Se o companheiro Tarso Genro não existisse, teríamos que inventá-lo. Pois ele tem a qualidade de levar até as últimas consequências determinadas opções políticas.
Um exemplo disto
é a carta pública que Tarso enviou, no dia 29 de dezembro de 2020, ao
governador de São Paulo, João Doria. Quem ainda não leu, pode encontrar no endereço
abaixo:
https://aterraeredonda.com.br/carta-a-joao-doria/
Qual o objetivo explícito da carta?
Convocar João Doria a “iniciar um ‘impeachment’ em defesa da nação”.
Mas
antes de chegar neste finalmente, vale a pena conhecer o entretanto.
Tarso começa explicando a João
Doria que decidiu escrever “abrigado em três acontecimentos políticos", que o autorizam a pensar que "esta carta é oportuna”.
Os acontecimentos são, pela ordem:
1/ Doria ter dito que “a união na luta contra a Pandemia precede todas as demais questões políticas na conjuntura”;
2/ "o ódio exalado pelos dementes da base fascista do Presidente, que tem sido direcionado ao Senhor de uma maneira sordidamente especial”;
3/ "um vídeo em que Bolsonaro comete “no mínimo três
delitos”: “difamação”, “ameaça” pessoal e “ameaça direta ao Estado
de Direito Democrático”.
Talvez por ser de São Paulo e
ver o que se diz e o que efetivamente se faz, dou um grande desconto em todos os
elogios que são feitos ao Doria no tocante a qualquer coisa, a começar pelo combate à
pandemia.
Talvez por ser petista, não
consigo ver nada de “sordidamente especial” nos ataques feitos pelo bolsonarismo
contra o governador paulista; aliás, diria que falta bastante para que causem o
estrago dos sórdidos ataques que bolsonaristas (e o próprio Doria) cometem contra petistas.
Quanto aos crimes de Bolsonaro, acredito que Doria tem pleno conhecimento deles; talvez ele suspeitasse da inaptidão de Bolsonaro antes mesmo dele ser eleito, o que não o impediu de apoiá-lo na eleição presidencial de 2018. Nem de apoiar entusiasticamente a cruel reforma da Previdência Social implantada pelo governo Bolsonaro — e logo reproduzida, no âmbito estadual, pelo próprio Doria.
Mas como é véspera de Ano Novo, sigamos o conselho de Washington Quaquá, paremos de olhar pelo retrovisor e vamos olhar apenas pelo para-brisa: admitamos assim a hipótese de que Tarso possa ter mandado bem, ao estilo dos iluministas que escreviam para os déspotas esclarecidos de antanho.
[Aliás, sei lá por qual motivo exato, mas por falar em déspota, acabo de me lembrar de Lord Farquaad, de Shrek.]
Também recordando certas cartas enviadas aos "príncipes" do passado, Tarso diz humildemente para Doria o que segue: “Não
tenho evidentemente credenciais políticas para lhe propor qualquer aliança
política e nem esta é a minha intenção, com esta mensagem que torno pública.
Alianças dignas desse nome se fazem em torno de programas e não creio que isso
fosse factível entre nós, de uma parte porque tenho pouco poder convocatório,
de outra porque pensamos de modo diferente sobre muitas coisas essenciais,
exceto – provavelmente – a respeito dos males de todos os tipos, que o
Presidente Bolsonaro tem proporcionado à Federação e a todo nosso povo”.
Se Tarso estivesse certo, as
divergências entre Bolsonaro e o governador paulista iriam muito além da pandemia. Será verdade? E se for, iriam até onde? Será, por exemplo, que Doria diverge da política econômica neoliberal, do corte dos
direitos sociais, das ameaças às liberdades democráticas do povo, da militarização
da segurança pública, das ofensas à soberania nacional?
Sobre tudo isso, eu opino que “provavelmente”
Tarso exagerou na mão. Entretanto, assim como Alckmin na hora certa lembrou dos elogios feitos a ele por Haddad, “provavelmente” Doria vai lembrar dos elogios feitos a ele por Tarso, se isto for útil para capturar
votos numa eventual disputa contra Bolsonaro. Assim como pode fazer o
contrário, se a disputa for contra a esquerda.
A verdade é que, para todos os
setores da classe dominante brasileira, o “bom senso” e a “dignidade
republicana” não passam de máscaras para uso eventual e passageiro.
Mas Tarso parece não pensar
assim, pois se põe a explicar (para Doria!!!) que a “putrefação do Estado” (....)
“pode ocorrer quando as partes conflitantes (...) não têm forças suficientes
para levar a termo o controle do poder (...) e o 'empate' permanente entre as
forças políticas leva os organismos do Estado a uma lenta desagregação, até que
a crise seja solucionada pelo caos, que provém da inércia”.
[Confesso que não entendi a parte
final da explicação, pois nunca vi uma “crise” ser solucionada pelo “caos”. O
que já vi ou já li a respeito são duas coisas diferentes: 1/ o caos ser fomentado artificialmente,
para gerar pretexto e legitimação para "medidas extraordinárias"; 2/ o caos ser
resultado das circunstâncias e ser solucionado através de "medidas
extraordinárias". Mas imagino que Doria vai se interessar pelo raciocínio e vai entender perfeitamente tudo aquilo que eu não
alcancei. E talvez algo mais!]
Segundo Tarso, a situação acima citada
seria a “do país, não só pela divisão entre as forças que formaram
blocos distintos, depois da deposição ilegal da Presidenta Dilma, bem como
entre a totalidade daquelas forças – antes unidas – e a oposição social e
política formada pela esquerda e a centro-esquerda. Nenhuma destas forças tem a
possibilidade de comandar, no momento, a derrubada constitucional do Governo,
pelo impedimento do Presidente: a inércia se consolida e o Estado adoece
gravemente”.
Se entendi direito, a
continuidade de Bolsonaro gera o caos. E ainda assim Bolsonaro continua, porque nem a
direita não bolsonarista, nem a oposição de centro e de esquerda têm a “possibilidade
de comandar” o impeachment.
Aqui Tarso “passa o pano” em
Doria (e no grande empresariado). Afinal, é verdade que a esquerda e o centro não têm a “possibilidade de
comandar”. Mas a direita não bolsonarista tem a possibilidade de começar o processo
de impeachment, ou pelo menos poderia defender a proposta. Mas não faz nem
uma coisa, nem outra. Aliado de Doria, o presidente da Câmara, Rodrigo Maia, literalmente sentou-se sobre dezenas de pedidos de impeachment. O "caos" não é o mesmo para todos; alguns lucram muito com a situação.
Nesse ponto, a carta pública de
Tarso introduz o personagem adorado por 9 em cada 10 defensores da “frente
ampla”: o genial Winston Churchill, aquele do sangue, suor e lágrimas que
seriam derramadas em defesa... do Império Britânico.
Segundo entendi, o objetivo da citação
parece ser fisgar Doria pela vaidade: aja como um Churchill, seja um “estadista”.
Trocando em miúdos, Tarso pede
a Doria um grande "gesto", que mobilize não apenas ele, mas uma parte do “bloco
que derrubou a Presidenta Dilma”, aquela parte “que está em estranhamento
com o fascismo emergente”.
Tarso evoca até mesmo os brios bandeirantes. Não chega ao ponto de citar o lema do brasão - non ducor duco - mas o sentido do que escreve a Doria é o
mesmo: “pela sua condição de Governador do Estado mais importante do país, no
qual suas classes dominantes têm exercido uma tutela quase plena, há muitos
anos, o Sr. detém hoje a legitimidade necessária para – através dos devidos
processos legais – desequilibrar o jogo contra Bolsonaro. Pode reunir em torno
de si um apoio significativo do empresariado mais privilegiado e rico do país,
para defender seu Estado da barbárie negacionista e – por tabela – também
ajudar o país: Bolsonaro não pode continuar governando, o Estado está se
deteriorando e a aposta dele no 'quanto pior melhor' só favorece os assaltantes
do caos”.
Quando li estas palavras,
fiquei na dúvida sobre o que pensar. Tarso estaria dizendo tudo isto para desmascarar
Doria? Ou Tarso acredita mesmo que uma frente político-empresarial controlada
pela oligarquia paulista seria capaz de “ajudar o país”?
Pois esta é a questão de fundo:
Tarso, em nome pessoal, está propondo a Doria que assuma a liderança da luta
contra Bolsonaro. Se entendi direito, faz isso sob o argumento de que, se depender apenas
da oposição de esquerda, o gesto “poderá chegar tarde demais” e o “caos” seria por
demais perigoso.
A questão que parece escapar a
Tarso (assim como parece escapar aos que defendem apoiar o Bloco do Maia) é que
Bolsonaro é parte do nosso problema, mas o problema como um todo inclui o neoliberalismo;
como já escrevi noutro texto, “o programa que esta gente defende - o programa
neoliberal versão 5G - vai ampliar a desigualdade social e o corolário disso é
menos democracia, não mais democracia. Ou seja, na melhor das hipóteses,
teremos expulsado o cavernícola pela porta, mas as condições econômicas,
sociais e políticas continuarão propícias ao reino das cavernas”.
Tarso quer pegar um atalho para
se livrar do caos, mas o resultado tende a ser o oposto do que ele deseja.
Claro: para alguns setores médios talvez não. Mas para o povão, “provavelmente”
sim.
Não vou comentar o trecho da
carta pública que traz recordações familiares. Apenas registro que Tarso defende
compormos “um momento [sic] unitário de redução de danos, visando livrar o país
do seu verdadeiro Satanás”. E remete para um ciclo de debates que ele (Tarso,
não Satanás) está organizando, ciclo que até onde eu sei começará com... Ciro Gomes
no dia 18 de janeiro, tudo com o objetivo de “buscarmos um caminho comum, que
não será composto sem a derrubada constitucional do Satã em compota que nos
assola”.
Todo apoio ao Fora Bolsonaro,
ao impeachment e à derrubada constitucional. Mas se isso tudo não vier acompanhado do “fora
este governo e suas políticas”, poderemos ao final constatar que tirar o bode
da sala não reduz o aperto, embora possa melhorar o odor. Neste sentido, Doria é o cara certo: seus perfumes devem ser de última geração, talvez até tenha trazido alguns de sua recente viagem-relâmpago a Miami.
Um registro final: nenhuma palavra é dita na carta pública sobre a recuperação dos direitos políticos de Lula. Levando isto em consideração, mais a disposição de outras peças no tabuleiro (participação no Bloco do Maia, o que está rolando no Senado, a carta ao Doria etc.), temo que o movimento de "redução de danos" para impedir o "caos" pretenda ir bem mais longe do que se está dizendo, ao menos publicamente.
Quem for petista, que se cuide.
SEGUE O TEXTO
COMENTADO
https://aterraeredonda.com.br/carta-a-joao-doria/
Carta a João
Doria
Por TARSO GENRO*
Bolsonaro não pode continuar
governando, o Estado está se deteriorando e a aposta dele no “quanto pior
melhor” só favorece os assaltantes do caos
Prezado Governador João Doria:
Escrevo-lhe abrigado em três
acontecimentos políticos, que me autorizam pensar que esta carta é oportuna.
Não tenho evidentemente credenciais políticas para lhe propor qualquer aliança
política e nem esta é a minha intenção, com esta mensagem que torno pública.
Aliança dignas desse nome se fazem em torno de programas e não creio que isso
fosse factível entre nós, de uma parte porque tenho pouco poder convocatório,
de outra porque pensamos de modo diferente sobre muitas coisas essenciais,
exceto – provavelmente – a respeito dos males de todos os tipos, que o
Presidente Bolsonaro tem proporcionado à Federação e a todo nosso povo.
A política negacionista do
Presidente, suas posições ideológicas medievais e a sua lassidão – como gestor
e governante – cujo apetite principal só está expresso na loucura das
incomensuráveis asneiras que diz todos os dias e nas agressões que promove
todas as horas do dia, tanto ao bom senso como à própria
dignidade republicana do país.
O primeiro acontecimento
político a que me referi no início desta carta foi a sua manifestação –
praticamente em conjunto com o Presidente Lula – que a união na luta contra a
Pandemia precede todas as demais questões políticas na conjuntura; o segundo
acontecimento é o ódio exalado pelos dementes da base fascista do Presidente,
que tem sido direcionado ao Senhor de uma maneira sordidamente especial; o
terceiro é a gravação de um vídeo, pelo Presidente Bolsonaro – largamente
difundido nas redes – onde ele comete no mínimo três delitos, ao reportar-se ao
Senhor: difamação, o primeiro; ameaça (contra a sua pessoa) o segundo; e
chamamento à organização de Milícias (formação de quadrilhas politizadas), o
terceiro, que configura ameaça direta ao Estado de Direito Democrático.
O conjunto destas
manifestações, já “naturalizadas” no país, conforma mais um crime de
responsabilidade do Presidente da República, cuja inaptidão para o cargo já
extravasou todos os limites.
A “putrefação do Estado”, Sr.
Governador, pode ocorrer quando as partes conflitantes, em um dado momento da
história, não têm forças suficientes para levar a termo o controle do poder –
democraticamente ou não – e o “empate” permanente entre as forças políticas
leva os organismos do Estado a uma lenta desagregação, até que a crise seja
solucionada pelo caos, que provém da inércia.
Esta é a situação do país, não
só pela divisão entre as forças que formaram blocos distintos, depois da
deposição ilegal da Presidenta Dilma, bem como entre a totalidade daquelas
forças – antes unidas – e a oposição social e política formada pela esquerda e
a centro-esquerda. Nenhuma destas forças tem a possibilidade de comandar, no
momento, a derrubada constitucional do Governo, pelo impedimento do Presidente:
a inércia se consolida e o Estado adoece gravemente.
Churchill dizia que o
pessimista vê dificuldade em toda a oportunidade e o otimista vê oportunidade
em toda a dificuldade e, mais ainda: que um demagogo se move pensando nas
próximas eleições e um estadista o faz pensando nas próximas gerações. Nesta
situação complexa que vive o país precisamos de um grande gesto que, se não
partir do bloco que derrubou a Presidente da Dilma – da parte que está em
estranhamento com o fascismo emergente – poderá chegar tarde demais, quando a
oposição reunir forças para sermos sujeitos iniciantes deste processo.
Pela sua condição de Governador
do Estado mais importante do país, no qual suas classes dominantes têm exercido
uma tutela quase plena, há muitos anos, o Sr. detém hoje a legitimidade
necessária para – através dos devidos processos legais – desequilibrar o jogo
contra Bolsonaro. Pode reunir em torno de si um apoio significativo do
empresariado mais privilegiado e rico do país, para defender seu Estado da
barbárie negacionista e – por tabela – também ajudar o país: Bolsonaro não pode
continuar governando, o Estado está se deteriorando e a aposta dele no “quanto
pior melhor” só favorece os assaltantes do caos.
Conhecendo a História do seu
pai, Deputado João Doria do Partido Democrata Cristão dos idos de 64 (que pouco
tem a ver com uma boa parte dos ditos cristãos atuais) penso que ele se
orgulharia de uma atitude como a que lhe sugiro, digna de um Chefe de Estado:
iniciar um “impeachment” em defesa da nação.
Seu pai, como o meu, foi
cassado nos primeiros dias do Golpe de 64, e nós – como seus descendentes
morais e de “sangue” – tomamos caminhos diferentes. Um à esquerda, outro à
direita, mas nada impede que falemos para – pelo menos por carta – compormos um
momento unitário de redução de danos, visando livrar o país do seu verdadeiro
Satanás, como disse o Governador Flávio Dino, referindo-se ao atual Presidente
da República.
Centenas de organizações
políticas em rede do país buscam os caminhos da unidade, em um território
desarmado da sua dignidade republicana, no qual traçam os difíceis caminhos
para a regeneração política e econômica da nação. Dia 18, começaremos –
Instituto Novos Paradigmas, Instituto Declatra (Defesa da Classe Trabalhadora)
e DDF (Democracia e Direitos Fundamentais) mais um destes debates entre grandes
lideranças de esquerda e centro-esquerda no país. É para buscarmos um caminho
comum, que não será composto sem a derrubada constitucional do Satã em compota
que nos assola: reúna sua turma, Governador, e responda – como Chefe de Estado
– as ofensas que ele lhe assacou. Por São Paulo e pelo Brasil.
Respeitosamente. Tarso Genro.
*Tarso Genro foi governador do
Estado do Rio Grande do Sul, prefeito de Porto Alegre, ministro da Justiça,
ministro da Educação e ministro das Relações Institucionais do Brasil.