domingo, 29 de setembro de 2024

Estrategia: rascunho 1

Este texto é o primeiro de uma série dedicada a debater a estratégia do PT. Foi escrito durante uma viagem de ônibus, entre Porto Alegre e São Paulo. A avaliação política e as pesquisas indicam que o PT e a esquerda gaúcha podem colher bons resultados nas eleições de 2024. Como em toda parte, muito depende do engajamento militante nesta reta final. A militância gaúcha com que conversamos tem um olho no peixe e outro no gato: por um lado está engajada na campanha eleitoral, por outro está preocupada com os rumos do nosso Partido. Este texto (sem revisão) trata disso.


“Precisamos de um partido para tempos de guerra”. Quando dissemos isso, em 2015, muita gente não entendeu e outro tanto discordou. Quase dez anos depois, somos obrigados a repetir e agregar: precisamos de um partido e de um governo para tempos de guerra.

Que vivemos tempos de guerra, não há mais quem discorde. Vide, por exemplo, o discurso que o presidente Lula fez, dia 24 de setembro de 2024, na assembleia geral da ONU.

Lula lembrou que “2023 ostenta o triste recorde do maior número de conflitos desde a Segunda Guerra Mundial. Os gastos militares globais cresceram pelo nono ano consecutivo e atingiram 2,4 trilhões de dólares”.

Os fatos citados por Lula nos lembram que vivemos tempos de guerra e de crise social: “momento de crescentes angústias, frustrações, tensões e medo”, nos quais o “número dos que necessitam de ajuda humanitária no mundo chegará a 300 milhões” e “9% da população mundial (733 milhões de pessoas) estão subnutridas”.

Além de tempos de guerra e crise social, os dados citados por Lula recordam que vivemos, também, tempos de crise econômica e catástrofe ambiental: “a consolidação de assimetrias que levam a um verdadeiro oligopólio”, “uma segunda década perdida” na América Latina, um ano que “caminha para ser o ano mais quente da história moderna”.

Neste cenário tão difícil, nós da esquerda brasileira contamos com uma grande vantagem: estamos governando. Mas cabe perguntar: nosso governo está tomando todas as medidas necessárias para enfrentar a situação descrita no discurso presidencial?

Há quem acredite nisso. Assim como há quem não acredita tanto assim, mas por diversas razões escolha dizer que estamos “vivendo um momento excelente”. Para nossa infelicidade, os fatos apontam noutro sentido.

Numa interpretação otimista (que deixa de lado algumas oportunidades perdidas e várias escolhas rebaixadas), nosso governo está tentando fazer o máximo e o melhor possível, mas atua num ambiente dominado por forças econômicas e políticas que trabalham no sentido oposto.

A resultante disso é que fazemos menos do que o necessário, numa velocidade inferior à necessária e com resultados políticos aquém dos necessários, como demonstram as pesquisas desde janeiro de 2023 (veremos logo mais o que dizem as eleições municipais de 2024).

Se essa situação não se alterar, podemos até vencer as eleições presidenciais de 2026, mas não conseguiremos enfrentar exitosamente as terríveis consequências e ameaças provenientes dos tempos de guerra e crise em que vivemos.

Para termos êxito neste plano, será necessário alterar substancialmente a correlação de forças. E isso passa por impor derrotas às forças políticas e sociais que, de maneira mais ou menos articulada, seguem nos impedindo de fazer o que precisa ser feito em defesa da maioria do povo brasileiro, das liberdades democráticas, do bem-estar social, do desenvolvimento, da soberania, do meio ambiente e do socialismo.

As forças políticas e sociais a que nos referimos são: o imperialismo, o capital financeiro, o agronegócio, o neoliberalismo, a direita tradicional e a extrema-direita.

Para derrotar estas forças precisamos de algo que nosso partido elaborou em 1987 (quinto encontro nacional) e tentou reelaborar em 2017 (sexto congresso nacional): uma estratégia que articule nossas ações de curto, médio e longo prazo.

Uma estratégia que articule a luta eleitoral com a luta social; a ação de governo com a ação de partido; as políticas públicas com as transformações estruturais; o nacional com o internacional; as alianças com o enfrentamento; a luta política com a disputa ideológica etc.

Nem todo mundo concorda com o que foi exposto antes.

Para começo de conversa, existem pessoas que simplesmente não percebem a necessidade de uma estratégia. Assim como há aquelas que acreditam que o PT disporia sim de uma “estratégia”, que consistiria em articular a eleição de 2024 com a eleição de 2026 e assim sucessivamente, até perder de vista.

Entretanto, até mesmo quem defende este ponto de vista estritamente eleitoral anda meio preocupado. Afinal, é verdade que nosso desempenho nas eleições presidenciais é positivo - vencemos cinco das nove eleições realizadas desde 1989 e ficamos em segundo lugar nas outras quatro – mas também é verdade que nossa votação, em termos percentuais, vem caindo desde 2002. Ademais, quando Lula é retirado da equação (como ocorreu em 2018), nosso desempenho é inferior ao necessário para vencer. Ademais, nosso desempenho nas eleições presidenciais não encontra correspondência nas eleições para o Congresso, nem nas eleições estaduais e municipais. Nem encontra correspondência em nossa força social e influência ideológica: depois de quatro vitórias eleições presidenciais seguidas, não conseguimos derrotar um golpe e, mesmo depois de nossa vitória em 2022, seguimos enfrentando dificuldades no enfrentamento do neoliberalismo e do neofascismo.

A verdade é que, depois de 42 anos disputando eleições e governando algum ente da federação, podemos reafirmar com absoluta certeza algo que antes era no fundamental uma hipótese, baseada na experiência de outros países: para mudar o Brasil, não basta ganhar eleições, não basta ter um petista na cadeira presidencial.

Para mudar o Brasil é necessário ter uma imensa força social e cultural, mais um conjunto de condições que exigem muita sorte, muito trabalho de base e uma orientação política adequada.

O que nos traz de volta ao debate sobre a estratégia.

A esquerda debate “estratégia” antes mesmo que esse termo fosse incorporado ao nosso vocabulário. Até o fim da União Soviética (1991), parecia existir um roteiro mais ou menos universal para quem fosse discutir qual a estratégia adequada para a classe trabalhadora, em uma determinada sociedade, num determinado momento histórico. Hoje, para o bem e para o mal, o debate acerca da estratégia se tornou bem mais confuso. Entre outros motivos porque o desmanche da União Soviética foi interpretado, por parte da esquerda, como “o fim da história” da luta pelo socialismo. E se não há luta pelo socialismo, o debate estratégico vai desidratando, vai perdendo sentido, vai deixando de ser a orientação geral de todas as nossas ações. Isso é especialmente visível num partido como o PT, que possui no seu interior de comunistas até socialliberais. 

Para alguns setores do Partido, não faz sentido debater uma estratégia de luta pelo socialismo, simplesmente porque não lutam mais pelo socialismo.

Sendo assim as coisas, é preciso começar reafirmando alguns fundamentos.

O PT precisa de uma estratégia, antes de mais nada, porque nadamos contra a corrente do capitalismo realmente existente no Brasil. A “dinâmica natural das coisas” da sociedade brasileira é manter, produzir e aprofundar a desigualdade, o mal-estar social, a concentração do poder político, a dependência externa, a destruição ambiental e todas as formas possíveis de opressão.

Os momentos em que, no Brasil, as coisas tomaram um rumo pouco diferente deste acima descrito, são a exceção (por exemplo os governos Vargas 2, Jango, Lula, Dilma), não a regra de nossa história.

Mesmo nos governos citados, forças poderosas infiltraram, sabotaram, bloquearam, impediram e derrotaram as mudanças. Aquelas mesmas forças já estão implementando o referido roteiro contra o governo Lula 3.

Portanto, precisamos de uma estratégia porque agimos contra a dinâmica do sistema, contra o status quo, contra a ordem vigente. E só com uma estratégia poderemos – se também contarmos com muita sorte e se fizermos muito esforço – ter alguma chance de êxito.

Várias estratégias são possíveis. E só retrospectivamente saberemos se a estratégia adotada por nós foi exitosa.

Na maior parte dos países do mundo, a esquerda até hoje não teve êxito. E como seria ridículo culpar os inimigos pela nossa derrota – eles estão aí para isso mesmo, para tentar nos derrotar – a conclusão é que, na maior parte dos países do mundo, faltou alguma coisa: um pouco de sorte, de trabalho e, talvez, uma estratégia correta.

No Brasil, desde pelo menos 1922, a esquerda brasileira experimentou diversas estratégias. A estratégia que nos permitiu, até hoje, acumular maiores fatias de poder para a classe trabalhadora, foi a estratégia adotada pelo PT no ano de 1987: a estratégia democrático popular e socialista.

Foi aquela estratégia que nos orientou na gloriosa eleição presidencial de 1989, a partir da qual o PT converteu-se em força hegemônica na esquerda brasileira. 

Nos anos 1990, apesar das imensas forças contrárias oriundas da ofensiva neoliberal e da crise do socialismo, aquela estratégia serviu de contraponto e ajudou a impedir que o PT tivesse o mesmo destino de tantas outras forças de esquerda mundo afora. 

“Nunca antes na história deste país” a esquerda conseguiu polarizar a disputa política e ganhar eleições presidenciais como fez durante o período em que o PT converteu-se em partido hegemônico na esquerda brasileira. Mas ao mesmo tempo em que nos tornamos hegemônicos, fomos nos transformando e nos distanciando de diversos dos pressupostos da estratégia democrática popular e socialista. 

Hoje, grande parte do PT não se identifica mais com aquela estratégia. Ademais, o mundo para o qual ela foi elaborada em certa medida não existe mais.

As mudanças ocorridas, desde 2008, na situação mundial, de nosso continente e do Brasil; e as correspondentes mudanças nas condições de luta política e na própria classe trabalhadora; associadas às limitações de própria estratégia, bem como a nossa falta de trabalho e de sorte, tornam necessário elaborar uma estratégia adequada aos tempos em que vivemos, em 2024 e além.

Evidentemente, mesmo entre os que percebem esta necessidade, não há consenso acerca de qual estratégia deve ser elaborada e implementada.

Do nosso ponto de vista, há quatro pressupostos fundamentais. O primeiro pressuposto é a convicção de que estamos diante de problemas, no Brasil e no mundo, que não têm solução nos marcos do capitalismo. Portanto, precisamos de uma estratégia cujo “objetivo final” é o socialismo.

O segundo pressuposto é a percepção de que vitórias eleitorais não são suficientes para as transformações que necessitamos fazer. Portanto, precisamos de uma estratégia que permita conquistar e construir o poder através da combinação de diferentes formas de luta.

O terceiro pressuposto é que os grandes capitalistas e o imperialismo são nossos inimigos e devem ser derrotados. Portanto, precisamos de uma estratégia para fazer da classe trabalhadora a classe dominante e dirigente na sociedade brasileira.

O quarto pressuposto é que o Partido dos Trabalhadores segue sendo um protagonista insubstituível para encabeçar a implementação desta estratégia.

Parte da esquerda brasileira não concorda com nenhum desses pressupostos. Parte concorda com alguns, mas não com outros. Por exemplo, há os que concordam com os três primeiros pressupostos, mas não concordam com o protagonismo do PT.

Por incrível que possa parecer, este é o caso de uma parte dos filiados ao PT, que não acredita mais que nosso Partido seja capaz de implementar uma estratégia com os pressupostos citados anteriormente.

E há, além de tudo, os que têm dúvida sobre se a classe trabalhadora brasileira possui a energia ideológica, política e organizativa necessárias para sustentar uma estratégia do tipo citado anteriormente.

As dúvidas têm motivos para existir. E algumas delas estão relacionadas com os efeitos da crise sobre a classe trabalhadora e sobre suas organizações.

A ideia de que toda crise profunda no capitalismo resulta em uma onda de conscientização, organização e mobilização na classe trabalhadora é parcialmente falsa. A rigor, isso pode acontecer e efetivamente acontece, mas a depender de inúmeras circunstâncias. Entretanto, mesmo quando o final é feliz, mesmo quando a crise é o estopim de profundas lutas e mudanças, ainda assim é muito comum que – antes do desfecho – a crise contribua para provocar, em amplos setores da classe trabalhadora, reações conservadoras: uma luta desesperada por manter o (pouco) que se tem.

Frente à perda de direitos, de renda, de empregos, de moradia, de qualidade de vida, há uma reação defensiva. Nos setores menos politizados e menos organizados da classe, verifica-se um crescimento do sofrimento mental, do individualismo, do fundamentalismo religioso, do racismo, da violência contra a mulher, do preconceito, do voto na direita e na extrema-direita, da desfiliação e do desinteresse nas organizações da classe, entre tantos outros efeitos negativos. Num resumo, amplos setores da classe sentem mais medo da mudança do que medo do status quo.

As crises profundas no capitalismo também afetam os setores mais politizados e mais organizados da classe. A óbvia e necessária reação defensiva muitas vezes transforma o vício em virtude. Afinal, uma coisa é defender o que se tem, contra uma piora, contra um retrocesso. Outra coisa é idealizar o que se tem (ou que se tinha), como se fosse a melhor coisa do mundo. E uma terceira coisa, diferente das duas anteriores, é transformar a atitude defensiva numa linha política segundo a qual sempre seria melhor ceder um pouco, do que lutar e correr o risco de perder tudo.

Evidentemente, transformar esta última atitude em regra, torna virtualmente impossível alterar para melhor a correlação de forças.

No plano político ideológico, a atitude conservadora que citamos antes gera recuos malabares. Esquerdistas se convertem nos campeões da “moderação” e da “responsabilidade”. Princípios e objetivos estratégicos são queimados na pira do supostamente aceitável pela opinião pública. O nobre objetivo de preservar os espaços conquistados se converte numa luta sem quartel, a qualquer preço e com qualquer método, para manter os pequenos poderes. Práticas inaceitáveis, típicas de partidos tradicionais, clientelistas e oportunistas, começam a ser naturalizadas. Políticas que combatíamos ontem passam a ser defendidas hoje, sob o argumento de que a alternativa seria ainda pior. A “correlação de forças” é aceita como imutável, porque no fundo se acredita que mudança, só para pior. E, portanto, que melhor seria manter as coisas como estão do que correr riscos.

Muita gente defende e implementa este tipo de atitude, convicta de que é a única alternativa possível. Acreditam também que, fazendo isto, interromperíamos a ofensiva conservadora e criaríamos as condições para voltar a avançar.

Suponhamos que, em algumas situações, isto possa ser verdade. Mas noutras situações, o efeito tem sido exatamente o contrário. Por exemplo: quando há forças de extrema-direita, que catalisam a insatisfação popular e a direcionam num sentido reacionário, o único antídoto é a existência de uma esquerda combativa. Este antídoto não funciona sempre; mas sem ele, a derrota é líquida e certa.

Este é, em nossa opinião, o caso do Brasil. A extrema-direita conquistou amplos setores da classe trabalhadora, exatamente nos territórios que o PT perdeu, abandonou ou nunca entrou. Mas, por outro lado, a extrema-direita só foi derrotada graças à força que o PT segue tendo na classe trabalhadora.

Apesar disso, há dentro do PT fortes setores que defendem enfrentar a extrema-direita fazendo crescentes concessões à direita tradicional (sem falar nos que fazem acenos à própria extrema-direita).

Estes setores do PT não explicam como – com esta política que defendem – vamos conseguir alterar a correlação de forças no Congresso, nas forças armadas, nos meios de comunicação, para citar apenas três das inúmeras casamatas da classe dominante. Tampouco explicam como vamos derrotar o agronegócio, o capital financeiro e o imperialismo.

Alguns não explicam, porque já desistiram de tentar alterar e derrotar; contentam-se em conviver com os inimigos, pactuar com eles, incorporar como nossas algumas das políticas da direita e, sem vergonha nem dor na consciência, ir levando a vida.

Outros mantém uma atitude ambivalente: seguem dando entrevistas, fazendo discursos e (até há pouco) mandando tuítes que sinalizam à esquerda, ao mesmo tempo que vão concordando com a política implementada pelos que já capitularam.

O crescimento do conservadorismo, nas fileiras da esquerda, parece tão profundo que cresce o número de pessoas que não acredita mais que nosso PT possa ser capaz de adotar uma estratégia com os pressupostos descritos anteriormente.

Muita gente fora do PT e muita gente dentro do próprio PT pensa que seria irreversível a conversão do nosso partido em uma força política mais ou menos tradicional, na qual até se pode votar, mas da qual não se deve esperar nada além de algumas boas políticas públicas. Como gosta de dizer certa imprensa, um partido de centro-esquerda, com vários tucanos de bico vermelho e alguns coronéis do asfalto.

Os mais pessimistas vão além e acreditam que o problema é ainda mais profundo: não apenas o PT, mas também a classe trabalhadora brasileira não teria mais a energia ideológica, política e organizativa necessária para implementar mudanças profundas em nosso país.

Pode ser verdade? Sim, sempre pode ser verdade. Mas como o “não” já temos, não custa nada se perguntar algo óbvio: não é estranho que a classe dominante faça tanto esforço para desmoralizar, derrotar e destruir uma força supostamente tão inócua como o PT é descrito por alguns críticos?

Ademais, aquela descrição acerca da impotência da classe trabalhadora e do PT não seria, também, por demais conveniente para aqueles que desejam manter o status quo? E, finalmente, qual seria mesmo a alternativa que decorre daquele tipo de análise?

Antes de seguir, um esclarecimento: concordamos que o PT corre risco de vida. Corremos este risco, em menor escala, por causa de nossos inimigos. E, em maior escala, por causa das opções que parte de nós têm feito, nos últimos anos. Os partidos, como os gatos, têm muitas vidas. Mas o acúmulo de erros algum dia pode se tornar fatal.

Isto posto, não há dúvida sobre o seguinte: até agora fracassaram todas as profecias sobre o fim do PT. Ainda hoje, todas as organizações da esquerda brasileira giram ao redor do petismo. Até mesmo aquelas que se aliaram à direita para tentar nos derrotar, são obrigadas a organizar toda sua política ao redor do que o PT faz ou deixa de fazer.

As eleições de 2024, aliás, confirmaram mais uma vez que a esquerda que se considera superior ao PT têm grande parte de nossos defeitos, mas não tem grande parte de nossas virtudes. 

Acima de tudo, 44 anos depois da fundação, a maior parte da classe trabalhadora com consciência de classe segue tendo o PT como sua referência.

Isso pode deixar de ser assim? Claro que pode. Até porque o ambiente na própria classe trabalhadora está cada vez mais difícil, pelos motivos já citados. Mas por isso mesmo, seja pela influência que seguimos tendo, seja porque somos a barreira principal contra o avanço da extrema direita, segue sendo inescapável disputar os rumos do PT, como parte da disputa dos rumos da classe trabalhadora brasileira.

É inescapável, entre outros motivos, porque nas condições de um país como o Brasil a luta pelo socialismo exige um partido de massas. Se o PT criado em 1980 não der conta desta tarefa, isto não alterará em nada o problema estratégico: continuará sendo necessário um partido de massas. E se não formos capazes de enfrentar, em 2024, os problemas que afetam o PT que foi criado em 1980, a decorrência é que vamos legar às futuras gerações mais um problema não resolvido.

Neste sentido, os petistas que deixam de disputar os rumos do PT e passam a resmungar pelos cantos - “oh céus! oh vida! oh azar! isto não vai dar certo” - precisam entender que agir como Hardy só piora a situação.

Isto posto, voltemos ao ponto de partida: precisamos de uma estratégia cujo “objetivo final” é o socialismo. Uma estratégia que permita conquistar e construir o poder através da combinação de diferentes formas de luta. Uma estratégia que faça da classe trabalhadora a classe dominante e dirigente na sociedade brasileira. Uma estratégia que articule nossas ações de curto, médio e longo prazo; a luta eleitoral com a luta social; a ação de governo com a ação de partido; as políticas públicas com as transformações estruturais; o nacional com o internacional; as alianças com o enfrentamento; a luta política com a disputa ideológica etc. Uma estratégia para derrotar o imperialismo, o capital financeiro, o agronegócio, o neoliberalismo, a direita tradicional e a extrema-direita. Precisamos de um partido e de um governo para tempos de guerra. 

No próximo episódio, ou seja, no segundo texto desta série, falaremos mais sobre estes tempos em que vivemos.


 

 

 

 

 

sexta-feira, 27 de setembro de 2024

Venezuela: a ditadura segundo Boulos

Boulos precisa ir ao segundo turno e vencer as eleições em São Paulo capital.

Isto posto, Boulos erra ao dizer que a Venezuela seria "um regime ditatorial".

A afirmação foi feita em entrevista à Rede Globo. 

Segundo foi divulgado por toda a imprensa, Boulos teria dito que "um regime que persegue opositor, um regime que faz eleição sem transparência para mim não é democrático. É um regime ditatorial. Mas seria importante que os meus adversários tivessem a mesma preocupação com a democracia no Brasil. O Bolsonaro ameaçou as urnas eletrônicas e tentou dar um golpe no dia 8 de janeiro e o Ricardo Nunes disse que foi só uma manifestaçãozinha”.

A declaração pode ser lida aqui: Rejeição: Boulos ameniza discurso e admite ditadura na Venezuela (gazetadopovo.com.br)

Não acredito que Boulos tenha dito isso para ganhar votos, pois atacar o "regime da Venezuela" não ganha voto.

Tampouco acredito que Boulos tenha dito isso para reduzir a rejeição, pois criticar o "regime da Venezuela" não reduz rejeição.

Penso que Boulos disse que a Venezuela é uma ditadura porque ele, Boulos, está vivendo uma transição política e ideológica. Aonde essa transição vai parar, só o tempo dirá.

Mas como ninguém - para apoiar Boulos prefeito em 2024 - é obrigado a concordar em transitar junto com ele, observo o seguinte. 

Há um imenso debate político acerca do que é "democracia" e acerca do que é "ditadura". Neste debate, as pessoas e as correntes políticas adotam diferentes critérios, pesos e medidas.  

Por exemplo: há quem diga que Bolsonaro seria vítima de um "regime que persegue opositor". Assim como há quem diga que o voto em urna eletrônica resulta numa "eleição sem transparência". 

Seja por qual motivo for, muita gente concorda com Boulos e não considera "democrático" o processo venezuelano. 

Aliás, tem muita coisa acontecendo - no mundo, em nosso país e inclusive em nossas organizações - que criticamos como não democráticas. E nossas críticas às vezes contribuem para mudanças positivas.

Mas Boulos não se limitou a criticar a falta de democracia. Ele foi além e carimbou a Venezuela como sendo um "regime ditatorial". 

No passado, um ex-presidente do PT disse algo parecido sobre Cuba. Como os tempos eram outros, ele tentou consertar dizendo que seria uma "ditadura popular". O conserto podia fazer algum sentido para quem já defendeu a "ditadura do proletariado", mas no senso comum "ditadura" é algo profundamente negativo.

Ditadura a gente luta para derrotar e derrubar. Aliás, é usando este pretexto que Bolsonaro, Maria Corina, Vox, Milei e os EUA trabalham dia e noite para tentar derrotar o "regime ditatorial" venezuelano.

Estou seguro que Boulos não defende apoiar isto. Mas se não defende, melhor então seria não confundir focinho de porco com tomada.










quarta-feira, 25 de setembro de 2024

Amigos de Dirceu




Acabam de me contar que fui agraciado, pelo companheiro José Dirceu, com uma simpática referência!

O elogio foi feito numa plenária da vereadora Luna Zaratini. E compreendia, além deste que vos escreve, outros três amigos de Dirceu: Breno Altman, Rui Falcão e José Genoíno, este último presente fisicamente no momento do elogio.

Dirceu talvez não saiba, mas para além de elogiar, ele acabou de resolver um problema. Acontece que há vários meses Genoíno, Rui, Breno e eu temos nos reunido, mas nunca soubemos como nos denominar.

Quadrilha? Penal demais!

Quarteto? Sexy demais!

Clube do bolinha? Machista demais!

Gangue dos quatro? Esquerdista demais!

Já “quatro cavaleiros do apocalipse”, como nos denominou Dirceu na referida plenária, é genial!

Claro, para alguns pode soar meio esquisito, digamos assim, gostar de ser equiparado com a morte, a guerra, a fome e a peste.

Explico.

Para quem acredita, mas também para quem é apenas curioso,  o Apocalipse é dos capítulos mais controvertidos da Bíblia. 

Por este e por outros motivos, é possível fazer uma reinterpretação narrativa e ler a referência de Dirceu aos quatro cavaleiros do apocalipse como um paradoxal elogio, dirigido àqueles que aparecem em tempos catastróficos para lutar, em defesa da humanidade, contra as causas do apocalipse.

(Como podem ver, ter amigos pressupõe saber interpretar textos.)

Por tudo isso, como autoproclamado pastor da igreja dos marxistas leninistas dos últimos dias, confirmo que seguiremos cavalgando.

Com o Zé, sem o Zé e contra o Zé, quando assim for necessário. Afinal, amigos amigos, política à parte.


ps. outra fonte acaba de me contar que a referência aos “cavaleiros” já fora feita por outra pessoa, nosso combativo deputado Paulão! Como se pode ver, não vivemos em tempos em que o “love” está no ar…

ps2. um dos quatro sugeriu o que está no endereço abaixo como hino, no caso para os quatro cavaleiros do após-calipso: https://www.letras.mus.br/gilberto-gil/574296


Meios e fins na guerra eleitoral

Guerra é um fenômeno violento, brutal, onde a força atropela toda lei e ordem.

Verdade?

Em parte sim.

Mas até mesmo na guerra há procedimentos considerados criminosos.

Armas que não se pode utilizar indiscriminadamente, por exemplo.

Por isso as vezes acontece, no meio de uma guerra, que um soldado ou um oficial sejam presos, julgados, condenados e até mesmo executados por seu próprio “bando”. Isso tudo por terem transgredido certas leis da guerra.

Hipocrisia? Em parte, sim. Afinal, que sentido faz punir alguém por ter matado do jeito X e não do jeito Y?

Mas, ao menos em parte, não se trata de hipocrisIa.

Principalmente quando se trata de guerras civis ou de guerras de libertação nacional, em que o apoio político do povo é um fator importante - inclusive do ponto de vista militar - o respeito às “leis da guerra” pode ser decisivo.

É por isto que, por exemplo, todas as guerrilhas bem-sucedidas exigiam que seus integrantes respeitassem e não cometessem violências contra o povo.

Há vários casos - na guerrilha cubana, por exemplo - de condenações à morte de guerrilheiros que exibiam o que era considerado comportamento inadequado.

E, quando ocorria uma condenação desse tipo, a ninguém ocorria dizer coisas do tipo “estão dando tiro no pé”, “vamos nos concentrar em vencer”, “vamos deixar para depois”.

Não ocorria a ninguém tais coisas, entre outros pelo simples motivo de que a “ética no combate” era um componente importante da soma de fatores que, na visão dos guerrilheiros, tornaria possível a vitória final.

Isto posto, ressalvadas as múltiplas diferenças entre guerra e política, acontece algo similar nas campanhas eleitorais. Não se pode nem deve fazer “tudo”.

Não se pode, por exemplo, fazer igual ao que nossos inimigos fazem. Não se pode “deixar para depois” a discussão sobre certas atitudes. Não basta ser “legal” para ser legítimo.

Claro, podemos divergir sobre se esta ou aquela atitude merece ou não reprovação. Podemos divergir sobre o que fazer quando alguém comete uma atitude reprovável.

O que não podemos é achar que, em nome da “vitória”, tudo pode ser feito e nada pode ser questionado.

Pelo simples motivo de que a indiferença em relação aos meios é característica dos capitalistas. Para a classe trabalhadora, há uma relação entre meios e fins.

É também por isso que devemos ser criteriosos no trato das contribuições de campanha. Apesar do que dizia o imperador, dinheiro tem cheiro.

segunda-feira, 23 de setembro de 2024

A entrevista de Dirceu à Mônica Bergamo

A Folha de S. Paulo publicou uma longa entrevista com o ex-presidente nacional do PT, José Dirceu.

A entrevista foi concedida à jornalista Mônica Bergamo.

A entrevista foi publicada em duas partes, a primeira concentrada em assuntos nacionais e a segunda em assuntos internacionais.

Copiei e colei ao final.

Afirmando não saber se a vitória de Maduro é real, por não ter elementos para dizer se acredita ou não no resultado, Dirceu defende que “o Brasil tem que ter uma atitude de maior distanciamento”. Traduzindo, se entendi direito, devemos reconhecer o governo Maduro.

Sobre Gaza, Dirceu concorda com a posição de Lula: “é um genocídio, uma guerra de extermínio”. E vai além: “O povo palestino tem o direito de se levantar em armas contra a ocupação de Israel”. Ao mesmo tempo, Dirceu diz que “temos que condenar o Hamas, e temos que condenar Israel também”. E agrega que “condenar Israel não tem nada a ver com antissemitismo”.

Sobre a guerra na Ucrânia, Dirceu diz que “a Rússia, de certa forma, se defendeu. É uma guerra, e nós não podemos apoiá-la porque a nossa Constituição proíbe. A Rússia invadiu outro país. Mas, se você olha os antecedentes”…

Sobre a Europa e os EUA, Dirceu fala que “o capitalismo vive hoje uma disputa entre as soluções da extrema direita e da direita”, mas não acredita “que a direita veio para ficar”.

Especificamente sobre os EUA, Dirceu afirma que “não são essa democracia [que dizem ser]. São uma plutocracia. Sabe quanto vai custar a campanha eleitoral [deste ano] nos EUA? R$ 7 bilhões. Os EUA são um império, e não uma República. Não estou fazendo juízo moral”.

Sobre China, a entrevista contém citações pontuais. Sobre Cuba, nada. Mas isso pode ter sido obra da edição, não do entrevistado.

Vista de conjunto, a opinião publicada de Dirceu sobre a política externa está um pouco à esquerda da posição do governo e alinhada com a posição expressa pelo PT ou, pelo menos, alinhada com a posição defendida pelas pessoas que respondem pela política internacional do Partido.

Já a opinião publicada sobre a situação nacional está alinhada com a posição do governo e corresponde ao senso comum de boa parte da atual direção do PT.

Por exemplo: “A liderança do Lula, que no fundo representa as forças políticas de esquerda no país, se expandiu [em duas décadas]. Nós vencemos cinco eleições [2002, 2006, 2010, 2014 e 2022], o que é um fato histórico mundial. Só não vencemos a sexta [em 2018] porque o Lula estava preso em um processo político de exceção. Mas a votação do [hoje ministro Fernando] Haddad [em 2018], que teve 32 milhões de votos naquelas condições, me deu a segurança de que havia ainda um período sob a liderança do Lula e, de certa forma, sob a hegemonia do PT. Isso se confirmou em 2022”.

Sem dúvida, das 9 eleições presidenciais realizadas desde 1989, ganhamos 5 e ficamos em segundo lugar nas outras quatro. E só não ganhamos 6 porque houve um golpe. 

Mas simplesmente não é verdadeiro dizer que, nesse período (2002-2022) “a liderança do Lula” e das “forças políticas de esquerda” tenha se expandido. Do ponto de vista estritamente eleitoral, nosso maior percentual de votos válidos foi obtido em 2002. E do ponto de vista da influência organizada na classe trabalhadora, estamos num momento de imensa fragilidade. Isso para não falar da situação no plano da batalha das ideias.

Portanto, não basta reconhecer que “a extrema direita sempre teve expressão no país”. É preciso compreender por quais motivos esta “nova” extrema-direita cresceu exatamente quando estávamos no governo; debater o que poderíamos ter feito e não fizemos, para impedir o crescimento da extrema-direita; e, com base nesta análise, decidir o que devemos fazer daqui por diante.

Outro exemplo do que dissemos acima é a ênfase que Dirceu dá, na entrevista, para as divisões na direita e na extrema-direita, bem como para as consequências que extrai daí. 

Por exemplo: “Marçal é um problema muito maior para a extrema direita do que para nós. Eles vão ficar divididos em 2026 porque a agenda dele não une a direita”. 

Ou ainda: “A classe média de São Paulo não vai votar nele porque ela é cosmopolita, democrática, anti-homofóbica, antirracista, ambientalista, pela igualdade de gênero. E tem, inclusive, um olhar social (…) O Boulos tem que ganhar a classe média”.

Certamente há setores médios que votam na esquerda (aliás, certos setores da esquerda expressam mais os setores médios do que os setores populares). Mas não foi a chamada classe média que nos deu maioria nas eleições presidenciais de 2022, nem em São Paulo capital, nem no Brasil. Foram os setores populares. São principalmente eles que precisamos ganhar, não a “classe média”.

E o problema de fundo consiste no seguinte: entre 2003 e 2016 disputávamos contra uma direita, hoje disputamos contra duas direitas. Uma delas (a extrema-direita) tem forte apoio e capilaridade em camadas do povo que eram e devem continuar sendo a nossa base social. Mas, diferenças à parte, ambas direitas coincidem num programa de tipo neoliberal. O que nos coloca num dilema imenso: se para derrotar a extrema-direita nos aliarmos com setores da direita tradicional, se o preço desta aliança for aceitar ou conciliar com parte do programa neoliberal, o resultado político disto será o crescimento da extrema-direita. E o resultado macroeconômico será a continuidade do modelo rentista e primário-exportador.

Por conta do que foi afirmado, o “déficit de renovação” no PT – que Dirceu admite existir - não será resolvido através de “lideranças novas”, especialmente pelos citados (por Dirceu) Haddad e Rafael Fonteles. Pois nosso déficit de renovação é antes de mais nada político. Precisamos de outra linha política. E algumas das “lideranças novas” de que dispomos estão à direita do que precisamos para enfrentar o presente e o futuro. 

Aliás, esse é um dos motivos pelos quais o PT não vai passar o “bastão de esquerda para o PSOL”. Não é apenas um problema de “representação nacional, base social, memória histórica”, mas também a necessidade de uma nova orientação política. Que o PSOL não conseguiu produzir, como se pode constatar.

Dirceu fala que “assim como estamos reconstruindo o Brasil, temos que reconstruir o PT” e lembra que, em 2025, teremos “a oportunidade de renovar a sua direção”. Mas renovar a direção não pode ser compreendido apenas enquanto mudança de pessoas. Há um problema de programa, de estratégia, de padrão de funcionamento, que precisa ser enfrentado. E não se trata apenas de construir “um programa para os próximos dez anos”. Se trata de discutir o socialismo, palavra que salvo engano aparece uma única vez na entrevista, quando se fala das antigas repúblicas do Leste Europeu. No lugar disto, Dirceu afirma que “o núcleo do nosso pensamento” é o de “uma sociedade solidária, com igualdade, com justiça”.

Mas o ponto mais problemático, na minha opinião, da entrevista, está no balanço que Dirceu faz do governo Lula 3. 

Segundo ele, o “governo está vivendo um momento excelente. Se houver uma solução pactuada para as eleições das presidências da Câmara e do Senado, o ano de 2025 vai ser de crescimento econômico e estabilidade política, com a possibilidade de aprovação de uma agenda que ajudará no crescimento. Com isso, o Brasil poderá cuidar do que é importante: a transição energética, ecológica, a nova indústria do país. As duas grandes bandeiras para o PT a partir de agora devem ser a reforma do sistema político, para o fortalecimento dos partidos, e a formação de uma maioria parlamentar que apoie o nosso programa de governo (…) Se queremos evitar que haja uma maioria de extrema direita no Senado [a partir de 2027], temos que construir alianças dos estados. Estamos preocupados e já começamos a fazer isso na campanha municipal. Se não pudermos ter um candidato próprio, da esquerda, que ele seja da direita —e não da extrema direita”.

Não sei se Dirceu pensa exatamente isto ou se isto é o que ele acha prudente dizer, numa entrevista concedida na véspera do primeiro turno. Seja como for, os fatos são os seguintes: depois de 22 meses de governo, as pesquisas de opinião demonstram que a correlação de forças não está nada fácil para a esquerda. O governo não é o único responsável por isto, mas tem sua cota de responsabilidade. E só vamos tomar as medidas necessárias e urgentes, se nos convencermos de que não estamos “vivendo um momento excelente".

Abaixo segue a transcrição da entrevista comentada acima.


MARÇAL E A NOVA DIREITA


Há dez anos, as forças de esquerda no Brasil venciam a sua quarta eleição presidencial seguida. Apesar do desgaste do mensalão e da Operação Lava Jato, elas pareciam invencíveis nas urnas. Hoje é a direita que parece ter essa força avassaladora. Ela veio para ficar?


Se você observa as eleições na França, nos EUA, na Alemanha, vê que o capitalismo vive hoje uma disputa entre as soluções da extrema direita e da direita. E isso está se desenhando no Brasil também. Mas eu não creio que a direita veio para ficar. A esquerda ressurgiu na França [nas eleições deste ano] e houve reação à violência da extrema direita na Grã-Bretanha também. A liderança do Lula, que no fundo representa as forças políticas de esquerda no país, se expandiu [em duas décadas]. Nós vencemos cinco eleições [2002, 2006, 2010, 2014 e 2022], o que é um fato histórico mundial. Só não vencemos a sexta [em 2018] porque o Lula estava preso em um processo político de exceção. Mas a votação do [hoje ministro Fernando] Haddad [em 2018], que teve 32 milhões de votos naquelas condições, me deu a segurança de que havia ainda um período sob a liderança do Lula e, de certa forma, sob a hegemonia do PT. Isso se confirmou em 2022.


Mas Lula só se elegeu em 2022 após formar uma frente muito ampla, que incluiu setores conservadores sem os quais não seria possível vencer a direta considerada mais radical.


Vamos lembrar que a extrema direita sempre teve expressão no país. O crescimento do capitalismo brasileiro criou uma classe trabalhadora progressista, que votou no PTB de 1946 a 1964, no MDB progressista e nacionalista de 1974 a 1989 e no PT daquele ano em diante. Mas uma parte dela também vota nos populistas de direita. Jânio Quadros, Fernando Collor e Jair Bolsonaro não venceram apenas com os votos da classe média e das elites do país. Eles tinham apoio popular.


Mas há uma nova direita que surgiu, não?


Sim. Essa direita que estamos vendo agora tem um elemento religioso, do fundamentalismo neopentecostal. E tem o elemento do liberalismo econômico, incorporado por setores das classes populares, que é antiEstado, anti-imposto, e que o [Pablo] Marçal representa bem. Ele divide o bolsonarismo.


Divide e ameaça?


Eu estou assistindo de camarote [rindo]. Porque o Marçal é um problema muito maior para a extrema direita do que para nós. Eles vão ficar divididos em 2026 porque a agenda dele não une a direita. O Marçal vai correr por dentro. E o Bolsonaro tem uma liderança e um carisma muito forte também. Mas, comparado ao Marçal, o Bolsonaro vira um bobo da corte.


Mas em que o Marçal, de fato, difere do bolsonarismo?


Ele é jovem. Ele veio da pobreza. Ele conhece quem vive na periferia. O Bolsonaro não tem nada disso. O Bolsonaro era um sindicalista militar que defendia a agenda da ditadura. E que capturou uma agenda religiosa e da direita liberal, importando uma linguagem do conservadorismo de extrema direita, repetindo um pouco o trumpismo. Já o Marçal é uma criação genuína do momento que estamos vivendo. Ele vai ser candidato à Presidência da República. Mas vai ser uma liderança política sem partido? Ou vai ser adotado por alguma legenda? Neste sentido, ainda é uma incógnita.


ELEIÇÕES EM SÃO PAULO


As pesquisas mostram empate triplo entre Marçal, Ricardo Nunes (MDB) e o Guilherme Boulos (PSOL) na disputa pela Prefeitura de São Paulo. É possível dois candidatos de direita irem para o segundo turno?


É difícil o Boulos baixar de 25% dos votos. E acho também improvável que o Nunes fique abaixo desse percentual, pela máquina e pelo apoio que ele tem. Por isso é pouco provável que o Marçal vença estas eleições. A classe média de São Paulo não vai votar nele porque ela é cosmopolita, democrática, anti-homofóbica, antirracista, ambientalista, pela igualdade de gênero. E tem, inclusive, um olhar social. Dizem que a Faria Lima está com o Marçal. Mas a Faria Lima é a Faria Lima. Ela já estava festejando a vitória do Bolsonaro contra o Lula no segundo turno [de 2022]. É o espírito dela, selvagem, que só vê seu próprio interesse. Mas amplos setores paulistanos enxergam o interesse nacional. Essa é a força do Boulos.


As pesquisas mostram que, no segundo turno, Nunes vence Boulos por larga margem. Por que, ainda assim, o senhor acredita em uma vitória da esquerda?


Porque nós temos força na capital, já vencemos outras vezes. Em 2022, vencemos na cidade com o Lula [para presidente], com o Fernando Haddad [para governador] e com o Márcio França [para senador]. O Boulos tem que ganhar a classe média. E é possível porque duas questões a afastam do Ricardo Nunes: o Bolsonaro e o vice dele [o ex-comandante da Rota Ricardo Mello Araújo, indicado pelo ex-presidente]. Não será simples vencer no segundo turno. Mas temos condições.


Para o PT seria melhor disputar o segundo turno contra o Marçal?


Seria melhor, mas não quer dizer que seja simples vencê-lo também. São Paulo já elegeu o João Doria, o Paulo Maluf e o Jânio Quadros. Nós já vencemos três vezes [com Luiza Erundina, Marta Suplicy e Fernando Haddad]. Mas não é uma cidade, como outras, com tendência manifesta à esquerda. É uma cidade em disputa.


RENOVAÇÃO DO PT


Por que a direita consegue hoje se renovar e a esquerda não consegue? O PT não está envelhecendo?


Há um déficit de renovação no PT, sim. Mas qual é a circunstância histórica dessa situação? É a de que nós passamos sete anos reprimidos. Enfrentamos o mensalão, a Lava Jato, quase perdemos o registro do partido. O Lula foi condenado e preso. Não podíamos sair às ruas com os símbolos do PT. Fomos segregados socialmente. E isso tem um custo, como teve um custo os 21 anos de ditadura militar. E depois dela surgiram novas lideranças e novas instituições democráticas. O PT sempre foi vanguarda, sempre se renovou. O Haddad é um exemplo. O Rafael Fonteles [governador do Piauí] é outro. Todos os governadores são lideranças novas.


Não houve responsabilidade também das lideranças do PT sobre o que ocorreu com o partido?


Nós erramos. Mas o fato histórico é que houve uma repressão institucional e social contra o PT. Por responsabilidade nossa, mas sabemos que isso tudo [combate à corrupção] foi pretexto. Em outros casos, como o da compra de votos para a reeleição do [expresidente] Fernando Henrique Cardoso, a página foi virada. Conosco, não. No fundo, a luta contra a corrupção nunca foi um objetivo real das elites do Brasil. Se você pensar que o Jânio [Quadros] foi eleito contra a corrupção, que o [Fernando] Collor foi eleito contra a corrupção, é ridículo. O próprio Bolsonaro encampou a bandeira anticorrupção, e a família dele [sofreu acusações] e ficou por isso mesmo.


O PT vai mesmo conseguir se renovar, ou vai passar esse bastão de esquerda para o PSOL?


Não, não vai. O PSOL é muito representativo, mas localizado no sudeste e em algumas capitais. Quem tem representação nacional, base social, memória histórica desses trabalhadores que continuaram votando na esquerda progressista e democrática é o PT. É o único partido nacional na esquerda.


Mas qual é a base social hoje do PT, já que a classe operária que esteve em sua origem mudou?


As classes trabalhadoras mudaram, mas continuam existindo. E votam no PT. Ou não conseguiríamos alcançar os resultados eleitorais que temos. Agora, assim como estamos reconstruindo o Brasil, temos que reconstruir o PT. Que, depois de uma fase heroica, sob o comando da Gleisi [Hoffmann], terá a oportunidade de renovar a sua direção no ano que vem.


O Brasil está ficando altamente politizado. Antigamente, as palavras de ordem da direita eram adjetivos. Hoje, são substantivos. Ela tem posição sobre tudo. A direita está consolidando seus partidos, com movimentos de mulheres, de jovens, com institutos de pensamento, com pesquisa e formação política. Com sedes. Olhe para o PP, o União Brasil, o PR, o PL. A direita hoje tem associações, disputa tudo: conselhos tutelares, de odontologia, de farmácia, de engenharia. Eles estão fazendo o que a esquerda sempre fez. E nós vamos voltar a fazer isso, construindo um programa para os próximos dez anos.


LULA E A ESQUERDA


Sem o Lula, qual é o tamanho da esquerda no Brasil?


A esquerda brasileira tem muita força, temos pelo menos 30% [do país]. É muito para a conjuntura atual, em que a sociedade brasileira é hegemonizada pelo agro e pelo capital financeiro. A classe trabalhadora no Brasil passou por reforma da Previdência, trabalhista, sindical, de automação, robotização, precarização, home office, aplicativo. Diminuiu de tamanho. Mas tem muito peso ainda. Nós temos que entender isso, e entender as novas linguagens. Ao contrário da direita e do Marçal, seguimos atrasados na linguagem digital das redes.


A esquerda hoje parece acuada ao discutir temas que antes eram primordiais em sua agenda. O senhor concorda?


Nós perdemos um pouco o norte, o núcleo do nosso pensamento, que é o de uma sociedade solidária, com igualdade, com justiça. Vou te dar dois exemplos. Na votação sobre a ressocialização dos presos, que ficou conhecida como saidinha, e na votação sobre a isenção fiscal para as igrejas, as esquerdas recuaram. Iam votar a favor. Não pode! Que perca. Mas vamos debater na sociedade. Nós temos que ter a capacidade de enfrentar a direita nessas questões. No caso da isenção de impostos para as igrejas, foi pior. Elas perceberam que isso levaria a Receita Federal para dentro de seus caixas. E recuaram. E nós nos manifestamos a favor de algo que nem eles queriam. Olha o ridículo que nós passamos!


Lula vai ser de novo candidato a presidente?


Ele é o candidato. E a tendência é que se reeleja. O governo está vivendo um momento excelente. Se houver uma solução pactuada para as eleições das presidências da Câmara e do Senado, o ano de 2025 vai ser de crescimento econômico e estabilidade política, com a possibilidade de aprovação de uma agenda que ajudará no crescimento. Com isso, o Brasil poderá cuidar do que é importante: a transição energética, ecológica, a nova indústria do país. As duas grandes bandeiras para o PT a partir de agora devem ser a reforma do sistema político, para o fortalecimento dos partidos, e a formação de uma maioria parlamentar que apoie o nosso programa de governo.


BOLSONARISMO E O SENADO


O campo bolsonarista já anunciou que sua prioridade absoluta é fazer maioria no Senado para, inclusive, promover o impeachment de ministros do Supremo Tribunal Federal (STF). Como o governo e seus apoiadores farão frente a isso?


Se queremos evitar que haja uma maioria de extrema direita no Senado [a partir de 2027], temos que construir alianças dos estados. Estamos preocupados e já começamos a fazer isso na campanha municipal. Se não pudermos ter um candidato próprio, da esquerda, que ele seja da direita —e não da extrema direita.


SUSPENSÃO DO X


Qual é a sua opinião sobre a suspensão da plataforma X pelo STF?


Eu acho correta. A soberania do Brasil tem que ser respeitada pelas big techs.


O senhor está com saudades do X, ex-Twitter?


Eu nunca liguei para o Twitter. Eu já fui muito digital, tive um blog em 2006. Mas para isso [atividade nas redes] é preciso dedicar tempo. E como eu tenho pouco tempo de vida, não vou ficar em Instagram, TikTok, como os meus filhos ficam. Eu prefiro ler, escrever.


O senhor acredita mesmo que tem pouco tempo de vida?


Eu tenho mais uns 12 anos da vida que eu levo hoje. Porque depois dos 90 anos nós temos um outro tipo de vida. E eu sou muito conhecido [independentemente de redes sociais]. Para o bem ou para o mal, onde eu vou notam que estou presente. Pessoas de todas as classes sociais me conhecem. Eu tenho apoio político, eleitoral.


DIRCEU CANDIDATO


O senhor pode ser candidato em 2026? Não responde ainda a processos e tem condenação na Justiça?


Eu não tenho a pretensão de ser candidato. Não é o meu objetivo. Posso ser e posso não ser. Vou decidir isso no final de 2025. Eu tenho uma condenação [que tento reverter] no STJ [Superior Tribunal de Justiça], que deve ir a julgamento no mês que vem. Acredito que vai prescrever ou será anulada. Foi um processo kafkiano, daqueles que fizeram para me prender. Vamos lembrar que eu fui preso pela [Operação] Lava Jato três vezes, e fui solto as três vezes pelo Supremo. A própria corte disse que eles [agentes da Lava Jato] estavam reincidindo nas ilegalidades.


O BRASIL E A CRISE NA VENEZUELA


O Lula sempre vendeu a ideia de que o Brasil é uma potência habilitada a atuar em nível mundial. Mas mesmo na América Latina, e especialmente na Venezuela, o que o Lula fala atualmente, e nada, parecem ser a mesma coisa. O Nicolás Maduro está dando, vamos dizer assim, uma banana para ele. O Brasil tem mesmo esse poder de interferir?


O Brasil é uma potência, queira ou não queira. Somos a metade do PIB, da população e do território da América Latina. Não há hoje a mesma unidade política de quando havia um alinhamento progressista entre vários governos da América do Sul. Mas temos a questão energética, da Amazônia, do narcotráfico, do crime internacional organizado e das nossas riquezas, que todo mundo está cobiçando para as novas tecnologias. Temos esses interesses comuns e investimentos recíprocos, com chilenos, argentinos, peruanos. Precisamos fazer uma política pragmática.


O senhor está desviando um pouco o foco. E quanto à Venezuela?


Não, eu não estou desviando. Eu temo que a gente saia das quatro linhas da Constituição. Ela diz que devemos preservar a autodeterminação dos países, a não-intervenção em seus assuntos internos e a solução pacífica dos problemas. Nossa posição tem que ser a mesma do México. Nós não podemos interferir nas questões internas da Venezuela. Temos que preservar [a tradição diplomática]. E evitar a diplomacia informal, de WhatsApp, de entrevistas coletivas. Tudo bem que todo mundo usa [esses instrumentos]. Mas, se tudo é feito publicamente, a situação fica irreversível. O próprio presidente derrotado [Edmundo González], que diz que ganhou [as eleições presidenciais venezuelanas contra Maduro], chegou na Espanha [onde buscou asilo] e pregou o diálogo, com a libertação dos presos políticos. O nosso objetivo tem que ser a solução pacífica do problema, para que não haja uma guerra civil. E, para isso, precisamos ter acesso às duas partes.


Ou seja, na sua opinião o governo brasileiro não deveria fazer os questionamentos que está fazendo em relação à Venezuela?


Precisamos saber o nosso tamanho e qual é o nosso papel na América Latina. Nós vamos dizer agora se um país é ou não democrático? Está errado. Para isso existem organismos e tribunais internacionais. Senão, como vai ser? Amanhã o Donald Trump ganha [as eleições para presidente dos EUA] e não reconhece a vitória do Lula em 2026. Nós vamos aceitar? Vamos tomar posição no que está acontecendo na Colômbia? Vamos protestar contra a reforma do Judiciário no México, como os americanos estão fazendo? Vamos dizer que é uma ditadura? Vamos romper relações diplomáticas com outros países?


Mas o que, na prática, o senhor acha que o governo brasileiro deveria fazer?


O primeiro elemento para conduzir a nossa política externa tem que ser os interesses nacionais. E nós temos grandes interesses na Venezuela. Nós éramos os maiores prestadores de serviço na Venezuela. Todas as grandes obras no país eram de empresas brasileiras. Nossa fronteira era viva. A Venezuela se alimentou através de Roraima, dezenas e dezenas de caminhões [com alimentos brasileiros] passavam por ela. A Venezuela tem 328 bilhões de barris de petróleo. E é por causa disso que todo esse problema está acontecendo. Os americanos agem pragmaticamente, de acordo com seus interesses. Os EUA fizeram acordos com o Maduro sem se importar com o que estava acontecendo na Venezuela, porque eles precisam do petróleo da Venezuela.


Mas os EUA falam mal da Venezuela o tempo inteiro e, inclusive, reconheceram o opositor Edmundo González como o presidente eleito do país.


Sim, mas as empresas norte-americanas estão lá, fazendo investimentos. Nós não podemos fazer política externa seguindo a tese americana de que o mundo está dividido entre autoritários e democratas. É uma hipocrisia. E eles não seguem isso. Porque essa não é a divisão do mundo. E os EUA também não são essa democracia [que dizem ser]. São uma plutocracia. Sabe quanto vai custar a campanha eleitoral [deste ano] nos EUA? R$ 7 bilhões. Os EUA são um império, e não uma República. Não estou fazendo juízo moral. Mas temos que falar as coisas como elas são. Do contrário, não existiu o colonialismo, não existiu o imperialismo inglês, Hitler não existiu? Dado isso, os EUA têm interesses e fazem política externa de acordo com seus próprios interesses. E nós temos que fazer política externa de acordo com os interesses do Brasil. Como a Turquia faz, como o Irã faz, como a China faz, como a Rússia faz.


ELEIÇÃO DE MADURO


O senhor acha que o resultado das eleições anunciado na Venezuela, com a vitória de Maduro, é real?


Eu não sei se o resultado é real, mas o resultado que a oposição está falando não é real. A oposição é fortíssima. Segundo a apuração do Conselho Nacional Eleitoral, ela teve 45% dos votos. Mas o Maduro tem apoio das Forças Armadas e do empresariado.


Mas a maioria da população pode estar insatisfeita e votar contra.


Sim, pode estar insatisfeita e votar contra.


E o senhor acredita no resultado?


Não tenho elementos para dizer que acredito ou não acredito. Mas digo o seguinte: a Maria Corina [maior líder de oposição ao governo] é de extrema direita. Depois que eles perderam a eleição, não é que foram reprimidos. A verdade é que eles tentaram fazer uma subversão, como já tentaram de outras vezes. Eu desconfio de qualquer posicionamento dos EUA porque eles têm interesse no petróleo venezuelano. Tentaram tirar o Chávez diversas vezes do poder. Se desconsiderarmos os antecedentes, vai ficar uma discussão muito de hoje. "Qual é a ata [que o governo brasileiro defende que seja divulgada para a verificação dos votos]? A eleição foi democrática?". Eu acho que o Brasil tem que ter uma atitude de maior distanciamento.


Mas a palavra do Brasil tem que peso no mundo? Às vezes parece que o Lula fala e ninguém ouve.


O Brasil não tem poder atômico, nuclear [para influenciar], e não tem poder econômico porque nós estamos resolvendo nossos problemas internos. O Brasil não é um grande investidor. Ele era —antes da Lava Jato. De cada duas, três obras importantes, estruturantes, em qualquer país da América Latina, nós estávamos presentes. A Lava Jato destruiu tudo isso, que era, para nós, um fator de política externa extraordinário. Mas o Brasil segue sendo um grande exportador, e o Lula é uma liderança mundial, ele tem peso. O Brasil está no Brics, no Sul Global, está inserido nessa nova realidade do mundo. A Ásia vai pesar cada vez mais. E a capital da Ásia é Xangai.


A GUERRA EM GAZA


Lula chegou a definir o que ocorre na guerra de Israel em Gaza como genocídio, gerando reações, inclusive, de integrantes da comunidade judaica que o apoiam. O posicionamento está correto?


O Lula está corretíssimo. Não há razão para não nos manifestarmos claramente. O que aconteceu lá [em Gaza] foi e é um genocídio, uma guerra de extermínio. Hoje está transitado em julgado no mundo que é um genocídio e países como a Inglaterra suspenderam o envio de armas a Israel. É um colonialismo. A Palestina está ocupada por Israel, que não reconhece o direito do povo palestino ao seu Estado. Tem 700 mil colonos na Cisjordânia. E esse número vai aumentar, eles vão anexar a Cisjordânia. Eles destruíram Gaza, é uma terra arrasada, que não existe mais.


Israel afirma que são os outros que não aceitam o seu Estado, que é reconhecido pela ONU.


A ONU reconhece, mas Israel não cumpre uma única resolução da ONU com relação ao Estado palestino. O povo palestino tem o direito de se levantar em armas contra a ocupação de Israel. Tem o direito. Sagrado. Aliás, o [presidente da Turquia, Recep Tayyip] Erdogan falou isso. Está na Carta das Nações Unidas. É uma ocupação. É um colonialismo, uma segregação, um apartheid social grave. Israel tem que tomar uma decisão. Não quer reconhecer o Estado palestino? É uma coisa. Quer? Então tem que ver como construir isso. Vai ficar expulsando cada vez mais palestinos para a Síria, o Líbano? E esses 2 milhões de palestinos [de Gaza] vão para onde? Vão para o Egito? Vão para o Mar Mediterrâneo? Para o Mar Vermelho? Israel já convive com 1,5 milhões de árabes israelenses dentro do país. É isso o que eles pretendem? Transformar todos os palestinos em uma subpopulação dentro do Estado de Israel? Fora que o [primeiro-ministro Binyamin] Netanyahu é um governo de extrema direita, contestado por uma parte importante de sua sociedade. Temos que condenar o Hamas, e temos que condenar Israel também. É preciso condenar todos os crimes de guerra.


O senhor diz que o povo palestino tem o direito de se levantar em armas. Mas 1.500 pessoas inocentes foram mortas no ataque terrorista do Hamas.


Isso tem que ser condenado, e eu condenei. Todos os crimes de guerra têm que ser condenados, como eu disse. O Hamas é definido como grupo terrorista. Mas vamos lembrar que os três grupos que formaram as Forças de Defesa e o Estado de Israel eram grupos terroristas. Todo mundo sabe que o Menachem Begin [que foi primeiro-ministro de Israel entre 1977 e 1983] era terrorista. Explodiam hotéis inteiros, matavam autoridades britânicas [que administravam a Palestina]. Se não [lembrarmos dos fatos] fica uma hipocrisia. Não é porque houve o atentado do Hamas que você é obrigado a concordar com a política que Israel está desenvolvendo hoje. Aliás, o mundo não concorda mais com ela. Nem os norte-americanos, que são os principais financiadores e que garantem que Israel possa sobreviver, concordam com o que o Netanyahu está fazendo. Infelizmente virou uma tragédia humanitária. Não sei se tem solução.


ANTISSEMITISMO


Há uma acusação de que existem setores da esquerda que são antissemitas. Como o senhor responde a isso?


Condenar Israel não tem nada a ver com antissemitismo. No Brasil nunca teve antissemitismo. O Brasil, aliás, pode se vangloriar de ser um país onde vivem várias nacionalidades. Árabes, chineses, japoneses, corenanos, libaneses, os descendentes da imigração criminosa e forçada dos negros, os descendentes de europeus. Eu nunca vi antissemitismo dentro do PT. Nunca houve problema entre o partido e os judeus. O Lula visitou Israel como presidente. O Brasil sempre reconheceu o Estado de Israel, o seu direito de defesa e as suas fronteiras, na ONU e em todos os foros internacionais. Mas as políticas do Netanhyahu são inaceitáveis. No Brasil ninguém se preocupa com a religião que a pessoa segue. Eu já ouvi, sim, as pessoas falarem "ele é evangélico".


E o que achou?


Eu sou muito contra isso. Porque ninguém fala "ele é católico, ele é espírita, ele é judeu". É um tremendo preconceito que se está criando. As diferenças são por questões políticas, como podemos ter [diferenças] com católicos de direita, com a elite negra que é bolsonarista. Mas isso não tem nada a ver com o fato de a pessoa ser negra, ou favelada, ou empresário. Fica uma coisa muito sectária.


RÚSSIA E UCRÂNIA


O senhor visitou a Rússia recentemente. Qual é a sua posição sobre a guerra contra a Ucrânia?


Eu visitei a China e a Rússia, mas não teve nada a ver com governo nem com partidos políticos. Fui ver os países. Eu acho que a Rússia, de certa forma, se defendeu. É uma guerra, e nós não podemos apoiá-la porque a nossa Constituição proíbe. A Rússia invadiu outro país. Mas, se você olha os antecedentes, a Otan [Organização do Tratado do Atlântico Norte], ao contrário do compromisso [que firmou com a Rússia] foi incorporando os países da ex-comunidade socialista [na aliança militar]. Bulgária, Hungria, Polônia, República Checa.


Mas esses países quiseram fazer parte da Otan.


Sim. Mas foram colocando mísseis intercontinentais [nos países da Otan que estão em torno da Rússia]. O [presidente russo Vladimir] Putin colocou mísseis em Kaliningrado, e com isso ele estava dizendo que não era o [ex-presidente da Rússia Boris] Yeltsin nem o [ex-presidente Mikail] Gorbachov [que não resistiriam a esse movimento do Ocidente]. Estava na cara que isso não ia acabar bem. O [presidente da Ucrânia Volodimir] Zelenski começou a reprimir, matar e "desrussificar" o [território de] Donbass, que é russo. Começou a perseguir lideranças russas e permitiu a formação de colunas fascistas no Exército. Resultado: o Putin falou "vão nos derrubar, vão desestabilizar o meu governo. Eu vou ocupar o Donbass, vamos fazer a guerra". É assim que eu leio o que aconteceu. É uma guerra perdida, que já prejudicou muito a Europa também. Não tem como ser vencida pela Ucrânia. A Rússia está vivendo um processo igual ao da China, de independência. Eles obrigaram a Rússia a se reinventar. E a Rússia tem riqueza, tem base industrial e científica para isso. Não é o Brasil, não tem as mesmas fragilidades. Tem unidade, tem Forças Armadas, tem poder tecnológico e nuclear. O ideal agora é buscar a paz.