Yákov Mijailovich Svérdlov; Lev Davuídovich Trotsky; Gregori Evséevich Zinoviev.

Sverdlov nasceu em 1885 e morreu em 1919 (de tifo, tuberculose ou gripe espanhola). Para nós, de outras gerações, é o menos conhecido, mas formou parte do núcleo mais duro e restrito do partido bolchevique antes e durante a revolução.

Lenin nasceu em 1870 e morreu em 1924. Não é preciso falar, aqui, a seu respeito.

Kamenev e Zinoviev nasceram em 1883 e foram executados em 1936, como parte dos chamados “Processos de Moscou”. Zinoviev assumiu um papel destacado num certo período da Internacional Comunista.

Bukarin nasceu em 1888 e foi executado em 1938, também como decorrência dos chamados Processos de Moscou. Além de também jogar um papel destacado na Internacional Comunista, Bukharin foi autor de diversos textos importantes nos debates do período, é bom dizer que defendendo posições muito diferentes entre si (ele foi, por exemplo, tanto um defensor radical do Comunismo de Guerra, quanto um defensor da NEP).

Stálin e Trotsky nasceram em 1879. Trotsky foi assassinado em 1940. Stalin morreu em 1953. São os principais personagens deste nosso curso e, como já disse, sua vida e obra serão abordadas em detalhe em outras aulas.

Aos que estiverem interessados em ler acerca do “papel da personalidade na história”, vinculando isto especificamente ao debate sobre a Revolução Russa, recomendo ler:

-as biografias de Trotsky e de Stalin, escritas por Isaac Deutscher;

-o capítulo intitulado “Personalidades, da obra Historia de la Rusia Sovietica do historiador E.H.Carr, volume “El socialismo em um solo país 1924-1926”;

-e o interessantíssimo Los bolcheviques, de Georges Haupt e Jean-Jacques Marie.

 

Por fim, um alerta: a luta política na Rússia, antes e depois da Revolução de 1917, nunca foi tranquila. E a luta interna no Partido Operário Social Democrata Russo, assim como no PC russo e depois soviético, sempre foi muito dura. Portanto, preparem vosso coração.

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