terça-feira, 29 de julho de 2014

Não é ignorância. É coerência.

Recomendo a leitura do artigo publicado hoje (29 de julho) por Cláudio Lottenberg, presidente da Confederação Israelita do Brasil, no jornal Folha de S. Paulo.

Título do artigo: "Antissionismo é antisemitismo".

Neste artigo, Lottenberg afirma que o único caminho para paz é reconhecer dois Estados para dois povos

Ao menos em tese, portanto, Lottenberg reconhece que os palestinos têm os mesmos direitos que os israelenses. Portanto, os palestinos têm direito a ter seu Estado, sua soberania, seu território e uma vida em paz.

Mas se é assim, por quais motivos o governo de Israel vem solapando continuamente toda e qualquer possibilidade dos palestinos usufruírem daqueles direitos?

Certas justificativas são conhecidas: acusar os palestinos, ou parte deles, ou seus aliados, de "atirar a primeira pedra" e de "antissemitismo".  

Estas acusações deixam alguns na defensiva, especialmente aqueles que esquecem (ou preferem não lembrar) que a Palestina está sob ocupação. 

E que, portanto, errados ou certos nas táticas que adotam e nos discursos que fazem, todos os palestinos estão no seu legítimo direito de lutar contra tropas de ocupação.

Evidentemente, quem apoia o direito à autodeterminação dos palestinos não tem como negar o mesmo direito à autodeterminação dos israelenses. Isto obviamente vale para quem defende a solução dos dois Estados; e o mesmo princípio deve valer inclusive para quem defende a solução de um único Estado democrático.

O governo de Israel, sabendo disto, alega que seus ataques contra a Palestina são exercício do legítimo "direito de defesa". Portanto, bombardeiam Gaza em defesa da soberania nacional e do direito à autodeterminação contra... os que desejam destruir Israel e os judeus.

Este argumento poderia ser honesto, não existissem os assentamentos ilegais, não existisse o Muro, não existisse a ocupação. 

Mas como a ocupação da Palestina por Israel existe, do ponto de vista do direito internacional a única "legítima defesa" é aquela exercida pelos palestinos. Pois a violência cometida pelo governo de Israel visa manter a ocupação.

A verdade é que o governo de Israel trabalha com base na seguinte premissa: a existência e a sobrevivência de Israel dependem da ocupação da Palestina. Portanto, dependem de impedir que haja dois Estados convivendo em igualdade de condições.

Sendo esta a premissa fundamental, não admira que sobre ela se erga uma "ideologia" nacionalista, racista e fundamentalista. A saber...o sionismo

Gaza não recorda Guernica por mero acaso: o sionismo, nacionalista e racista, tem suas afinidades eletivas com o nazismo, por exemplo na medida que ambas "ideologias" conferem direitos mais-do-que-super-especiais a uma parte dos seres humanos, em detrimento de outros.  

Neste sentido, é puro diversionismo a afirmação que Lottenberg faz em seu artigo: a de que até hoje os palestinos pagam por alianças que seus líderes teriam feito com a Alemanha nazista, durante a Segunda Guerra Mundial. 

Especialmente vindo de um governo que tem recebido apoio do governo alemão para as barbaridades que comete em Gaza, este argumento não passa de cortina de fumaça... e ato falho, pois no fundo o sionismo moderno usa as atrocidades cometidas pelos nazistas como uma espécie de "licença para matar". 

Uma espécie de retaliação a posteriori, evidentemente não contra os nazistas, seus descendentes e aliados, mas contra inimigos muito mais frágeis: uma valentia bem pós-moderna.

Se antissemitismo é igual a antissionismo, então a defesa de Israel exige a defesa do sionismo. Mais ou menos como equiparar a defesa da Alemanha com a defesa do nazismo. Totalitarismo ideológico e estupidez, que só reforçam a certeza de que os maiores inimigos da sobrevivência de Israel são os fanáticos que dirigem o governo de Israel.

Seja como for, não se trata de ignorância, mas de coerência: a aposta destes fanáticos é tudo ou nada numa guerra sem fim. Uma aposta perigosa para eles e para todo o mundo. 




Plano de aula sobre "história da luta pelo socialismo"

Jornada de formação da AE
Plano de aula sobre "história da luta pelo socialismo"

-dia 30 de julho, noite

Roda de conversa com os participantes, para identificar quais os temas que cada participante considera prioritário desenvolver.

1) surgimento e desenvolvimento do capitalismo;

2) como a luta de classes no capitalismo cria as condições objetivas e subjetivas para uma sociedade baseada na propriedade social dos meios de produção (e como, ao mesmo tempo, cria as condições para a continuidade do capitalismo e também para a "destruição das partes em luta");

3) a diferença entre transição socialista e modo de produção comunista;

4) a luta pelo socialismo, as reformas no capitalismo e as revoluções socialistas;

-dia 31 de julho, manhã

5) as revoluções burguesas de 1789 a 1848, as várias correntes socialistas e o surgimento do marxismo;

6) a Comuna de Paris e o surgimento da social-democracia;

-dia 31 de julho, tarde

7) as revoluções russa de 1905 e 1917, o "imperialismo", a primeira guerra mundial,  e o surgimento do comunismo;

8) as derrotas da revolução na Europa, a crise de 1929, a guerra civil espanhola e o surgimento das "dissidências comunistas" (esquerdismo, luxemburguismo, Trotsky, Gramsci);

9) segunda guerra mundial, regimes "democrático-populares" no Leste Europeu, as vitórias da revolução chinesa de 1949 (Vietnã, Coréia) e da revolução cubana de 1959: os "diferentes caminhos" para o socialismo;

10) o Estado de bem-estar social na Europa, a social-democracia (em sua versão "oficial" e em sua versão de esquerda), vis a vis o que acontece na periferia (imperialismo colonial, imperialismo capitalista);

11) nos Estados Unidos...

-dia 31 de julho, noite: 

Documentário A Batalha do Chile

-dia 1 de agosto, manhã

12) a crise dos 1970, a reação dos EUA e o impacto sobre os demais;

13) a derrota das guerrilhas, da experiência da Unidade Popular chilena, da social-democracia e do socialismo soviético: a explosão do movimento comunista, a virada neoliberal da social-democracia, os impasses do nacionalismo e do desenvolvimentismo;

-dia 1 de tarde:

14) o imperialismo capitalista moderno, a crise do neoliberalismo, avanços e dificuldades do movimento socialista

sexta-feira, 25 de julho de 2014

Truques do "gigante"



O governo de Israel é usuário tradicional do seguinte "truque": "exigir" que nos lembremos das "agressões terroristas" de que foram "vítimas".

O governo brasileiro é uma das vítimas deste  "truque": toda nota acerca do conflito Israel/Palestina tem que condenar uns e outros.

E quando "esquecemos" de fazer isto, viramos "anões".

Ou "aliados dos terroristas", coisa de que já fui acusado, numa ofensiva anterior contra Gaza, por conta de uma nota que eu e o então presidente do PT Ricardo Berzoini assinamos.

O governo brasileiro agiu certo ao criticar as agressões cometidas por Israel, assassinando civis. E agiu mais certo ainda chamando nosso embaixador para consultas.

Cabe lembrar: Israel ocupa a Palestina.

Portanto, os palestinos têm todo o direito de lutar contra a ocupação.

E não conheço um único caso onde a luta contra a ocupação não tenha sido acusada de "terrorismo"  pelas forças de ocupação.

Não estamos diante de uma guerra desigual entre dois Estados.

Estamos diante de uma luta desigual entre um exército de ocupação e diferentes setores de um povo ocupado.

Posso não gostar das atitudes deste ou daquele setor.

Mas nunca, nunca, podemos esquecer que são atitudes de quem está há décadas submetido a ocupação.

Por isto, espero que sejamos mais "anões" ainda e rompamos relações diplomáticas. O governo de Israel precisa ser isolado.

domingo, 20 de julho de 2014

Desproporcional?

O governo brasileiro e o Partido dos Trabalhadores divulgaram, recentemente, notas condenando o ataque de Israel contra Gaza.

Nestas e noutras, aparece o termo "desproporcional".

O uso deste termo é compreensível, dada a disparidade do poder de fogo e na distribuição de mortos e feridos.  

Mas o uso do termo "desproporcional" pode passar a impressão de que a diferença fundamental entre Israel e Palestina é militar.

E não é.

A diferença fundamental é a seguinte: Israel ocupa a Palestina.

As tropas de Israel são tropas de ocupação.

Os palestinos têm todo o direito de lutar contra a ocupação. 

Portanto, não se trata apenas de desproporcionalidade militar, mas do propósito das ações militares: de um lado, um exército de ocupação; de outro lado, a luta pela libertação nacional.

Anexo

MENSAGEM DE CLAUDIO LOTTENBERG, PRESIDENTE DA CONIB
Devido à entrevista que concedi à jornalista Monica Bergamo, da Folha de S. Paulo, tenho recebido críticas e elogios.
Gostaria, com humildade e um sentimento de prestação de contas à comunidade - à qual me dedico desde a juventude -, comentar as críticas.
Primeiramente, desejaria enfatizar que as recebo com espírito democrático. Habituei-me, ao longo de minha trajetória profissional e comunitária, a aprender com opiniões contrárias.
Em segundo lugar, gostaria de destacar que, em algumas das críticas, é mencionado um suposto pedido de desculpas. Não fiz isso. Lamentei a linguagem utilizada pelo porta-voz. Achei-as deselegantes, pois criticaram o Brasil, o país como um todo, ao chamá-lo de irrelevante.
O porta-voz, como é hábito na diplomacia, poderia dirigir críticas a um governo e a sua política externa, não a um país, encampando toda sua história e toda a sua população.
E, ao recorrer à ironia, equivocou-se. É difícil e incômodo admitir, mas não há como tapar o sol com a peneira.
Suas declarações geraram mal-estar em diversos setores da sociedade brasileira. Não foi apenas no plano do governo federal.
Como presidente da Conib, tenho a responsabilidade de zelar por nossa comunidade e pela intensificação dos laços entre Brasil e Israel.
Gostaria de enfatizar também que não me afastei  um milímetro das posições assumidas pela Conib desde o início do conflito. Reiterei sempre que não aceito a tese da desproporcionalidade, sustento o direito de Israel se defender e mantenho a crítica às últimas atitudes do Itamaraty, como expressam as notas divulgadas pela Conib.
De qualquer maneira, despeço-me agradecendo as sugestões e as críticas.
E diria ainda que, neste momento de desafios históricos, precisamos manter nossa coesão, sem abrir mão do exercício de crítica. Precisamos encarar a responsabilidade nas tarefas absolutamente fundamentais de defender o Estado de Israel e combater o antissemitismo. Fazemos tudo isso em nome de nossos filhos, dos filhos de Israel e de todo o povo judeu.
Claudio Lottenberg
Presidente da Confederação Israelita do Brasil







sexta-feira, 18 de julho de 2014

Não teve hexa. Mas teve Copa!

http://www.pagina13.org.br/publicacoes/saiu-o-pagina-13-de-julho-2/#.U8lXWpRdXrA

Editorial
Não teve hexa. Mas teve Copa!
Sem poder falar do futuro que pretendem construir e sem poder falar do seu próprio passado – quando implementaram no Brasil o programa neoliberal - o que resta para a oposição de direita é criticar “tudo isto que está aí”, combinando a denúncia de problemas (reais ou não), a manipulação midiática e a sabotagem ativa, para criar um ambiente de crise, deterioração e caos.
Por isto o oligopólio da mídia anda tão crítico quanto à realidade brasileira.
Por isto falaram que “não vai ter Copa”, por isto torceram abertamente para que ocorresse algum desastre que prejudicasse a competição, por isto tentaram (ainda que sem sucesso) “capitalizar” os xingamentos à presidenta no jogo deabertura, por isto comemoraram a eliminação da seleção brasileira, por isso (e não por razões futebolísticas) direcionaram suas simpatias à Alemanha na final.
O objetivo do oligopólio da mídia era e segue claro: reforçar o ambiente negativo do qual se nutrem as candidaturas da oposição de direita.
Deste ponto de vista, não tiveram êxito: não teve hexa, mas teve Copa, que segundo muitos especialistas,dentro e fora do Brasil, foi das melhores realizadas até hoje. Por isto, embora já exista gente cobrando o atraso nas obras das Olimpíadas (!!!), este flanco está defendido, ainda que se faça necessário um balanço do conjunto da obra, pois a condução das obras, as concessões à Fifa, o estado da CBF, o desempenho do time e “principalmente” a composição social predominante nos estádios merecerá muita reflexão e principalmente medidas concretas.
Para além da Copa, a questão para o governo e para o PT não está apenas na defesa (geralmente mal conduzida), mas no ataque. Como demonstram vários textos desta edição de Página 13, a linha geral da campanha não está à altura do objetivo de reeleger Dilma em condições dela realizar um segundo mandato superior ao primeiro.
E por falar em reação à altura: Página 13 se soma a todos os que repudiam os ataques do governo de Israel contra a população palestina residente na Faixa de Gaza.
Para este ataque, o pretexto foi o assassinato de três jovens israelenses.
Não fosse este, seria outro. Pois o que está em jogo é inviabilizar o Estado, roubar o território e exterminar a população da Palestina.
Como sempre ocorre, há quem critique o ataque de Israel contra Gaza como “desproporcional”. Não sabemos se esta palavra foi usada a respeito de Guernica, Lídice e Varsóvia. De nossa parte, preferimos falar outra coisa: assassinato deliberado contra civis é crime de guerra.
Nisso, o modus operandi do governo de Israel é similar ao dos nazistas. E quem não denuncia isto age de maneira similar aos colaboracionistas.
http://www.pagina13.org.br/publicacoes/saiu-o-pagina-13-de-julho-2/#.U8lXWpRdXrA

quarta-feira, 16 de julho de 2014

Nota da direção nacional da AE sobre prisões no RJ

Prisões no RJ violentam a Democracia. Liberdade já para
os que ainda estão presos! Estado de Exceção nunca mais!

As prisões de dezenas de pessoas realizadas no Rio de Janeiro e no Rio Grande do Sul, por ordem de um juiz, a pretexto de evitar sua eventual participação em possíveis manifestações contra a Copa do Mundo, são uma clara violação das liberdades democráticas.

Nosso país conquistou a derrubada da odiosa Ditadura Militar, que o oprimiu por mais de duas décadas, por meio de greves, passeatas e manifestações populares.

Por isso mesmo, repudiamos o Estado de Exceção que vem caracterizando a atuação do aparato repressivo em algumas unidades da federação, como Rio de Janeiro e São Paulo. Repudiamos a criminalização da pobreza e dos movimentos sociais, bem como as sistemáticas agressões de policiais militares a jornalistas e comunicadores que registram a barbárie disseminada pelas tropas da PM.

Também por isso, deploramos as desastrosas manifestações do ministro da Justiça e do Advogado Geral da União de apoio a essas prisões. O governo não pode se fiar nas declarações dos mentores do Estado de Exceção, nem dar qualquer tipo de suporte a violações dos direitos humanos.

Esperamos que os ativistas e outras pessoas que ainda se encontram presas sejam imediatamente soltas. Chega de Estado de Exceção. Terrorismo de Estado nunca mais!

Brasília, 16 de julho de 2014

Direção Nacional da Articulação de Esquerda
Tendência do Partido dos Trabalhadores

http://www.pagina13.org.br/resolucoes-e-documentos-da-ae/nota-da-articulacao-de-esquerda-sobre-prisoes-no-rj/

segunda-feira, 14 de julho de 2014

Editorial da Esquerda Petista 2

http://www.pagina13.org.br/publicacoes/saiu-o-n-2-da-revista-esquerda-petista/#.U8PaZZRdXrA

Iniciamos repetindo o editorial da edição anterior: embora seja uma revista editada sob responsabilidade da Articulação de Esquerda, Esquerda Petista não é “porta-voz” da tendência. Cada autor é responsável pelo que escreve, e suas posições não precisam coincidir necessariamente com as posições da tendência. Até porque nossa revista é aberta a militantes que, sendo de esquerda, não são integrantes da AE.

Esquerda Petista busca circular na intelectualidade de esquerda em geral, especialmente aquela vinculada ao PT. Entendendo por intelectualidade os dirigentes que “formam a opinião” da classe trabalhadora.

Editorialmente, Esquerda Petista busca travar o debate de maior fôlego ideológico, teórico, programático e estratégico, sobre um conjunto de assuntos: o capitalismo do século 21, a crise internacional, a integração regional e nossa política externa; a análise do capitalismo e a luta pelo socialismo no Brasil, a luz das tentativas feitas ao longo do século 20; a discussão sobre programa e estratégia, incluindo rumos do desenvolvimento e meio-ambiente, políticas públicas universais e reformas estruturais; educação, cultura e comunicação na luta por hegemonia; os debates de fundo acerca da conjuntura e tática; o balanço dos governos encabeçados pelo PT, em âmbito nacional, estadual e municipal; as diferentes manifestações da luta de classes, incluindo eleições, movimentos e lutas sociais; as questões de gênero, raça e orientação sexual; a análise crítica do conteúdo da mídia (TV, rádio, internet, revistas teóricas e políticas, livros); resenhas de livros e outras publicações; e um acompanhamento do debate acerca do PT e do conjunto da esquerda brasileira.

Cumprindo o compromisso assumido, esta segunda edição de Esquerda Petista começa a circular durante a plenária estatutária da Central Única dos Trabalhadores. E tem como “eixo temático” exatamente
a classe trabalhadora brasileira. Assunto urgente, pois há na esquerda quem insista no erro, chamando de “classe média” os setores da classe trabalhadora que, desde 2003, vem ampliando sua capacidade de consumo.

Aliás, entre os desafios imediatos da classe trabalhadora brasileira, está a reeleição de Dilma Rousseff presidenta da República.

Aos que lamentam a moderação deste e de governos anteriores, e aos que tem dúvidas sobre o que será um quarto mandato presidencial, sugerimos observar o que diz e principalmente o que faz a direita brasileira, o oligopólio da mídia, os governos imperialistas e o grande Capital. Esta gente nunca nos faltou, quando se tratava de indicar seu lado. O nosso lado, é o oposto deles, sempre.

O fechamento desta edição coincidiu com o falecimento de Plínio de Arruda Sampaio (1930-2014).

Esquerda Petista se incorpora às homenagens feitas pelos familiares, amigos, companheiros de luta e adversários honestos.

Os editores

Ps. Entre os vários erros cometidos na primeira edição desta revista, há um já corrigido na versão digital que precisa ser mencionado aqui: a companheira Karen Lose é coautora do texto “Luta feminista e luta de classes”.


Ps2.A terceira edição de Esquerda Petista circulará após as eleições de 2014.

http://www.pagina13.org.br/publicacoes/saiu-o-n-2-da-revista-esquerda-petista/#.U8PaZZRdXrA

sábado, 12 de julho de 2014

Texto de 2010

Brasil, caminhos para o pós-neoliberalismo

A Fundação Perseu Abramo nos convidou para falar sobre as “bases para um projeto democrático e popular para o Brasil”. Em seguida, haverá outra mesa para discutir “elementos para o debate do paradigma pós-neoliberal”.

Ambos os temas podem ser abordados de duas maneiras diferentes:

a)uma discussão sobre o que pretendemos que faça um segundo mandato Lula;

b)uma discussão sobre nosso projeto estratégico, para além desta conjuntura. Esta será minha abordagem.

Vou começar tratando o tema geral deste seminário.

Fala-se em “caminhos” (no plural) para o pós-neoliberalismo (no singular). Na verdade, o “pós-neoliberalismo” também deveria estar no plural.

Para ficar claro o motivo desta afirmação, é preciso lembrar que o pós-neoliberalismo é uma visão de mundo; uma ação política orientada por esta visão de mundo; e um determinado arranjo de forças, que caracteriza atualmente o capitalismo em escala internacional.

Quais são os traços gerais deste arranjo de forças? Uma hegemonia capitalista sem precedentes na história, uma predominância do capital financeiro, uma alteração no papel do Estado, a hegemonia norte-americana e uma instabilidade profunda em escala global

O que seria, então, o pós-neoliberalismo?

No sentido fraco, seria o abandono do radicalismo ideológico que caracterizou inicialmente a ofensiva neoliberal, em prol de alternativas mediadas (como a terceira via, a centro-esquerda etc.).

No sentido forte, seria um novo arranjo de forças (interno e/ou em escala mundial). Este novo arranjo pode se dar nos marcos do capitalismo, pode ser dar superando o capitalismo ou pode conduzir à destruição da humanidade.

Portanto, não existe um, mas vários paradigmas pós-neoliberais. Ou ainda, só faz sentido falar em pós-neoliberalismo, para fazer referência a um período histórico de transição.

Este mesmo raciocínio pode ser aplicado ao discutirmos as “bases para um projeto democrático e popular”.

Nosso ponto de partida, no outro tema, foi a crise do neoliberalismo; neste tema, nosso ponto de partida é a crise do modelo de desenvolvimento brasileiro, marcado pela associação subordinada ao capital estrangeiro, pela concentração de riqueza e pela concentração de poder.

Este modelo entrou em crise no final dos anos 1970. Depois de uma década de estagnação (os anos 1980), houve o experimento neoliberal (anos 1990). O resultado foi uma tripla crise: a crise do modelo, o aprofundamento da crise devido ao “remédio” neoliberal e a crise do neoliberalismo.

Quais os desenlaces possíveis para esta tripla crise?

Uma possibilidade é o “pântano”: mais uma ou duas décadas perdidas.

Outra possibilidade é um novo ciclo de desenvolvimento capitalista. Mas para isso é preciso que se combinem, como nos anos 1930, uma janela internacional (com um desligamento forçado, por crise e/ou por guerra, entre o Brasil e a economia internacional) com as oportunidades geradas pela crise (desemprego maciço, fronteiras inexploradas para a acumulação de capital etc.).

Uma terceira possibilidade é um desenvolvimento de tipo socialista.

Como estamos diante de várias alternativas, é fundamental definirmos qual é o nosso objetivo.

Óbvio que ter um objetivo não garante que tenhamos força para alcançá-lo. Ter um objetivo não dispensa, tampouco, a necessidade de ter uma estratégia e táticas. Mas ter um objetivo claro ajuda a organizar o pensamento e a ação.

O neoliberalismo é um exemplo exitoso de como um objetivo programático claro ajuda a organizar uma ofensiva política vitoriosa. A ascensão do Welfare State na Europa é um exemplo de como um objetivo mais audacioso as vezes não é alcançado, mas em parte devido a ele, é possível estabelecer um novo equilíbrio de forças num ponto bastante avançado. Já o governo Lula é um exemplo de como o rebaixamento nos objetivos estratégicos conduz a um rebaixamento ainda maior nas conquistas táticas.

Colocar (ou recolocar) o socialismo como objetivo estratégico do PT, na atual quadra história, supõe enfrentar várias objeções, entre elas: a de que o socialismo teria se esgotado; a de que deveríamos ter como objetivo o Welfare State; ou a de que não haveria correlação de forças para tal.

Enfrentar estas objeções é lembrar que a imensa hegemonia do capitalismo recolocou a atualidade do marxismo e do socialismo; e lembrar que está havendo um deslocamento da correlação de forças, na América Latina, que nos permite ser mais ousados, embora não recomende triunfalismos.

Nosso desafio é partir desta correlação de forças e das contradições do capitalismo, para construir uma estratégia que nos leve em direção a um pós-neoliberalismo de tipo socialista. É disto que se trata, quando discutimos as bases de um programa democrático e popular.

O chamado “programa democrático e popular” sempre foi o apelido dado para um programa de transição. Foi assim nos “regimes democrático-populares” do Leste Europeu e na Nova Democracia chinesa pós-1949. Foi assim no programa etapista do comunismo brasileiro. E foi assim, também, nas formulações do 5º Encontro Nacional do PT.

Claro que a trajetória do conceito “democrático e popular”, no interior do PT, foi muito acidentada.

No 5º Encontro, este conceito pressupunha que coincidissem, no tempo, dois fenômenos distintos: o fim da “transição democrática” e o início de uma ruptura com o capitalismo, ruptura que seria anti-imperialista, anti-latifundiária e anti-monopolista.

Por isso, no 5º Encontro a eleição presidencial seria a ante-sala de um processo de aprofundamento ainda maior da luta de classes. Mas a história seguiu outro rumo e, ao invés de uma vitória eleitoral, tivemos uma derrota; e ao invés de um avanço em direção ao socialismo, tivemos um retrocesso neoliberal.

De toda forma, foi este o significado do “democrático e popular”, pelo menos desde 1987 até 1993.

No 10º Encontro Nacional do PT, em 1995, a expressão “governo democrático e popular” foi mudando de sentido, perdendo o conteúdo estratégico revolucionário e de transição ao socialismo e ganhando um conteúdo tático, mais vinculado aos governos municipais, estaduais e ao governo Lula, governos que seriam de oposição ao neoliberalismo, não de transição ao socialismo.

Obviamente, não se esperava de um governo municipal, eleito nos anos 1990, que implementasse tarefas anti-latifundiárias, anti-imperialistas e anti-monopolistas. Manteve-se o nome, mas modificou-se o conteúdo dos conceitos, quando nada impediria que nos adaptássemos às possibilidades da conjuntura, sem perder de vista o objetivo estratégico.

O que está posto para nós, hoje, é recolocar o objetivo estratégico. Que se materializa em cinco grandes pontos:

1.Derrotar a ditadura do capital financeiro, reduzindo o peso do setor financeiro privado, ampliando o peso do setor financeiro público e reduzindo ao mínimo possível o estoque e o serviço da atual dívida pública.

2.Integração da América Latina, político-cultural e de infra-estrutura.

3.Ampliação do investimento público, em detrimento do espaço dos monopólios privados, crescendo o investimento do Estado, em particular nas áreas sociais.

4.Redistribuição da riqueza e da renda, em particular em torno dos temas salários, terra e infra-estrutura urbana.

5.Poder popular, modificando a institucionalidade, ampliando a força das organizações sociais e da esquerda política.

Estes cinco pontos constituem as “bases do programa democrático e popular”, no sentido estratégico da palavra, pois sua implementação gera uma dinâmica anti-capitalista.

Esta orientação estratégica se traduz, no terreno tático de um segundo mandato presidencial, da seguinte forma: a)assumir que governamos nos marcos de uma brutal hegemonia neoliberal, motivo pelo qual temos que ter uma estratégia que nos permite derrotar esta hegemonia; b)lembrar que se nem todos os nossos objetivos são possíveis de alcançar hoje, nem por isso eles deixam de ser nossos objetivos; c)reafirmar que a centralidade da luta contra o neoliberalismo está na política, na alteração da correlação de forças entre as classes sociais.

Neste sentido, os documentos aprovados no XIII Encontro Nacional do PT são positivos, embora tímidos. Neste mesmo sentido, a proposta de adotar o Estado de bem-estar social como objetivo estratégico de um segundo mandato presidencial, tal como foi proposta por Juarez Guimarães, constitui um grande retrocesso.



Brasil, caminhos para o pós-neoliberalismo

A Fundação Perseu Abramo nos convidou para falar sobre as “bases para um projeto democrático e popular para o Brasil”. Em seguida, haverá outra mesa para discutir “elementos para o debate do paradigma pós-neoliberal”.

Ambos os temas podem ser abordados de duas maneiras diferentes:

a)uma discussão sobre o que pretendemos que faça um segundo mandato Lula;

b)uma discussão sobre nosso projeto estratégico, para além desta conjuntura. Esta será minha abordagem.

Vou começar tratando o tema geral deste seminário.

Fala-se em “caminhos” (no plural) para o pós-neoliberalismo (no singular). Na verdade, o “pós-neoliberalismo” também deveria estar no plural.

Para ficar claro o motivo desta afirmação, é preciso lembrar que o pós-neoliberalismo é uma visão de mundo; uma ação política orientada por esta visão de mundo; e um determinado arranjo de forças, que caracteriza atualmente o capitalismo em escala internacional.

Quais são os traços gerais deste arranjo de forças? Uma hegemonia capitalista sem precedentes na história, uma predominância do capital financeiro, uma alteração no papel do Estado, a hegemonia norte-americana e uma instabilidade profunda em escala global

O que seria, então, o pós-neoliberalismo?

No sentido fraco, seria o abandono do radicalismo ideológico que caracterizou inicialmente a ofensiva neoliberal, em prol de alternativas mediadas (como a terceira via, a centro-esquerda etc.).

No sentido forte, seria um novo arranjo de forças (interno e/ou em escala mundial). Este novo arranjo pode se dar nos marcos do capitalismo, pode ser dar superando o capitalismo ou pode conduzir à destruição da humanidade.

Portanto, não existe um, mas vários paradigmas pós-neoliberais. Ou ainda, só faz sentido falar em pós-neoliberalismo, para fazer referência a um período histórico de transição.

Este mesmo raciocínio pode ser aplicado ao discutirmos as “bases para um projeto democrático e popular”.

Nosso ponto de partida, no outro tema, foi a crise do neoliberalismo; neste tema, nosso ponto de partida é a crise do modelo de desenvolvimento brasileiro, marcado pela associação subordinada ao capital estrangeiro, pela concentração de riqueza e pela concentração de poder.

Este modelo entrou em crise no final dos anos 1970. Depois de uma década de estagnação (os anos 1980), houve o experimento neoliberal (anos 1990). O resultado foi uma tripla crise: a crise do modelo, o aprofundamento da crise devido ao “remédio” neoliberal e a crise do neoliberalismo.

Quais os desenlaces possíveis para esta tripla crise?

Uma possibilidade é o “pântano”: mais uma ou duas décadas perdidas.

Outra possibilidade é um novo ciclo de desenvolvimento capitalista. Mas para isso é preciso que se combinem, como nos anos 1930, uma janela internacional (com um desligamento forçado, por crise e/ou por guerra, entre o Brasil e a economia internacional) com as oportunidades geradas pela crise (desemprego maciço, fronteiras inexploradas para a acumulação de capital etc.).

Uma terceira possibilidade é um desenvolvimento de tipo socialista.

Como estamos diante de várias alternativas, é fundamental definirmos qual é o nosso objetivo.

Óbvio que ter um objetivo não garante que tenhamos força para alcançá-lo. Ter um objetivo não dispensa, tampouco, a necessidade de ter uma estratégia e táticas. Mas ter um objetivo claro ajuda a organizar o pensamento e a ação.

O neoliberalismo é um exemplo exitoso de como um objetivo programático claro ajuda a organizar uma ofensiva política vitoriosa. A ascensão do Welfare State na Europa é um exemplo de como um objetivo mais audacioso as vezes não é alcançado, mas em parte devido a ele, é possível estabelecer um novo equilíbrio de forças num ponto bastante avançado. Já o governo Lula é um exemplo de como o rebaixamento nos objetivos estratégicos conduz a um rebaixamento ainda maior nas conquistas táticas.

Colocar (ou recolocar) o socialismo como objetivo estratégico do PT, na atual quadra história, supõe enfrentar várias objeções, entre elas: a de que o socialismo teria se esgotado; a de que deveríamos ter como objetivo o Welfare State; ou a de que não haveria correlação de forças para tal.

Enfrentar estas objeções é lembrar que a imensa hegemonia do capitalismo recolocou a atualidade do marxismo e do socialismo; e lembrar que está havendo um deslocamento da correlação de forças, na América Latina, que nos permite ser mais ousados, embora não recomende triunfalismos.

Nosso desafio é partir desta correlação de forças e das contradições do capitalismo, para construir uma estratégia que nos leve em direção a um pós-neoliberalismo de tipo socialista. É disto que se trata, quando discutimos as bases de um programa democrático e popular.

O chamado “programa democrático e popular” sempre foi o apelido dado para um programa de transição. Foi assim nos “regimes democrático-populares” do Leste Europeu e na Nova Democracia chinesa pós-1949. Foi assim no programa etapista do comunismo brasileiro. E foi assim, também, nas formulações do 5º Encontro Nacional do PT.

Claro que a trajetória do conceito “democrático e popular”, no interior do PT, foi muito acidentada.

No 5º Encontro, este conceito pressupunha que coincidissem, no tempo, dois fenômenos distintos: o fim da “transição democrática” e o início de uma ruptura com o capitalismo, ruptura que seria anti-imperialista, anti-latifundiária e anti-monopolista.

Por isso, no 5º Encontro a eleição presidencial seria a ante-sala de um processo de aprofundamento ainda maior da luta de classes. Mas a história seguiu outro rumo e, ao invés de uma vitória eleitoral, tivemos uma derrota; e ao invés de um avanço em direção ao socialismo, tivemos um retrocesso neoliberal.

De toda forma, foi este o significado do “democrático e popular”, pelo menos desde 1987 até 1993.

No 10º Encontro Nacional do PT, em 1995, a expressão “governo democrático e popular” foi mudando de sentido, perdendo o conteúdo estratégico revolucionário e de transição ao socialismo e ganhando um conteúdo tático, mais vinculado aos governos municipais, estaduais e ao governo Lula, governos que seriam de oposição ao neoliberalismo, não de transição ao socialismo.

Obviamente, não se esperava de um governo municipal, eleito nos anos 1990, que implementasse tarefas anti-latifundiárias, anti-imperialistas e anti-monopolistas. Manteve-se o nome, mas modificou-se o conteúdo dos conceitos, quando nada impediria que nos adaptássemos às possibilidades da conjuntura, sem perder de vista o objetivo estratégico.

O que está posto para nós, hoje, é recolocar o objetivo estratégico. Que se materializa em cinco grandes pontos:

1.Derrotar a ditadura do capital financeiro, reduzindo o peso do setor financeiro privado, ampliando o peso do setor financeiro público e reduzindo ao mínimo possível o estoque e o serviço da atual dívida pública.

2.Integração da América Latina, político-cultural e de infra-estrutura.

3.Ampliação do investimento público, em detrimento do espaço dos monopólios privados, crescendo o investimento do Estado, em particular nas áreas sociais.

4.Redistribuição da riqueza e da renda, em particular em torno dos temas salários, terra e infra-estrutura urbana.

5.Poder popular, modificando a institucionalidade, ampliando a força das organizações sociais e da esquerda política.

Estes cinco pontos constituem as “bases do programa democrático e popular”, no sentido estratégico da palavra, pois sua implementação gera uma dinâmica anti-capitalista.

Esta orientação estratégica se traduz, no terreno tático de um segundo mandato presidencial, da seguinte forma: a)assumir que governamos nos marcos de uma brutal hegemonia neoliberal, motivo pelo qual temos que ter uma estratégia que nos permite derrotar esta hegemonia; b)lembrar que se nem todos os nossos objetivos são possíveis de alcançar hoje, nem por isso eles deixam de ser nossos objetivos; c)reafirmar que a centralidade da luta contra o neoliberalismo está na política, na alteração da correlação de forças entre as classes sociais.

Neste sentido, os documentos aprovados no XIII Encontro Nacional do PT são positivos, embora tímidos. Neste mesmo sentido, a proposta de adotar o Estado de bem-estar social como objetivo estratégico de um segundo mandato presidencial, tal como foi proposta por Juarez Guimarães, constitui um grande retrocesso.


Texto de 2006 sobre a surpreendente candidatura de César Benjamin

A surpreendente candidatura de César Benjamin

Estou entre os que foram surpreendidos pela candidatura de César Benjamin à vice-presidência da República.

Primeiro, não sabia que César Benjamin era filiado ao PSOL. Segundo, não imaginava que seu nome fosse lembrado para tal tarefa. E, quando ouvi falar no convite, achei que ele não aceitaria.

Afinal, César Benjamin se notabilizou, desde 1995, por uma crítica não apenas ao PT, mas também contra uma determinada maneira de fazer política, vinculada a disputas eleitorais. É verdade que havia sinais contraditórios. Uma vez ele defendeu João Pedro Stédile como candidato a presidente (ou a vice-presidente). Outra vez correu que ele havia colaborado com Carlos Lessa, na elaboração do que viria a ser o programa do PMDB.

Mesmo assim, achei que sua candidatura a vice era boato. Só mudei de idéia quando recebi, através de um amigo, a carta que reproduzo ao final. Nela, César Benjamin expõe os motivos pelos quais se dispõe a aceitar a tarefa de ser candidato a vice de Heloísa Helena.

Considero indispensável a leitura atenta desta carta, pois ela confirma e reforça uma série de críticas que nós, da Articulação de Esqueda, temos feito às posições da Consulta Popular, desde os tempos do livro A opção brasileira. Reforça, em particular, a visão que alguns de nós temos acerca do próprio César Benjamin.

A carta é recente, datada de 26 de abril. É dirigida à Coordenação Nacional da Consulta Popular. Como grande parte dos documentos assinados por César, é carregado de um tom trágico. Começa assim:

Comecei a reconhecer-me como militante de esquerda em 1967. São quase quarenta anos. Quase todo o meu tempo de vida. Nos últimos meses, pela primeira vez, como alguns de vocês já sabem, tenho avaliado a possibilidade de me afastar, mesmo temporariamente. Tenho sentido a necessidade de buscar pontos de vista mais amplos.

As palavras são claras: César Benjamin tem sentido a necessidade de buscar pontos de vista mais amplos do que os pontos de vista da esquerda.

Sem dúvida trata-se de uma conclusão teórica e política lógica. Afinal, desde A opção brasileira, César vem adotando o nacionalismo como parâmetro de análise da realidade. Como lembrou recentemente Olanta Humalla, o nacionalismo não é de esquerda, nele cabem a esquerda e a direita.

César Benjamin não é o primeiro, nem será o último intelectual de esquerda a rever seus paradigmas. Nos últimos anos, isto foi uma constante. A grande dúvida é saber se ele conseguirá a proeza de buscar pontos de vista mais amplos, sem deixar de ser de esquerda.

Curiosamente, ao mesmo tempo em que sente a necessidade de buscar pontos de vista mais amplos, César Benjamin aceita o convite para ser vice de Heloísa Helena. Como uma coisa casa com a outra? A explicação não está, na minha opinião, no terreno da política, mas sim no terreno da moral.  Vejamos as palavras de César:

A causa é a grave inflexão por que passou a esquerda brasileira. Em sua história, ela já correu muitos riscos. Em alguns momentos foi quase eliminada fisicamente. Porém, mesmo em minoria, mesmo fora de governos, mesmo perseguida, mesmo errando, aqui e em outros países, sempre concebeu para si um papel de vanguarda intelectual e moral. Isso foi decisivo para a sua auto-estima e sua sobrevivência, geração após geração.

Para César Benjamin, portanto, a questão decisiva para a esquerda parece ser preservar seu papel de vanguarda intelectual e moral. Posto assim, não parece errado. Afinal, uma força que se pretende a destruir o capitalismo e construir uma ordem qualitativamente superior precisa, dentre outras qualidades, construir uma visão de mundo alternativa.

Acontece que César Bejamin tem uma visão a-histórica acerca do processo de formação de uma vanguarda intelectual e moral. Vejamos o que ele diz a seguir:

A situação, agora, é inversa: sem saber como enfrentar um processo inédito – a dissolução de dentro para fora –, a esquerda corre o risco sair da história, mesmo que continue a existir fisicamente. Pois só mantêm-se, como forças vivas, movimentos que têm idéias e utopias.

Vejamos só: a esquerda, diz César, corre o risco de sair da história, mesmo que continue a existir fisicamente. Como construção literária, é lindo. Como raciocínio teórico, é uma barbaridade.

A existência "física" de milhões de pessoas que lutam, sob condições concretas, contra a ordem capitalista, é a base material a partir da qual se constrói uma determinada visão de mundo acerca da sociedade que temos e acerca da sociedade que queremos.

Se queremos entender porque a "visão de mundo" dos trabalhadores, hoje, é mais influenciada pelos capitalistas do que há vinte anos atrás, temos que buscar as explicações em dois terrenos:

a)no terreno das condições materiais atuais, ou seja, das condições concretas da luta de classes. Nesse terreno, verificaremos que nas últimas décadas as classes trabalhadoras perderam em capacidade de organização e poder material;

b)no terreno das condições subjetivas, ou seja, as correntes teóricas e políticas, embora não tenham perdido a guerra, perderam várias "batalhas de idéias" nos últimos vinte anos. Estas derrotas não ocorreram apenas por fragilidades teóricas do lado de cá, mas também devido às fortalezas construídas pelo lado de lá, inclusive as fortalezas materiais (por exemplo, o poderio dos meios de comunicação).

Mutatis mutandis, a reversão deste processo exige a combinação entre o fortalecimento "físico" e "intelectual" das classes trabalhadoras. Dissociar uma coisa de outra, achar que é possível aos trabalhadores ter existência "física" sem ter "idéias e utopias", é seguir por um caminho que leva a conclusões teóricas e políticas incorretas.

Voltemos ao texto de César Benjamin. Será verdade que estamos diante de um processo de dissolução de dentro para fora?

Novamente, a imagem é interessante. Mas será que ela ajuda a entender o que está acontecendo no mundo, na América Latina, no Brasil? Penso que não. Pelo contrário, trata-se de uma visão profundamente negativa e pessimista, exatamente num momento cheio de sinais positivos.

Mas porque será que um intelectual tão arguto como César Benjamin se deixa dominar pelo pessimismo, exatamente num momento histórico em que a esquerda política e social está crescendo em grande parte da América Latina?

A explicação está, novamente, no seu parâmetro de análise. Segundo ele a esquerda corre o risco sair da história, mesmo que continue a existir fisicamente. Pois só mantêm-se, como forças vivas, movimentos que têm idéias e utopias.

Repito no estilo ta-ti-bi-ta-ti, pois o raciocínio é tão sofisticado que pode levar à confusão almas menos preparadas como a minha: os movimentos podem ter existência física... mas podem sair da história... pois só mantêm-se como forças vivas... só permanecem na história... movimentos que têm idéias e utopias.

Numa primeira olhada, o raciocínio lembra a profundidade de um Hegel, quando fala da relação entre o real e o racional.

Observando de novo, sentimos um tempero excessivamente idealista, pois sugere uma relação de causa-e-efeito (só é histórico o que tem idéias) onde deveria existir uma relação dialética (as idéias como uma das manifestações materiais da existência histórica).

Vendo pela terceira vez, só conseguimos enxergar um prato de mingau raso. Afinal, toda atividade humana envolve, em algum nível, idéias.

Se existe esquerda, é porque pelo menos uma parcela das classes trabalhadoras manifesta idéias e utopias. Enquanto estivermos no capitalismo, haverá outra parcela das classes trabalhadoras que manifestará idéias conservadoras, de direita, reacionárias.

Portanto, o risco que César Benjamin enxerga é uma contradição em termos: se existe fisicamente uma esquerda, é porque existem idéias e utopias. Podemos não concordar com estas idéias, podemos achá-las rebaixadas, mas que existem, existem.

O problema é que César constata sua discordância com as idéias dominantes na "esquerda realmente existente" e, do alto do Olimpo, expulsa esta esquerda da história a golpes de frases de efeito. Ao fazer isto, César encontra-se "livre para matar", livre para fazer qualquer coisa, pois parafraseando seu amado Dostoievski, se não há esquerda real, tudo é possível.

Pulemos a parte em que ele informa, a seus companheiros da Consulta, ter pago um alto preço para preservar o patrimônio que perdemos e passemos direto ao ponto em que ele fala dos outros, sem perceber que a fábula também se aplica a ele mesmo:

“Se Deus não existe”, dizia Dostoiévski, “tudo é possível”. Nos últimos anos, gradativamente, tudo foi se tornando possível, com a cumplicidade de muitos, até que chegamos ao fundo do poço.

César Benjamin é dos quadros mais cultos que conheço, o que deve ser relatizado, pois sou profundamente ignorante. De toda forma, me parece estranho o espanto com que ele constata o grau de degeneração política e moral de setores da esquerda brasileira. Pois não é preciso conhecer muito da história da esquerda brasileira e mundial, para saber que a esquerda nunca foi uma legião angelical.

Promiscuidade com empresas, promiscuidade pessoal, carreirismo: por acaso isto é novidade? César diz que há trinta anos, isso seria impensável. Há vinte anos, estaríamos diante de escândalos. Há dez anos, seriam motivos de inquietação e debate. Hoje são apenas fatos da vida.

Na verdade, sempre foram fatos da vida. Quem conhece por estudo ou experiência pessoal quantas barbaridades foram cometidas, em nome do socialismo, ao longo do século XX, sabe muito bem que há razões que explicam o que está ocorrendo, hoje, com a esquerda brasileira. E que não é a cota de canalhas que determina se um partido ou uma classe está ou não à esquerda.

O problema é que César parece pensar isto, sinceramente. Segundo ele, a esquerda passou para a retaguarda intelectual e moral da sociedade, uma grave inflexão.

Ora, se a esquerda passou para a retaguarda, quem foi que passou para a vanguarda intelectual e moral da sociedade? A direita? A intelectualidade "classe média"? Seria muito importante que César esclarecesse isto, completasse seu raciocínio, pois aqui está a ponta da unha do dragão.

De toda forma, há uma esperança: justo nesse contexto de recolhimento, tristeza e reflexão recebi o convite inesperado, que agora vamos debater. Devemos debatê-lo com o coração aberto, pensando grande.

É impossivel não fazer referência ao tom de auto-análise. Não faço isto para menoscabar da pessoa, mas porque me parece que se trata de um "tipo ideal": o intelectual de classe média. Um tipo que nos anos 1930 teve figuras geniais, como Carlos Drumond de Andrade e Portinari, que trabalharam para o Estado Novo. Os Babel e Gorki da vida, que oscilavam entre a depressão e a redação de poemas acerca da construção do socialismo na época de Stálin. Enfim, um tipo cuja satisfação íntima provém as vezes da incompreensão e as vezes do reconhecimento público, reconhecimento que aparece nos lugares mais estranhos, nas horas mais estranhas e --para azar da coerência-- as vezes fazem algumas pessoas morder a língua.

Vejamos o que diz César:

O estatuto de um povo, diante da história, não se resume ao que ele é em um dado momento. Define-se mais pelo que ele quer ser. Por seu horizonte de expectativas. Pois isso é que o coloca em movimento. É aí – e não na política econômica – que está o x da questão, quando avaliamos Lula e o PT.

Lula rebaixa sistematicamente o horizonte político e cultural do povo brasileiro, e precisa desse rebaixamento para se manter no poder. Pois só um povo mediocrizado aceita entregar sua consciência pelo medo de perder uma bolsa-família de, em média, R$ 60,00. Um povo culto e organizado, ou em processo de aprendizado e organização, conhecedor de seu próprio potencial humano, exigiria muito mais.

O raciocínio é atraente, parece de esquerda, mas quando se vê com atenção, verifica-se que trata-se das mesmíssimas críticas feitas pela direita, segundo a qual o povo estaria com Lula por causa de esmolas compensatórias: só um povo mediocrizado aceita entregar sua consciência pelo medo de perder uma bolsa-família de, em média, R$ 60,00. Um povo culto e organizado, ou em processo de aprendizado e organização, conhecedor de seu próprio potencial humano, exigiria muito mais. .

Tem muita gente no próprio PT que acha que o povo está com Lula por causa disto. Mas a realidade é outra: a maior parte do povo apóia a releeição de Lula, por causa de uma coisa profunda chamada consciência de classe.

A esse respeito, há uma passagem genial nos Dez dias que abalaram o mundo, de John Reed. Cito a seguir, em uma tradução livre que faço de uma edição em espanhol:

Na estação de Tsárskoye Selo, um grupo de pequeno-burgueses bate boca com dois soldados vermelhos. Um jovem forte, de aspecto soberbo, com uniforme de estudante, dirige um ataque verbal aos soldados.

-Suponho que compreendas -disse o estudante para os soldados, em tom insolente-- que ao tomar as armas contra vossos irmãos, voces se convertem em instrumentos de assassinos e traidores.

-Não é assim, irmão -respondeu o soldado com seriedade- voce não entende. Há duas classes o proletariado e a burguesia. Nós...

O estudante, frente a esta resposta, começa a gozar dos soldados. Diz assim:

-Eu sou um estudante marxista. E vos digo que não é pelo socialismo que combateis, mas sim pela anarquia, em benefício da Alemanha.

O soldado responde:

-Sim, eu sei que voce é um homem instruído, isso se vê; eu não sou mais do que um igorante. Porém me parece...

O "estudante marxista" pega de volta a palavra e pergunta ao soldado se ele acha mesmo que Lenin é amigo do proletariado. O soldado responde que sim. O estudante pergunta, então, ao soldado, se ele sabe que Lenin chegou na Rússia num trem blindado que atravessou as linhas militares alemães. O soldado diz que não sabe grande coisa disso, mas está certo que o que Lenin diz é justamente o que tenho necessidade de escutar, e comigo todas as pessoas simples como eu. Veja, há duas classes, a burguesia e o proletariado...

O "estudante marxista" responde:

-Tu estás louco, meu amigo. Eu passei dois anos em Schüsselburg devido a minha atividade revolucionária, enquanto voces nessa época disparavam contra os revolucionários e gritavam "Deus proteja o czar". Eu me chamo Vassili Georgievitch Panin. Voce não ouviu falar de mim?

O soldado responde:

-Sinto, mas jamais ouvi. Porém eu não sou mais do que um igorante. Provavelmente voce é um grande herói.

-Assim é, respondeu o estudante. E combato os bolcheviques que estão destruindo nossa Rússia, a nossa revolução livre. Como voce explica isso?

O soldado responde assim:

-Eu não sei como se explica isso. Para mim tudo me parece muito claro, embora seja certo que sou um igorante. Me parece que não há mais do que duas classes, o proletariado e a burguesia...

-Volta voce outra vez com esta estúpida fórmula -exclamou o estudante.

...duas classes, continuou o soldado, e quem não está com uma está com a  outra...

Lula não é Lenin, o PT não é o partido bolchevique, mas os trabalhadores brasileiros têm, igual aos russos de 1917, aquela mesma coisa antiguada chamada instinto de classe.

O PT e o governo Lula estão aquém de suas tarefas históricas. Nosso Partido e nosso governo poderiam ter feito muito mais do que fizemos; e fizemos muita coisa errada, que fortaleceu a direita.

O problema é que César Benjamin parte desta premissa correta, para chegar à conclusão errada. Não percebe que, apesar dos erros cometidos, grandes camadas da classe trabalhadora seguem conosco, não por conta de migalhas, mas por consciência de classe. A mesma consciência de classe que levou 95% dos "líderes empresariais" reunidos em Comandatuba, recentemente, a optar por Alckmin, contra apenas 2% por Lula.

É claro que os dirigentes da Consulta Popular, especialmente aqueles que mantém fortes relações com movimentos sociais, sabem que a coisa é muito mais complexa. Ademais, não subestimam a importância --para a sobrevivência material do povo, sem a qual não haverá idéias nem utopias-- de políticas sociais, mesmo que compensatórias.

Por isso, César critica seus companheiros de Consulta, afirmando que Lula e o PT são nocivos. Quando forem derrotados – neste ano ou daqui a quatro anos, não importa –, se a esquerda tiver continuado a ser cúmplice deles, não ficará pedra sobre pedra. É o grave risco que corremos, e que vocês subestimam. Passada essa aventura, perdidos cargos e verbas – neste ano ou daqui a quatro anos, repito –, não teremos nem um povo mais consciente, nem quadros mais preparados para prosseguir a luta, nem uma juventude mais mobilizada, nem instituições republicanas mais avançadas.

Claro que corremos graves riscos, que não devem ser subestimados e sobre os quais a esquerda petista, inclusive nós da Articulação de Esquerda, vimos alertando e combatendo há tempos. A questão é outra: lembrando do Guarda Vermelho citado por John Reed,  vamos correr estes riscos do lado de cá ou do lado de lá da ponte?

Para César Benjamin, o lulismo já agoniza em praça pública. Não falo de Ibope, falo de História. Mas ele tem na reeleição – ou seja, no manejo de cargos e verbas por mais quatro anos – a possibilidade de prolongar sua agonia. A dúvida se resume à forma e ao ritmo da derrocada, bem como ao tamanho do estrago, já enorme, que deixará. Seja como for, não há mais futuro nele.

Novamente, a literatura de César é superior a sua política. Seria uma boa notícia, para a "história", se o lulismo agonizasse em praça pública e no seu lugar a esquerda partidária organizada (o petismo, por exemplo) se erguesse triufante. Mas o fato é que o petismo (e o restante da esquerda) precisam se apoiar no lulismo para derrotar a direita. Há riscos nessa operação, mas o risco muito maior é devolver o controle do governo federal para o PSDB & PFL.

Curiosamente, este detalhe --a existência de uma direita, o risco de uma derrota que impactará toda a América Latina-- escapa das preocupações de César Benjamin. Pelo contrário, ele diz que se Lula obtiver mais um mandato presidencial, tudo poderá acontecer. Quem ignora que ele já se tornou um político autônomo em relação aos movimentos sociais e ao próprio PT? Quem conhece seus compromissos? Que podres ainda não vieram à luz? Quem poderá dizer, sem hipocrisia, que foi surpreendido e traído por qualquer decisão que venha a ser adotada?

Não deixa de ser curioso: tudo pode acontecer, diz César, mas nada de bom.... Motivo pelo qual, segundo ele, a Consulta Popular deveria dizer claramente, desde já: não em nosso nome. Não com a nossa omissão. Mas a Consulta Popular hesita, talvez para deixar abertos os espaços aos que ainda desejam flertar com o lulismo.

Devemos agradecer ao César Benjamin pela confissão de que a Consulta vive um dos dilemas experimentados pela esquerda petista: como tratar a questão do lulismo, ou seja, como lidar com o fato de que uma parcela importante da classe trabalhadora mantém uma lealdade de classe à uma figura carismática, não a um projeto coletivo organizado na forma de partido.

Agradecemos duplamente, pois na medida em que aceita ser candidato a vice-presidente da República, César revela que na atual quadra histórica, não há como combater as deformações institucionais e eleitorais sem, paradoxalmente, participar da disputa institucional e eleitoral. Nas suas palavras, devemos pensar como complementares, em vez de concorrentes, as diversas iniciativas renovadoras em curso dentro de uma esquerda em crise e cheia de incertezas.

Como César, acredito que tanto o PSOL quanto a Consulta Popular (e inclusive o PSTU, que ele não cita) têm enormes méritos, mas nenhum deles tem o monopólio da virtude. Pena que esta generosidade não seja estendida a outros setores da esquerda. De toda forma, as perguntas que ele faz aos dirigentes da Consulta Popular merecem ser repetidas, pois revelam os limites políticos de uma iniciativa sem dúvida cheia de bons propósitos:

Por outro lado, não tem também a Consulta Popular as suas fraquezas? Uma delas – e não a menor – não será justamente a incapacidade de tomar decisões políticas coerentes com as análises que faz? Não é verdade que muitos movimentos sociais ainda se abrigam no guarda-chuva do lulismo e cultivam ambigüidades?

De que serve formar quadros, se em seguida recomendamos que se omitam?

De que serve lutarmos corajosamente na frente social, se somos covardes na luta política?

De que serve cultivar valores, se nos curvamos aos que praticam antivalores?

Como nós, César Benjamin reconhece que o fato político mais importante no Brasil, neste ano, serão as eleições presidenciais. Diferente de nós, ele acha que se a disputa ficar resumida a PT versus PSDB, haverá um só projeto colocado na mesa. E o debate se limitará, fundamentalmente, a duas questões: Quem roubou mais? Quem foi mais medíocre na condução do país?

O discurso feita pelas lideranças e intelectuais do PSDB e do PFL mostra que há outros temas em pauta: a retomada das relações preferenciais com os EUA, a retomada das privatizações, a redução no déficit público através de um corte brutal e permanente nos investimentos sociais previstos em Lei, a repressão aos movimentos sociais. Ao não falar disso, César minimiza o brutal risco que estamos correndo --no Brasil e na América Latina-- caso a aliança tucano-pefelista vença as eleições presidenciais.

Este risco deve-se, em parte, a erros cometidos pelo PT e pelo governo Lula. Mas ele existe e é frente a ele que devemos nos posicionar. Repetir "mas eu disse, eu disse, eu avisei" é uma atitude infantil. Me lembra, guardadas as proporções, a catilinária entre social-democratas e comunistas, frente a ascensão do hitlerismo. Todos tinham um pouco de razão, mas todos estavam errados ao subestimar os riscos do nazismo.

De toda forma, César está convencido de que não somos nós – nem é o PSOL – os responsáveis pelo fortalecimento da direita. O responsável é Lula. Logo, seria natural uma aliança entre o PSOL e a Consulta Popular.

O tópico seguinte da carta de César Benjamin é muito revelador de como ele se vê, ou como gostaria de ser visto: Não lidero nenhum grupo, não tenho votos ou esquemas, nunca me candidatei a cargo eletivo, não freqüento regularmente as páginas da grande imprensa, não sou nem quero ser celebridade. Nunca pleiteei um convite assim, que é, em geral, tão disputado. Como os demais militantes da Consulta, sou uma espécie de antítese do político profissional.

Trata-se, como se vê, de um homem modesto, que subestima sua influência sobre milhares, dezenas ou centenas de milhares de pessoas de todo o país. Influência que cresceu nos últimos tempos, em que César passou a frequentar mais espaços na grande imprensa, para falar (e atacar) o PT.

Trata-se, também, de um homem incomodado, que admite que o gesto da direção do PSOL, que não vem acompanhado de nenhuma exigência descabida, contém uma dimensão de confiança pessoal maior do que aquela que tenho recebido na própria Consulta, onde muitas vezes sinto-me incômodo.

Trata-se, por fim, de um homem decidido a aceitar desafios: Não recusei a possibilidade aberta pelo PSOL, mas tampouco me deslumbrei com ela. Hoje, depois de um período de reflexão, disponho-me a aceitá-la.

O mais surpreendente, contudo, é seu conceito de coletivo: debaterei com vocês com o coração aberto, mas exigirei de todos, exatamente, o mesmo coração aberto. Não me deixarei impressionar por rancores, não serei levado por preconceitos e sectarismos, não aceitarei razões menores. E, em última análise, a decisão será minha, pelos aspectos pessoais que comporta.

Ou seja, aceitar uma candidatura à vice-presidência da República é uma decisão, em última analise, minha!!!

Claro que, diferentemente do individualismo e do personalismo que campeiam no PT, as motivações de César são profundas: não é a luta interna de grupos que está em jogo, e muito menos uma carreira pessoal, que nunca desejei construir. É a possibilidade de, nos próximos meses, dialogar com milhares de pessoas sobre os destinos do Brasil. Difundir idéias. Espalhar esperança. Submeter nossas propostas ao debate público. Contribuir para o diálogo dentro da esquerda. E conferir, à nossa ação, uma meta-síntese: mobilizar e organizar, difundir o projeto popular, ajudando a consolidar, assim, uma organização mais permanente.

Não lhe falta modéstia, é certo: No texto escrito em janeiro eu convocava a Consulta a esforçar-se para ajudar a formar uma frente antineoliberal no Brasil e identificava a candidatura de Heloísa Helena como portadora do maior potencial para isso. A história, inesperadamente, agora nos dá a chance de ocupar uma posição relativamente central nesse projeto. Eis o dado novo.

Realmente modesto: a mais surpreendente conclusão a que cheguei, e a mais importante, é que ele, César, poderá ocupar uma posição relativamente central nesse projeto. Claro que, ao aceitar o convite, serei apenas um instrumento desse projeto, e não o melhor instrumento. Mas, apesar disso, a decisão, em última análise, é minha. O que não o impede de convidar a Consulta Popular a dividir comigo essa responsabilidade.

Segundo César, a possibilidade de vitória eleitoral praticamente inexiste, mas uma vitória política está ao alcance da mão. E o que é a vitória política? Derrotar a direita? Não!

Se a crítica ao neoliberalismo for ouvida por muitos, se uma esquerda em via de renovar-se obtiver um apoio razoavelmente expressivo do povo brasileiro, se milhares de pessoas – especialmente, jovens e pobres – se organizarem nos próximos meses para uma ação especificamente política e se uma parte, ao menos, dessa mobilização prosseguir e se consolidar – se isso acontecer, terá valido a pena.

Ou seja: o resultado da eleição não é o decisivo, o decisivo é se as massas vão ouvir a pregação. Eis aqui o sentido a explicação para a contradição que apontamos antes: ao mesmo tempo em que sente a necessidade de buscar pontos de vista mais amplos, César Benjamin aceita o convite para ser vice de Heloísa Helena, pois ao ser vice ele terá condição de oferecer pontos de vista mais amplos (os dele) a uma parcela expressiva do povo brasileiro.

Mas o mais surpreendente do texto de César está nos parágrafos finais: para os que, de boa-fé, consideram que Lula pode ser atraído para posições mais progressistas – esta não é a minha opinião –, digo que a melhor maneira de obter esse resultado é contribuir para que uma chapa de esquerda tenha expressiva votação no primeiro turno das eleições presidenciais, tornando-se assim interlocutora obrigatória de um futuro governo.

Mais ainda: A sociedade poderá nos impor a alternativa Lula-Alckmin em um segundo turno, e nesse caso teremos de debater o que fazer. Será legítima – embora não necessariamente correta – a posição do voto no mal menor. Mas é ilegítimo – e não apenas incorreto – que nós mesmos, desde já, ajudemos a construir esse cenário, ajoelhando-nos diante dos grandes partidos comprometidos com o status quo e abrindo mão da nossa identidade.

Noutras palavras: César admite a possibilidade de votar em Lula no segundo turno e, mais do que isso, admite que o resultado de sua movimentação pode levar sua força política a tornar-se interlocutora obrigatória de um futuro governo.

Como isso se combina com as opiniões expressas sobre a natureza comum dos projetos do PT e do PSDB, só Deus sabe. Mas como Deus não existe, tudo é possível..

Valter Pomar


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Carta à Coordenação Nacional da Consulta Popular



Rio de Janeiro, 26 de abril de 2006



Prezados companheiros:



Comecei a reconhecer-me como militante de esquerda em 1967. São quase quarenta anos. Quase todo o meu tempo de vida. Nos últimos meses, pela primeira vez, como alguns de vocês já sabem, tenho avaliado a possibilidade de me afastar, mesmo temporariamente. Tenho sentido a necessidade de buscar pontos de vista mais amplos.

A causa é a grave inflexão por que passou a esquerda brasileira. Em sua história, ela já correu muitos riscos. Em alguns momentos foi quase eliminada fisicamente. Porém, mesmo em minoria, mesmo fora de governos, mesmo perseguida, mesmo errando, aqui e em outros países, sempre concebeu para si um papel de vanguarda intelectual e moral. Isso foi decisivo para a sua auto-estima e sua sobrevivência, geração após geração.

A situação, agora, é inversa: sem saber como enfrentar um processo inédito – a dissolução de dentro para fora –, a esquerda corre o risco sair da história, mesmo que continue a existir fisicamente. Pois só mantêm-se, como forças vivas, movimentos que têm idéias e utopias.

Foi esse o patrimônio que perdemos. Vocês são testemunhas de que paguei alto preço para tentar preservá-lo.



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“Se Deus não existe”, dizia Dostoiévski, “tudo é possível”. Nos últimos anos, gradativamente, tudo foi se tornando possível, com a cumplicidade de muitos, até que chegamos ao fundo do poço.

Hoje, bancos e empreiteiras fazem repasses milionários, regularmente, para o maior partido da esquerda brasileira, que passou a depender desses recursos para sobreviver. Importantes dirigentes atuam abertamente como lobistas de grandes empresas. Outros recorrem à Justiça para obter garantia do direito a mentir. O mais poderoso ministro do governo de esquerda, no exercício do cargo, prostituía meninas. A militância é vista como uma forma de ascensão social.

Há trinta anos, isso seria impensável. Há vinte anos, estaríamos diante de escândalos. Há dez anos, seriam motivos de inquietação e debate. Hoje são apenas fatos da vida. A traição perdeu a modéstia, e a esquerda passou para a retaguarda intelectual e moral da sociedade, uma grave inflexão.

Eu não sou desse tempo. E tenho memória. Por isso, retirei-me há mais de dez anos do PT e estou reavaliando caminhos.

Mas a vida é tinhosa. Justo nesse contexto de recolhimento, tristeza e reflexão recebi o convite inesperado, que agora vamos debater. Devemos debatê-lo com o coração aberto, pensando grande.



***



O estatuto de um povo, diante da história, não se resume ao que ele é em um dado momento. Define-se mais pelo que ele quer ser. Por seu horizonte de expectativas. Pois isso é que o coloca em movimento. É aí – e não na política econômica – que está o x da questão, quando avaliamos Lula e o PT.

Lula rebaixa sistematicamente o horizonte político e cultural do povo brasileiro, e precisa desse rebaixamento para se manter no poder. Pois só um povo mediocrizado aceita entregar sua consciência pelo medo de perder uma bolsa-família de, em média, R$ 60,00. Um povo culto e organizado, ou em processo de aprendizado e organização, conhecedor de seu próprio potencial humano, exigiria muito mais.

Por deseducar o povo, por desprepará-lo para construir o futuro – e não, basicamente, pelo nível da taxa de juros –, é que Lula e o PT são nocivos. Quando forem derrotados – neste ano ou daqui a quatro anos, não importa –, se a esquerda tiver continuado a ser cúmplice deles, não ficará pedra sobre pedra. É o grave risco que corremos, e que vocês subestimam. Passada essa aventura, perdidos cargos e verbas – neste ano ou daqui a quatro anos, repito –, não teremos nem um povo mais consciente, nem quadros mais preparados para prosseguir a luta, nem uma juventude mais mobilizada, nem instituições republicanas mais avançadas.



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Sem idéias a serem multiplicadas, sem exemplos a serem seguidos, sem coerência a ser cultivada, sem passado a ser lembrado, o lulismo já agoniza em praça pública. Não falo de Ibope, falo de História. Mas ele tem na reeleição – ou seja, no manejo de cargos e verbas por mais quatro anos – a possibilidade de prolongar sua agonia. A dúvida se resume à forma e ao ritmo da derrocada, bem como ao tamanho do estrago, já enorme, que deixará. Seja como for, não há mais futuro nele.

Dizia Marx, na Ideologia alemã, que a fórmula da ideologia havia sido dada por Cristo na cruz: “Eles não sabem o que fazem.” A milenar fórmula envelheceu. Pois eles sabem o que fazem e, assim mesmo, fazem.

Se Lula obtiver mais um mandato presidencial, tudo poderá acontecer. Quem ignora que ele já se tornou um político autônomo em relação aos movimentos sociais e ao próprio PT? Quem conhece seus compromissos? Que podres ainda não vieram à luz? Quem poderá dizer, sem hipocrisia, que foi surpreendido e traído por qualquer decisão que venha a ser adotada?

É preciso, pois, que a Consulta Popular diga claramente, desde já: não em nosso nome. Não com a nossa omissão. Mas a Consulta Popular hesita, talvez para deixar abertos os espaços aos que ainda desejam flertar com o lulismo.



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Quando escrevi o texto “Decifra-me ou te devoro: a Consulta Popular e as eleições de 2006”, em janeiro deste ano, para o nosso debate interno, a possibilidade que agora discutimos ainda não fora aventada. Ali eu defendia o apoio à senadora Heloísa Helena, reconhecendo que sua candidatura padecia de limitações, que se estendiam ao seu partido, o PSOL.

Não recuo de nenhuma das minhas observações, e isso nunca foi sequer sugerido pelo PSOL, que mostrou grandeza. Pergunto-me, porém, se devemos usar as críticas aos outros para desqualificá-los, ou se devemos estar junto com eles, todos em boa-fé, em uma luta que é comum.

É verdade, a Consulta Popular tem méritos: não se organizou segundo o calendário eleitoral, mobilizou-se para produzir idéias, tem realizado um esforço sério de formação de quadros.

Não temos, porém, o monopólio da virtude.

Por que não reconhecemos que a legalização do PSOL, com a coleta, nas ruas, de mais de 500 mil assinaturas, sem esquemas tradicionais, sem cabos eleitorais remunerados e sem corrupção, também resultou de um sério esforço militante?

Por que não admitimos que a existência de um partido de esquerda apto a disputar eleições presidenciais, embora não coincida exatamente com o caminho que escolhemos, abre uma alternativa a mais para a nossa própria luta?

Por que não pensamos como complementares, em vez de concorrentes, as diversas iniciativas renovadoras em curso dentro de uma esquerda em crise e cheia de incertezas?

Por que fechamos os olhos para o fato de que, na débâcle do petismo, a senadora Heloísa Helena e outros parlamentares optaram por não trair suas histórias de vida, recusaram o comodismo, aceitaram riscos e, por isso, são legitimamente reconhecidos como lutadores por uma parcela do nosso povo?

Por outro lado, não tem também a Consulta Popular as suas fraquezas? Uma delas – e não a menor – não será justamente a incapacidade de tomar decisões políticas coerentes com as análises que faz? Não é verdade que muitos movimentos sociais ainda se abrigam no guarda-chuva do lulismo e cultivam ambigüidades?

De que serve formar quadros, se em seguida recomendamos que se omitam?

De que serve lutarmos corajosamente na frente social, se somos covardes na luta política?

De que serve cultivar valores, se nos curvamos aos que praticam antivalores?

As perguntas poderiam se multiplicar.



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Queiramos ou não, o fato político mais importante no Brasil, neste ano, serão as eleições presidenciais. Se a disputa ficar resumida a PT versus PSDB, haverá um só projeto colocado na mesa. E o debate se limitará, fundamentalmente, a duas questões: Quem roubou mais? Quem foi mais medíocre na condução do país?

O Brasil não merece isso.

Desde o início de seu governo, Lula fortaleceu a direta. Agora pede o nosso apoio porque a direta está forte. Mas, quem disse ao povo brasileiro que as posições da esquerda, nos últimos vinte anos, eram apenas bravatas? Quem reafirmou o neoliberalismo como única alternativa e deu novo fôlego a ele, quando o povo já o rejeitava? Quem descumpriu todos os seus compromissos? Quem colocou quadros da direita em postos-chaves do Estado? Quem compôs sua base com o rebotalho da política conservadora? Quem reafirmou os métodos da direita, inclusive a corrupção, espalhando descrença e cinismo, em vez de esperança? Quem liberou os transgênicos e sacramentou o latifúndio monocultor como modelo para o mundo rural brasileiro?

Também aqui as perguntas poderiam continuar. Basta, porém, afirmar claramente: não somos nós – nem é o PSOL – os responsáveis pelo fortalecimento da direita. O responsável é Lula.

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O convite que recebi é especialmente honroso, porque inesperado e inusual. Não lidero nenhum grupo, não tenho votos ou esquemas, nunca me candidatei a cargo eletivo, não freqüento regularmente as páginas da grande imprensa, não sou nem quero ser celebridade. Nunca pleiteei um convite assim, que é, em geral, tão disputado. Como os demais militantes da Consulta, sou uma espécie de antítese do político profissional.

Ao me deparar com essa possibilidade, recolhi-me para refletir, pois a decisão sobre ela tem variadas dimensões, algumas de caráter estritamente pessoal. Disse logo, porém, que me sentia honrado e sensibilizado. Estava sendo sincero. Pela minha desimportância no processo político brasileiro, o gesto da direção do PSOL, que não vem acompanhado de nenhuma exigência descabida, contém uma dimensão de confiança pessoal maior do que aquela que tenho recebido na própria Consulta, onde muitas vezes sinto-me incômodo.

Não recusei a possibilidade aberta pelo PSOL, mas tampouco me deslumbrei com ela. Hoje, depois de um período de reflexão, disponho-me a aceitá-la.

Debaterei com vocês com o coração aberto, mas exigirei de todos, exatamente, o mesmo coração aberto. Não me deixarei impressionar por rancores, não serei levado por preconceitos e sectarismos, não aceitarei razões menores. E, em última análise, a decisão será minha, pelos aspectos pessoais que comporta.



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Não é a luta interna de grupos que está em jogo, e muito menos uma carreira pessoal, que nunca desejei construir. É a possibilidade de, nos próximos meses, dialogar com milhares de pessoas sobre os destinos do Brasil. Difundir idéias. Espalhar esperança. Submeter nossas propostas ao debate público. Contribuir para o diálogo dentro da esquerda. E conferir, à nossa ação, uma meta-síntese: mobilizar e organizar, difundir o projeto popular, ajudando a consolidar, assim, uma organização mais permanente.

Ao refletir, busquei identificar qual seria a posição mais coerente com as nossas análises: o ciclo PT terminou; a esquerda social precisa romper os limites da ação reivindicatória e propor um projeto nacional; devemos encontrar uma meta-síntese para o período. E assim por diante.

No texto escrito em janeiro eu convocava a Consulta a esforçar-se para ajudar a formar uma frente antineoliberal no Brasil e identificava a candidatura de Heloísa Helena como portadora do maior potencial para isso. A história, inesperadamente, agora nos dá a chance de ocupar uma posição relativamente central nesse projeto. Eis o dado novo. Foi esta a mais surpreendente conclusão a que cheguei, e a mais importante. Ao aceitar o convite, serei apenas um instrumento desse projeto, e não o melhor instrumento. Todos sabem, há muito tempo, que considero que a Consulta Popular tem quadros mais capacitados para isso. Mais representativos. Situados em posição mais central na luta política. Mais hábeis na comunicação com o povo. Disse isso diversas vezes, em contextos em que a sinceridade dessa afirmação não podia ser questionada.

Neste momento, porém, por circunstâncias da vida, a tarefa apresentou-se a mim, por causa de um gesto de solidariedade, feito no ano passado, com a luta do PSOL para legalizar-se. O que foi, na época, apenas um ato formal – assinar uma ficha, dentro do espírito da chamada “filiação democrática”, que não impunha deveres militantes no novo partido – abriu, neste momento, possibilidades insuspeitadas.

É claro que sou grato ao PSOL e, em qualquer caso, estabelecerei com ele, bem como com seus aliados, uma relação de lealdade. Mas todos sabem que não sou um militante do PSOL.



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Eu convido a Consulta Popular a dividir comigo essa responsabilidade. A possibilidade de vitória eleitoral praticamente inexiste, mas uma vitória política está ao alcance da mão. Se a crítica ao neoliberalismo for ouvida por muitos, se uma esquerda em via de renovar-se obtiver um apoio razoavelmente expressivo do povo brasileiro, se milhares de pessoas – especialmente, jovens e pobres – se organizarem nos próximos meses para uma ação especificamente política e se uma parte, ao menos, dessa mobilização prosseguir e se consolidar – se isso acontecer, terá valido a pena.

Para os que, de boa-fé, consideram que Lula pode ser atraído para posições mais progressistas – esta não é a minha opinião –, digo que a melhor maneira de obter esse resultado é contribuir para que uma chapa de esquerda tenha expressiva votação no primeiro turno das eleições presidenciais, tornando-se assim interlocutora obrigatória de um futuro governo.

A sociedade poderá nos impor a alternativa Lula-Alckmin em um segundo turno, e nesse caso teremos de debater o que fazer. Será legítima – embora não necessariamente correta – a posição do voto no mal menor. Mas é ilegítimo – e não apenas incorreto – que nós mesmos, desde já, ajudemos a construir esse cenário, ajoelhando-nos diante dos grandes partidos comprometidos com o status quo e abrindo mão da nossa identidade.

Neste caso, transformados em cúmplices da traição, não teremos autoridade moral para reagir à derrota que virá depois. A médio prazo, será um golpe fatal para os movimentos sociais e a Consulta Popular.

Sinceramente,

Cesar Benjamin

17 e 18 de agosto de 2006

Companheiros/as

Nos dias 17 e 18 de agosto de 2006, aconteceu em Montevidéu um seminário internacional sobre “Experiências de governo dos partidos de esquerda e progressistas da América Latina e Caribe”.

A programação do seminário incluiu debates sobre “desenvolvimento econômico e social”, “democratização da política”, “relação governos e forças políticas”, “integração”.

Eu tive a oportunidade de fazer três exposições no Seminário. O texto abaixo é um resumo sintético destas exposições. Não tive a possibilidade de revisar, portanto tomem apenas como um rascunho e por favor não divulguem.

Valter Pomar

* * *

1.Antes de 1980, a esquerda brasileira teve uma pequena experiência de participação em governos: várias prefeituras entre 1945 a 1964, presença em alguns governos estaduais (com destaque para Brizola no Rio Grande do Sul e Arraes em Pernambuco) e participação em alguns escalões dos governos Vargas e Jango.

2.Depois de 1980, a esquerda brasileira ampliou sua presença em governos. Muitas prefeituras, vários governos estaduais, alguns ministros nos governos pós-ditadura e, agora, a eleição de Lula para a presidência da República.

3.Depois de 1980, a presença da esquerda brasileira em governos não se limita ao PT, mas se deu principalmente através do PT (as vezes em governos de coligação).

4.No caso do PT, participamos de prefeituras desde 1982. Nesses 24 anos, já estivemos presentes em cerca de 500 das mais de 5000 prefeituras brasileiras. Participamos de governos estaduais desde 1994. Já elegemos o governador em 6 dos 27 estados brasileiros. E chegamos à presidência da República em 2002.

5.Trata-se, portanto, de uma experiência muito importante, mas ainda limitada: até 2002, chegamos a governar cidades onde moravam 30% da população e se produzia 30% do PIB brasileiro.

6.Qual o balanço que podemos fazer da experiência do PT na direção de governos municipais e estaduais?

7.O PT produziu um número relativamente grande de documentos, fazendo o balanço desta experiência. Os pontos que ressaltaremos a seguir e as ênfases que sugerimos não se pretendem a expressar o ponto de vista global do Partido a respeito.

8.Primeiro, em comparação com os governos de centro e de direita, fazemos um balanço positivo no que toca a inversão de prioridades orçamentárias em prol das necessidades sociais das maiorias, bem como no que toca ao esforço de democratizar as decisões políticas. Noutras palavras: para o povo, faz diferença viver em cidades ou estados governados pelo PT.

9.Segundo, em comparação com o modelo de sociedade que propugnamos, é evidente que nossos governos municipais e estaduais padecem de imensas limitações, conseguindo por isso conter, mas dificilmente reverter os fenômenos de degradação econômica, ambiental, social, política e ideológica impulsionados pelo capitalismo em geral e pelo neoliberalismo em particular. Admitir isto não implica em subestimar nossos êxitos, mas sim em reconhecer que é preciso fazer muito mais para dar conta de nossos objetivos estratégicos.

10.Terceiro e ligado aquelas limitações, em meados dos anos 90 incluímos entre nossas tarefas de governo, no âmbito municipal e estadual, enfrentar os temas do desenvolvimento econômico e social. Ou seja: trouxemos para os âmbitos locais e estaduais uma temática que antes nos parecia em grande medida exclusiva ou prioritária do governo federal. Embora haja êxitos, as políticas econômicas anti-cíclicas que desenvolvemos a partir dos governos municipais e estaduais seguem extremamente limitadas e dependentes das iniciativas das políticas macroeconômicas impulsionadas pelo governo federal.

11.Quinto, nossa chegada ao governo federal nos colocou diante de temas estruturais, tais como: segurança pública, defesa, relações internacionais, pacto federativo (relação União, estados e municípios), reforma do Estado e reforma política, meios de comunicação, modelo de desenvolvimento econômico e social alternativo ao neoliberalismo. A experiência demonstrou que para vários desses assuntos, não dispúnhamos de formulação prévia adequada. Ademais, tivemos problemas de gestão e principalmente divergências estratégicas que ainda não foram equacionadas.

12.Ligado a isto, temos que reconhecer que experiência (nos três níveis: municipal, estadual e federal) vem demonstrando que temos dificuldades em manter a autonomia dos partidos de esquerda e dos movimentos sociais, frente aos governos. Isso nos remete para a discussão sobre a relação governos e “forças políticas”.

13.Neste terreno, temos três grandes desafios:

a) impedir que as limitações intrínsecas aos governos, limitem também as perspectivas ideológicas, programáticas e estratégicas dos partidos políticos;

b) impedir que a nossa presença no aparato estatal neutralize nossa capacidade de organização e mobilização social;

c) impedir que nossa presença em pedaços do aparelho de Estado, nos transforme em porta-vozes da “razão de Estado” e justificadores do status quo ante. Superar o abismo social existente no continente exige persistência, nunca conformismo.

14.É importante lembrar que a relação Estado/governo/partido se coloca de maneira diferente, para os classes populares e para as classes dominantes. Para estas últimas, os partidos não são um instrumento para conquistar o poder; nem são o principal mecanismo de manutenção e direção do Estado. As classes dominantes possuem outros mecanismos, para além dos partidos, para manter e dirigir o Estado, tais como as forças armadas, os meios de comunicação de massa, a alta burocracia governamental e as organizações empresariais.

15.Para as classes populares, ao contrário, os partidos são fundamentais. Em certo sentido, as classes dominantes desenvolvem sua atuação político-partidária, em resposta aos partidos políticos da esquerda. Mas a importância e a legitimidade do papel dos partidos, frente ao governo e ao Estado, não deve nos fazer perder de vista que nosso propósito é a democratização radical da sociedade e do poder, o que supõe no mínimo o mais amplo controle da sociedade sobre o Estado.

16.O tema da relação partido/governo/Estado deve ser tratado como parte do problema mais geral da democratização da sociedade em geral e da política em particular. Até porque, se não acontecerem mudanças econômicas, sociais, políticas e culturais profundas, a democratização da política seguirá dependendo do voluntarismo e das boas intenções dos governantes.

17.Exemplos de problemas estruturais que devem ser resolvidos mediante mudanças estruturais:

a) o poder dos meios de comunicação privados, na formação da opinião da sociedade;

b) a influência das grandes empresas privadas, sobre as decisões dos governos e dos parlamentos;

c) o fosso de informação e poder que existe, entre os governados e os governantes, entre os profissionais da política e do governo, vis a vis os cidadãos e cidadãs em geral;

d) a distância entre os debates parlamentares e as questões que afligem o dia-a-dia da população;

e) o poder pessoal autocrático dos chefes do poder executivo;

f) o poder desmedido das chamadas equipes econômicas, no interior dos governos;

g) o poder desmedido da alta burocracia estatal, frente aos governantes eleitos.

18.Especificamente sobre a relação partido/governo, nossa experiência no Brasil comporta duas características complicadoras:

a) por um lado, trata-se de partidos no plural;

b) por outro lado, trata-se de partidos de esquerda, de centro e as vezes até mesmo de direita.

19.Isso nos coloca diante de um duplo desafio:

a) como evitar que a legítima busca da hegemonia de um partido, se transforme em imposição sobre as outras forças políticas que do governo participam?

b) como um partido de esquerda pode conseguir hegemonizar um governo de centro-esquerda com aliados de direita e, ao mesmo tempo, manter as características e as posições de um partido de esquerda?

20.Outros aspectos que deve ser enfrentados são os efeitos colaterais de nossa presença em governos. É o caso da corrupção e também da burocratização do debate político.

21.A corrupção tem causas sociológicas, agravadas pelo neoliberalismo. Os governos de esquerda têm que ser campeões no combate à corrupção. E os partidos de esquerda devem criar mecanismos para prevenir e punir o surgimento de casos de corrupção. A partir do momento em que a esquerda chega ao governo e passa a tomar decisões que incidem na distribuição de imensos recursos, os mecanismos internos de combate à corrupção devem se tornar mais fortes e sofisticados. Se o PT dispusesse de uma corregedoria interna, alguns dos acontecimentos de 2005 não teriam ocorrido.

22.Quanto a burocratização do debate político, trata-se da tendência de transferir para os governos decisões que são ou deveriam ser tomadas pelo Partido. Esta tendência é reforçada pela natural e até certo ponto desejável ampliação das fileiras partidárias, depois que nos tornamos governo. Os novos militantes não participaram da luta contra a ditadura, não participaram da luta contra os governos neoliberais, não conhecem o partido oposicionista e das lutas sociais. Isto transforma estes novos militantes em presa fácil da concepção segundo a qual, uma vez conquistado o governo, o Partido perde importância estratégica.

23.Pelo contrário, devemos reafirmar a importância do Partido, de seu protagonismo, de sua autonomia estratégica e de sua capacidade de elaboração e direção. É claro que o Partido não deve se imiscuir nos assuntos cotidianos. Isso seria negativo, tanto para a gestão administrativa do governo, quanto para a imprescindível autonomia do Partido frente ao governo/Estado. Entretanto, é preciso estar alerta para duas situações: quando as políticas cotidianas nos afastam dos nossos objetivos estratégicos; e quanto nossos objetivos programáticos foram tão rebaixados, que deixam de cumprir o papel de horizonte e acicate para nossa ação cotidiana.

24.Os partidos devem, por exemplo, estar na vanguarda do debate e da luta por:

a) construir um modelo econômico e social alternativo, que leve em conta não apenas a oposição ao neoliberalismo, mas também nossa crítica democrática e popular ao desenvolvimentismo conservador e nossa crítica socialista ao capitalismo;

b) evoluir das políticas emergenciais para a ampliação das políticas estruturais;

c) um desenvolvimento nacional que esteja combinado com a integração continental e com o objetivo de construir outra ordem mundial.

25.A política externa do governo brasileiro tem esta vocação. Prioridades para as relações sul-sul, África e integração continental. Nesta integração, o Mercosul é visto como parte da construção da CASA.

26.Claro que setores das classes dominantes só concebem uma política de integração com os Estados Unidos. Claro, também, que a lógica comercial e de curto prazo segue turvando a imaginação de muitos setores. Ademais, só agora estamos conseguindo colocar o tema da integração na pauta política nacional.

27.Um dos aspectos da integração é o tratamento das assimetrias. Embora muito tenha sido feito, muito mais precisa ser feito para dar conta deste problema, especialmente importante no caso do Paraguai e do Uruguai. Conflitos como o das “papeleras”, que consideramos como assunto que deve ser tratado no âmbito do Mercosul, jogam um papel negativo.

28.Outro aspecto da integração é como tratar as relações com os Estados Unidos. Diante do fracasso da Alca, os EUA estão buscando firmar acordos bilaterais com diversos países do continente. Estes Tratados de Livre Comércio (TLC) tiveram efeitos profundamente negativos onde já estão em vigor; e sofrem uma imensa oposição da esquerda nos países em que ainda não foram aprovados pelos respectivos Congressos nacionais. Os Estados Unidos buscam firmar um TLC com o Uruguai, para colocar uma cunha no Mercosul. É preciso construir outro caminho.