A estratégia da luta pelo socialismo no Brasil
Objetivo final e cenários
estratégicos
Apresentação
O Partido
dos Trabalhadores concluiu seu 6º Congresso Nacional, realizado nos dias 1 a 3
de junho de 2017, aparentando alto grau de unidade tática, mas ao mesmo tempo
explicitando muitas incertezas e indefinições organizativas, estratégicas e
programáticas.
Em uma
situação normal, teríamos tempo e condições adequadas para superar tais
incertezas e indefinições. Mas não vivemos uma situação normal, nem no país,
nem na região, nem no mundo.
Por isto, a
militância petista precisa combinar a luta contra o governo golpista, pelo Fora
Temer e em defesa dos direitos, por diretas já e pela candidatura Lula, com o
debate e as ações necessárias para a mais pronta superação das lacunas e erros existentes
em nossas formulações partidárias.
Para
contribuir com isto, especialmente na expectativa de tentar superar as lacunas
e erros existentes na estratégia de nosso Partido, a tendência petista
Articulação de Esquerda realizou a primeira etapa do seu 4º Congresso Nacional,
nos dias 24 a 26 de novembro de 2017, tendo como único ponto de pauta o debate
sobre a estratégia da luta pelo socialismo no Brasil.
Ao término
do Congresso, aprovamos uma resolução sobre programa e estratégia; e convocamos
para maio de 2018 uma etapa congressual que debaterá tática e organização.
Além disso,
o Congresso orientou a Direção Nacional da AE a detalhar as resoluções do
Congresso da AE, em textos específicos que abordem: as características mundiais
do capitalismo no século XXI e suas decorrências para a luta pelo socialismo no
século XXI; os debates acerca do socialismo e da estratégia, na esquerda
mundial, latino-americana e brasileira; as características do capitalismo e da
luta pelo socialismo em nosso país, tanto em termos de estratégia de poder
quanto em termos do programa da transição socialista; a trajetória recente do
PT e a necessidade de uma nova estratégia; os vínculos entre a tática adotada
pelo Partido e a estratégia que defendemos, apontando mudanças que consideremos
necessárias naquela tática; os vínculos entre a estratégia que defendemos e as
mudanças que se fazem necessárias na organização do Partido; o papel da
tendência petista Articulação de Esquerda, nesta nova etapa da vida partidária.
O Congresso
também orientou a Direção Nacional a, ao longo dos próximos meses, publicar
resoluções e textos específicos sobre temas que foram abordados no debate e que
não estão adequadamente tratados na resolução: o chamado lulismo; o denominado populismo
de esquerda; a luta contra o patriarcado e pela emancipação humana; a crítica
ao “identitarismo” apartado da luta de classes; o tema do mercado interno de
massas; o desenvolvimentismo democrático e popular; anticapitalismo e antineoliberalismo;
o papel específico do Partido no trabalho de base; as mudanças no mundo do
trabalho e suas relações com a contrarreforma trabalhista, bem como com o
debate que se trava hoje no movimento sindical, especialmente cutista; a
chamada “classe média”; o papel das grandes, médias e pequenas empresas no
socialismo; os diferentes interesses e frações do capital: industrial,
financeiro, nacional, estrangeiro etc.; a necessidade de superar o longo
período de hegemonia do reformismo; as vias de desenvolvimento do capitalismo;
a questão das forças armadas; a natureza de classe do Estado; os impactos de
uma eventual introdução do parlamentarismo; a necessidade de estatizar o setor
financeiro; uma análise das direitas brasileiras, não apenas das direitas propriamente
políticas, mas também das direitas sociais e culturais; uma atualização da resolução
sobre a luta contra a corrupção, aprovada no 3º Congresso da AE; o papel dos
BRICs – especialmente da China – no atual contexto; uma análise dos movimentos
de esquerda que estão surgindo ou ressurgindo, na Europa, África, Ásia e EUA; por
quais motivos não pretendemos transformar em resolução determinadas polêmicas
históricas (ou, dito de outra maneira, porque só transformamos em resolução
aquilo que consideramos diretamente necessário para a elaboração estratégica);
a questão nacional e o enfrentamento do imperialismo e do capitalismo; a
industrialização; a estrutura de classes no Brasil; o capítulo do programa que
trata do meio ambiente; análise das posições da Consulta, do PCdoB, do PSOL,
bem como do PSTU, da DS, de OT, da CNB e de outras tendências petistas, à luz
das resoluções mais recentes destas organizações; os grandes caminhos
estratégicos (insurreição, guerra popular) e a singularidade da situação
brasileira; o tema da autodefesa; análise das duas frentes (Povo Sem Medo e
Brasil Popular); os sinais de fim de um ciclo que vem dos anos 1970.
A lista de
questões em aberto ou que se faz necessário aprofundar revela, por um lado,
nossos limites coletivos. Mas, por outro lado, indica que fizemos um esforço
sério para responder quais os caminhos da luta pelo socialismo no Brasil e no
mundo.
Boa leitura e
boa luta!!!
Os editores
Objetivo final e cenários estratégicos
Nosso
objetivo é construir, na teoria e na prática, uma estratégia que permita conquistar
o poder para iniciar uma transição socialista, contribuindo a partir do
Brasil para abrir um novo ciclo de experiências de construção do socialismo,
portanto um novo ciclo de tentativas de superar o capitalismo e de construir
uma sociedade comunista. Somos, portanto, dos que entendem o socialismo como
uma etapa de transição entre o capitalismo e o comunismo.
O ciclo
anterior de tentativas de construção do socialismo teve origem na Revolução
Russa de 1917, que deu origem à União das Repúblicas Socialistas Soviéticas
(URSS). O socialismo estatal soviético foi capaz de enfrentar o capitalismo
hegemônico no mundo até 1945, sendo o principal responsável pela decisiva
derrota do nazismo na Segunda Guerra Mundial. Foi também capaz de enfrentar o
capitalismo hegemônico entre 1945 e 1970. Isto se deve, entre outros, ao
esforço da classe trabalhadora, à supressão da propriedade privada e a adoção
do planejamento econômico e social. Mas o socialismo soviético não foi capaz de
enfrentar e muito menos de derrotar o tipo de capitalismo hegemônico a partir
dos anos 1970.
Este
capitalismo surgiu como resposta à crise do capitalismo que havia sido hegemônico
depois da Segunda Guerra. Entre suas características podemos citar uma profunda
financeirização da economia; uma intensa abertura comercial; as privatizações e
a reestruturação do Estado capitalista; a chamada “reestruturação produtiva”, com
precarização das relações de trabalho, redução dos salários, aumento das taxas
de exploração, fragmentação e internacionalização ainda maior das cadeias
produtivas; tudo isto acompanhado da propagação do individualismo, da meritocracia
e do mito de que as
oportunidades são iguais para todos.
Há um imenso
debate acerca da experiência soviética e, particularmente, acerca dos motivos
pelos quais o socialismo estatal soviético perdeu, a partir de certo momento, a
capacidade de enfrentar o tipo de capitalismo hegemônico a partir dos anos
1970. Uma hipótese é que, dentre os vários motivos, devemos destacar o
seguinte: o socialismo estatal soviético perdeu, progressivamente, a capacidade
de desenvolver as forças produtivas em patamares comparáveis com as dos
principais países capitalistas; este baixo desenvolvimento das forças
produtivas contribuiu para uma crescente ineficiência econômica e esta para a
insatisfação política; e tudo isto coincidiu com o momento, nos anos 1970, em
que o capitalismo estava dando um “grande salto adiante”.
O socialismo
estatal soviético perdeu “competitividade” exatamente quando o Estado e o
capitalismo de Estado mudaram seu papel nas nações capitalistas. Um socialismo
incapaz de desenvolver as forças produtivas e democratizar as relações de
produção não é capaz de derrotar o capitalismo e tampouco é capaz de chegar ao
comunismo.
No momento,
o “socialismo de mercado chinês” está conseguindo competir e em alguns terrenos
derrotar o capitalismo que lhe é contemporâneo. Mas as características deste
tipo de socialismo introduzem novos problemas e, inclusive, crescentes riscos
de restauração capitalista, que também motivam um imenso debate no qual a
esquerda brasileira deve acompanhar e participar ativamente.
Não temos
como saber quanto tempo durará a fase de defensiva estratégica em que se
encontra o movimento socialista desde os anos 1980 e que teve seu auge nos anos
1989-1991, período
geralmente simbolizado por três eventos: Praça da Paz Celestial, queda do Muro de Berlim,
dissolução da URSS. Também não temos como antecipar quando e através de que
processos terá início uma nova etapa de ofensiva estratégica do movimento
socialista. Muito menos há como prever quando chegaremos ao objetivo final de
uma sociedade comunista, sem classes e sem Estado, sem opressão nem exploração.
A rigor, não há como garantir que o socialismo triunfará na luta contra a
barbárie capitalista. Mas nos cabe lutar por isto. E é essencial perceber que
são as características do capitalismo no século XXI que determinam as condições
de luta pelo socialismo no século XXI, tanto em termos de estratégia de poder
quanto em termos do programa da transição socialista.
Por tudo
isto, devemos estar preparados para um longo processo de luta, que envolverá
tanto competição pacífica quanto conflitos militares entre os Estados
capitalistas, bem como entre estes e os processos comprometidos com uma
transição socialista, além do acirramento da luta de classes em cada país.
Assim como devemos estar preparados para um longo processo de transição
socialista, durante a qual coexistirão a propriedade social e a propriedade
privada, o mercado e o planejamento estatal, relações comunistas e relações
capitalistas de produção.
Para os
marxistas, socialistas e revolucionários do século XIX, a transição socialista
seria relativamente rápida. Hoje não temos o direito de nos iludir a respeito:
a transição socialista será longa, acidentada, cheia de riscos de derrota e
retrocesso. É com este espírito que deve ser educada – especialmente no que
toca aos temas do socialismo e da estratégia – a militância da esquerda
brasileira, latino-americana e mundial. A militância também deve ser formada na
compreensão de que vivemos uma quadra histórica onde deve ser recolocada a
possibilidade e a necessidade de grandes revoluções socialistas. E onde também
existe o risco de um imenso retrocesso politico, econômico e social. Uma
situação que, no caso do nosso Partido dos Trabalhadores, exige um partido e
uma estratégia para tempos de guerra.
Para nós, o
ponto de partida de uma estratégia – ou seja, o caminho que a classe
trabalhadora deve trilhar para conquistar o poder e construir o socialismo – é
a análise das classes e da luta de classes. Ou seja, a análise do
desenvolvimento capitalista, no Brasil e no mundo, e de suas tendências de
desenvolvimento futuro.
O
território, a população, a economia, a sociedade, a política e a cultura do que
hoje chamamos de Brasil se constituíram ao longo dos últimos séculos, num
processo marcado por quatro grandes características: a dependência externa, a
desigualdade social, o sistema político oligárquico e o desenvolvimento
limitado.
A
dependência externa assumiu diferentes formas, na Colônia, no Império, na República
Velha, no Estado Novo, no período 1946-1964, na Ditadura Militar, na transição
presidida por José Sarney, nos governos eleitos pelo voto direto a partir de
1989 e nos dias de hoje. Mas há um traço constante: a tendência a manter no
exterior o centro dinâmico da economia nacional. Até o momento, sempre que se
tentou alterar esta tendência, uma aliança entre forças externas e internas
reafirmou (às vezes modificando de forma) os mecanismos de dependência. Assim é
que, ao longo da nossa história, houve períodos de inflexão nacionalista. Leis
de proteção da “indústria nacional”, como a Lei de Informática, por exemplo,
foram criações dos militares com o discurso de proteger o “mercado interno”. O
período da ditadura Vargas também foi marcado por uma tentativa de reduzir o
peso da agricultura, especialmente o café, na economia nacional, promovendo a
industrialização do país, com Companhia Siderúrgica Nacional (CSN) e a Fábrica Nacional
de Motores (FNM), por exemplo. Essas inflexões aconteceram em condições
internacionais específicas, não enfrentavam de conjunto a dominação
imperialista e rapidamente regredíamos novamente, aprofundando a condição de
uma economia periférica e dependente. A política de endividamento externo com
juros flutuantes, que experimentou crescimento exponencial especialmente a
partir da ditadura militar, bem como a conversão da dívida externa em dívida
pública interna, com altas taxas de juros, no período FHC, compõem o quadro da
integração subordinada do país aos interesses dos EUA no mercado internacional.
A
desigualdade social também assumiu diferentes formas, desde a chegada dos
colonizadores portugueses. De um lado indígenas, escravos, camponeses,
assalariados, excluídos, setores sociais oprimidos e explorados. De outro lado,
nobres colonizadores, senhores de escravos, latifundiários e comerciantes,
capitalistas de variados tipos. Mudaram os protagonistas, mas persistiu sempre
uma elevada desigualdade social, desigualdade esta geralmente superior a
existente em países mais pobres que o Brasil, seja do ponto de vista das
riquezas naturais, seja do ponto de vista da capacidade produtiva. Um fenômeno
que persiste por tantos séculos não é um acidente: vivemos numa sociedade
organizada de tal maneira, que sua reprodução depende da manutenção e aprofundamento
da desigualdade social.
A
desigualdade social, entre as classes sociais, se vincula de forma muito
estreita com outras formas de desigualdade, exploração e opressão, que são
anteriores ao capitalismo, tais como o racismo e o patriarcado.
As relações
patriarcais são milenares e estão presentes nas diferentes formações sociais
pré-capitalistas. Ao patriarcado corresponde uma ideologia sexista e misógina, que contribui para
legitimar uma distribuição desigual de propriedade e poder entre mulheres e
homens. O patriarcado tem relação direta com a cultura do estupro e com os
índices alarmantes de violência doméstica.
O patriarcado e o
capitalismo mantém uma relação de cooperação, haja vista a divisão sexual do
trabalho, a remuneração média das mulheres inferior à dos homens pelo mesmo
trabalho executado, maiores índices de precarização e informalidade entre as
mulheres. As mulheres trabalhadoras estão submetidas a uma maior taxa de
exploração da força de trabalho, o que estimula a divisão dentro da própria
classe trabalhadora, em benefício dos capitalistas. Por isso, as relações
patriarcais, embora não sejam em si capitalistas, encontram forte apoio no Estado
e nas forças políticas e sociais de orientação capitalista, como fica evidente
na PEC 181, que criminaliza todas as formas e situações de aborto.
O atual recrudescimento
da pauta conservadora contra as mulheres confirma que, nos períodos de crise como o que vivemos, as classes dominantes reforçam
o patriarcado, com o objetivo de dividir a classe trabalhadora. Sempre valendo
destacar que a classe dos capitalistas, composta por homens e mulheres
capitalistas, é inimiga de toda a classe trabalhadora, em particular das
mulheres trabalhadoras.
Por tudo isso que expusemos, podemos dizer que -- ainda que a luta
contra o patriarcado seja anterior ao capitalismo e vá continuar sendo
necessária no socialismo --, não haverá vitória completa contra o patriarcado
se não houver vitória completa contra o Capital.
O mesmo raciocínio exposto acerca do patriarcado deve ser aplicado ao
tema do racismo. Embora o racismo seja anterior ao capitalismo, este soube
utilizá-lo e metamorfoseá-lo em seu benefício. Da mesma forma como as mulheres
são mais exploradas e recebem salários menores do que os homens, no caso do
Brasil (e em outros países de composição étnica e história similar) os
trabalhadores e trabalhadores da etnia negra são mais explorados e recebem menores
salários que os demais.
Cabe recordar que o Brasil tem estimados 207.660.929 habitantes. Segundo
o IBGE, 56, 5% da população brasileira (117 milhões) vive em apenas 5,6% dos
municípios, aqueles com mais de 100 mil habitantes. Os negros e pardos, por sua
vez, compõem 54% da população. Portanto, nossa população reside nas cidades e
suas periferias são compostas majoritariamente pela população negra. Que é
pouco mais da metade, mas responder por 71% das vítimas de homicídio. Além
disso, no terceiro trimestre de 2017, 8,2 milhões de trabalhadores pretos e
pardos estavam à procura de emprego. O número corresponde a 63,7% dos cerca de
13 milhões de desempregados existentes no país.
Disto concluímos que – ainda que a luta contra o racismo seja anterior
ao capitalismo e vá continuar sendo necessária no socialismo – não haverá
vitória completa contra o racismo se não houver vitória completa contra o
Capital.
Outra
dimensão da desigualdade, de muita importância num continental como o Brasil, é
a dimensão regional. Os preconceitos regionais são uma das manifestações das
desigualdades de desenvolvimento entre as diferentes regiões, que por sua vez
cumprem um papel útil para o tipo de desenvolvimento capitalista que
experimentamos no Brasil. Novamente, o sucesso no combate às desigualdades
regionais, assim como a luta pela preservação do ambiente, depende de seu vínculo
com a luta contra o capitalismo.
O sistema
político oligárquico é a terceira de nossas características seculares. Desde a
chegada dos portugueses até 1888-1889, vivemos sob um regime político
simultaneamente monárquico e escravocrata. Entre 1889-1930, tivemos uma
república de senhores de terra. De 1930 a 1945, experimentamos uma ditadura
explicita ou disfarçada. Entre 1945 e 1964, foi a vez de uma “democracia”
liberal com fortes restrições às liberdades básicas de organização sindical,
partidária e de livre manifestação eleitoral. De 1964 a 1985, enfrentamos uma
ditadura militar. Só a partir de 1989 a maioria do povo conquistou o direito de
participar dos processos eleitorais, ainda que com inúmeras restrições de fato,
expressas na influência do dinheiro, do oligopólio da mídia e em regras
eleitorais que distorcem a proporcionalidade do voto. Sem falar na violência
sistemática nas cidades e nos constantes massacres no campo, tantas vezes
contra pobres trabalhadores, negros e jovens. Em muitas regiões ainda vigora um
coronelismo. Seguem impunes as perseguições, torturas e extermínios do período
ditatorial. Novamente, não se trata de uma casualidade: a dependência externa e
a desigualdade social são incompatíveis com um sistema político que não seja
oligárquico.
A
dependência externa, a desigualdade social e o sistema político oligárquico
estão na origem das principais características, contrastes e contradições da
sociedade brasileira. Uma destas características é um determinado padrão de
desenvolvimento, que por ser prisioneiro das três características acima
descritas, possui uma natureza limitada – não indo além de determinado ponto,
que sempre parece inferior às visíveis possibilidades e potencialidades do país
–, passando por isto a impressão de ser cíclico (como se voltássemos ao ponto
de partida, mais exatamente a determinados problemas e entraves). Motivo pelo
qual, ao longo dos últimos 517 anos, experimentamos muito crescimento e pouco
desenvolvimento.
Parte da
sociedade brasileira cultivou esperanças de superar este padrão de
desenvolvimento limitado a partir de 1930 e, novamente, a partir de 2003. A
urbanização, a industrialização, o fortalecimento do Estado, as transformações
sociais, políticas e culturais ocorridas a partir de 1930 foram de grande dimensão.
Entretanto, o ciclo de desenvolvimento aberto na Revolução de 1930 atingiu um
ponto de esgotamento por volta de 1980. E, ao final da década dos oitenta,
ficou evidente que a classe dominante
escolhera o caminho do chamado neoliberalismo, acarretando a destruição de
parte importante dos avanços acumulados nas décadas anteriores e retornando ao
padrão de crescimento limitado.
Com a posse
do presidente Lula, em 2003, voltaram as esperanças na superação daquele padrão
de desenvolvimento limitado. Mas estas esperanças não encontraram correspondência
nas políticas efetivamente adotadas, que não conseguiram desbancar a hegemonia
do capital financeiro nem reverter o processo de desindustrialização. Ademais,
em 2016, através do impeachment, as forças adeptas das políticas neoliberais
retomaram o controle integral do governo e desde então vem destruindo aquilo
que fora feito desde 2003, desmontando os aspectos positivos da Constituição de
1988 e retomando a destruição da “herança varguista”, com destaque para a
Petrobrás e a CLT.
Supondo que
este processo regressivo não seja interrompido, a sociedade brasileira
experimentará novamente dilemas equivalentes aos experimentados antes da
Revolução de 1930. Por exemplo, a prevalência do padrão primário-exportador e a
debilidade da indústria nacional. Dilemas que – hoje mais que antes – terão
implicações catastróficas, como se percebe no caos instalado nos grandes
centros urbanos e em diversas políticas públicas, da saúde à segurança. Aceitar
este rumo, adotado desde o golpe consumado dia 31 de agosto de 2016, equivale a
um assassinato em massa, realizado em câmera lenta e à luz do dia. O crescente
número de excluídos a vagar pelos centros de nossas cidades, a ação das
polícias contra as juventudes negras periféricas, as explosões no sistema
carcerário, o crescimento do machismo e da LGBTfobia, a retórica fascista nas
redes sociais, tudo isto e muito mais são sinais de que o país já está
experimentando uma guerra civil de baixa intensidade e no qual apenas um dos
lados está matando – o que fica evidente na onda crescente de assassinatos de
camponeses e índios.
E é
inevitável enfrentar estes dilemas: num país tão desigual como é o nosso, a
fronteira agrícola, as altas taxas de crescimento, as políticas sociais e a
participação democrática, mesmo que limitadas, constituíram uma válvula de
escape para as tensões acumuladas. A atual retomada neoliberal, colocada num
patamar superior ao que foi o neoliberalismo dos anos 1990, associada a um
quadro internacional de crescente crise e polarização, podem levar a uma
explosão política e social.
A
alternativa exige constituir, simultaneamente, um pensamento, uma maioria
social e uma maioria política que sejam capazes de superar o padrão de
desenvolvimento limitado e cíclico, através do enfrentamento de suas causas.
Uma nova maioria, disposta a mudar o rumo de nossa sociedade, precisa estar
disposta a assumir a direção de nossa sociedade, e isto passa por enfrentar a
questão do Estado brasileiro. Este Estado é, ao mesmo tempo, resultante e
instrumento das principais características da sociedade brasileira: a
dependência externa, a desigualdade social, o sistema político oligárquico e o
desenvolvimento limitado. Por isto, quem se disponha a superar tais
características deve ter como objetivo construir outro Estado, expressão e
instrumento do poder de outro bloco de classes sociais, interessadas e comprometidas
com a soberania nacional, com a igualdade social, com a democracia popular e
com um desenvolvimento acelerado e sustentável.
Um Estado capaz
de dar conta de tarefas que vão gerar imensas resistências e ameaças internas e
externas, o que ele só fará se além de forte, ele for democrático, ou seja,
expressão das necessidades e aspirações da imensa maioria da população
brasileira. Estas necessidades e aspirações só poderão ser atendidas se a
soberania, a igualdade e a democracia estiverem baseadas num desenvolvimento
que: a) atenda o mais rapidamente possível as necessidades de toda a população
brasileira; b) através de um novo padrão de desenvolvimento, com planejamento e
sustentabilidade; c) capaz de gerar as condições para atender as futuras
necessidades individuais e sociais que decorrerão deste processo.
Para
materializar o tipo de desenvolvimento acima descrito, será necessário
enfrentar e superar uma das principais características do capitalismo moderno
(a partir dos anos 1970 até hoje): o imperialismo financeiro. Característica
que desde os anos 1990 também fincou raízes no Brasil. A riqueza que circula
nos mercados financeiros é muitas vezes maior do que a soma do produto interno
bruto de todos os países do mundo. Esta é a face visível da financeirização,
que leva ao paroxismo a contradição entre os circuitos da produção material e
os circuitos da valorização do capital.
O
capitalista produz para lucrar. Para o capitalista, o processo de produção e
aquilo que se produz constituem meios para ampliar seus lucros. Para tal, os
capitalistas lançam mão de diversos mecanismos: aumentam a produtividade,
incorporando novas tecnologias ao processo produtivo e dispensando mão de obra;
estimulam o crescente desemprego e o decorrente aumento da competição entre
trabalhadores e trabalhadoras, para assim promover a redução sistemática de
salários; compensam o encolhimento do mercado de consumo de massas por meio do
aumento, tanto do consumo de bens de capital pelas próprias empresas e pelo
Estado (caso dos armamentos), quanto do consumo de bens duráveis acessíveis
apenas às camadas médias da sociedade; e buscam eliminar a concorrência
intercapitalista promovendo a concentração e centralização de capitais, com a
formação de grandes oligopólios que controlam setores inteiros da economia e
permitem praticar preços administrados para ampliar seus lucros. Mas para realizar estes lucros, continua
sendo necessário produzir e vender aquilo que foi fabricado, o que mantém um
vínculo entre a produção material e a valorização do capital.
Nas últimas
décadas, entretanto, a chamada financeirização tornou cada vez mais tênues e
cheios de mediação estes vínculos entre a produção material e a valorização do
capital. Dinheiro parece gerar dinheiro, supostamente sem nenhum vínculo com a
produção material. Mas as crises periódicas no mercado financeiro mostram que
não era bem assim. Paradoxalmente, a insistência em criar dinheiro a partir do
dinheiro debilita a chamada economia real, o que provoca de tempos em tempos
grandes desvalorizações financeiras. Mostrando que vivemos em tempos em que a
superação da especulação financeira sistêmica implica em superar o próprio
capitalismo.
O
funcionamento deste tipo de capitalismo ficou explícito na crise de 2008, que
iniciou no mercado de financiamentos considerados subprime nos Estados Unidos. Financiamentos com pouca ou nenhuma
garantia, concedidos principalmente para a compra de imóveis. Esses
financiamentos, por sua vez, geravam papéis negociados no mercado de
derivativos. Quando o desemprego aumentou e as pessoas deixaram de pagar os
empréstimos, ficou evidente toda a fragilidade da fiscalização e das regras que
supostamente deveriam limitar os mercados financeiros. Praticamente não havia
controle; era total a promiscuidade entre o “mercado” e as agências
teoricamente responsáveis por avaliação de risco. Uma crise originada no “mundo
real” – o desemprego nos Estados Unidos, por sua vez vinculado ao papel da
China como “oficina do mundo” – quebrou bancos e instituições financeiras. Entretanto, as medidas adotadas desde então
pelos EUA, União Europeia e Japão tiveram como objetivo e resultado proteger a
especulação financeira. Em decorrência, nessas regiões do mundo as taxas de
crescimento continuaram muito baixas e o desemprego continuou muito alto. Um
extrato diminuto da população mundial acumula a maior parte das riquezas (reais
e fictícias) produzidas pelas empresas capitalistas. Ao mesmo tempo, massas
cada vez maiores de trabalhadores são deserdados e/ou mal remunerados. Nos
Estados Unidos, Europa e Japão, a questão do desemprego, inclusive entre
trabalhadores qualificados – até então considerados como parte de uma suposta
“classe média”– tornou-se um dos aspectos mais marcantes da crise. Capacidades
produtivas são desperdiçadas, ao mesmo tempo em que crescem os gastos e os
conflitos militares.
Embora ainda
seja a principal potência militar e continue responsável pela emissão da moeda
de maior trânsito internacional, os Estados Unidos perderam peso econômico,
vivem uma crise social e política de grandes proporções e, além disso, sua
hegemonia é crescentemente contestada por outros países. Ao contrário do mundo
unilateral pretendido pelos EUA após o fim da URSS, o mundo atual é claramente
multipolar, com destaque para os BRICS. Valendo lembrar que, nas condições
atuais do mundo, multipolaridade implica em mais conflitos. Ao mesmo tempo, as instituições
mundiais criadas em 1945 estão em crise: a Organização das Nações Unidas, o
Fundo Monetário Internacional, o Banco Mundial e a Organização Mundial do
Comércio (herdeira do GATT) vem perdendo espaço para uma multiplicidade de
acordos, tratados e medidas unilaterais que lembram – em alguma medida – a
confusão geopolítica que ocorreu antes da Primeira Guerra e no intervalo entre
esta e a Segunda Guerra, período também marcado por uma grande crise
internacional.
Nos anos
1930, vários países tentaram superar a crise através da ampliação dos
investimentos públicos, produzindo um efeito “dinamizador” sobre a economia e a
geração de empregos, fortalecendo a produção em detrimento da especulação. Mas
foi a participação na Segunda Guerra Mundial que retirou a economia capitalista
dos EUA da crise iniciada em 1929. A guerra – seja a produção de armas, seja a
destruição das riquezas até então acumuladas, seja a reconstrução posterior,
sejam as Guerras Mundiais, a Guerra Fria e as guerras quentes ocorridas depois
de 1945 – jogou um papel fundamental na criação das condições para o ciclo de
crescimento econômico capitalista, que se estendeu entre 1945 e 1970. Depois
disso e até hoje, o complexo industrial-militar dos Estados Unidos e da Europa
Ocidental continuaram sendo desenvolvidos como pilares estratégicos, não só
para a defesa de seus territórios e sociedades, mas principalmente para a
subordinação de outros territórios e sociedades.
Estados
Unidos e Europa Ocidental necessitam de recursos minerais e energéticos de
outros países, assim como de mercados. E para garantir tal acesso, lançam mão
da ameaça ou diretamente de ações militares. Não por acaso os Estados Unidos
instalaram mais de mil bases militares em todo o mundo, e há muito interferem
militarmente em toda parte onde seus interesses estejam, real ou
imaginariamente, em perigo. As guerras de Reagan, nos anos 1980,
disseminaram-se pela América Central, África e Oriente Médio. As guerras de
Bush, nos anos 2000, afetaram ainda mais os já conflagrados Afeganistão e
Iraque, devastando grandes regiões. As guerras de Clinton causaram imensa
destruição na antiga Iugoslávia. As guerras de Obama, de ingleses e franceses,
na África do Norte e no Oriente Médio, destruíram grande parte da Líbia e da
Síria, levaram aos conflitos na Ucrânia. Donald Trump, antes mesmo de tomar
posse já iniciou sua própria “escalada” verbal. Caso Hilary Clinton tivesse
vencido, o cenário não seria qualitativamente diferente.
Num certo
sentido, estamos vivendo um momento internacional que possui semelhanças
inquietantes com algumas situações que deram origem à Primeira e à Segunda
Guerra. Uma destas semelhanças diz respeito aos efeitos sociais, políticos e
militares do liberalismo (naquela época) e aos efeitos políticos do
neoliberalismo (nos dias de hoje). No início do século, a Europa e os EUA
viviam sob a hegemonia do liberalismo. Como resultados, tivemos a ampliação da
desigualdade social, a polarização política e a Primeira Guerra Mundial. Um dos
seus desdobramentos foi a Revolução Russa de 1917. Noutros países da Europa,
seja para superar a crise, seja para debelar a ameaça de uma revolução social,
parcela crescente da classe dominante aderiu ao fascismo na Itália, do
franquismo na Espanha e do nazismo na Alemanha. O populismo de direita dos anos
1930 não era liberal: pelo contrário, fez crescer o papel do Estado, do
planejamento e do protecionismo nacionalista. Mas o populismo de direita era
também expansionista, imperialista, racista, machista, misógino,
antidemocrático, antissocialista e anticomunista. O resultado disto foi a
Segunda Guerra Mundial.
Hoje o
populismo de direita está de volta: Donald Trump nos EUA, Marine Le Penn na
França, as forças fascistas e neonazistas na Ucrânia, Grécia e em diversos
países do Leste Europeu, os partidos ultraconservadores cuja força eleitoral
cresce em todos os países da Europa Ocidental, inclusive nos países nórdicos
conhecidos por seu estado de bem-estar social. No Brasil e noutros países da
América Latina, o populismo de extrema-direita também se faz presente. Tanto o
neoliberalismo “globalista” quanto o populismo de direita “protecionista”
conduzem, por diferentes caminhos, ao agravamento da instabilidade, das crises
e das guerras.
Em 2008 a
crise econômica teve como epicentro os Estados Unidos. Hoje, a crise política
mundial também tem seu epicentro lá. As medidas tomadas pelo governo Donald
Trump empurram o mundo para um conflito de grandes proporções. Neste cenário
internacional, há duas coisas que o Brasil não deveria fazer: a primeira delas
é ampliar a dependência externa e a segunda delas é alinhar-se com a política
dos Estados Unidos.
Alinhar-se
com os Estados Unidos é subordinar os interesses do Brasil aos interesses de
uma nação em declínio, que cada vez mais usará a ameaça militar para enfrentar
seus competidores. Alinhar-se com uma nação deste tipo, imersa em profunda
crise, crise que hoje a leva a acentuar suas características protecionistas,
significa muitos ônus e poucos bônus para seus aliados, como se vê no caso do
México.
Ampliar a
dependência externa é financeirizar e desindustrializar a economia, converter o
Estado em cobrador de impostos para financiar o serviço da dívida, aceitar o
papel de exportador de produtos agrícolas e minerais, reduzir os investimentos
públicos em atividades produtivas. Fazer isto num momento em que se acentuam os
choques econômicos, políticos e militares entre Estados, significa privar o
Brasil de meios para crescer, se desenvolver e se defender de agressões
externas.
As características
estruturais do capitalismo mundial determinam as margens de manobra do
capitalismo brasileiro e, por conseguinte, determinam alguns dos limites e
possibilidades da luta pelo socialismo no Brasil. A conjuntura mundial e
regional vem se agravando continuamente, o que impacta a dinâmica da conjuntura
nacional e, portanto, a relação entre nossas ações táticas e objetivos
estratégicos. O golpe demonstrou uma vez mais que a classe dominante brasileira
é apoiada e busca o apoio do imperialismo, obrigando a classe trabalhadora
brasileira a construir uma linha política que articule o “nacional”, o
“regional” e o “mundial”.
As
principais características do atual cenário mundial são as crises, as guerras e a
instabilidade generalizada. Estas características atualizam e recolocam
num patamar superior as contradições e os conflitos entre as classes sociais
e os Estados, ao mesmo tempo em que fortalecem a possibilidade tanto de desfechos
reacionários e contrarevolucionários quanto de desfechos revolucionários.
O senso
comum nos indica que os desfechos reacionários são os mais prováveis.
Entretanto, a experiência histórica confirma que situações como a atual, de aguçamento
das contradições e conflitos, de crescimento das desigualdades e instabilidade
generalizada, podem gerar situações que escapem do controle das classes
dominantes e coloquem a possibilidade de não apenas derrubar a ordem
capitalista, mas também a possibilidade de superá-la.
As
características citadas no ponto anterior decorrem de um conjunto de fatores,
surgidos em diferentes momentos da história recente, mas que hoje se conjugam
na composição do cenário internacional. Citamos entre estes fatores: a) a
hegemonia sem precedentes do capitalismo no mundo, que nunca foi tão
capitalista quanto é hoje; b) a natureza do capitalismo contemporâneo, dominado
pelo capital financeiro, que por sua vez está assentado e depende enormemente
da concentração e centralização do capital; c) a profunda e duradoura crise do
capitalismo, cujas causas e efeitos não foram superadas, pelo contrário; d) o
declínio relativo da potência hegemônica, os Estados Unidos, que perderam peso
econômico, vivem uma crise interna de grandes proporções e tem sua hegemonia
crescentemente contestada; e) a ascensão de outros polos de poder, produzindo
uma situação mundial crescentemente multipolar, o que não significa
necessariamente um mundo pacífico; f) a formação de blocos, acordos e tratados,
sintomas de desarranjo e crise, não de ordem e estabilidade; g) a disputa entre
diferentes vias de desenvolvimento capitalista, cabendo às alternativas
socialistas uma pequena influência, pois neste momento estão mais fracas do que
já foram antes; h) a defensiva estratégica da classe trabalhadora, com o
aumento das taxas de exploração, redução na remuneração, piora nas condições de
trabalho e reversão de direitos sociais, conjugada com grande pressão por
aumento da produtividade.
Vivemos,
portanto, um momento de predominância mas também de crise do capitalismo, o que
deveria colocar sobre a mesa o socialismo como alternativa prática. Um
capitalismo que resiste a qualquer reforma, o que coloca sobre a mesa a
necessidade de rupturas revolucionárias.
Um momento de agudização das agressões e contradições interimperialistas,
o que repõe a necessidade de alianças táticas e estratégicas entre as
classes trabalhadoras de todo o mundo, a começar por nossa região; e, num outro
nível, coloca a necessidade de alianças táticas ou estratégicas entre
governos que estejam em conflito com os Estados Unidos e seus aliados.
A América
Latina e o Caribe foram vítimas, entre os anos 1960 e 1990, de governos
ditatoriais e neoliberais. Entre 1998 (eleição de Chavez) e 2002 (eleição de
Lula), teve início um ciclo de governos progressistas e de
esquerda que, malgrado suas debilidades e diferenças, apontou num sentido
oposto: ampliação do bem-estar e da igualdade social, ampliação das liberdades
democráticas, soberania nacional e integração regional.
A partir da
crise de 2008, de seus efeitos, da ação do governo dos Estados Unidos e da
oposição de direita em cada país, somados aos erros e as limitações das
experiências “progressistas e de esquerda”, abriu-se uma fase de contraofensiva
reacionária que vem derrotando os governos progressistas e de esquerda na região
e colocando na defensiva as forças sociais e partidárias vinculadas aos
trabalhadores. Aonde a direita voltou ao governo, assiste-se não apenas a um
retrocesso social, mas também a um retrocesso econômico e político, bem como a
um giro na política externa, que volta a ser subalterna aos interesses dos EUA,
o
que no Brasil é evidenciado pela recente operação militar conjunta na Amazônia
e pela cessão da base de Alcântara aos estadunidenses, não apenas numa nítida
declaração de alinhamento como também fragilizando a soberania nacional.
O fato de
vários governos progressistas existirem e se apoiarem uns aos outros foi uma
variável importante para um avanço compartilhado. A ofensiva reacionária age no
sentido oposto. Agora, os povos da região estão chamados a deter a ofensiva
reacionária, reconquistar os espaços perdidos, alcançar novas vitórias, criar
as condições para que a Unasul e a Comunidade de Estados Latinoamericanos e
Caribenhos voltem a ter protagonismo no cenário internacional, em favor da paz
e de outra ordem econômica e política internacional. Mas para que os povos da
região consigam isto, será necessário fazer um balanço crítico e autocrítico
das análises e políticas adotadas, dos êxitos e dos erros cometidos, desde os
anos 1990 até hoje. Os que se recusam a fazer este balanço crítico e
autocrítico contribuem, mesmo que sem saber ou querer, com a oposição de
direita.
Até a crise
internacional de 2008, os governos “progressistas e de esquerda” na região da
América Latina e Caribe vinham conseguindo contornar seus limites, contradições
e erros. Mas a partir da crise internacional de 2008, especialmente com a
deterioração dos preços das commodities, a dependência financeira e comercial,
a força dos oligopólios e a debilidade produtiva dos países da região tornaram
cada vez mais difícil a situação dos governos “progressistas e de esquerda”.
Desde 2008,
agravou-se um conjunto de problemas que já vinham se acumulando, tais como a “fadiga
de material”, limites e contradições da estratégia adotada, timidez nas
políticas de integração, políticas macroeconômicas que mantiveram a
predominância do agronegócio e o peso do setor financeiro etc. Neste contexto,
as classes dominantes locais e seus aliados internacionais desencadearam uma
“ofensiva geral” contra as conquistas e os direitos políticos, econômicos e
sociais da classe trabalhadora. Esta ofensiva vêm golpeando duramente a maior
parte dos governos comprometidos, em maior ou menor medida, com a defesa destes
direitos. Vale dizer que ao fazer isto, a classe dominante demonstrou os
limites de classe do chamado Estado de Direito. E mostrou a que servem as
ilusões no Estado de Direito, na neutralidade do Estado, no compromisso
republicano ou democrático das classes dominantes.
Noutras
palavras, a crise internacional de 2008 funcionou como um catalizador e
acelerador de diversos fenômenos, revelando não apenas que a dependência
externa continua sendo uma variável fundamental a superar, através da
integração regional, da industrialização, do fortalecimento do Estado e da
soberania nacional, em todos os seus aspectos, do alimentar à defesa, passando
pela comunicação; mas revelando, sobretudo, que a dominação capitalista também
continua sendo uma variável fundamental a superar.
O mundo
depois de 2008 é diferente do mundo antes de 2008. Mudaram os alinhamentos
entre os Estados, mudou o comportamento das classes sociais. Frente a uma nova
situação estratégica, estamos chamados a produzir uma nova estratégia. Ontem
como hoje, um dos componentes desta estratégia continuará sendo a integração da
América Latina e do Caribe. Neste diálogo com outros países, o mínimo
denominador continuará sendo a integração regional, o desenvolvimento soberano,
a ampliação do bem-estar social e das liberdades democráticas dos nossos povos.
Mas nesta nova estratégia, será necessário enfatizar o combate ao capitalismo
e, portanto, destacar que nossa aspiração e meta é construir uma Nuestra
América socialista. Para se concretizar nestes marcos, a integração
latinoamerica e caribenha deve ser sustentada pela articulação das forças de
esquerda e socialistas da região, motivo pelo qual o Foro de São Paulo seguirá
cumprindo um papel decisivo nesta nova estratégia.
Neste
contexto de hegemonia capitalista, crise do capitalismo, ampliação das
contradições intercapitalistas, instabilidade, crise e guerra, a alternativa
está em construir um forte movimento, ancorado nas classes trabalhadoras e nos
setores populares, que consiga não apenas resistir, mas também conquistar
governos, reorientando assim a economia e a politica mundiais. Nesta
reorientação, pode jogar um papel importante a articulação entre o bloco
latino-americano integrado pelo Brasil e os chamados BRICS, bloco liderado pela
China e pela Rússia, integrado também por Brasil, África do Sul e Índia.
Entretanto, é preciso saber que os BRICS não são uma versão moderna do “campo
socialista” em conflito com o “campo capitalista”. Tampouco são uma versão
século XXI do “espírito de Bandung”, que pretenda reeditar o antigo “Movimento
dos Países não Alinhados”. O que os BRICS podem ser, a depender da política que
os oriente, é uma aliança contra o bloco liderado pelos Estados Unidos e, neste
sentido e com estes limites, podem cumprir um papel de contenção e apoio, ainda
que parcial. E sem eliminar as contradições entre os diferentes projetos e
políticas que animam seus integrantes.
A situação
internacional torna mais urgente e imprescindível, portanto, um Estado
comprometido com a soberania nacional e com o desenvolvimento, um Estado forte
o suficiente para enfrentar o imperialismo financeiro e, também, as forças
políticas e sociais que, dentro do Brasil, defendem a dependência, a
desigualdade, o sistema político oligárquico e o desenvolvimento limitado.
A classe
dominante brasileira, assim como a classe trabalhadora, não é homogênea. Há
contradições e interesses diferentes, resultando em diferenças políticas e
ideológicas que algumas vezes podem levar a grandes conflitos. As contradições
internas na burguesia podem e devem ser exploradas por nós. Entretanto, do
ponto de vista estratégico, a classe dominante foi, desde o início, sócia menor
das classes dominantes metropolitanas, não importando que elas fossem ibéricas,
inglesas ou estadounidenses. Outra atitude dependeria de uma sólida aliança com
as demais camadas populares, aliança que teria que se traduzir em reforma
agrária, em salários mais altos, em políticas sociais mais universais, em maior
participação democrática do povo na condução dos negócios do país. A partir do
que os trabalhadores e o povo poderiam forçar o capital a abrir mão de parte de
seus ganhos. Cada uma destas ações e/ou o conjunto delas rebaixaria os ganhos
da classe dominante, ganhos que hoje dependem em boa medida da financeirização,
mais precisamente do lucro garantido proveniente da dívida pública. Qualquer
iniciativa que comprometa os ganhos desse “mercado” será duramente reprimida.
Por este conjunto de motivos, a classe dominante brasileira não apenas convive,
mas também defende e reproduz a dependência externa, a desigualdade social, o
sistema político oligárquico, assim como adere a políticas de desenvolvimento
limitado. Quem deseje superar estas características da sociedade brasileira,
terá que enfrentar e derrotar a resistência do conjunto da classe dominante,
especialmente do seu setor hegemônico: o capital financeiro.
Esta
resistência se expressa em vários terrenos: na dinâmica econômica e social, nas
estruturas políticas e no funcionamento do Estado, assim como no âmbito
cultural e ideológico. Neste último âmbito trava-se uma batalha cotidiana entre
diferentes visões acerca do passado, do presente e do futuro do Brasil. Quem
deseja construir outro “estado de coisas”, comprometido com a soberania
nacional, com a igualdade social, com a democracia popular e com o
desenvolvimento, deve enfatizar que nosso objetivo de longo, médio e curto
prazo é melhorar a qualidade da vida do povo brasileiro, de maneira profunda,
acelerada e sustentável. Nos anos recentes, este objetivo foi popularizado através
de pelo menos três slogans: o de projeto nacional-popular, o da retomada
do desenvolvimento e o de país de classe média. Embora
compartilhemos aspectos importantes de cada uma destas fórmulas, consideramos
que nenhuma delas enfatiza algo insubstituível e inocultável de uma
alternativa: o socialismo.
Vejamos a
fórmula que fala em fazer do Brasil um “país de classe média”. A chamada
“classe média” identifica-se com a sociedade que desejamos superar: uma
sociedade baseada na ascensão individual, onde a “felicidade” é comprada no
mercado. Uma sociedade deste tipo garante qualidade de vida para uma minoria da
população. Nela não “cabem” 200 milhões de pessoas. Para que todos tenham a qualidade de vida que
hoje só uma minoria tem, é necessário que predomine a ascensão social coletiva,
principalmente através do acesso a bens públicos: transporte coletivo, não
privado; saúde pública, não privada; educação pública, não privada; e programas
de habitação popular subsidiados pelo Estado; previdência pública etc. Ou seja,
para que sejamos um país em que os padrões de vida universalizados sejam os
hoje acessíveis apenas à chamada “classe média”, é preciso uma organização
social de outro tipo, distinta da capitalista.
Quando a
classe dominante apela à “classe média” e aos seus “valores”, o que ela busca
fazer é dividir a classe trabalhadora, jogando um setor da classe trabalhadora
contra outro e estimulando a idéia perversa segundo a qual a
ascensão social depende única e exclusivamente do esforço individual para
aproveitar oportunidades. Uma das formas que assume esta ideia é o discurso
meritocrático. Outra forma é a postura fascista que defende o extermínio dos
“fracos e diferentes”.
A rigor, o
que costuma ser chamado de “classe média” inclui três frações de classe
distintas: o segmento inferior da classe capitalista, ou seja, os capitalistas
de pequeno porte; o segmento superior da classe dos pequenos proprietários, ou
seja, aquele que está para converter-se em capitalista; e o segmento mais bem
remunerado da classe dos trabalhadores assalariados. Numericamente falando,
esta última é a maior parte da chamada “classe média”: pessoas que vivem do seu
trabalho, recebendo salários melhores, graças aos quais podem consumir mais e
inclusive contratar outros assalariados para fazer serviços, especialmente
domésticos.
Para que
tenhamos um Brasil diferente do atual, é preciso ganhar a classe trabalhadora
para um programa político de ascensão coletiva, como classe; e não de ascensão
individual, como é característico da “classe média”. E, por outro lado, é
preciso convencer ou pelo menos neutralizar a chamada “classe média”, tentando
evitar que sua maior parte converta-se em tropa de choque dos capitalistas,
como ocorreu no caso brasileiro, especialmente em 2015 e 2016. Nesta perspectiva,
devemos buscar que os integrantes da chamada “classe média” reconheçam que são
parte da classe trabalhadora, da classe dos pequenos proprietários ou parte de
uma fração subordinada dos capitalistas, e somem forças conosco.
Ao contrário
disto, falar em construir um “Brasil de classe média” fortalece o ponto de
vista daqueles que acham que a “classe média” não deve associar seu destino ao
da classe trabalhadora. Um Brasil organizado pelo ponto de vista da “classe
média” é um país que não aceita universalizar seu padrão de vida, pois se todos
fizessem parte da classe média, se todos pudessem consumir, se todos pudessem
viajar, se todos pudessem frequentar a universidade, desaparecia o status
social que faz da “classe média” um setor especial.
Não se deve
admirar, portanto, que a tal “classe média” (em grande parte, trabalhadores que
não se sentem parte da classe trabalhadora) tenha saído em massa às ruas,
exatamente para combater o governo que falava em construir um “país de classe
média”. E falava isto como parte de uma visão política incorreta (detalhada na
entrevista concedida pela presidenta Dilma Rousseff à sétima edição da revista Esquerda Petista) e a partir de uma
visão teórica também incorreta, segundo a qual as classes sociais seriam
determinadas pelo seu padrão de consumo, não pelo “lugar” (assalariado, pequeno
produtor, capitalista) que ocupam no processo de produção. Com base nesta
“teoria”, trabalhadores de renda mais baixa e de pouca especialização técnica,
tipicamente pertencentes a classe trabalhadora, foram “promovidos” a classe
média porque cresceu sua capacidade de consumo. Isso contribui para um
afastamento de setores significativos da classe trabalhadora do sentimento de
pertencimento a sua própria classe.
Como esperar
que estes setores demonstrem combatividade frente ao golpe? Por outro lado, a
“classe média anteriormente existente” não se identificou com as pessoas que
melhoraram de vida desde 2003. Pelo contrário, como é óbvio que aconteceria, as
encarava como competidoras.
Uma maneira de
tentar evitar isto seria ganhar esta “classe média” para outra visão de mundo:
a construção de um país onde o conjunto da classe trabalhadora tenha altos
níveis de vida material, cultural e política. O
que exigiria, é bom dizer, outros caminhos que não os da ascensão social
através do mercado. Exigiria, também, uma postura ativa na batalha de ideias para
ganhar os corações e mentes da mal denominada “classe média”, enfrentando a
retórica dos liberais e conservadores, a começar pelas formulações de seus think tanks.
Ganhar parte
da “classe média” para outra visão de mundo não se tratava, nem se trata, de
uma operação impossível. Basta pensar que nos anos 1980, o movimento de médicos
estava engajado na criação do Sistema Único de Saúde. E em 2016, grande parte
do mundo cultural cerrou fileiras em defesa da democracia e contra o golpismo.
Num certo
sentido, os que falam de um “país de classe média” contrapõem dois modelos: o american way of life versus o welfare state. Evidentemente, nos opomos
ao primeiro modelo, vigente nos Estados Unidos. Mas tampouco defendemos o
“estado de bem estar” europeu, não apenas por seus limites, mas também porque
só foi possível devido a três fatores combinados: a) a necessidade de competir
e neutralizar a ameaça do socialismo soviético; b) os ganhos que a classe
dominante europeia obtinha através do imperialismo, ganhos que possibilitaram
que ela fizesse concessões à sua classe trabalhadora; c) a força da classe
trabalhadora europeia, organizada em sindicatos e partidos capazes de arrancar conquistas.
No Brasil,
um “estado de bem estar social” não poderia depender do capitalismo e dos
capitalistas. E nem poderia contar com a pressão externa proveniente de uma
sociedade socialista. No Brasil e na época atual, elevar o bem estar-social
depende exclusivamente da força da nossa classe trabalhadora.
As duas
outras “fórmulas” citadas anteriormente – a de “projeto nacional-popular” e a
da “retomada do desenvolvimento” – incorrem num problema semelhante ao apontado
acima.
Obviamente
queremos desenvolvimento. Mas não queremos a “retomada” daquele
desenvolvimentismo conservador que marcou a história do Brasil. E não achamos
possível que haja um desenvolvimentismo capitalista que não seja conservador.
Por isto, no tipo de desenvolvimento que defendemos, não apenas o Estado deve
ter protagonismo, mas também a propriedade social deverá ter hegemonia.
Também é óbvio que queremos soberania nacional
e popular. Mas para que haja este tipo de “pátria livre” na periferia do mundo,
é preciso que haja socialismo e revolução. E para isso, a disputa dos chamados
“valores nacionais” deve ser feita enfatizando também os valores socialistas,
inclusive a necessidade de um Estado de outro tipo. Do contrário, a efetivação
de nosso programa ficará na dependência de ilusões lamentáveis, como a crença
nos “valores patrióticos” das forças armadas.
Durante os
anos 1930-1980, o “desenvolvimento” tornou-se uma espécie de mínimo denominador
comum da maior parte das correntes ideológicas, políticas e sociais. Evidentemente,
isto não significava que havia um consenso quanto ao conteúdo que o termo
expressava. Mas significava que houve uma luta de ideias na sociedade
brasileira, através da qual um determinado ponto de vista tornou-se hegemônico.
Processo
similar ocorreu nos anos 1980, em torno da noção de justiça social através da
ampliação de direitos. Já nos anos 1990, foi a vez das ideias neoliberais
tornaram-se hegemônicas.
Durante os
governos Lula e Dilma, ocorreu algo diferente. As forças derrotadas em quatro
eleições presidenciais seguidas, forças estas herdeiras do neoliberalismo dos
anos 1990, mantiveram uma imensa influência ideológica e cultural, a partir da
qual resistiram, sabotaram e em determinado momento derrotaram as forças
simbolizadas por Lula e Dilma. Estas forças, que nós integramos, não chegaram a
ganhar hegemonia cultural e ideológica na sociedade brasileira.
As
dificuldades que um projeto popular, não originado da classe dominante,
enfrentou para tornar-se hegemônico estão diretamente vinculadas à decisão de
não tocar no oligopólio da comunicação, assim como na incapacidade de garantir
predomínio público no terreno da cultura e da educação.
Mas há um
problema anterior: o PT chegou ao governo portando a promessa de melhorar a
vida do povo através de políticas públicas. Esta promessa tinha a vantagem de
parecer factível, de oferecer resultados no curto prazo, de contornar os muitas
vezes incômodos debates programáticos de longo prazo sobre neoliberalismo,
desenvolvimentismo e socialismo. Mas ao lado destas vantagens, vinha uma
desvantagem: esta promessa não tinha potencial hegemônico comparável ao
neoliberalismo, ao desenvolvimentismo ou ao socialismo. Entender o porquê disto
é essencial.
Melhorar a
qualidade da vida do povo brasileiro, de maneira profunda, acelerada e
sustentável, exigirá combinar políticas públicas com transformações nas
estruturas e tradições culturais, políticas, sociais e econômicas atualmente
predominantes. Esta sempre foi a formulação clássica da esquerda brasileira,
tanto daquela que luta pelo socialismo, quanto daquela que lutava por um
capitalismo nacional. Esta formulação nunca levou a esquerda brasileira a
esperar sentada a realização das reformas estruturais. Pelo contrário, partiu
das forças de esquerda a luta por mudanças imediatas nas condições de vida do
povo, seja através de mobilizações sociais, seja através da formulação e
implementação de políticas públicas.
Desde os
anos 1980, no terreno municipal, estadual e nacional, acumulou-se um rico
repertório de políticas públicas que resultaram em melhorias na capacidade
produtiva do país e nas condições de vida do povo, no terreno material,
cultural e político. Vistas de conjunto, estas políticas públicas tiveram
contra si: a) um orçamento limitado, b) um crescimento econômico que intercala
breves fases de alto crescimento com fases de baixo crescimento e recessão; c)
uma estrutura econômica e social concentradora de renda e riqueza, além de
estruturas de poder geralmente conservadoras.
O caso que
deixa isto mais evidente é o do Sistema Único de Saúde (SUS) criado pela
Constituição de 1988. O SUS sempre foi subfinanciado. Seus efeitos positivos
foram sempre parcialmente neutralizados ou anulados pela dinâmica econômica.
Ademais, uma parte do investimento público no SUS sempre foi capturada pelo
setor privado. Em decorrência disto, uma excelente política universal e
pública, não conseguiu produzir todos os efeitos sistêmicos de que é
potencialmente capaz e, a partir de certo ponto, se vê ameaçada de converter-se
no seu contrário: o sistema chamado de “duas portas” e/ou de “SUS para pobres”.
Raciocínio
similar pode ser feito no terreno das políticas de habitação popular,
encarecidas pela especulação imobiliária e pela atitude das construtoras; ou no
terreno das políticas de fomento à produção de alimentos, que sofrem a
concorrência do agronegócio de exportação.
Portanto,
seja para tornar realmente universais as políticas públicas, seja para evitar
que os efeitos positivos destas políticas sejam neutralizados pelas estruturas
conservadoras ou por crescimentos inferiores e/ou soluçantes, é necessário
combinar políticas públicas com reformas estruturais. Por exemplo: para ampliar
o orçamento disponível para as políticas públicas, é necessário realizar uma
reforma tributária progressiva, que grave os grandes capitalistas; assim como é
necessário realizar uma auditoria e revisão do serviço da dívida pública, para
que os impostos não sejam arrecadados em benefício dos senhores da dívida, uma
minoria da população brasileira.
Por reformas
estruturais entendemos, portanto, aquelas políticas que alteram de forma
profunda e sustentável a distribuição da riqueza, e principalmente do poder,
entre as classes sociais. Obviamente, a classe dominante na sociedade
brasileira, assim como as forças políticas e sociais hoje hegemônicas no
cenário regional e mundial, fizeram, fazem e seguirão fazendo brutal oposição a
tal combinação entre políticas públicas (que melhorem as condições de vida e
trabalho) e reformas estruturais (que sustentam no longo prazo aquelas
políticas). Qualquer tentativa de melhorar a qualidade da vida do povo
brasileiro, de maneira profunda, acelerada e sustentável esbarra na lógica do
capitalismo: vamos até onde o bem-estar não comprometa os interesses e os
ganhos do Capital.
A experiência
histórica, nacional e internacional, mostra que numa sociedade dividida em
classes não há “consenso” real em torno de absolutamente nada. Quem tem dúvida
a respeito, verifique a proposta divulgada pelo governo Dória, segundo a qual
os mortos seriam enterrados na capital paulista de pé ou deitados, a depender
do que paguem suas famílias.
As palavras
soberania, democracia, bem estar e desenvolvimento – entre muitas outras que
fazem parte do vocabulário político – possuem significados distintos, que variam
de acordo com a referência social de cada pessoa e/ou organização.
O que pode
existir numa sociedade de classes é a hegemonia de um determinado ponto de
vista, mesmo que esta hegemonia venha acompanhada de doses maiores ou menores
de conflito. Especialmente na atual situação mundial, regional e nacional, a
intenção de melhorar as condições de vida da maioria da população, implicando
em reforço da soberania nacional e ampliação da democracia, vai necessariamente
ser contestada tanto por outros Estados, quanto por forças sociais e políticas
brasileiras vinculadas ao status quo.
Assim, é
importante explicar através de que processo cultural, político e institucional
será possível converter aquele objetivo – melhorar a qualidade da vida do povo
brasileiro, de maneira profunda, acelerada e sustentável – em vontade da
maioria de nossa população e meta oficial do Estado brasileiro. É em torno
disto que pode se constituir uma hegemonia alternativa. É preciso, portanto,
travar a batalha de ideias e valores, combatendo a competição e o
individualismo capitalista e estimulando a solidariedade, o coletivismo e o
associativismo socialista – sem esquecer, porém, que o êxito das batalhas de
ideias no âmbito subjetivo depende de mudanças materiais objetivas, sem as quais
não se alteram as condições que garantem o enraizamento da ideologia dominante
nas classes trabalhadoras.
Os governos
petistas e suas políticas públicas melhoraram a vida do povo; mas como não
desenvolveram uma visão de conjunto sobre o processo, não conseguiram tornar
seu ponto de vista hegemônico.
A famosa
pesquisa, tantas vezes citada, segundo a qual os beneficiários das políticas
sociais atribuem a melhoria de suas vidas ao seu próprio esforço pessoal, a
Deus e às suas famílias, é uma expressão disto. Outra pesquisa mais recente,
sobre o conservadorismo nas periferias, também demonstra que, na ausência de um
discurso contra-hegemônico, as massas populares buscaram o que estava ao
alcance da mão. O mesmo pode ser confirmado quando analisamos o comportamento
da juventude. O enraizamento das igrejas pentecostais e o crescimento recente
dos movimentos e organizações de direita se beneficiaram do afastamento dos
movimentos populares e organizações de esquerda das periferias dos grandes
centros urbanos e das novas gerações.
É uma
ironia, mas uma ironia sustentada por outras experiências: provavelmente
teríamos tido mais sucesso, se tivéssemos associado nossas políticas públicas “melhoristas”
a um propósito explicitamente socialista. Entre outros motivos porque
forneceríamos uma narrativa mais inteligível e com capacidade hegemônica,
diferente daquela que falava em “melhorar a vida dos pobres sem tocar na
riqueza dos ricos”.
Para que um
projeto de desenvolvimento vinculado à soberania nacional, à igualdade social e
à democracia popular pudesse tornar-se hegemônico, seria necessário que ele não
estivesse contaminado pelo neoliberalismo e pelo desenvolvimentismo. E, certamente,
seria necessário um intenso debate público, que envolvesse grande parte da
população brasileira. Seria necessário, ainda, um conjunto de vitórias
eleitorais, a reorientação da ação de parlamentos e governos, além de uma nova
arquitetura institucional, estabelecida através de uma Assembleia Nacional
Constituinte, que garantisse a hegemonia pública no mundo da comunicação, da
educação e da cultura. Seria necessária, também, uma ampliação exponencial do
papel do Estado, como financiador, indutor, regulador, planejador e executor
direto da atividade produtiva, através das estatais. E para que o Estado fosse
capaz de coordenar e executar um conjunto de medidas que tornassem possível a
ampliação do nível cultural, científico, tecnológico e de produtividade de toda
a sociedade brasileira, seria necessário, “finalmente”, alterar a natureza de
classe e modificar o modus operandi
do Estado.
Não se trata
apenas de recuperar antigas empresas estatais que foram privatizadas total ou
parcialmente. Nem se trata apenas da criação de novas empresas, capazes de
atuar nas fronteiras do desenvolvimento, na proteção dos interesses
estratégicos (como é o caso, por exemplo, da biotecnologia) e inclusive na
execução de obras públicas convencionais.
Embora, vale
dizer, esta última necessidade tenha se tornado ainda mais premente, devido aos
efeitos da chamada Operação Lava Jato, que afetou profundamente a engenharia
nacional. Podem haver diferentes análises sobre as motivações originais, mas
não cabe mais dúvida sobre as decorrências: a Lava Jato provocou interrupção no
investimento, no crescimento, na geração de empregos, além de favorecer
diretamente o capital estrangeiro. Por outro lado, a Lava Jato confirmou algo
já sabido: que o setor de engenharia é diretamente dependente do Estado, ainda
que de direito seja privado. O que reforça a necessidade de impulsionar um
setor de engenharia estatal.
Enfatizamos
que não se trata apenas de ampliar o papel do Estado, embora isto seja parte
importante do problema, constituindo o reconhecimento de que os problemas do
país são imensos, de difícil solução, exigindo políticas de longo prazo e um
nível de investimento além da capacidade do setor privado. Frente a problemas
tão imensos e tão difíceis, faz-se necessário construir uma vontade coletiva e
instrumentos públicos, que se expressem através do poder de Estado.
A ampliação
do papel do Estado constitui, ainda, uma reação defensiva contra as
movimentações agressivas de outros Estados, especialmente dos EUA. A defesa da
soberania nacional exige uma economia próspera, uma sociedade coesa,
instituições políticas com visão estratégica e capacidade de dissuasão, medidas
defensivas e ofensivas de variados tipos, que cabem ao Estado brasileiro.
Trata-se
disto tudo, mas trata-se principalmente de mudar a natureza de classe do Estado
e, por conseguinte, seu modus operandi.
Isto porque a “ampliação do papel do Estado” constitui uma necessidade para
derrotar os grandes oligopólios privados.
Hoje a
economia, a sociedade, a cultura e a política brasileira são dominadas por
estes oligopólios, especialmente no setor financeiro. A PEC 55 é um dos muitos
exemplos disto: congela os investimentos sociais, mas mantém crescente o
serviço da dívida. Para os oligopólios, o Estado deve ser forte na proteção de
seus interesses e fraco na defesa dos interesses populares e nacionais.
Mudar a
natureza de classe e ampliar o papel do Estado constitui, paradoxalmente, a
garantia de que possa haver um amplo florescimento da pequena e da média
empresa, bem como um crescimento do número de trabalhadores pequenos
proprietários, que atuam sozinhos ou com mão de obra familiar. Com a diferença
que um Estado controlado pelos trabalhadores e uma economia de orientação
socialista gerariam um ambiente que evitaria a precarização do trabalho.
O mercado
oligopolizado que temos hoje é totalmente insalubre para os pequenos proprietários
familiares, assim como para os capitalistas de pequeno e médio porte. Só a
intervenção de um Estado que não seja controlado pelos oligopólios privados –
um Estado que entre com crédito, apoio técnico e estoques reguladores – pode
garantir que o “livre” mercado não resulte na destruição dos pequenos e médios
proprietários.
Em resumo,
precisamos construir um Estado forte, comprometido com a soberania nacional, tecnológica e energética, com a igualdade
social, com a democracia popular e com o desenvolvimento. Um Estado forte e
democrático, expressão das necessidades e aspirações da imensa maioria da
população brasileira. Um Estado com outra natureza de classe e que esteja
comprometido com outro tipo de sociedade: o socialismo. Tornar estas ideias hegemônicas
na classe trabalhadora brasileira constitui um passo necessário para que elas
se convertam em realidade.
Nosso
programa busca expressar, de modo compreensível a todos e todas, as ações necessárias
para melhorar as condições de vida e trabalho do povo, democratizar a riqueza e
o poder, enfraquecer as bases de exploração capitalista e apontar um rumo
socialista para o Brasil, bem como contribuir para a auto-organização e a
formação de consciência das classes trabalhadoras.
Alguns
setores da esquerda brasileira consideram que explicitar o caráter socialista
de nosso programa e de nossa estratégia é desnecessário e um desserviço. Um
desserviço, porque chocaria com o senso comum da maioria das pessoas,
dificultando nosso trabalho político de convencimento. E desnecessário, por
dois motivos diferentes: porque a adoção de medidas socialistas não seria algo
para já e porque o socialismo seria colocado naturalmente na ordem do dia, pelo
progresso da luta de classes.
A primeira afirmação,
acerca do senso comum, está ela mesma determinada pelo senso comum: de fato a
maioria das pessoas concorda com as opiniões da classe dominante acerca do
socialismo. A questão é: será possível derrotar politicamente a classe
dominante, se não mudar em alguma medida expressiva a opinião da classe
trabalhadora acerca do socialismo? Se a resposta for sim, tem razão o senso
comum. Se a resposta for não, então nossa ação política cotidiana precisa, em
alguma medida, incluir a crítica ao capitalismo e a defesa do socialismo.
A segunda
afirmação é incorreta e parte de uma visão antiquada acerca do que é o
socialismo. Evidente, para quem acredita que socialismo é “propriedade estatal
dos meios de produção”, o socialismo não está na ordem do dia. Mas para quem
entende que o socialismo pode ser a “combinação entre várias formas de
propriedade, sob hegemonia da propriedade Estatal, de um Estado que seja
expressão do poder das classes trabalhadoras”, então não é errado falar que
numa sociedade com as características do Brasil, as reformas estruturais que
defendemos – não tomadas individualmente, mas
quando tomadas de conjunto, sistemicamente – podem assumir uma natureza
socialista.
A terceira
afirmação é parcialmente correta. De fato, o socialismo é colocado naturalmente
na ordem do dia, pelo progresso da luta de classes. Mas “naturalmente” no caso
precisa incluir a ação subjetiva dos partidos, das forças políticas e sociais,
que prevendo o desdobramento da luta de classes, antecipam em seus planos
estratégicos e em seus discursos, a necessidade de colocar sob controle social
e público e estatal uma parte dos meios de produção. Portanto, o erro da
terceira afirmação está em que considera algo “natural”, desde que seja feito
por terceiros, não por nós mesmos.
O que
dissemos anteriormente, sob a natureza socialista que as reformas estruturais
podem assumir quando consideradas sistemicamente, pode ser constatado quando
analisamos cada uma delas. Comecemos pela reforma tributária, que inclui
medidas como: a tributação de juros sobre capital próprio; a tributação sobre
lucros e dividendos; a taxação sobre remessa de lucros e dividendos ao
exterior; a extensão do Imposto sobre Propriedade de Veículos Automotores
(IPVA) para barcos e aviões; a adoção de Imposto sobre Grandes Fortunas (IGF);
a revisão da tabela do imposto de renda sobre pessoas físicas, com aumento do
piso de isenção e ampliação progressiva das faixas de contribuição; o aumento
do imposto sobre doações e grandes heranças, com repactuação do valor arrecadado
entre União, estados e município; e, de maneira geral, medidas progressivas
sobre a renda, no sentido oposto à regressividade do ICMS e tributos sobre o
consumo.
O discurso feito pela burguesia contra a
“pesada carga tributária nacional” tem como principais alvos e defensores a chamada
“classe média” e outros setores da classe trabalhadora, que pensam ser os
potenciais beneficiários de uma redução da carga tributária.
A grande burguesia é dos setores menos
afetados pela carga tributária, graças justamente à carga aplicada aos outros
estratos da sociedade. Seu objetivo é obter para si reduções ainda maiores da
tributação, sabendo de forma consciente que para isso é necessário
sobrecarregar os outros extratos. Daí a dificuldade em aprovar no Congresso,
composto em sua maioria pelos representantes da burguesia, medidas tributárias
de cunho progressivo, onde quem tem mais paga mais, e quem tem menos paga
menos.
Além de implementar uma reforma
tributária, é necessário estancar a sangria das renúncias tributárias. Políticas
de incentivo, quando necessárias, devem ser feitas de forma transparente,
aberta e vinculada a projetos de desenvolvimento, com destaque para os
benefícios sociais derivados.
Outra fonte de sangria são as anistias e
perdões fiscais, que tem tornado a prática de sonegação um excelente negócio, pois
financeiramente pode ser mais interessante sonegar impostos e esperar o
programa de refinanciamento, do que pagar os tributos em dia.
Na mesma linha seguem os “perdões” de
dívidas tributárias gigantescas a grandes grupos econômicos, inclusive bancos Por
fim temos a leniência na cobrança das dívidas tributárias. Os grandes devedores
são beneficiados pela lentidão dos processos, assim como por interpretações
“generosas” da lei e normativas tributárias.
Setores inteiros do grande capital, como
o riquíssimo agronegócio, gozam de isenções, renúncias fiscais e
refinanciamentos de suas dívidas em larga escala. Até mesmo contribuições sobre
o faturamento das empresas, criadas especificamente para o financiamento da
seguridade social, como o PIS e COFINS, ou são sonegados ou são desviadas para
pagar o serviço da dívida. Dívida geralmente contraída para financiar políticas
públicas que favorecem diretamente os grandes capitalistas, tornando o processo
ainda mais perverso.
Prossigamos
com a reforma financeira, que inclui medidas como: a lei antitruste do sistema
financeiro e eliminação dos monopólios nacionais privados; a separação entre
bancos comerciais e de investimento; a ampliação dos direitos operacionais de
bancos municipais e cooperativos. E
inclui também o controle do Estado sobre os fluxos de capitais e as taxas de
juros e de câmbio; a tributação e regulação das remessas de capital das filiais
para as matrizes estrangeiras das multinacionais. Tais instrumentos devem ser
usados não somente para manter sob controle a inflação, mas também, e
principalmente, para promover o crescimento sustentado da nossa economia.
E a reforma
agrária, que inclui medidas como: a adoção de regime progressivo para o Imposto
Territorial Rural para propriedades improdutivas; a redefinição dos índices de
produtividade para fins de reforma agrária; a proibição da venda de terras para
estrangeiros; a interdição da venda de terras reformadas; o estabelecimento de
limites regionais para a propriedade agrária e o agronegócio; o fortalecimento
da agricultura familiar e das cooperativas agroindustriais como vertentes
principais para a conquista de soberania alimentar; a defesa dos direitos e
heranças dos povos originários; a aprovação de um novo código de proteção
ambiental efetivamente capaz de defender nossos solos e recursos
hídricos; e a ampliação dos investimentos em ciência e tecnologia voltados à
agricultura familiar, setor responsável pela
produção da ampla maioria dos alimentos consumidos pela população.
A soberania
energética, que inclui medidas como: a recomposição do regime de partilha, com
a participação obrigatória da Petrobras nas explorações do pré-sal; a criação
do Sistema Nacional de Energia, com o controle estatal sobre todas as etapas da
produção, transporte e distribuição de energia em suas variadas formas; reduzir drasticamente a dependência de
fontes de energia que usam combustível fóssil, como as termelétricas, e
investir em pesquisas que reduzam o uso de gasolina e diesel os meios de
transporte públicos e privados.
A
constituição de um estado de bem-estar social, através da ampliação dos
direitos sociais, trabalhistas e previdenciários, incluindo medidas como: a
revogação da EC 95, da contrarreforma trabalhista e de outras medidas adotadas
pelo governo golpista; o reestabelecimento do comprometimento constitucional
mínimo com saúde e educação; a aprovação da Consolidação de Leis Sociais,
constitucionalizando o direito à renda mínima e outros benefícios; a
constitucionalização da lei de valorização do salario mínimo; a redução da
jornada semanal de trabalho para 40 horas.
A ampliação
e garantia dos direitos civis, através de medidas como: a descriminalização e a
legalização do aborto; a descriminalização do consumo de drogas, bem como da
produção para consumo individual; a constitucionalização dos direitos de casais
homoafetivos e lesboafetivos como entidade familiar plena; a defesa das cotas;
o combate intransigente à discriminação de qualquer tipo, o combate ao feminicídio,
ao assassinato da juventude negra, das populações LGBT, indígenas e quilombolas.
Neste ponto
queremos ressaltar que a emancipação
humana tem como condição fundamental a superação do capitalismo, eliminando a
dominação do capital sobre as diversas esferas da existência em sociedade. É
nestes termos que vinculamos a luta pelo socialismo com a luta por uma
sociedade livre do machismo, da LGBTfobia, do racismo. É verdade
que “sem luta pelo feminismo
não há socialismo consequente”; e também é verdade que “sem luta pelo
socialismo não há feminismo consequente”.
Do mesmo modo que a luta do trabalho contra o capital jamais será capaz
de levar a cabo a emancipação humana, se não incorporar desde já a luta pela superação
do machismo e do racismo, as lutas das mulheres só contribuirão de forma
consequente para a emancipação humana, na medida em que se relacionarem com a
luta do trabalho contra o capital.
A opressão sobre as mulheres é anterior a
formação do capitalismo, remontando ao próprio surgimento da propriedade
privada e da sociedade de classes. Essa opressão é perpetuada e metamorfoseada pelo
capitalismo, que além de extrair uma maior taxa de mais-valia, sobrecarrega as
mulheres com o trabalho doméstico para a produção e reprodução da força de
trabalho. A experiência histórica demonstrou que esta opressão de gênero
persistiu mesmo em experiências socialistas. Neste
sentido, como já diziam Marx e outros socialistas no século XIX, assim como
diziam os revolucionários de 1917, consideramos que um dos principais
parâmetros para definir o grau de liberdade de uma formação social é o grau de
liberdade das mulheres que nela vivem.
Cabe sempre lembrar que as trabalhadoras
(e os trabalhadores) são exploradas por capitalistas, inclusive por mulheres
capitalistas. As burguesas lutam contra os direitos trabalhistas, contra os
direitos sociais, contra os direitos civis da classe trabalhadora, para
defender seus interesses de classe, mesmo sabendo que as maiores prejudicadas
serão as mulheres da classe trabalhadora. Portanto, articular a luta feminista
e a luta socialista, articular a luta das mulheres e a luta do conjunto da
classe trabalhadora, das mais diversas categorias profissionais, é algo
necessário para que mais da metade da humanidade participe e esteja à frente das
batalhas para por fim ao capitalismo e ao machismo. Do mesmo modo que a
emancipação da classe trabalhadora será obra da própria classe trabalhadora, a
emancipação das mulheres será obra das próprias mulheres, tendo as mulheres
trabalhadoras como direção e vanguarda.
A reforma
política, que inclui medidas como: a adoção do voto em lista partidária; a
proibição de coligações proporcionais; a criação de federações partidárias; o
limite para o número máximo de reeleições; o financiamento público das campanhas
eleitorais; o referendo revogatório para cargos executivos; os plebiscitos
impositivos convocados pelo presidente da República ou por 10% do eleitorado;
outras medidas de participação popular; a extinção do Senado.
A
democratização da mídia, que inclui medidas como: a proibição de propriedade
cruzada e de propriedade de meios por parlamentares, governantes ou familiares
até segundo grau; a criação de um Fundo em Defesa da Liberdade de Imprensa, com
um percentual da receita publicitária das televisões aberta e fechada, além das
rádios, para estimular novos meios de comunicação; a cláusula de objeção por
consciência em todas as redações; a criação de um Conselho Social de
Comunicação, que autoriza e renova licenças para emissoras de rádio e TV,
retirando essa prerrogativa do parlamento; a criação do direito gratuito de
antena na TV aberta e nas rádios; a democratização da produção de conteúdos; a
implantação do marco civil com neutralidade da rede e proteção aos direitos
civis na internet.
A reforma do
sistema judicial e de segurança, que inclui medidas como: a instituição de
mandatos limitados para ministros da Suprema Corte, do STJ, do TST e
desembargadores dos TRFs e TJs; democratizar o mecanismo de escolha dos
ministros e desembargadores; assegurar o controle social do judiciário, através
da reestruturação da composição e atribuições do CNJ e de outros mecanismos; a
desmilitarização das PMs estaduais e unificação com a polícia judiciária; a
reformulação do Sistema Nacional Penitenciário, com a incorporação de todas as
prisões e casas de detenção a um modelo único de gestão.
Este
conjunto de reformas estruturais se traduzirá, se combinará e se materializará
através de um conjunto de políticas públicas. E a sustentabilidade do conjunto
das reformas estruturais e das políticas públicas dependerá, em última análise,
da nossa potência econômica, com ênfase nas seguintes quatro dimensões:
a) Uma
produção de bens e serviços capaz de atender a demanda presente e capaz de
ampliar de maneira harmônica com o crescimento da população, tanto em número de
pessoas, quando em termos de novas necessidades;
b) Taxas de
crescimento e níveis de produtividade capazes de absorver a massa de
desempregados e a massa de pessoas que entram a cada ano no mercado de
trabalho;
c) Níveis de
remuneração direta (salários e pensões) e indireta (oferta de serviços
públicos) que permitam aos trabalhadores na ativa e aos aposentados elevar de
maneira contínua sua qualidade de vida;
d) Um
desenvolvimento científico e tecnológico e uma capacidade produtiva da força de
trabalho que, ao longo do tempo, equipare a indústria brasileira aos níveis
médios de produtividade alcançados pelos países que lideram a atividade
econômica mundial.
O Brasil tem
condições de atingir tal potência econômica, assim como tem condições de
sustentar o conjunto de políticas públicas e de reformas estruturais acima
relacionadas. Mas quando observamos o conjunto da obra, não vemos uma dinâmica
de “livre competição” entre empresas privadas, tampouco de “livre mercado” internacional.
Vemos um tipo de sociedade capaz de planejar e de fazer prevalecer os
interesses públicos frente aos interesses privados, os interesses coletivos
frente aos individuais, os interesses da maioria frente aos interesses da
minoria, os interesses nacionais frente aos interesses internacionais.
O grande
capital e a direita “acusam” a esquerda de ser socialista. E alguns integrantes
da esquerda refutam esta acusação, afirmando-se apenas democratas,
desenvolvimentistas, defensores do papel do Estado, dos interesses populares e
da Nação brasileira. Pouco adianta a esperteza e/ou moderação da resposta: o
grande capital e a direita reagem contra “apenas” aquilo como se estivessem
diante de uma conspiração comunista. E a direita age assim porque ela sabe que
a dinâmica natural da luta de classes converte o conjunto daquela obra em
socialismo. Quem erra são aqueles setores da esquerda que desconhecem a
dinâmica de conjunto, ignoram seus desdobramentos ou – pior – sabendo de tudo,
não se preparam para a reação.
Também por
isto, não consideramos adequado substituir – nem na retórica, nem na estratégia
– o “socialismo” pela “Nação”. Um discurso nacionalista pode vir acompanhado de
uma prática entreguista. Isto ocorreu em diversos momentos da história do
Brasil, inclusive durante a ditadura militar, tão useira e vezeira de manipular
os símbolos nacionais e capaz de perpetrar frases como “Brasil, ame-o ou
deixe-o”.
Um discurso
nacionalista também pode encobrir uma prática subalterna às grandes potências e
uma prática mesquinha e burra frente aos países vizinhos. Por isto é importante
enfatizar que um novo padrão de desenvolvimento, capaz de superar a dependência
externa, a desigualdade social e o sistema político oligárquico, precisa
combinar uma forte afirmação nacional frente aos Estados Unidos e seus aliados;
a disposição de negociar com os BRICS a criação de uma nova ordem
internacional; a firme convicção de que o Brasil tem tudo a ganhar com a
constituição de uma forte integração regional latino-americana e caribenha.
Mas o mais
importante é explicitar que na “Nação” convivem diferentes interesses de
classe. Não propomos excluir da nacionalidade os capitalistas; queremos
“apenas” que o capitalismo e os capitalistas deixem de ser hegemônicos. Até
porque, se há alguma chance da “Nação” brasileira resistir aos tempos que virão
no mundo, esta chance passa por termos uma coesão social que só é possível no
socialismo.
Não se trata
para nós de questionar a existência de frações burguesas que mantém
contradições, reais ou potenciais, com o imperialismo e que, por isso, poderiam
em tese se beneficiar de uma expansão do mercado interno e da soberania
nacional. Do que se trata é constatar e tirar as devidas conclusões políticas da
subordinação destas frações aos interesses do imperialismo transnacional e
financeiro, bem como a sua indisposição em enfrentar as oligarquias rurais.
Tampouco
está em dúvida, para nós, a existência de burgueses de pequeno e médio porte,
que sofrem com a concorrência dos grandes, dos estrangeiros e dos rentistas.
Mas é preciso ter claro que, exatamente por serem capitalistas de menor porte,
a reação imediata destes setores é descarregar toda a sua fúria e impotência
contra a classe trabalhadora urbana e contra o campesinato.
Entre os
grandes capitalistas, não há como distinguir ou separar mecanicamente capital
produtivo e capital financeiro, grande “burguesia industrial” e “burguesia
financeira”.
Por este
conjunto de razões, não há como tratar a questão nacional como algo acima e a
parte da luta pelo socialismo. Nem há como fazer uma separação total entre a
luta anti-imperialista e a luta antimonopolista e antilatifundiária.
A defesa da
soberania nacional, num país como o Brasil, está vinculada a luta pela
democracia e pelo socialismo. Mas este vínculo não se estabelecerá de maneira automática
nem inconsciente. Não acreditamos que um soberanismo e um antimperialismo
radicais conduzirão a uma sociedade socialista, se este objetivo e a correspondente
estratégia não forem explicitamente assumidas, a começar pelos setores de
vanguarda da classe trabalhadora. Até porque a derrota do imperialismo supõe
uma integração regional, noção que ultrapassa os limites do nacionalismo
patrioteiro em que foi formada a classe dominante brasileira, seus aliados e
funcionários.
Por tudo isto,
preferimos falar da defesa da soberania nacional com integração regional, evitando
termos como “nacionalismo” e “patriotismo”, termos que no mais das vezes são ferramentas
na disputa ideológica travada contra nós pelos setores mais conservadores e
reacionários da sociedade.
Um bom
exemplo disso são as Forças Armadas, cujos chefes continuam considerado que a
maior ameaça à “Nação” vem dos “inimigos internos”, como se viu em Canudos, na perseguição,
prisão e morte da militância de esquerda, na República Velha, no governo de
Getúlio Vargas e na Ditadura Militar. E como se vê no apoio nem sempre velado
ao genocídio da população negra e pobre das favelas e periferias. Ao mesmo
tempo, os chefes das Forças Armadas se acovardam diante de ameaças reais, como
a dominação imperialista e o entreguismo, a venda a preço de banana de nossas
empresas estratégicas ao capital estrangeiro, a ocupação da Amazônia e o
saqueio de suas riquezas naturais, entre outros.
O
patriotismo estéril aparece também nas “marchas da família com deus e pela
liberdade”; e, mais recentemente, nas manifestações de rua encabeçadas pela
Fiesp e pelo MBL, que invadiram as ruas usando as cores verde e amarelo,
bradando contra a corrupção e proclamando a defesa do Brasil, mas que agora se
prostram, quando não apoiam o entreguismo e o desmonte que vem sendo promovidos
pelo governo usurpador e golpista. Por tudo isso, não temos ilusões em relação
às Forças Armadas, em seus “setores progressistas”, em sua natureza
supostamente “neutra” e “constitucional”.
A luta pelo
socialismo no Brasil precisa incorporar aspectos objetivos e subjetivos
relacionados à chamada “questão nacional”. As classes dominantes locais,
aliadas às burguesias dos países capitalistas centrais, trataram de incutir no
imaginário da classe trabalhadora brasileira a ideia de que somos incompetentes
e incapazes de tomar os rumos de nossa própria história, cabendo a nós aceitar
passivamente as soluções trazidas de fora e reconhecer a superioridade
material, intelectual e cultural dos países que historicamente nos dominam. As
classes dominantes no Brasil apresentam forte caráter entreguista, colonizado e
subalterno ante as elites internacionais.
Portanto, a
possibilidade real de defesa das questões concretas relacionadas à soberania e
à luta anti-imperialista depende das classes trabalhadoras do Brasil. Não para
reproduzir a dominação exercida sobre nós contra os países vizinhos, ou para
encarar os povos vizinhos como meros “mercados consumidores” de nossos
produtos, mas no sentido de reconhecer a nossa capacidade de construir, junto a
eles, e por nossas próprias mãos, sociedades capazes de promover um alto e
acelerado desenvolvimento das forças produtivas, que permitam garantir melhores
condições de vida material e cultural ao conjunto da população.
Por isto
tudo, cabe às classes trabalhadoras do Brasil e da América Latina o
desenvolvimento de uma indústria, da ciência, tecnologia e inovação que atendam
às suas próprias necessidades e que sejam acessíveis ao conjunto da população.
Cabe também à estas classes a construção de escolas e universidades públicas
voltadas à atender suas demandas reais, que sejam capazes de empregar o
conhecimento produzido em outros países como contribuição, superando ambientes científicos
e educacionais totalmente apartados dos problemas reais da classe trabalhadora
e que se limitam a reprodução do conhecimento metropolitano, impondo fortes
obstáculos ao nosso potencial intelectual e criador.
Por fim,
somente da classe trabalhadora poderá emergir uma ideologia que nos reconheça
como capazes de construir o nosso próprio destino, e reconheça também a
soberania e a autonomia de nossos vizinhos latino-americanos e caribenhos e dos
demais povos que, como nós, estão submetidos à dominação imperialista.
A defesa da
soberania nacional é fundamental para enfrentar os discursos “globalistas”, que
afirmam estar superada a questão nacional, no mesmo momento em que os países
imperialistas são mais nacionalistas do que nunca. Portanto, a defesa da
questão nacional cabe à classe trabalhadora brasileira. Nós somos socialistas e
é deste ponto de vista que somos anti-imperialistas, defensores da soberania
nacional e da integração regional. A nossa emancipação e soberania somente
poderá ser alcançada através da superação do capitalismo dependente aqui
forjado, para o qual a única saída possível é a construção do socialismo.
Por razões
análogas, não aceitamos que o nacional-estatismo assuma o lugar do socialismo,
nem em nossa retórica, nem em nossa estratégia e programa. Um Estado forte pode
contribuir para um desenvolvimento em benefício dos interesses públicos,
coletivos e majoritários de toda a sociedade. Mas um Estado forte também pode
agir em benefício de um setor social minoritário e em detrimento das maiorias. No
Brasil, por exemplo, o fortalecimento do Estado na época da ditadura militar
esteve à serviço dos interesses de longo prazo de uma minoria da sociedade. Por
isto, da mesma forma como é preciso qualificar que tipo de “nacionalismo”
patrocinamos, é também importante qualificar que tipo de “estatismo”
consideramos adequado.
Trata-se,
noutros termos, de definir com precisão o conjunto de objetivos (as metas, o
programa, o projeto) e os métodos através dos quais estes objetivos serão
buscados e implementados. Como foi dito anteriormente, nosso objetivo é
melhorar a qualidade da vida do povo brasileiro, de maneira profunda, acelerada
e sustentável. Para isto, necessitamos de um Estado forte frente aos
concorrentes internacionais e, também, frente aos interesses privados internos.
De maneira sintética, trata-se de garantir a soberania sobre nossa moeda, sobre
nossos mercados, sobre nossa capacidade industrial, científica e tecnológica,
sobre nossos recursos naturais, bem como garantir nossa segurança alimentar e
energética.
Cabe ao
Estado controlar o fluxo de capitais, mantendo a taxa de câmbio num patamar
adequado aos interesses nacionais. Ao mesmo tempo, cabe ao Estado controlar a
taxa de juros, mantendo a oferta de crédito num patamar adequado aos objetivos
do desenvolvimento. Evidentemente, para que isto seja possível, é preciso
mudanças estruturais na economia brasileira, sem o quê será impossível ao
Estado ter este grau de controle. Para que haja não apenas controle, mas a
planificação estatal do desenvolvimento sustentável em setores estratégicos da
economia, compreendendo inclusive a participação popular e o controle social do
Estado, é que se compreendem tais necessárias mudanças estruturais.
Para
financiar um programa de metas de médio e longo prazo, é preciso controle sobre
a economia nacional. Hoje quem controla nossa economia é o setor financeiro
privado e oligopolizado. Controlam a economia, porque controlam a emissão de
moeda. Embora legalmente a emissão da moeda seja um monopólio do Estado, na prática
o setor financeiro privado emite moeda. Por isto, devemos constituir um setor
financeiro nacional que no seu cúspide seja 100% público, combinado com um
grande número de bancos estaduais, municipais e setoriais privados e/ou
cooperativos.
Também cabe
ao Estado adotar e implementar uma política de conteúdo nacional, alterar a
composição de nossa pauta de exportações e importações, ampliar a capacidade de
consumo nacional e a integração regional, estimulando assim a recomposição de
nossa indústria, elevando sua produtividade, ciência e tecnologia. Não
aceitamos que o Brasil esteja condenado a ser exportador de produtos primários
– fornecedor de commodities às grandes potências industriais do mundo – e importador de produtos industrializados.
Precisamos implementar um novo processo de “substituição de importações”,
baseado na combinação entre a ampliação do mercado de bens de consumo de massa,
com o desenvolvimento de um imenso mercado de bens de capital.
A ampliação
da capacidade de consumo da população vai, também, ampliar o mercado de consumo
de massas de bens privados. Existe uma demanda reprimida imensa, tanto material
quanto simbólica. Milhões de brasileiros e de brasileiras têm o direito de
consumir mais. Portanto, é preciso combinar a oferta dos bens de consumo
público e dos bens de consumo privado.
Este
conjunto de medidas implicará num choque com os interesses dos oligopólios
privados, muitos deles transnacionais, que controlam a maior parte das cadeias
produtivas, que são grandes importadores e/ou produtores de bens de consumo de
massa, e que não tem interesse em ampliar a produção nacional. Implicará num
choque, também, com o senso-comum de uma parte da população, que foi habituada
a confundir bem-estar com ampliação do consumo privado, e precisará ser
conquistada para outro ponto de vista.
Um programa
de desenvolvimento deste tipo enfrentará diversos gargalos. Um deles está
vinculado à oferta de capitais e de mão de obra. Outro está vinculado à oferta
de alimentos. Um terceiro está vinculado à oferta de bens primários, demandados
pela construção civil e pela indústria pesada. Por todos estes motivos, um
programa de desenvolvimento de novo tipo deve reorganizar o setor primário
minerador e agropecuário. Isto se torna particularmente necessário, nos atuais
tempos de imperialismo financeiro, que ameaça de diversas maneiras nossa
soberania: a espionagem, o roubo e a ameaça militar contra nosso espaço
soberano; a compra de terras e de “direitos” de exploração sobre riquezas
nacionais, inclusive sobre a pura e simples localização geoespacial (como se vê
no caso da Base Alcântara); a conversão de bens públicos em reserva de valor e
objeto de negociação no mercado de futuros. Estas e outras ameaças só serão
enfrentadas se o Estado brasileiro impuser e fizer cumprir uma legislação
soberana, além de se capacitar a defender nossas fronteiras terrestres,
marítimas, aéreas, aeroespaciais, cibernéticas e especialmente sociais. A
principal defesa é a unidade popular. E esta só prevalece quando há níveis
adequados de presença estatal, coesão social e identidade política, elementos
que o neoliberalismo e que o desenvolvimentismo conservador solapam
continuamente.
Para além
dos motivos de natureza geopolítica, há também motivos de natureza
macroeconômica, que tornam indispensável reformar todo o setor de mineração e
agropecuário. Entre estes motivos, citamos:
a) A
mineração e o agronegócio provocam imensos impactos ambientais, geralmente não
contabilizados, mas que são pagos pelo conjunto da sociedade;
b) A
mineração e o agronegócio possuem imensa importância em nossa pauta de
exportações, obtendo muitas divisas estrangeiras graças a exportação de bens
com baixo valor agregado, bens que posteriormente retornam industrializados,
contribuindo no final das contas para uma efetiva evasão de divisas;
c) A
mineração e o agronegócio mobilizam recursos que podem e devem ser investidos
no fornecimento de matéria-prima para nossa indústria e investidos na produção
de alimentos de boa qualidade e baratos. Ambos (matérias primas e alimentos)
são essenciais do ponto de vista da soberania nacional, na definição do poder
de compra real dos salários e de forma geral na definição do custo final de
nossa produção industrial.
O Brasil
necessita manter taxas de crescimento de no mínimo 6% ao ano, ao longo de
muitas décadas. Este índice é necessário para incorporar as novas gerações de
trabalhadores, além do “estoque” de trabalhadores que hoje não estão plenamente
empregados. Pretendemos que este crescimento reverta em benefício da maioria da
população. Se a maioria for beneficiada “depois que o bolo crescer”, estaremos
repetindo um modelo de desenvolvimento conservador já praticado no Brasil nos
anos 1970. Se este benefício vier “antes do bolo crescer”, estaremos sujeitos a
pressões inflacionárias e a interrupções na velocidade e na qualidade do
crescimento.
Uma das
soluções para este tipo de dilema consiste em baratear o custo de produção real
de certos bens que constituem grande parte da cesta de consumo da força de
trabalho. Por exemplo: a habitação, o transporte, a alimentação, o vestuário, a
saúde e a educação. Baratear estes itens permitirá elevar o nível de vida da
população trabalhadora, sem causar pressões inflacionárias, sem reduzir a
velocidade do crescimento, sem desorganizar a economia.
Visto deste
prisma, uma política de ampliação da produção de alimentos, assim como de
melhoria na qualidade e redução dos desperdícios, é estratégica para o
desenvolvimento. Nisto consiste a atualidade da reforma agrária: soberania
alimentar, redução das desigualdades, redução do poder das elites agrárias.
Precisamos
de uma reforma agrária que vá além de garantir terra. Precisamos redirecionar
investimentos hoje maciçamente destinados ao agronegócio, precisamos ampliar a
pesquisa agropecuária e as atividades de extensão rural, precisamos enfrentar o
tema da gestão da água – insumo básico
não apenas para a produção agrícola, mas também para a produção industrial e
para o consumo privado, especialmente nas cidades.
Pelos mesmos
motivos, é estratégico para o desenvolvimento reforçar a oferta de bens
públicos “gratuitos”, como educação, cultura, saúde, internet e transporte. Não
apenas pelos motivos humanos e civilizatórios, mas também por razões políticas
e econômicas. A oferta adequada destes bens eleva a produtividade média da
classe trabalhadora, ou seja, a capacidade de produzir mais a custos sistêmicos
menores. Por outro lado, estes bens (saúde, educação, habitação etc.)
constituem um salário indireto. Se o Estado não os oferece, o trabalhador será
obrigado a gastar parte do seu salário adquirindo-os no mercado. Nele,
encontrará preços altos e qualidade baixa, não apenas porque o capitalista quer
ampliar sua margem de lucro, mas também porque o custo de produção privada
destes bens é geralmente mais elevado do que aquele possível no setor público.
Finalmente, a oferta de bens públicos gratuitos fortalece a consciência
coletiva no povo brasileiro, de que estamos diante de um desafio que diz
respeito a todos nós.
Outros
exemplos de bens públicos, que o Estado deve fornecer diretamente, preferencialmente
a preços subsidiados: a água, a energia elétrica, o gás, o saneamento e a
habitação. O efeito sistêmico disto é imenso: por exemplo, o impacto do
fornecimento de água e do saneamento na redução dos problemas de saúde; e o
impacto do fornecimento de luz na segurança e na produtividade geral do
trabalho. Repetimos: priorizando a produção e o consumo de bens públicos, será
possível combinar crescimento econômico acelerado com elevação do bem-estar
social da maioria da população.
O conjunto
de ações descritas anteriormente revela a necessidade de um Estado forte,
frente ao complexo de empresas privadas que controlam, de maneira oligopolista,
a economia brasileira. É o caso das grandes empresas financeiras, é o caso das
transnacionais nos mais diferentes ramos, é o caso também das empresas que
controlam as cidades: o capital imobiliário, as empresas de transporte coletivo
urbano, de coleta de lixo, as empresas de construção civil. Estas últimas – assim como as empresas de transporte
interurbano, rodoviário, ferroviário, hidroviário, de cabotagem e de longa
distância – “fazem a ponta” entre
cidades e campos, assim como viabilizam a circulação de mercadorias e de
pessoas. As quais deve-se agregar o complexo de empresas de comunicação,
especialmente eletrônica (TVs, rádios, internet).
Por todos os
motivos que expusemos até agora, garantir um desenvolvimento de novo tipo
implicará em travar fortes conflitos com as parcelas hoje dominantes na
cultura, na economia, na sociedade e na política de nosso país: o setor
financeiro privado, o setor minerador e agroexportador, as empresas que
controlam as cidades e os oligopólios atuantes no setor industrial. Haverá
também conflitos, ainda que de tipo distinto, com setores das classes
trabalhadoras que possuem preconceitos e/ou não valorizam a ampliação da oferta
de bens públicos. Para que estes conflitos com setores da classe trabalhadora
não ganhem dimensão relevante, é importante garantir bens públicos de
excelência e fazer todos os esforços para ganhar a “opinião pública” em favor
do Sistema Único de Saúde, da Escola Pública e de Qualidade, do transporte
público e assim por diante.
Analisado
por diversos critérios – tais como o tamanho do território, o tamanho da
população, o tamanho da economia, as riquezas naturais etc. – o Brasil compõe o
ranking das principais nações do mundo. Não dispomos de capacidade militar à
altura, até porque o Brasil renunciou ao uso da energia nuclear para fins
bélicos. E sofremos um processo de destruição do nosso parque industrial e de
reprimarização da nossa economia. Mas o que visivelmente falta ao Brasil é uma
classe dominante disposta a entrar em conflito com as metrópoles capitalistas.
Como já foi
dito anteriormente, a maior parte da classe dominante brasileira prefere a
condição de sócia menor dos capitalistas estrangeiros. Esta opção possui uma
lógica econômica: maximizar seus lucros. A outra alternativa implicaria em
construir um desenvolvimento capitalista nacional, que certamente sofreria uma
dura competição por parte das potências internacionais, o que tornaria
indispensável uma forte coesão nacional, o que depende de medidas tais como a
reforma agrária, políticas de bem estar social e democráticas. Tais medidas
implicariam em aumentar os salários diretos e indiretos em uma escala maior do
que cresceriam os benefícios gerados pela ampliação do consumo. O resultado
deste crescimento salarial líquido seria a redução proporcional nos lucros.
Razão mais do que suficiente para que a classe dominante opte, agora e
anteriormente na história do Brasil, pelo caminho preferido por seus sócios
internacionais. Não se trata principalmente de burrice, má fé, incoerência,
falta de amor pelo povo ou pela pátria: trata-se fundamentalmente de cálculo
econômico.
A opção da
classe dominante brasileira explica que nossa independência tenha sido uma
transação entre pai e filho; que tenhamos saído do domínio português para o
controle inglês; que a escravidão tenha sido tão longeva em nosso país; que a
República tenha sido proclamada como foi. A mesma opção explica por quais
motivos a burguesia industrial paulista encabeçou a contrarrevolução de 1932,
fez oposição ao governo Vargas, contribuindo ademais para seu suicídio. Assim
como se opôs a posse de João Goulart, financiou o golpe e a ditadura militar.
Novamente, é esta mesma opção que explica que os grandes capitalistas critiquem
de público a taxa de juros, mas orientem suas Tesourarias a jogar todas as
fichas possíveis na rolagem da dívida pública.
É importante
destacar, portanto, que o potencial do Brasil foi e continua sendo
desperdiçado, em primeiro lugar devido à economia política da classe dominante:
lucros primeiro. Portanto, cabe aos demais setores da sociedade brasileira – os
trabalhadores assalariados, os trabalhadores pequeno-proprietários, inclusive
os pequenos e médios capitalistas –- construir uma alternativa que enfrente e
supere as principais características de nossa trajetória histórica, a saber: a
dependência externa, a desigualdade social, o sistema político oligárquico e o
desenvolvimento limitado.
Falando em
tese, não há incompatibilidade absoluta entre o desenvolvimento capitalista e
um programa de reformas estruturais e políticas públicas capazes de resultar em
um país com soberania nacional, democracia política, igualdade social e
desenvolvimento sustentável. Também falando em tese, não há incompatibilidade
absoluta entre o desenvolvimento capitalista e o objetivo de elevar a
produtividade e a qualidade de vida de 200 milhões de pessoas, capacitando
nossa sociedade a utilizar e proteger adequadamente toda a riqueza que se
distribui num país do tamanho de um continente, criando as condições para que
sobrevivamos e progridamos num mundo cheio de conflitos e perigos. Ainda em
tese, seria hipoteticamente possível – nos marcos do capitalismo – implementar
um projeto de desenvolvimento baseado numa visão integrada das várias dimensões
da sociedade brasileira, tendo como orientação geral a construção de um país
onde o conjunto da classe trabalhadora tenha altos níveis de vida material,
cultural e política.
Mas isto é
apenas em tese. Na prática, implementar um programa deste tipo implica em
enfrentar e derrotar o imperialismo e a classe capitalista brasileira; implica,
por outro lado, em construir e manter uma hegemonia material, política e
cultural da classe trabalhadora e seus aliados; quanto ao conteúdo das medidas,
implica em combinar medidas capitalistas com medidas anticapitalistas.
Portanto, visto de conjunto, estamos falando de construir uma alternativa
socialista para os dilemas postos diante do Brasil. E se aceitamos esta tese,
precisamos de uma estratégia distinta daquela adotada pelo PT a partir de 1995.
Desde 2005
temos defendido a necessidade de que o PT adote uma nova estratégia e um novo
padrão de funcionamento partidário. Em
alguma medida, esta necessidade foi reconhecida pela resolução sobre estratégia
e programa aprovada pelo 6º Congresso Nacional do PT. Desta resolução,
extraímos os parágrafos a seguir:
As forças progressistas, inclusive ao
reconquistarem o governo federal, deverão levar em conta o aprendizado recente:
se não estiverem preparadas para enfrentar ataques das elites
oligárquico-burguesas à democracia, como resposta previsível desses setores à
perda da direção do Estado, estarão fadadas a sucessivas derrotas estratégicas.
As medidas concernentes vão além de garantir maioria parlamentar: implicam
democratizar o Poder Judiciário, o Ministério Público e a Polícia Federal,
entre outras estruturas de coerção, impedindo seu controle pela alta
tecnocracia ou por nichos corporativos vinculados aos interesses das classes
dominantes.
Esse processo de democratização inclui o
fortalecimento e a reformulação do papel das Forças Armadas, com sua dedicação
exclusiva à defesa nacional e a programas de integração territorial. Também são
imprescindíveis a aplicação das recomendações prescritas pela Comissão Nacional
da Verdade acerca dos direitos humanos e a alteração dos currículos das escolas
de oficiais, expurgando valores antinacionais e antidemocráticos como o elogio
ao golpe de 1964 e ao regime militar que então se estabeleceu.
Igualmente deve ser estabelecido novo marco
regulatório das comunicações, que acabe com o oligopólio da mídia e assegure o
direito à livre expressão, criando as bases jurídico-materiais para um modelo
plural que incorpore os meios fundamentais de informação, entretenimento e
cultura.
Entretanto, as medidas adotadas pelo governo
usurpador, de ruptura da ordem democrática e das garantias constitucionais,
colocam sob risco a estratégia proposta por nosso partido desde 1987,
particularmente se vier a bloquear, mesmo momentaneamente, o caminho eleitoral
ao comando do Estado. Somente poderemos enfrentar cenário com essas características
se fortalecermos nossas relações com movimentos, frentes e partidos que tenham
seu centro de gravidade na organização e mobilização popular, para defendermos
o processo democrático a partir da vigilância e da fiscalização das
instituições, recorrendo a métodos de intensa participação social. Para tanto,
o Partido dos Trabalhadores deve recombinar atuação nos parlamentos e
executivos com a intensificação da atuação de seus filiados nos núcleos,
diretórios zonais, municipais e estaduais, nos setoriais, de modo a fortalecer
a participação nos sindicatos, organizações estudantis, culturais e populares,
nas entidades de bairro e movimentos reivindicatórios, ajudando na
revitalização da política e da confiança na participação popular, como
instrumento de libertação econômica, social e política das classes
trabalhadoras.
A formação de uma maioria social, política e
eleitoral que sustente nossa estratégia deve estar ancorada em um programa que
responda às angústias do povo brasileiro e aos entraves para o desenvolvimento
nacional com reformas que desatem os nós impostos pelo capitalismo monopolista
e orientem políticas públicas a serem adotadas ao se reconquistar o governo
nacional.
As reformas estruturais – de cunho democrático,
antimonopolista, antilatifundiário, anti-imperialista e libertário –
representam plataforma capaz de agregar amplas parcelas da população, das
classes trabalhadoras aos pequenos e médios empresários, o mundo da cultura e a
juventude, as mulheres e a população lgbtt, os negros e os índios, os pobres da
cidade e do campo. Trata-se, afinal, de tarefas inconclusas ou negadas pela
hegemonia burguesa no Brasil, cuja realização romperia o dique da
superexploração do trabalho, da exclusão social e da dependência nacional, da
plutocracia política e do autoritarismo estatal, ao mesmo tempo em que se
avançaria no rumo de uma sociedade pós-capitalista.
Tais propostas buscam abrir a transição para
outro sistema econômico-social, dotando o país de um modelo que, sustentado
pelo dinamismo do mercado interno e a centralidade do consumo coletivo, na
forma de obras de infraestrutura e serviços públicos universais, promova a
reindustrialização acelerada, o desenvolvimento regional, a autossuficiência
agrícola, a independência financeira, a soberania nacional e a integração
continental.
A principal bandeira de nosso programa é a
convocação de uma Assembleia Nacional Constituinte livre, democrática e
soberana, destinada a reorganizar estruturalmente o Estado brasileiro e aprovar
reformas que reorganizem suas bases socioeconômicas e institucionais,
dilaceradas pelo governo usurpador. A democratização das instituições
brasileiras é preâmbulo indispensável para as demais reformas estruturais.
A política de alianças, incluindo as coalizões
eleitorais, deve aglutinar quem partilhe de uma perspectiva anti-imperialista,
antimonopolista, antilatifundiária e radicalmente democrática. Aponta para um
governo encabeçado pelo PT, Lula presidente, com partidos, correntes e
personalidades que estabeleçam compromisso programático dessa natureza. A
consolidação de uma esquerda antissistema, com clara identidade de projeto,
constitui elemento central de nossa orientação política.
Ao retomarmos o fio da meada da estratégia
democrático-popular, estabelecida ao longo da história de nosso partido,
enriquecida pelas lições do período de governo e atualizada aos novos problemas
nacionais, o Partido dos Trabalhadores reafirma seu compromisso com a
construção do caminho brasileiro ao socialismo e com a luta do povo brasileiro
por sua plena emancipação.
Independentemente
do acordo maior ou menor que tenhamos com cada frase do trecho citado
anteriormente, esta resolução do 6º Congresso Nacional do PT dá passos no
sentido de uma inflexão estratégica. A resolução do 6º Congresso detalha,
noutras passagens, várias das ações imprescindíveis que um governo popular
deveria adotar, por exemplo, na legislação que regula os processos eleitorais,
na comunicação, na educação e cultura, da justiça, nas forças armadas e
segurança pública.
Agregamos
que a experiência recente, no Brasil e na América Latina, mostra que não apenas
é necessário mudar, como é necessário fazer isto rápido, pois está provado que
a reação conservadora pode demorar mais ou menos, mas é inevitável, não importa
o quanto sejamos “moderados” e “republicanos” no exercício do governo. Portanto,
trata-se de abandonar completamente qualquer ilusão no republicanismo que –
mesmo quando professa o contrário – na prática trata o aparato de Estado como
neutro. Mais do que isso, é preciso compreender que o Estado possui uma
natureza de classe; e do que precisamos é de um Estado que não seja, como o
atual, construído e controlado pela classe dos capitalistas.
É este
Estado, mais exatamente setores dele, como as forças armadas ontem e o complexo
judiciário hoje, quem reage em defesa da classe dominante, toda vez que esta
considera que está em risco seu poder e sua propriedade. Na história do Brasil,
os golpes preventivos e a repressão sistemática, legal e ilegal, têm sido uma
constante. Por isto, uma estratégia da classe trabalhadora – qualquer que seja
o caminho adotado para construir e conquistar o poder – precisa necessariamente
levar em conta a necessidade permanente de derrotar a classe dominante, até que
ela perca esta condição. Precisamos de um Estado sob controle das classes
trabalhadoras.
Nossas
chances de conseguir um êxito estratégico nesta luta dependem, na essência, da
consciência política e do apoio organizado que tivermos na maior parte da
população brasileira, que é composta por trabalhadores e trabalhadoras
assalariadas. Neste sentido, o êxito de uma nova estratégia dependerá não
apenas do acerto das novas formulações, mas também e principalmente da
reconexão entre o Partido e os setores populares, em particular a classe
trabalhadora assalariada.
Uma
estratégia é, ao mesmo tempo, uma especulação e um parâmetro. É uma
especulação, no sentido de que a luta de classes pode conduzir para caminhos
totalmente diferentes. É um parâmetro, no sentido de que fornece balizas do que
pretendemos fazer. Sem estas balizas, o mais provável é que prevaleça o senso
comum dominante – que tanto estrago causou desde 1995 e mais ainda desde 2003.
Para
evitarmos isto, será necessário: a) a compreensão o mais científica que for
possível acerca das classes e da luta de classes, tal como existem na sociedade
brasileira hoje, muito diferente do que existia em 1980 ou em 2002; b) a
prioridade absoluta para o trabalho cotidiano junto às classes trabalhadoras,
na ação de governos e parlamentares, na pauta das instâncias, na criação de
núcleos por local de trabalho e moradia, na organização da juventude e das
mulheres trabalhadoras, no fortalecimento da CUT e do trabalho sindical; c) uma
linha política e um trabalho de comunicação diário, voltado à conscientização,
organização e mobilização das classes trabalhadoras; d) o desenvolvimento de
novas “técnicas” de trabalho de massa, especialmente aquele voltado aos setores
da classe trabalhadora que estão excluídos do mercado de trabalho, aos que
atuam em categorias de alto nível de terceirização e rotatividade
(especialmente, jovens, mulheres, negros e
negras), aos que não conheceram a fase de auge do sindicalismo combativo; e) a
preparação do Partido e das organizações sindicais e populares para uma etapa
da luta de classes em que a classe dominante lançará mão, de maneira combinada
ou não, ações de desmoralização midiática, repressão estatal, agressões
para-militares e mobilização de natureza fascista; f) a completa formulação e
aplicação de uma estratégia e de um funcionamento partidários de novo tipo,
“para tempos de guerra”
As
resoluções do 6º Congresso deram um primeiro passo no sentido de reformular
nossa estratégia e recolocar o socialismo como objetivo programático. Mas o
Partido está muito longe de ter incorporado e introjetado de maneira consciente
o que ali foi aprovado. Em nossa opinião, a imensa maioria do Partido (e não
apenas o grupo majoritário) entrou e saiu do Sexto Congresso com a mesma
orientação estratégica anterior. O que na melhor das hipóteses decorre daquelas
resoluções é uma radicalização tática, não uma reorientação estratégica.
Aliás, o
otimismo exagerado com que a tendência O Trabalho avaliou os resultados do
Sexto Congresso do PT vem, muito provavelmente, do fato deles considerarem que
a natureza estratégica do PT decorre principalmente de suas (do Partido) ações
táticas, ou que um acerto progressivo e cumulativo na tática nos conduzirá
inevitavelmente a um ajuste estratégico.
Óbvio que a
reorientação estratégica de um partido de massas não pode ser medida apenas,
nem principalmente, pelas resoluções aprovadas em seus congressos e reuniões de
direção. A reorientação estratégica de um partido de massas precisa se traduzir
na ação prática de centenas de milhares de pessoas, nos movimentos sociais, nas
instâncias partidárias, nos governos, nos parlamentos, no debate de ideias. Ou
seja, essa reorientação estratégica precisa se traduzir em medidas práticas que
permitam conquistar a maior parte da classe trabalhadora.
Acontece que
uma radicalização tática – como a que está ocorrendo com parte do PT hoje – não
necessariamente corresponde, decorre ou conduz a uma radicalização estratégica.
A este respeito, lembramos o ocorrido com o Partido Comunista em 1947: depois
de ver cassada sua legenda e os mandatos de seus parlamentares, o PC adotou no Manifesto de Agosto de 1950 uma linha de
ultraesquerda, mas sem abandonar a estratégia de revolução em duas etapas.
Inspirado naquela linha tática radicalizada do Manifesto de Agosto, fez dura
oposição ao governo Vargas. Anos depois, inclusive sob o impacto da reação de
massa ao suicídio de Vargas, o PC mudou de linha, adotou a tática moderada
expressa na chamada Declaração de Março
de 1958 e na postura frente à candidatura presidencial e ao governo de
Juscelino. Tudo isto, novamente, sem mudar a estratégia, que seguiu intocada.
No caso do
PT, o 6º Congresso aprovou uma resolução que – ao menos formalmente – aponta
para uma reorientação estratégica. E as resoluções táticas adotadas pelo 6º
Congresso também apontam, em tese, para esta nova estratégia. Mas a maneira
como estas resoluções foram aprovadas, o comportamento prático do Partido e a
atitude do grupo majoritário revelam que estamos diante de uma reorientação e
radicalização de natureza tática, não de uma verdadeira reorientação
estratégica. E que muito facilmente podem se converter no contrário: num
movimento de moderação tática e estratégica ainda mais profundo, como está
implícito nas formulações cada vez mais republicanas de certos setores do
partido e explícito em episódios como a nota da do PT sobre a condenação de
Aécio Neves e o perdão aos golpistas.
Um giro
deste tipo – uma radicalização tática servindo de preâmbulo para uma moderação
ainda maior – não seria inédito na história do movimento socialista. E, no caso
do PT, seria facilitada pelo fato de alguns setores não considerarem que um
partido como o nosso possa ou deva elaborar formulações estratégicas e
programáticas de longo alcance. Estes setores agem como se o limite na disputa
do PT fossem as formulações de natureza tática. Evidentemente, não é o nosso
caso: achamos necessário que o PT, sem perder o caráter de massas e de
pluralidade que o caracterizam, seja capaz de debater e formular sobre as
questões de médio e longo prazo. Não como pré-requisitos doutrinários, mas por
que o enfrentamento adequado do curto prazo muitas vezes pressupõe –
especialmente num momento como o atual – definições mais amplas.
O fato do 6º
Congresso ter resultado de fato tão somente em uma radicalização tática é
duplamente grave: grave porque a situação de conjunto exige uma reorientação
estratégica; e grave porque uma radicalização tática, se não estiver
acompanhada de uma reorientação estratégica, pode levar o Partido a uma derrota
política e acompanhada da perda de base social e militante, podendo
inclusive servir posteriormente para “justificar” uma guinada à direita (como
aconteceu com o PCB, no caso citado anteriormente: o isolamento causado pela
política do Manifesto de Agosto de
1950 serviu de justificativa adicional para o giro à direita da Declaração de Março de 1958).
Alguns
integrantes da cúpula do grupo majoritário acham que uma orientação estratégica
mais radical nos levaria ao isolamento. Mas, ao mesmo tempo, são empurrados
para uma radicalização no terreno da tática. E não percebem que, sem uma nova
orientação estratégica, uma radicalização exclusivamente tática poderá ter as
mesmas consequências que eles acham que adviriam de uma radicalização na
estratégia: conduzir ao nosso isolamento.
Por outro
lado, a radicalização do discurso de algumas lideranças e setores do PT nem
sempre vem acompanhada da radicalização nas demais dimensões da ação prática.
Inclusive porque segue presente a crença de que haveria setores da burguesia e
da direita dispostos a criar “pontes”, portanto segue presente a fé na boa e
velha conciliação. Ou seja, o discurso não corresponde à prática porque ela
segue “prisioneira” da mesma estratégia. Podemos discutir se há ou não há
setores conciliadores na burguesia; ou discutir se estes setores existem, mas
não tem a força e o peso necessários para predominar. O que nos parece
essencial dizer é que hoje – e enquanto durar o atual momento da luta de
classes –, não há mais, da parte dos setores hegemônicos da classe
dominante, disposição para acordos e conciliação.
Como prova
de que estamos diante de uma reorientação e radicalização de natureza tática,
chamamos a atenção para o que ocorreu antes, durante e depois do Congresso, nas
bases e setores intermediários de grande parte do PT: as movimentações de
sempre, visando disputar as eleições 2018, procedendo em geral como se nada
tivesse ocorrido e como se nada de extraordinário pudesse ocorrer.
Chamamos a
atenção, também, para o cotidiano das instâncias partidárias, majoritariamente
envolvidas no rame-rame burocrático. E para a postura majoritariamente passiva
das direções do PT frente aos desafios e às polêmicas do movimento sindical, do
movimento estudantil, das Frentes Brasil Popular e Povo Sem Medo. Como se estes
desafios e polêmicas fossem possíveis de resolver sem que o maior Partido da
esquerda brasileira chame para si o debate a respeito. Chamamos a atenção,
principalmente, para a perceptível falta de nitidez sobre o que alguns chamam
de “golpe dentro do golpe”.
A coalizão
golpista tem unidade estratégica em torno de três objetivos: reduzir o salário
direto e indireto pago para a classe trabalhadora; reduzir as liberdades
democráticas; alinhar o Brasil com a política externa dos EUA e seus aliados.
Desde o
golpe até hoje a coalizão vem conseguindo implementar seu programa. Exemplos
disto são a contrarreforma trabalhista; a PEC que estabelece um teto para o
orçamento da União, afetando fortemente os gastos com as políticas públicas e
sociais; a mudança da lei da partilha e da venda de terras aos estrangeiros; o desmonte das políticas
públicas para as mulheres, com o enfraquecimento e mesmo o fechamento de casas
abrigo, centros de referência da mulher e demais órgãos públicos do setor; entre outras
medidas reacionárias.
Entretanto,
a coalizão golpista enfrenta dificuldades devem ser utilizadas pela classe
trabalhadora, na perspectiva de interromper a ofensiva, reverter e derrotar o
golpismo.
As
dificuldades começam pelo cenário internacional, marcado por uma situação de
crise que não oferece perspectivas de curto prazo de retomada da atividade
econômica, nem oferece vantagens especiais para quem optou por uma aliança
preferencial com os Estados Unidos. Ademais, é preciso considerar que a situação
internacional pode evoluir para uma situação de crises e de guerras mais
profundas do que aquelas que assistimos desde o fim da URSS.
As
dificuldades incluem a resistência que a classe trabalhadora vem oferecendo
contra o golpismo, através de lutas e mobilizações, na rejeição ao presidente
usurpador e na crescente intenção de voto em Lula.
As
dificuldades envolvem, também, as divisões internas da coalizão golpista,
algumas vinculadas à “partilha do botim”, outras relacionadas a diferenças
políticas de variados tipos, inclusive sobre como lidar com os efeitos
colaterais da Operação Lava Jato sobre lideranças políticas das próprias
elites. Um exemplo disso foi a divisão da base do governo Temer, nas duas votações
sobre o pedido de autorização feito pela PGR para processar o presidente
usurpador.
Embora não
tenham resultado na interrupção da ofensiva, nem na derrubada do governo
golpista, estas dificuldades podem se avolumar e desembocar numa derrota
eleitoral das candidaturas vinculadas ao golpismo. Podem, inclusive, desembocar
numa vitória de Lula nas eleições presidenciais de 2018.
Por isto a
coalizão golpista vem buscando maneiras de interditar a candidatura Lula;
inviabilizar o funcionamento do PT; dificultar a ação do movimento sindical;
criminalizar a resistência popular; bloquear as brechas eleitorais da esquerda,
por exemplo, através do parlamentarismo; vitaminar candidaturas populistas de
direita, como Dória, Hulk e Bolsonaro; financiar uma profusão de think thanks de direita, com apoio
internacional, para travar a disputa ideológica.
A coalizão
golpista pretende não apenas implementar, mas também estender pelo máximo de
tempo, e se possível perpetuar como cláusulas pétreas constitucionais, o
essencial do programa da “ponte para o futuro”. A classe trabalhadora tem o
objetivo oposto: derrotar o mais rápido possível o golpismo. Mas para que isso
ocorra, será preciso combinar a máxima
resistência tática com uma reformulação
estratégica.
Os anos de
2017, 2018 e 2019 serão de imenso conflito, em âmbito nacional, regional e
mundial. A dúvida é saber em que condições a classe trabalhadora brasileira
participará deste conflito: se na condição atual, de defensiva; ou se
conseguiremos retomar a ofensiva com a reconquista do governo federal, por
exemplo.
A classe
trabalhadora brasileira está num momento de defensiva estratégica.
Noutras palavras, nossa prioridade é defender os direitos sociais e políticas
públicas, as liberdades democráticas e a soberania nacional, que estão sendo atacadas
pela coalizão golpista.
O tempo que vai durar este momento de
defensiva estratégia e os caminhos pelos quais ele será
superado dependem das lutas politicas e sociais que estão em curso, das
escolhas estratégicas das diferentes forças organizadas que disputam os rumos
de nossa sociedade, bem como dos impactos que a situação internacional tenha
sobre o Brasil.
Vivemos,
portanto, num daqueles momentos em que a tática e a estratégia fazem um nó, ou
seja: da solução de questões táticas, derivarão condições muito diferentes para
enfrentar um determinado cenário estratégico.
A tática na
luta contra o golpismo envolve: a) o trabalho cotidiano de organização e
conscientização da classe trabalhadora; b) as lutas e mobilizações de massa; c)
a construção e defesa das organizações populares, inclusive da Frente Brasil
Popular; d) a defesa do PT e de Lula, em particular do nosso direito de tê-lo
como candidato à presidência da República; e) a oposição radicalizada ao
governo Temer e seus aliados, expressa nas palavras de ordem Fora Temer e
Diretas Já; f) a luta em defesa dos direitos ameaçados pelas contrarreformas e
o compromisso de lutar pela sua revogação, através da eleição de Lula e da
convocação de uma Assembleia Constituinte.
A
resistência em defesa dos direitos, ao menos até agora, não teve êxito. Seja
por conta dos golpistas terem uma maioria institucional consolidada, seja por
conta da mobilização insuficiente – que em alguma medida está vinculada à forte
presença da direita no movimento sindical, mas também à inércia da dinâmica
eleitoral (desde 1989, grande parte do país, da esquerda e da classe trabalhadora
se acostumaram com isto) – a tendência é que a resistência em defesa dos
direitos desemboque nas eleições de 2018, onde também o golpismo poderá ser
“legitimado” ou derrotado nas urnas.
O sentimento
de esperança que grande parte da classe trabalhadora nutre na candidatura Lula
corresponde e contribui para formar este quadro. Contudo, ao mesmo tempo em que
viabilizar a candidatura e a vitória de Lula em 2018 é fundamental para
derrotar o golpe, devemos combater certo tipo de expectativa ilusória e imobilista:
ilusória, pois uma vitória eleitoral não será suficiente para criar as
condições necessárias à revogação das medidas golpistas, à convocação da Assembleia
Nacional Constituinte e à realização das reformas democrático-populares; e
imobilista, pois tende a relegar a um segundo plano a mobilização e a
organização da própria classe trabalhadora em defesa dos direitos, tarefas que,
além de tudo, acumulam forças para a disputa eleitoral e os conflitos
seguintes.
Os golpistas
têm à sua disposição duas táticas para enfrentar 2018: a) a de buscar interditar
a vitória eleitoral da esquerda e b) a de buscar derrotar eleitoralmente a
esquerda. Já a esquerda, embora disponha de várias táticas, só dispõe
de uma com potencial de vitória eleitoral em 2018: a candidatura, a campanha e
a eleição de Lula presidente da República.
Caso a
direita interdite Lula, qualquer que seja a reação da esquerda, as chances de
vitória eleitoral em 2018 serão muito reduzidas. Caso a direita não interdite
Lula, as chances de vitória eleitoral da esquerda aumentam muito. Mas mesmo
assim, a vitória de Lula na eleição presidencial está longe de ser o único
cenário. Alternativas como novo golpe e a vitória eleitoral da direita estarão
também colocadas. Motivos pelos quais devemos:
a) insistir
na mobilização de massas em defesa dos direitos. Mesmo que não tenhamos êxito
imediato, isto acumula forças para uma vitória na batalha eleitoral e, mesmo em
caso de derrota em 2018, acumula forças para a resistência posterior. Neste
sentido, é importante retomar a perspectiva de um trabalho paciente e em
profundidade capaz de retomar o movimento por uma greve geral capaz de barrar a
continuidade dos ataques aos direitos dos trabalhadores, sendo a “reforma da
previdência” uma das mais importantes batalhas, por sua repercussão de massa.
Cabe também detalhar e massificar a compreensão dos efeitos devastadores da
recém aprovada “reforma trabalhista”, disputando a versão mistificadora que vem
sendo propagandeada pelo governo e pela grande mídia;
b)
radicalizar o tom e a atitude na resistência, inclusive no parlamento, onde
devemos tomar como parâmetro mínimo de atuação a atitude das três bravas
senadoras que ocuparam a mesa do Senado. Contra a violência, a desobediência
civil é mais do que legítima, é necessária e recomendável sempre e quando seja
compreensível para o povo;
c) explicar
à população o perigo contido nas alternativas postas pela direita (por exemplo,
Bolsonaro, Dória, Hulk, Alckmin etc.);
Cabe,
também, evitar as armadilhas postas para o PT no debate sobre a possível
interdição de Lula. Duas destas armadilhas são as seguintes:
a)
naturalizar a interdição, como se fosse algo banal, frente ao que o PT deveria
agir com naturalidade, lançando ou apoiando outro nome. Pensamos o oposto: não
se trataria de algo banal. Interditar Lula, assim como a possível adoção do
parlamentarismo e o fim do voto proporcional, seria uma violência imensa contra
a democracia, contra a esquerda, contra a possibilidade dos setores populares
voltarem a governar o Brasil. Nossa reação a isto, caso venha a ocorrer, não
pode e não deve ser banal;
b)
considerar que a interdição é inevitável e, portanto, preparar desde já as
alternativas. Pensamos o seguinte: a interdição é muito provável e devemos nos
preparar. Mas “nos preparar” não pode significar nada que naturalize e banalize
a violência que já vem sendo cometida contra nós, nem tampouco podemos abrir
mão de lutar até a última possibilidade.
Reiteramos não
existir “plano B”: eleição sem Lula é fraude. E é muito complexo
decidir o que fazer diante de uma fraude. A esse respeito, basta dizer que –
caso a interdição venha mesmo a ocorrer, esgotadas todas as alternativas – o PT
teria diante de si três grandes alternativas: o boicote (ativo ou passivo,
geral ou parcial); o lançamento de outra candidatura petista; o apoio à alguma
candidatura de outro partido.
O boicote é
uma alternativa legítima, no cenário de uma interdição. Afinal, o efeito
prático da interdição seria facilitar e no limite legitimar a vitória da
direita. Como já foi dito, “eleição sem Lula é fraude” e participar ajudaria,
em alguma medida, a legitimar a fraude.
Falando em
tese e tomando como base experiências de outros países, um boicote poderia ser
parcial (apenas à eleição presidencial) ou geral (para todos os cargos em
disputa); poderia ser passivo (orientar o voto nulo e/ou o não comparecimento)
ou ativo (trabalhar para que as pessoas não votem).
Entretanto,
a julgar pela experiência brasileira, mesmo aquela ocorrida na época da
ditadura militar, as chances de êxito (no sentido de ampla adesão) de um
boicote são baixas. Salvo num cenário de boicote ativo e generalizado, um
boicote não impediria que alguém fosse eleito presidente da República. Há que
se verificar, também, que impacto teria um boicote parcial sobre nossas
candidaturas a governos estaduais e parlamentos. Por tudo isto, ainda que
reiteremos tratar-se de uma alternativa legítima, trata-se de um debate
complexo, com muitas variáveis, entre as quais o estado de ânimo do Partido, do
nosso eleitorado e da população em geral.
Caso a
interdição venha mesmo a ocorrer, esgotadas todas as alternativas, o lançamento
de outra candidatura petista também seria uma alternativa a considerar. Aliás,
tanto a mídia oligopolista quanto setores do Partido já vem projetando alguns
nomes. Entretanto, além disto poder legitimar a fraude, há que considerar que
dentre os nomes lembrados, não há candidatura melhor que a de Lula, seja do
ponto de vista eleitoral, seja do ponto de vista político-programático. Aliás,
dificilmente uma candidatura alternativa poderia ser escolhida, sem que
houvesse uma disputa interna, aberta ou não. Finalmente, numa eleição que “sem
Lula é uma fraude”, uma candidatura alternativa seria “para valer” ou seria uma
anti-candidatura de protesto?
O apoio a uma
candidatura de outro partido apresentaria problemas semelhantes (legitimação da
fraude; nenhuma alternativa é melhor que Lula; haveria disputa; seria “de
protesto” ou “para valer”?), com um agravante: o PT estaria sendo levado a
ajudar a construir uma alternativa a si mesmo, enquanto partido que desde 1989
hegemoniza de fato a esquerda brasileira.
Portanto,
reiteramos que nossa orientação é:
a) insistir
na mobilização de massas em defesa dos direitos;
b)
radicalizar o tom e a atitude na resistência;
c) conscientizar
a população sobre perigos;
d) não
banalizar a violência que se está praticando, nem aceitar o debate sobre o
“plano B”;
e) não abrir
mão de lutar até que a última possibilidade esteja esgotada. Só neste cenário,
caberia discutir o que fazer, levando em consideração não apenas os efeitos
táticos da opção, mas também os seus efeitos estratégicos, que devem ser
coerentes com uma nova orientação estratégica, que abandone a política de
conciliação de classes, retomando a defesa de um programa de reformas
estruturais articulado com o socialismo.
O exemplo
mais ilustrativo de que não houve uma reorientação estratégica no comportamento
do Partido está no debate sobre a candidatura Lula. Havia quem acreditasse que
Lula não seria condenado em primeira instância. Há quem acredite que certamente
haverá justiça na segunda instância. Há quem acredite que os demais processos
não serão julgados em tempo de impedir a participação de Lula nas eleições. E
há quem acredite que a perseguição judicial-midiática não será capaz de
produzir uma tal desmoralização e rejeição que impeça nossa vitória eleitoral.
Para quem
acredita parcial ou totalmente nisto que citamos no parágrafo anterior, a
correta afirmação de que “eleição sem Lula é fraude” seria apenas um artifício
retórico para pressionar os golpistas e dialogar de alguma forma com nossa base
social.
No fundo, é
como se pensassem que o cenário mais provável seria o seguinte: Lula será
absolvido, fará campanha, vencerá as eleições, governará e tudo voltará aos
seus eixos. Motivo pelo qual já dedicam boa parte do seu tempo a preparar, nos
estados, suas campanhas e coligações eleitorais, inclusive com os partidos
golpistas.
Pelo mesmo
motivo, já há os que emitem sinais de que o futuro governo Lula permitirá o
regresso aos ”bons tempos”, inclusive para os capitalistas, que também estariam
preocupados com a crise e saudosos da época em que o governo Lula estimulava o
crescimento econômico.
Sem falar
daqueles que acreditam nos efeitos curativos da reforma política ora em curso,
de conversas com FHC, com os militares, com os supostos “setores democráticos e
progressistas” da burguesia. Ou até mesmo em reuniões com Temer, como chegaram
a fazer governadores do PT.
Ao mesmo
tempo, outros setores do Partido, achando que o mais provável seria a
condenação em segunda instância, já começam a articular candidaturas
presidenciais alternativas, sem perceber que a mesma interdição que paira sobre
Lula, também paira sobre o conjunto do PT. O que explica, aliás, a ofensiva
violenta que parte do golpismo está promovendo contra a presidenta do Partido.
Por tudo
isto, tanto a candidatura de Lula quanto qualquer outra tática eleitoral
precisam estar subordinadas e ao serviço de uma nova estratégia política, bem
como apresentar e debater com a classe trabalhadora as diretrizes programáticas
aprovadas no 6º Congresso do PT, com destaque para a revogação das medidas
golpistas, a Assembleia Nacional Constituinte e as reformas
democrático-populares, impulsionando a
plataforma “Brasil que o povo quer”.
Além das
questões mencionadas anteriormente, cabe perguntar que perspectiva de médio
prazo há para uma estratégia de tipo eleitoral, ancorada essencialmente na
figura de Lula, especialmente levando em conta as movimentações permanentes que
se fazem no sentido do Congresso adotar o parlamentarismo; cabendo lembrar da
tentativa de derrotar o sistema proporcional, adotando no seu lugar o distritão
ou o voto distrital misto, este último aliás respaldado por um deputado petista
que nem a bancada, nem o Partido, desautorizaram e puniram como se deveria.
Ainda neste
contexto, o que será do petismo caso prossiga o processo de interdição legal do
Partido? Cabendo lembrar que não está descartado que a interdição se estenda,
além do próprio PT, ao conjunto da esquerda. Ademais, que atitude o Partido
adotará frente ao futuro governo, caso vençam os beneficiários da fraude
denunciada por nós? Finalmente: se apesar de tudo conseguirmos disputar e
vencer as próximas eleições presidenciais, o que faremos para viabilizar as
diretrizes programáticas aprovadas no Sexto Congresso do PT? Ou deixaremos de
lado este programa, sob argumentos os mais variados, na torcida de que fazendo
isto os golpistas não agirão contra Lula como agiram contra Dilma? E o que
faremos, face a esta última hipótese, diante do risco de ver parcelas
expressivas da classe trabalhadora reagirem da mesma forma como reagiram em
2015? Em qualquer dos cenários, o que faremos para recompor nossos laços com a
classe trabalhadora? Como imaginamos que agirão os outros setores da esquerda,
a começar por aqueles que pública e legitimamente disputam a herança do PT?
Finalmente, mas com destaque: como imaginamos os próximos anos e décadas, no
cenário regional e mundial? Qual será nossa política internacional, estando no
governo ou fora dele?
Debater
estas questões todas conduz ao reconhecimento de que a estratégia de mudança
sem ruptura, ancorada numa via de acesso ao governo através da disputa
eleitoral, está diante de limites que são intransponíveis nos seus próprios
termos. Ou seja: a estratégia de mudança sem ruptura não permite enfrentar e
superar os dilemas postos pela atual situação. Não permitiu antes, quando
vivíamos uma situação muito mais favorável; e não permitirá agora, quando
estamos no curso de uma crise econômica, social e política de grandes
proporções.
Nenhuma das
questões acima relacionadas é tática, eleitoral ou setorial. Nenhuma delas se
resolve debatendo isoladamente “programa”, especialmente quando este é
entendido como lista de reivindicações. Aliás, nos últimos meses houve uma
verdadeira inflação de “programas”, mas prossegue a escassez de formulações
estratégicas. Obviamente, o programa não pode nem deve ser negligenciado. Mas
ele não pode ser descolado das formulações estratégicas e táticas.
No limite,
as questões estratégicas apontadas só podem ser resolvidas na prática, até
porque a luta política em escala nacional, regional e mundial possui conexões
que podem resultar em mudanças no próprio cenário estratégico. Por exemplo, se
houver uma guerra de proporções maiores do que as que foram habituais no
pós-Segunda Guerra ou no pós-colapso da URSS.
Seja como
for, não podemos continuar subestimando as mudanças no comportamento do grande
capital, aqui no Brasil e em todo o mundo; e, portanto, não podemos continuar
subestimando a necessidade de uma reorientação estratégica do Partido.
Especialmente se levamos a sério a necessidade de levantar o estado de ânimo,
de mobilização e de luta da classe trabalhadora brasileira.
Não foi
apenas a classe dos capitalistas que mudou sua atitude frente ao PT e nossos
governos. Também uma parte da classe trabalhadora mudou de atitude, mudança que
para nós tem efeitos muito mais graves. E que nos leva a reafirmar que uma de
nossas principais tarefas é reconquistar aqueles setores da classe trabalhadora
que se afastaram de nós.
Mas a
solução prática das questões estratégicas acima relacionadas será mais fácil ou
mais difícil, a depender de nossa maior ou menor capacidade de formular um
pensamento estratégico. Neste particular, a questão chave é: como acreditamos
que deveria e poderia ser nosso caminho para o poder e para o socialismo? E no
que ele pode e deve se diferenciar do caminho trilhado por nós petistas entre
1995 e 2016?
Desde sempre
combatemos; mas desde 2005 temos, além de combatido, afirmado estar superada
a estratégia adotada desde 1995 por nosso Partido – estratégia que nós
sintetizamos com a expressão mudanças sem rupturas – e
que, num debate mais rigoroso, dizíamos não ser nem mesmo uma estratégia
(categoria que pressupõe a disposição de conquistar o poder), mas sim uma linha
política cujo objetivo máximo era conquistar governos.
Com aquela
linha, o PT conseguiu vencer as eleições presidenciais de 2002; mas já naquela
época opinávamos que, com aquela linha política, o PT não conseguiria iniciar
nem realizar transformações profundas, nem conseguiria manter-se no governo. A
chamada “crise do mensalão” foi vista por nós como um sinal da necessidade de
mudar a linha do Partido.
Tentamos
vencer o PED de 2005, para, a partir da direção nacional do PT, implementar
outra estratégia. Mas fomos triplamente derrotados.
No PED 2005,
ficou evidente que o grupo majoritário do Partido se dispunha no máximo a fazer
uma inflexão
na política anterior.
Ficou evidente,
também, que parte importante da esquerda partidária optara por substituir a
estratégia democrático-popular articulada com o socialismo, pela defesa de uma revolução
democrática com republicanismo.
Igualmente ficou
evidente que uma minoria da esquerda entendia que o PT estava superado e
preferia sair do Partido a continuar disputando seus rumos.
A inflexão
política feita pelo grupo majoritário do Partido, a partir do PED de 2005, teve
êxito relativo. Uma prova disso é que vencemos as eleições presidenciais de
2006 e de 2010. Outra prova, ainda mais importante, é que melhorou a vida do
povo.
No que
consistia aquela inflexão política? Consistia, essencialmente, em retomar o
espírito da resolução aprovada no congresso realizado pelo PT no ano de 2001.
Ou seja, a
inflexão consistiu em sair da orientação da Carta aos brasileiros
(aliança preferencial com o capital financeiro, simbolizada pela presença, na
presidência do Banco Central, do deputado federal recém-eleito pelo PSDB
Henrique Meirelles, ex-presidente do Bank of Boston) e regressar à orientação
estabelecida pelo documento Uma ruptura necessária (que previa
uma aliança com setores “produtivos” da burguesia, simbolizados pela presença
de José Alencar na vice-presidência da República).
Ambas
orientações eram variações de uma linha politica que pressupunha uma aliança
com os capitalistas. Sendo que a variante Carta aos brasileiros era
mais conservadora (perpetuava a hegemonia neoliberal), enquanto a variante
Uma ruptura necessária era mais progressista (ampliava o espaço das
políticas sociais e de desenvolvimento).
Mas aquela
inflexão política tinha dois limites. Por um lado, não implicou numa ruptura
total com a política da Carta aos brasileiros. Duas provas
disto: o oligopólio financeiro continuou intocado e Henrique Meirelles
continuou presidindo o BC até 2010. Por outro lado, como o grande capital
industrial é altamente vinculado ao setor financeiro, os limites econômicos e
políticos explícitos na variante Carta aos brasileiros mais
cedo ou mais tarde também se verificariam quando da aplicação da variante
Uma ruptura necessária.
Teríamos
êxito, caso o Partido tivesse adotado outra estratégia já em 2005? Não sabemos
e não há como saber. Entretanto, sabemos que a inflexão feita, naquele ano, na
linha política do Partido permitiu uma melhoria substancial nas condições de
vida do povo, sem que para isso tivessem sido feitas reformas estruturais.
Permitiu, inclusive, enfrentar em melhores condições a crise internacional de
2008.
Destes e de
outros fatos, o grupo majoritário do Partido parece ter extraído a seguinte
“lição”: as reformas estruturais não seriam assim tão “estruturais”,
“estratégicas” e “indispensáveis”.
Embasado
naquela “lição”, o grupo majoritário reafirmou sua crença de que seria possível
ampliar o bem-estar, a democracia, a soberania e a integração, sem fazer
transformações estruturais, sem fazer rupturas.
Portanto, ao
aplicar a variável Uma ruptura necessária, o grupo majoritário voltou a
acreditar na possibilidade de fazer mudanças sem rupturas.
Ou, no caso
daqueles mais fiéis à retórica rupturista que marcou o PT dos anos 1980,
apresentavam cada medida adotada pelo governo como a “ruptura possível”, “a
ruptura realmente existente”. Sempre destacando que não seria no tempo de
duração de um ou dois ou três ou até quatro mandatos presidenciais, que se
conseguiria mudar a herança de séculos de história. Afirmação que desconsidera
o fato de que as grandes mudanças de rumo são feitas em pouco tempo, mesmo
quando sua materialização completa demanda muito tempo.
Qual lugar o
socialismo ocupava nesta estratégia? Isto dependia do que cada um entendia como
sendo o socialismo.
Os que
entendiam socialismo como um sistema de valores ou, ainda, como bem
estar social com democracia, consideravam que o socialismo já estava em
marcha (como chegou a afirmar a primeira versão do documento apresentado ao PED
de 2005 pela tendência Construindo um Novo Brasil).
Os que
entendiam que socialismo é uma sociedade em que os principais meios de produção
estão sob controle social, propunham postergar a luta pelo socialismo para um
segundo momento, quando considerassem que a correlação de forças fosse mais
favorável.
Os êxitos
concretos do segundo mandato de Lula explicam porque a força do grupo
majoritário do Partido, declinante no PED de 2005, voltou a crescer em 2007,
2009 e 2013.
Naqueles
três processos eleitorais, as fraudes e as distorções – intrínsecas ao processo
de eleição direta das direções partidárias, que reproduz vários dos problemas
existentes nos processos eleitorais tradicionais e, portanto, deve substituído
por um método que garanta a democracia interna – foram fatores complementares,
mas não essenciais, na vitória das chapas e candidaturas do grupo majoritário.
O essencial
é que este grupo conseguiu expressar, no interior do Partido, a opinião
majoritária dos setores organizados da classe trabalhadora brasileira. Que, por
sua vez, apoiava os êxitos do governo Lula e não enxergava o risco de uma
reversão (como a que está ocorrendo hoje), muito menos estava preocupada com o adiamento sem
data da luta pelo socialismo.
Diz um
ditado popular: o que não mata, fortalece. Poderíamos dizer também: o que não
fortalece, mata. A linha politica adotada pela tendência majoritária do Partido
contribuiu para as vitórias obtidas no período 1995-2016; mas também contribuiu
para as derrotas sofridas. Derrotas que incluem não apenas o desmanche do que
foi feito, mas o desmanche de muito mais. Neste sentido, é muito grave que
importantes dirigentes deste setor do Partido sejam incapazes de produzir uma
autocrítica e de formular uma alternativa estratégia para o Partido.
O
fortalecimento da crença na mudança sem ruptura foi acompanhado
pelo fortalecimento, em um setor da chamada esquerda petista – especialmente a
tendência Democracia Socialista – , da crença na revolução democrática com
republicanismo.
Através
dessa fórmula, um setor da esquerda petista foi pouco a pouco se adaptando ao
discurso dominante no Partido, através de uma variante que pretendia
“democratizar radicalmente o processo” e evitar seus “efeitos colaterais”
(promiscuidade na relação com o grande empresariado e alianças com partidos de
direita, por exemplo).
Num resumo
grosseiro, é como se combinando a variante Uma ruptura necessária com
altas doses de “participação popular”, fosse possível caminhar em direção ao
socialismo.
Mas, ao fim
e ao cabo, a “estratégia” da chamada revolução democrática nunca passou de uma
versão “descafeinada” da estratégia majoritária no Partido. Conciliação
e republicanismo são faces da mesma
ilusão de classe. A primeira se ilude acerca da classe capitalista, a
segunda se ilude quanto a neutralidade do Estado.
Apesar de “descafeinada”,
ou por isso mesmo, a revolução democrática com republicanismo
conseguiu atrair aqueles que – especialmente na intelectualidade simpatizante
do petismo – não queriam gastar tempo com debates estratégicos que muitas vezes
soam esotéricos ou dogmáticos.
Por outros
caminhos, o PCdoB e a Consulta Popular também foram se aproximando da
estratégia defendida pelo grupo majoritário do Partido.
No caso do
primeiro, não se pode falar propriamente de uma adaptação, mas sim da retomada
das formulações originais do próprio movimento comunista brasileiro:
enfatizando o tema da aliança com setores de centro, que seriam expressão da
burguesia nacional e industrial, o PCdoB voltava pouco a pouco à conhecida
teoria das duas etapas da revolução, a primeira democrática e de libertação
nacional, a segunda socialista.
Num certo
sentido, aliás, foi o grupo majoritário do PT que foi se aproximando das
posições adotadas pelo comunismo brasileiro antes do golpe de 1964. É bom
reconhecer que um passo importante desta aproximação conceitual foi feita já em
1993-1994, quando se conferiu ao “mercado interno de massas” um papel estruturante
no programa do Partido, seja porque nesta formulação torna-se secundário o
papel dos investimentos para o desenvolvimento da indústria de bens de capital
e para o desenvolvimento científico e tecnológico, seja porque estimula o
consumo de bens e serviços privados em detrimento da oferta massiva de bens e
serviços públicos. Naquele momento, a esquerda partidária (inclusive a AE) era
majoritária no Diretório Nacional do PT.
No caso da
Consulta Popular, pode-se falar de adaptação no sentido preciso da palavra.
Afinal, em meados dos anos 1990, os integrantes da Consulta Popular se
afastaram do PT e passaram a investir energias na construção de uma alternativa
partidária própria, de tipo não eleitoral. A formulação programática que
acompanhava a construção daquela alternativa partidária enfatizava a defesa da Nação
brasileira, dando centralidade à luta anti-imperialista e pela
soberania. Por este caminho, a Consulta foi construindo uma fórmula política em
que o socialismo era mantido como palavra de ordem, como horizonte, certamente
como “mística”, mas não mais como objetivo programático e estratégico real.
Sendo assim,
quando a gestão Lula tornou-se “defensável” do ponto de vista da Consulta, não
foi difícil mudar a postura frente ao governo, frente ao PT e – como vimos nos
últimos anos – não foi difícil nem mesmo aproximar-se da política do grupo
majoritário do Partido.
É importante
ressaltar que partiram da “esquerda republicana”, do PCdoB e da Consulta – e
não do grupo majoritário do PT – as principais tentativas de teorizar acerca do
que o segundo governo Lula estava fazendo. Uma destas tentativas já foi citada
por nós: a revolução democrática e
republicana. Outra é a teoria do neodesenvolvimentismo, que foi formulada
por intelectuais próximos à Consulta Popular.
O
neodesenvolvimentismo é uma “narrativa” e uma “denominação” que em nossa
opinião não condiz com os fatos. Como já foi explicitado algumas vezes, nos
governos Lula e Dilma não se quebrou a hegemonia do capital financeiro, não se
golpeou o rentismo nem se deteve a desindustrialização. Logo, nos parece
enganoso denominar de “desenvolvimentista” ou “neodesenvolvimentista” a
política realmente implementada pelos governos Lula e Dilma, inclusive a
política adotada no segundo mandato de Lula.
O crescimento
econômico e a melhoria nas condições de vida do povo, bem como as políticas que
estimularam ambos resultados, não chegaram ao ponto de superar a hegemonia
neoliberal. E a timidez das propostas acerca do capital financeiro mostra que
nunca se propuseram de fato a atingir aquele objetivo. Tanto a política
implementada quanto as diretrizes que a sustentaram sempre foram marcadas pela
conciliação com o capital financeiro, o capital transnacional e o agronegócio.
Sendo assim, falar de “neodesenvolvimentismo” é atribuir uma excessiva
“positividade” e coerência ao que foi efetivamente formulado e executado.
Esta
positividade era funcional para quem precisava pavimentar um caminho de
(re)aproximação com o governo e o próprio PT.
No caso da Consulta Popular, pode-se argumentar que falar de
“neodesenvolvimentismo” ajudou a fazer uma mudança de política, reaproximando-se
do PT sem a necessidade de uma autocrítica. Por outro lado, é importante
perceber que o “neodesenvolvimentismo” era compatível com a visão estratégica
da própria Consulta, tal como expressa – por exemplo – no documento “A opção brasileira”.
Que tenha
sido principalmente a intelectualidade vinculada ao PCdoB, a Consulta e a
esquerda republicana – ou as próprias organizações enquanto tal – a tentar
teorizar sobre os governos Lula e Dilma, é o que explica que parte importante
de nossas polêmicas digamos teóricas tenha se travado contra as teses
apresentadas por estes setores. Infelizmente, o grupo majoritário do PT
propriamente dito raramente teoriza acerca de sua prática. Neste terreno, assim
como nas finanças e na comunicação, predominou durante muito tempo a
terceirização. Mas é preciso estar atento para os sinais de surgimento de uma
“intelectualidade orgânica da CNB”, integrada não pelos quadros históricos que
vem da “época heróica” de formação do PT, mas sim por quadros que correspondem
a etapa atual, em que o grupo majoritário passou a atuar como “fração”, como
“partido dentro do partido”.
O período
2006-2010 também foi de grandes dificuldades para a esquerda socialista do PT.
A inflexão estratégica e seus efeitos benéficos reduziram o espaço e a
audiência da crítica de esquerda aos rumos seguidos pelo Partido. E também
conduziu crescentes setores da esquerda socialista do PT para uma adaptação à
política majoritária no Partido. Este é o motivo de fundo da cisão que a AE
sofreu em 2011, assim como é o motivo de fundo das tensões que a esquerda
socialista sofre na relação com seus parlamentares, tanto na condução cotidiana
dos mandatos quanto, principalmente, em épocas eleitorais. Tendo em conta estes
fatores objetivos e subjetivos, é relevante que a AE tenha conseguido
sobreviver a este período, mantendo níveis mínimos de organicidade e,
principalmente, tenha conseguido dar prosseguimento à sua orientação
estratégica e programática.
A inflexão
estratégica feita a partir de 2005 e até 2010 fez crescer a dificuldade
da esquerda antipetista, especialmente do PSOL e do PSTU. À medida que a
inflexão estratégica feita a partir de 2005 rendia seus frutos, crescia o apoio
ao PT e seus governos na classe trabalhadora; e reduzia o espaço para a
esquerda antipetista, a quem restava deslizar para um discurso voltado aos
setores médios. Na prática, estes setores antipetistas foram se convertendo
numa espécie de esquerda udenista, tanto no que diz respeito ao discurso,
quanto no que diz respeito à base social.
Assim, quando
esta esquerda antipetista precisou se posicionar diante da ofensiva do golpe, o
PSTU e algumas correntes do PSOL defenderam o “Fora Todos” e o PCB defendeu
“Nem fica, nem fora Dilma”, enquanto a maioria do PSOL e o PCO cerraram
fileiras contra o golpe. Neste processo, a militância que não concordava em se
somar ou se omitir diante do golpe saiu das organizações que tiveram esta
atitude. Exemplo disso foi a cisão do PSTU que criou o MAIS e ingressou no
PSOL.
Vale
destacar que a maior parte da esquerda brasileira – centenas de milhares ou até
mesmo alguns milhões de pessoas – está passando por uma intensa luta política e
ideológica. Em geral são pessoas que votaram, tiveram expectativas e inclusive
participaram ativamente do PT ou das campanhas desenvolvidas pelo Partido. Ao
mesmo tempo, tem críticas pontuais ou globais em relação ao PT realmente
existente, sem que isto impeça uma postura de solidariedade na luta contra o
governo Temer e contra a perseguição sofrida pelo Partido. Nosso grande esforço
deve ser buscar incluir estas milhares e milhões de pessoas no debate sobre o
futuro da luta pelo socialismo no Brasil.
Hoje sabemos
que a inflexão estratégica consagrada no PED de 2005 e reafirmada nas eleições
internas seguintes foi apenas parcial e temporariamente exitosa.
Teve êxito enquanto a burguesia estava obtendo ganhos com o comércio internacional,
com o crescimento do mercado interno e com a dívida pública. Mas assim que
mudou o ambiente internacional, a burguesia também mudou de atitude e passou a
exigir alterações imediatas na política dos nossos governos. Tais alterações implicariam em deixar de lado
a variante
Uma ruptura necessária e regressar à uma versão ainda mais extrema da variante
Carta aos brasileiros. E, à medida que o governo encabeçado pelo PT
resistiu a tal extremismo, a burguesia se orientou numa direção golpista.
Curiosamente,
tanto a “esquerda da esquerda” (PSTU, PSOL) quanto o grupo majoritário do PT
não consideraram a sério esta hipótese. Os primeiros, por achar que os governos
Lula e Dilma eram instrumentos do grande capital e do imperialismo, portanto
não haveria motivo para que estes buscassem derrubar seus supostos serviçais. O
segundo, por acreditar nos efeitos pacificadores que nossa conciliação de
classes supostamente produziria sobre a classe dominante, portanto tampouco
haveria motivo para que esta tentasse nos derrubar.
Durante o
primeiro mandato de Dilma Rousseff (2011-2014), nosso governo e nosso Partido
oscilaram entre duas alternativas impossíveis. Regressar à variante Carta aos brasileiros
implicaria em romper com parcela de nossa base social, tornando impossível nos
manter no governo. Tentar manter a variante Uma ruptura necessária
levaria a romper com o conjunto do grande capital (não apenas com o capital
financeiro), o que era impossível para uma linha que pressupunha uma aliança
estratégica com uma parte da burguesia.
Parte de
nosso partido atribuiu este ziguezague às idiossincrasias da presidenta Dilma,
sem perceber que a oscilação decorria da tentativa de manter a velha estratégia
num cenário em que aquela linha política não produzia mais os mesmos efeitos.
Com a queda na atividade econômica internacional, os diferentes setores do
capital atuantes no Brasil buscaram manter suas taxas de lucro através da
redução do custo direto e indireto da força de trabalho, o que envolve, entre
outros, a redução dos salários, o desmonte da legislação trabalhista e
previdenciária e a pressão para garantir o pagamento do serviço da dívida
pública mediante elevadas taxas de juros e do superávit primário. Além disso,
passou a atacar com muito mais força todas as ações dos governos Lula e Dilma
que partiam do pressuposto de “melhorar a vida dos pobres sem tocar no lucro
dos ricos”. Com a queda da arrecadação decorrente da queda da atividade
econômica, não havia mais espaço para que este pressuposto pudesse seguir
operando.
As mobilizações
de rua de 2013 – facilmente cooptadas por setores da direita, que fez uso do
antipartidarismo e outros chavões do senso comum sobre a política –, assim como
o crescimento nas greves econômicas no mesmo ano, foram em alguma medida
efeitos colaterais desta ofensiva da burguesia contra os avanços sociais
realizados especialmente a partir de 2006.
Frente ao acirramento da luta de classes, o governo Dilma fez diversos
movimentos, mas nenhum deles bem planejado, bem articulado e, principalmente,
nenhum supôs romper com a conciliação de classe.
A
incompreensão da mudança de postura da classe dominante e dos efeitos disto
sobre toda a luta de classes ficou clara, por exemplo: a) na surpresa do
Partido frente às manifestações de 2013, bem como na dificuldade de construir
não apenas uma resposta, mas também uma explicação (dificuldade que continua
até hoje, tema que será abordado num documento específico); b) num dos
argumentos apresentados em favor da substituição de Dilma por Lula, na disputa
das eleições de 2014: Lula saberia “dialogar” com o empresariado; c) na crença
de que Dilma poderia vencer a eleição no primeiro turno de 2014; d) na
suposição de que a “falta de diálogo” de Dilma com o parlamento foi a principal
responsável pela maioria pró-impeachment;
e) na insistência em manter o republicanismo, nas ambiguidades frente a
Operação Lava Jato, na redobrada retórica “em defesa do Estado de Direito”.
O que há de
comum no que foi citado anteriormente é a crença de que o “diálogo” e a
“conciliação” bastariam para impedir um confronto estratégico. Ou seja, a falta
de percepção de que a mesma burguesia que antes aceitava conviver conosco,
agora transitava para uma posição de não aceitar mais nossa presença no governo
federal – em alguns casos, não aceitava nem mesmo nossa existência – não
importando que concessões estivéssemos dispostos a fazer. Isto fica demonstrado
pelo fato de que o retorno à variante Carta aos Brasileiros logo após o segundo turno de 2014 não
resultou na moderação da burguesia, que passou a operar para a aniquilação do
PT e de suas lideranças. A Operação Lava Jato e o golpe foram instrumentos para
imposição da agenda neoliberal. No meio do caminho, alguns setores do capital
foram temporária e parcialmente sacrificados, como a construção civil, a
indústria naval, a agroindústria da carne, entre outros; mas o setor financeiro
se manteve, ao menos até agora, preservado.
A
dificuldade em entender o que estava ocorrendo não atingiu apenas o grupo
majoritário do PT. Aquela parcela da esquerda petista que havia adotado a tese
da revolução
democrática com republicanismo também se viu em dificuldades, seja por ter
grande presença no governo Dilma e, portanto, ser diretamente responsável por
algumas das políticas então adotadas; seja por ficar na defensiva frente ao
discurso adotado pela direita, segundo o qual o principal problema dos governos
petistas seria a corrupção, ou seja, a falta de republicanismo.
Vale lembrar
que depois da crise de 2005, cujo epicentro foi a denúncia do suposto
“mensalão”, cresceu a dependência das finanças partidárias frente ao grande
capital. E isto era do conhecimento de todos os setores do Partido,
especialmente daqueles com forte presença institucional. A esse respeito, reafirmamos
o que é dito na resolução “O PT e a luta contra a corrupção”, aprovada pela
direção nacional da AE, com destaque para os seguintes trechos:
Já em 2005, quando a direita fez o “ensaio geral” do que está fazendo
hoje, o Partido cometeu quatro erros fundamentais.
O primeiro e maior deles: manteve e inclusive aprofundou a dependência
do Partido frente ao financiamento privado empresarial.
O segundo erro foi não ter convertido a luta pela reforma política
em aspecto central da nossa linha política.
O terceiro erro foi ter deixado a investigação e o julgamento
totalmente nas mãos da Polícia, do Ministério Público e da Justiça, não
formando uma opinião própria, partidária, acerca dos fatos e dos casos sob
julgamento.
O quarto erro foi não ter criado uma corregedoria interna, que tivesse
como tarefa agir preventivamente frente a casos de corrupção.
Enquanto o Partido, através de seus órgãos dirigentes, cometia os erros
citados, a base filiada, social e eleitoral do Partido se dividia.
Parte de nossa base desconhecia completamente os mecanismos utilizados
para financiar as campanhas eleitorais e o próprio Partido, ficando chocada ao
descobrir o nível de promiscuidade e dependência frente ao dinheiro
empresarial.
A verdade é que as decisões adotadas em 1994, tanto acerca do
financiamento público do Partido, quanto acerca do financiamento empresarial
das campanhas eleitorais, não foram adequadamente debatidas nem com a base
partidária, nem com o conjunto da sociedade.
Outra parte da base partidária escolheu “naturalizar” o que estava
ocorrendo, na linha do “todos fazem”, sem perceber que este tipo de discurso é
mortal para um partido de esquerda, que se propõe exatamente a antecipar com
uma prática diferente o tipo de sociedade que almejamos no futuro.
Havia, também, aqueles que — percebendo os objetivos reais da campanha
midiática e judicial — adotaram uma linha segundo a qual os réus do
“mensalão” eram todos “vítimas”, que deveriam ser tratados como “presos
políticos”.
Independente das debilidades de cada uma destas e de outras
interpretações, o mais grave é que, passada a fase mais aguda da crise do
“mensalão”, o Partido limitou-se a aprovar uma resolução congressual a
respeito, sem aprofundar o debate e principalmente sem tomar medidas que
superassem a dependência frente ao financiamento empresarial e que engajassem
efetivamente o Partido na luta por uma reforma política.
O fato de termos sobrevivido à crise de 2005, bem como o fato de termos
vencido as eleições presidenciais de 2006, 2010 e 2014, fortaleceu em amplos
setores do Partido a impressão de que não era necessário adotar medidas que
tornassem o financiamento da atividade partidária algo independente tanto do
empresariado, quanto do fundo público.
Em 2014 o Partido era muito mais dependente em relação ao dinheiro
empresarial do que era em 2005. A contribuição militante, a venda de materiais,
as doações individuais ou coletivas de simpatizantes, tudo isto foi reduzido a
uma fração minúscula frente ao financiamento empresarial.[...]
Nos anos 1990, o PT passou a enfatizar em suas resoluções o tema da “ética
na política”. Mas isto ocorreu no mesmo período em que o PT relaxou nos seus
mecanismos de autofinanciamento, passando a depender cada vez mais do
financiamento público e do uso em larga escala do financiamento empresarial.
Vale dizer que este processo de adaptação afetou o conjunto do PT, mesmo que
tenha sido mais pronunciado em alguns setores do que outros.
Não é objeto desta resolução analisar os efeitos colaterais negativos do
financiamento público, entre os quais facilitar o abandono do caráter militante
da sustentação financeiro do Partido e aumentar sua dependência frente ao
Estado. Entretanto, apontamos a existência destes problemas e seu vínculo com o
financiamento empresarial privado, pois em última análise os dois tipos de
financiamento tendem a alterar a natureza de classe e a linha política do
Partido. Defendemos o financiamento público das campanhas eleitorais, mas
consideramos que partidos, assim como clubes e igrejas, devem ser financiados
exclusivamente pelos seus integrantes.
No que diz respeito ao financiamento empresarial privado, alguns
acreditavam que era possível manter-se imune àquela engrenagem corrupta e
corruptora; e/ou que poderiam utilizá-la a serviço de outros propósitos, que
não os da manutenção dos interesses do grande capital financiador; e/ou que não
havia outra alternativa, sob pena de perder as eleições para os que dispunham
do financiamento empresarial; e/ou que bastaria seguir a lei, como se o
problema de fundo estivesse no “caixa 2” e não no financiamento privado empresarial
como um todo.
Na esquerda
antipetista, por sua vez, ganhou mais espaço o udenismo: depois de Heloisa
Helena em 2006 e de Plínio Arruda em 2010, foi a vez da candidatura Luciana
Genro em 2014. Mesmo diante de uma clara ofensiva da direita, esta candidata –
expressando a postura majoritária no PSOL naquele momento – foi a de tomar o PT
como inimigo principal.
Com matizes,
no conjunto da esquerda antipetista havia a ilusão de que se a direita
derrotasse o PT, haveria espaço para o crescimento de uma esquerda verdadeira.
Esta ilusão se mantém até hoje, em parte dos que integram a chamada Frente Povo
Sem Medo, como é o caso de setores do PSOL e do MTST.
Na campanha
presidencial de 2014, Dilma e o conjunto do PT deram a entender que haviam
abandonado o ziguezague e que começariam uma mudança de estratégia, em favor
das reformas estruturais.
Mas, após as
eleições, a presidenta Dilma – com o respaldo ativo e/ou passivo do grupo
majoritário do PT – fez exatamente o contrário: retomou e aprofundou a variante
Carta aos brasileiros. O resultado, como não poderia deixar de ser, foi
a confusão política e a perda de nossa base social, criando as condições para o
processo de impeachment.
Evidentemente,
a leitura que se faz do período entre janeiro de 2015 e agosto de 2016 depende
dos “óculos estratégicos” usados por cada setor da esquerda.
Aqueles que
entendem que nossa derrota teve como causa principal um conjunto de erros de
natureza tática, direcionam suas críticas principalmente para as opções da
presidenta e de seu governo.
Aqueles que
entendem que nossa derrota teve como causa principal um conjunto de erros de
natureza estratégica, apontam que os erros da presidenta e de seu governo têm
sua origem na orientação estratégica adotada pelo Partido, orientação que desde
1995 não previa uma óbvia possibilidade: a de que a classe dominante não
aceitasse as mudanças, mesmo que elas viessem sem reformas estruturais e sem
rupturas.
A
incompreensão do significado ao mesmo tempo tático e estratégico do impeachment – e de que, portanto, o
conjunto da estratégia do PT deveria ser revista – explica parte da resistência
do grupo majoritário a realizar, ainda em 2015, um congresso partidário
extraordinário. Mas é bom lembrar que naquele ano a “esquerda republicana”
tampouco se empenhou neste sentido: na maior parte do Brasil, os delegados
vinculados a este setor não contribuíram para convocar um congresso
extraordinário, tal como previa e possibilitava o estatuto partidário.
É verdade
que a resistência do grupo majoritário a convocar um congresso partidário,
destinado a revisar nossa estratégia, também podia ter motivos mais prosaicos,
entre os quais manter os cargos e salários de alguns dirigentes. É verdade,
também, que havia argumentos de natureza combativa, tais como “concentrar
energias na luta contra o golpe”, “enfrentar e vencer as eleições 2016” etc.
Seja como for, o fato é que o congresso partidário foi realizado apenas em
junho de 2017. E, como já buscamos demonstrar, suas resoluções não resultaram
nem implicaram numa mudança efetiva da conduta estratégica da maioria do
Partido. Motivo pelo qual segue necessário enfrentar formular uma estratégia.
Decorre do
que dissemos até agora que não se trata de construir uma estratégia para mudar sem
rupturas; nem se trata de construir uma estratégia para fazer reformas
estruturais nos marcos do capitalismo; do que se trata é construir, na
teoria e na prática, uma estratégia que permita conquistar o poder
para iniciar a transição socialista.
No V e no VI
Encontro nacional, realizados em 1987 e 1989 respectivamente, o PT começou a
desenhar uma estratégia com este objetivo. Esta estratégia incluía um programa
democrático-popular e socialista; uma política de acumulação de forças, que articulava
luta e organização social, hegemonia cultural e organização partidária, disputa
de eleições e exercício de mandatos parlamentares e executivos; uma política de
alianças, que considerava a classe capitalista como inimiga estratégica; e uma
via de tomada do poder, que passava pela conquista do governo federal. Esta
estratégia mal começava a ser formulada e implementada, quando enfrentamos as
eleições presidenciais de 1989, a ofensiva neoliberal e a crise do socialismo
soviético.
Diante deste
tsunami de acontecimentos, com imensas implicações na cultura e na vida
objetiva de todas as classes sociais, o PT debateu entre 1990 e 1995 o que
fazer. Havia os que defendiam a manutenção da estratégia anterior, havia os que
defendiam fazer ajustes naquela estratégia e havia os que – argumentando não
existir mais retaguarda estratégia para implementar aquela política, ao mesmo
tempo que havia espaço para, ampliando a política de alianças, tornar-se
governo. Entre 1990 e 1995 o partido oscilou entre diferentes posições. Mas, a
partir de 1995, tornou-se majoritária a decisão de abandonar a estratégia
anterior. No lugar do programa democrático-popular e socialista, adotou de fato
um programa antineoliberal. No lugar da articulação das formas de luta, adotou
de fato uma política de acúmulo de forças centralmente institucional. No lugar
de uma política de alianças entre trabalhadores e pequenos proprietários,
adotou de fato uma política de alianças com setores do grande capital
industrial. E no lugar de uma via de conquista do poder, adotou de fato um
caminho para conquistar o governo. Esta orientação politica foi consolidada no
documento Uma ruptura necessária.
A partir da
Carta ao Povo Brasileiro, aprovada pelo voto da maioria do DN em 2002, em
oposição ao aprovado no XII Encontro Nacional do PT no ano anterior, houve uma
inflexão na linha política adotada desde 1995: o programa passou a admitir alto
nível de coexistência com o neoliberalismo; a política de alianças se estendeu
a setores do capital financeiro; a conquista do governo foi substituída pelo
exercício do governo, sem a pretensão nem mesmo de reformar o Estado. Estas
mudanças deram origem a uma “estratégia de poder” que de fato não merece este
nome, pois não se trata mais de uma estratégia, mas sim de uma sucessão de
táticas eleitorais. Nem se tratava mais de disputar o poder, mas sim de buscar
ganhar eleitoralmente governos.
Como
dissemos no início deste texto, esta “estratégia” (considerando tanto a variante
Uma ruptura necessária quanto a variante Carta aos brasileiros)
orientou o PT na disputa das eleições de 1998, 2002, 2006, 2010 e 2014. Nas
quatro últimas eleições, fomos vitoriosos. A “estratégia” também orientou a
ação do PT nos governos Lula e Dilma, com resultados insatisfatórios quando
observados no detalhe – especialmente no primeiro governo Lula e na fase
inicial do segundo governo Dilma – mas satisfatórios na média, em comparação
com governos anteriores. Portanto, do
ponto de vista das suas realizações, julgada à luz de seus próprios parâmetros,
não se pode dizer que tenha sido uma estratégia ineficaz. Salvo por um
“detalhe”: aquela estratégia não levava em conta, logo não preparou o Partido e
a classe trabalhadora para o que faria o outro lado.
Acontece que
este outro lado – a classe dos capitalistas e aliados – não se limitou a fazer
oposição e a tentar nos derrotar eleitoralmente. Se a classe dominante tivesse
se limitado a estas duas ações, uma eventual derrota eleitoral de nossa parte
não poderia ser considerada como uma derrota “estratégica”. Afinal, nos marcos
de uma “estratégia” eleitoral, uma derrota eleitoral “faz parte do jogo”. Se
fosse só isto, tampouco poderíamos falar da necessidade de mudar a estratégia.
Afinal, para usar uma analogia militar, perder uma batalha não obriga um Estado
Maior a concluir que uma determinada estratégia esteja incorreta.
Mas os
capitalistas e seus aliados não se limitaram a fazer oposição e a tentar nos
derrotar eleitoralmente. Foram muito além. Pressionados pelas mudanças no
cenário internacional, aproveitando os limites da estratégia do PT e fazendo
bom uso dos erros cometidos em sua aplicação, os capitalistas, dirigindo uma
coalizão integrada por partidos de direita, setores do aparato de Estado, pela
mídia oligopolizada e pela mobilização “coxinha”, promoveram o impeachment. Isto em si já constituía
uma mudança nas regras do jogo. Mas eles não pararam por aí. A classe
dominante, através do governo golpista, do parlamento e do judiciário, está
tomando medidas que, se forem levadas até o fim, vão dinamitar as bases que
tornavam factível uma estratégia de mudanças sem rupturas. Estas bases são: um
movimento sindical forte; um partido político legal e de massas; uma legislação
eleitoral que permitia a formação de bancadas parlamentares de esquerda
expressivas; o reconhecimento da possibilidade das lideranças da esquerda
disputarem e vencerem as eleições presidenciais; uma legislação que permitia
ampliar a oferta de políticas públicas; um aparato estatal que permitia
reorientar em alguma medida os investimentos privados; um patamar de
crescimento que permitia algum tipo de redistribuição de renda. Ao destruir ou
limitar tudo isto, a classe dominante está tornando inviável qualquer
estratégia que busque fazer mudanças sem rupturas. Importante dizer que isto não ocorre apenas
no Brasil, nem mesmo na América Latina: é um processo mundial. E reflete algo
mais profundo: a resistência do capitalismo contemporâneo à reforma de si
mesmo.
No momento,
o PT está travando uma batalha para tentar impedir que o golpismo tenha êxito.
Se sairmos vitoriosos desta batalha, a estratégia adotada entre 1995 e 2016
pode ganhar novo fôlego, mesmo que isto seja frágil e temporário. Mas se formos
derrotados nesta batalha, se o golpismo tiver êxito em interditar não apenas o
caminho eleitoral, mas inclusive as bases que tornava factível falar em
mudanças sem rupturas a partir de governos eleitos, o PT e o conjunto da
esquerda brasileira se verão diante da obrigação de explicar qual será sua
conduta estratégica. Entre outros, há três caminhos estratégicos postos no
debate.
O primeiro
deles é voltar ao status quo da
esquerda brasileira antes de 1980. Ou seja: a de força auxiliar dos setores de
centro, contra os setores de direita. No curto prazo, esta poderia ser uma das
decorrências da interdição de Lula e do eventual apoio do eleitorado de
esquerda a uma candidatura como a de Ciro Gomes, tal como parece pretender a
posição hegemônica no PCdoB. De maneira geral, uma das consequências imediatas
de uma eventual demolição do PT seria –
não a ascensão de outra esquerda com capacidade hegemônica – mas a redução da influência de toda a
esquerda. Ao se moverem tendo como objetivo a superação do PT, tanto a esquerda
udenista quanto setores da esquerda republicana podem acabar contribuindo, na
prática, para aquela subalternização. Que implicaria em adiar, para um futuro
longínquo e incerto, qualquer possibilidade de implementar um programa
democrático, popular e socialista. E significaria, também, que no médio e longo
prazo a classe trabalhadora teria que construir novas organizações, dispostas a
defender a independência da classe trabalhadora, seu programa e sua estratégia. Em resumo: no atual período histórico,
se o PT perder protagonismo, a classe trabalhadora e a esquerda também perderão
protagonismo. Isto pode acontecer independente de nossa vontade – ou até devido
à falta de vontade e de política do grupo atualmente majoritário no Partido.
Mas dedicaremos o melhor de nossos esforços para que não venha a ocorrer.
O segundo caminho
estratégico é desencadear uma campanha de desobediência civil ativa, urbana e
rural, na perspectiva não apenas de derrotar o golpismo e de retomar as
liberdades democráticas, mas também na perspectiva de derrubar o golpismo e
constituir um novo governo fundado na rebelião popular. Num certo sentido, é o
que se tentou fazer no final dos anos 1960 e início dos anos 1970. O êxito de
um caminho deste tipo dependeria de uma conjunção de fatores que hoje não estão
no horizonte visível: uma vanguarda disposta e preparada para assumir uma
postura de combate permanente; uma base social disposta a pelo menos servir de
retaguarda ativa para esta vanguarda; um aparato de Estado incapaz de reagir a
altura; um contexto internacional que dificulte a repressão. Na ausência destes
fatores, o mais provável é que um caminho deste tipo resulte no isolamento e na
destruição de uma parcela importante da vanguarda, debilitando as atuais
organizações da classe trabalhadora e tornando inevitável uma reorganização
geral no médio prazo.
Defendemos o
direito à desobediência civil frente a um governo ilegítimo, enquanto uma das
formas de resistência. Inclusive consideramos que, frente ao governo golpista,
ações mais duras de desobediência civil são necessárias. Entretanto, não consideramos
que a desobediência civil – em nenhuma de suas formas – constitua uma estratégia
de luta pelo poder.
Como já
ocorreu na história do Brasil, a esquerda pode ser forçada a lançar mão da
desobediência civil, enquanto forma limite de resistência, inclusive para não
se desmoralizar. Neste sentido, achamos legítima toda e qualquer forma de
resistência ao golpismo, individual e coletiva. Mas não se deve confundir a
legitimidade em última instância de uma forma de luta, com a conveniência
politica e a adequação estratégica desta mesma forma de luta. A desobediência
civil ativa só é conveniente e estrategicamente adequada quando adquire caráter
de massa, quando realmente é capaz de se converter em estopim de uma rebelião
popular capaz de derrubar um governo. E a desobediência civil só adquire
caráter de massa quando ela surge no contexto das lutas de massas, como
expressão da própria luta de massas. Quando as formas mais extremas de
desobediência civil são adotadas por grupos minoritários de vanguarda, que tentam
impor suas formas de luta ao movimento de massas, o resultado mais comum – ao
menos no caso do Brasil, mas também noutros países – tem sido o isolamento e ao
final a destruição destes grupos minoritários, gerando confusão no movimento de
massas e privando a esquerda de um número importante de quadros.
O caminho
estrategicamente adequado é aquele que possa ser trilhado pela classe
trabalhadora ou, pelo menos, por setores majoritários desta classe. Por isso
somos favoráveis a outro caminho estratégico: concentrar energias na oposição
politica e social, recuperar a inserção na classe trabalhadora, desencadear
mobilizações de massa que tenham como horizonte não apenas derrotar o governo,
mas também derrubar o Estado. Num certo sentido, é o que o movimento pró-PT e o
PT buscaram fazer no final dos anos 1970 e durante os anos 1980. Mas naquela
ocasião, desembocou num desfecho inesperado por grande parte dos que apostaram
na luta de massas como alternativa estratégica: a eleição presidencial de 1989.
Ou seja, o crescimento da luta de massas não desembocou numa rebelião popular
insurrecional, mas sim numa “disputa institucional”.
Nunca
saberemos o que teria ocorrido caso tivéssemos vencido aquelas eleições.
Provavelmente, um governo Lula empossado em 1990 se veria às voltas com
situações politicamente similares àquelas enfrentadas pelo governo Hugo Chávez
cerca de dez anos depois. Sabemos, também, que o impulso da luta de massas –
vindo desde o final dos anos 1970 – arrefeceu ao longo dos anos 1990, o que contribuiu
para que a maior parte da esquerda brasileira mudasse sua estratégia, colocando
em primeiro plano a chamada luta institucional. Esta mudança – da ênfase na
luta de massas, para a ênfase na luta institucional – não foi decorrência
automática de uma mudança na situação objetiva. Em boa medida foi, também,
decorrente de mudanças subjetivas na própria esquerda, mudanças subjetivas que
envolviam, ao mesmo tempo, certo entusiasmo pelas possibilidades eleitorais,
imensa preocupação com a ofensiva neoliberal e a defensiva provocada pela crise
do socialismo soviético. Elas afetaram a imagem que a esquerda tinha acerca do
socialismo, acerca da revolução e acerca do papel do partido. Impactaram a ação
dos governos municipais e a ação dos sindicatos. Ao fim e ao cabo, a maior
parte da esquerda brasileira, já então encabeçada pelo PT, escolheu transitar
de uma estratégia ancorada na luta de massas, para uma estratégia ancorada na
luta eleitoral.
No final dos
anos 1990 e no início da década seguinte, a experiência do governo Hugo Chávez
demonstrou que uma estratégia ancorada na luta eleitoral pode resultar num
governo popular, comprometido não apenas com a soberania nacional, com a
ampliação das liberdades democráticas e do bem estar social, mas também
comprometido com o socialismo. Mas Chávez teve a seu favor uma variável
decisiva: a possibilidade de, já na largada, contar com o apoio ativo de uma
parte das forças armadas e, portanto, reduzir as chances de êxito de um golpe.
Como esta variável não estava e pelo menos por enquanto não está colocada para
a esquerda brasileira, cabe responder de que forma consideramos possível
combinar luta de massas e luta eleitoral numa estratégia de conquista do poder.
Mesmo
deixando de lutar pelo poder e se contentando com a disputa de governos, parte
majoritária da esquerda brasileira manteve aquela combinação no plano da
retórica, mas na prática subordinou a luta de massas à luta eleitoral. Uma
prova disso é a quantidade de dirigentes sindicais e de movimentos sociais que
encaram os mandatos parlamentares e executivos como uma “etapa superior” de sua
“carreira” pessoal. Outra prova é a postura da maior parte de nossos governos,
em todos os níveis, que adotam uma postura arrogante frente aos movimentos
sociais. Uma terceira prova é o desaparecimento, na pauta das direções
partidárias, do debate cotidiano sobre o trabalho de massas, que foi
terceirizado para as organizações populares, sob o pretexto da “autonomia”. O
enfraquecimento dos núcleos de base do Partido é uma das causas e um dos
efeitos disto.
Outra parte
da esquerda brasileira tende a menosprezar a luta eleitoral, considerada ao
mesmo tempo inócua (não muda nada) e perigosa (pois coopta a esquerda). A
crítica ao “institucionalismo” é acompanhada de uma ênfase na luta de massas,
sob duas formas diferentes: o “movimentismo” e a “insurreição”. A orientação
movimentista endeusa os movimentos sociais, mas não consegue explicar como a
classe trabalhadora vai passar dos movimentos sociais para o exercício do
poder. A orientação insurrecional imagina a passagem da luta de massas para a
luta direta pelo poder, nos termos como isto ocorreu em Outubro de 1917, na
Rússia, numa situação muito particular, em que uma parte das forças armadas
apoiou a revolução e a insurreição. Não descartamos a possibilidade de que a
luta de massas no Brasil se converta numa rebelião popular direta. Mas a
experiência histórica brasileira dá vários indícios de que esta possibilidade
não é a mais provável. No Brasil, na maior parte das vezes em que a luta de classes
atingiu um ponto de fervura, isto envolveu algum tipo de combinação entre luta
de massas e luta eleitoral.
Entre 1989 e
2002, o Partido dos Trabalhadores – e com ele a maior parte da esquerda
brasileira – adotou uma estratégia que enfatizava crescentemente a importância
da disputa eleitoral. As resoluções do VI Encontro nacional do PT, de 1989,
apontavam para uma tentativa de repetir dois aspectos da experiência da Unidade
Popular chilena de 1970-1973: a partir de um governo eleito, implementar reformas
estruturais, que levariam a uma reação burguesa, que o governo popular
derrotaria, passando em seguida para uma nova etapa, a construção de uma área
de propriedade social e a construção de um Estado de novo tipo. Não sabemos no
que teria resultado esta tentativa, se tivéssemos vencido as eleições de 1989.
O que é certo é que, a partir de 1995, esta variável
chilena foi deixada de lado, em favor de algo mais prosaico: vencer as
eleições e implementar políticas públicas em benefício da maioria do povo,
tendo como perspectiva de médio e longo prazo uma transformação democrática e
popular. Hoje já sabemos que, mesmo prosaica, esta alternativa não é compatível
com a resistência que o capitalismo e a classe dominante brasileira oferecem à
qualquer tipo de “melhorismo”. Sendo assim, caso se considere a necessidade de
combinar luta de massas e luta eleitoral; e caso se recoloque a possibilidade
da esquerda brasileira governar o país, é preciso responder o que será feito
não apenas para transformar o Brasil, mas também o que será feito para tentar
impedir desfecho semelhante ao de agosto de 2016. Não se trata de propor uma
retomada do que defendíamos em 1989, nem tampouco imaginar que se possa repetir
a experiência chilena, mas desta vez com “final feliz”. Do que se trata é
estabelecer alguns parâmetros ou balizas estratégicas, que possam orientar
nossa ação política.
Em primeiro
lugar, entendemos que cabe recuperar a disposição de ser governo para ser
poder. Em termos práticos, ter como objetivo vencer eleições presidenciais e
eleger uma maioria parlamentar que permitam construir uma área de propriedade
social e um Estado de outro tipo.
Em segundo
lugar, trata-se de reafirmar o caráter socialista do nosso Partido e expressar
isto no programa de transformações que defendemos para o país. Nossa história,
as características de nossa sociedade, o lugar que ocupamos no mundo, o tipo de
capitalismo que hoje é internacionalmente hegemônico, além da própria crise do
capitalismo, indicam que apenas o socialismo tornará possível a ampliação do
bem-estar social, das liberdades democráticas, o desenvolvimento e a soberania
com integração regional.
Em terceiro lugar,
trata-se de reafirmar o caráter revolucionário do nosso Partido e da estratégia
que defendemos. Não devemos ser apenas um partido de oposição aos que governam,
devemos ser um partido de oposição antissistêmico, um partido anticapitalista,
um partido que tem por objetivo derrotar a classe dominante e construir outro
Estado, com democracia participativa e que expresse os interesses da
classe trabalhadora. Portanto, conquistado o governo, tomaremos medidas para
reformar profundamente o Estado. Mas mais do que isto, nossa participação nos
processos eleitorais, bem como em mandatos executivos e parlamentares, não nos
leva a abrir mão da defesa da revolução política e social, sempre que esta for
a vontade da maioria do povo.
A maior parte do Partido deixou de lado este
conjunto de intenções e compromissos, ao longo dos anos 1990, por um lado sob o
argumento de travar uma dura luta política e social contra o “inimigo
principal”, o neoliberalismo; por outro lado, como resultado de uma dura luta
interna, na qual prevaleceram pontos de vista “melhoristas”, ou seja,
concentrados em melhorar a vida do povo através de políticas públicas nos
marcos do capitalismo, não mais em transformar a sociedade brasileira através
de reformas estruturais articuladas com o socialismo. Hoje está posto fazer o
caminho oposto: travar uma dura luta política e social, mas também uma dura
luta interna, no sentido de fazer prevalecer a orientação de transformar a
sociedade brasileira através de reformas estruturais articuladas com o
socialismo.
Mas para que
estas mudanças sejam possíveis, é preciso combinar a ação do governo, a ação
parlamentar e a luta de massas. Embora não seja impossível e embora devamos
perseguir este objetivo, continuará sendo pouco provável que um governo popular
eleito seja acompanhado desde o início de uma maioria parlamentar de esquerda.
Portanto, é necessário construir as condições para uma “governabilidade de
outro tipo”. Na ausência disto, só restaria nos curvarmos à lógica da
governabilidade tradicional, tal como fizemos na maior parte dos governos Lula
e Dilma, pelo quê pagamos um preço alto até hoje.
Uma
governabilidade alternativa implica em articular a ação do governo central, de
suas bancadas e governos aliados, com a mobilização de massa impulsionada pelos
partidos de esquerda e organizações populares. O ponto central desta
governabilidade alternativa é, portanto, a constituição de uma articulação
permanente entre pelo menos a maior parte das organizações da esquerda política
e social, assim como os governantes e parlamentares populares. Tal articulação
tem que ter presença capilarizada em todas as regiões do país, não apenas territorial,
mas também nas escolas e universidades, locais de trabalho e de moradia.
Necessita dispor de capacidade de convocatória de massas. Deve construir uma
rede nacional de comunicação de massas, de educação e de cultura popular.
Precisa dispor de “serviços de ordem”, de informação e contrainformação capazes
de nos proteger dos grupos paramilitares de direita e de impedir ações isoladas
dos grupos anarquistas, com quem devemos travar uma disputa político-ideológica
para contrapor sua linha de ação. Em termos ideais, trata-se de construir um
“poder popular”, um “estado paralelo”, capaz de apoiar as ações do governo
popular, capaz de neutralizar as reações conservadoras que provenham de dentro
e de fora do aparato de Estado, capaz de tornar possível a desmontagem deste
Estado e a construção de um Estado de outro tipo.
Certamente
isto soará fantasioso para quem conhece o grau de improvisação artesanal que
prevalece em nossas organizações de massa, bem como nas duas experiências de
“articulação permanente” atualmente existentes: a Frente Brasil Popular e a
Frente Povo Sem Medo. Mas é aquele nível de organicidade que devemos perseguir,
se de fato estamos falando a sério em construir uma estratégia de poder que combine
luta de massas e luta eleitoral, que encare ser governo como parte da luta
para ser poder. Do contrário, estaremos submetidos à governabilidade
tradicional, impotentes frente a possível repetição do desenlace que vivemos em
agosto de 2016.
Importante
dizer que o processo de construção de uma “articulação permanente” daquele tipo
será longo e tortuoso, motivo pelo qual suas chances de êxito aumentam se ela
for construída desde já. Importante dizer, ainda, que embora esta frente não
seja em si eleitoral, são seus contornos que definem o arco de alianças da
disputa eleitoral. Noutras palavras: é preciso rever de alto a baixo a política
de alianças. Em primeiro lugar, distinguindo com nitidez
as alianças estratégicas das alianças táticas. Em segundo lugar, estabelecendo
critérios muito restritivos para as alianças táticas que venham a ser feitas
com setores que não são aliados estratégicos. Inclusive porque a experiência
tem demonstrado claramente que não vale a pena conquistar e/ou participar de
governos, se não for para tê-los como parte de uma estratégia global de
transformação social.
A única
forma de conter a ofensiva estratégica reacionária e vencer as batalhas táticas
consiste em transformar a maior parte do povo brasileiro numa força cujo poder
de mobilização seja capaz de impor derrotas às diversas frentes (governamental,
parlamentar, judiciária etc.) de atuação dos que pretendem liquidar os direitos
políticos e sociais democráticos e a soberania nacional. Por reconhecer isto,
grande parte da esquerda brasileira voltou a falar de “trabalho de base”. No
entanto, não há consenso acerca de como chegamos à situação atual, no que ela
consiste e que medidas adotar. Como tantas outras palavras e termos, “trabalho
de base” corre o risco de virar um chavão.
Até mesmo o
PT não está, hoje, enraizado como deveria no seio das classes populares, seja
em seus locais de trabalho ou de moradia. Em consequência, o trabalho de
organização dessas classes para lutar por seus direitos elementares foi
relativamente abandonado, perdendo-se grande parte dos laços orgânicos que
existiam entre o partido e aquelas camadas sociais. E a influência de Lula pode
ser neutralizada se a ofensiva reacionária de prendê-lo e impedir sua
candidatura tiver sucesso.
A atualmente
frágil relação orgânica entre a esquerda e os contingentes sociais que
constituem as principais massas populares se deve, em grande medida, ao fato da
esquerda haver abandonado ou enfraquecido seu trabalho com base em núcleos de
locais de trabalho, estudo e moradia como os principais instrumentos de
organização e de ação social. Tal abandono reflete também a
dificuldade da esquerda em identificar as novas formas de trabalho e quais parcelas da população atuam em cada setor.
A ausência
de organizações de base da própria esquerda enfraquece, por sua vez, o trabalho
nas organizações de massa (sindicatos, movimentos, em certa medida o próprio
PT). Não há hoje e não há faz certo tempo, um esforço contínuo para
estabelecer, enraizar e desenvolver as diversas formas de organização de base
da sociedade e participar ativamente delas para a conquista e manutenção dos
direitos, a partir dos elementares.
Como
resultado, as lutas e mobilizações massivas muitas vezes fazem grandes
barulhos, mas apresentam pouca eficácia. Não é raro que as mobilizações sejam espontâneas,
mal planejadas e com reduzido potencial, o que permite à repressão policial atacá-las. Em muitas situações setores das bases ou mesmo das vanguardas
tem optado por radicalizar com ações diretas de rua, montando barricadas e
caindo nas provocações das forças de segurança do Estado ou mesmo iniciando
enfrentamentos. Também tem ocorrido a infiltração de agentes do Estado para
realizar quebra-quebras e desmoralizar as manifestações.
É preciso compreender e debater nas organizações que a radicalização de
ações diretas de rua na atual conjuntura tem ajudado a esvaziar os atos. Uma
radicalização na tática, realizada por uma vanguarda desconectada do acúmulo
político e do estado de ânimo das massas, só contribui para o isolamento e
desmobilização. Também se faz necessário que o PT e os movimentos sociais
organizem serviços de autodefesa, ordem e segurança para garantir a realização
dos atos e debates e lidar com infiltrados, com as hordas fascistas e impedir
agressões aos manifestantes.
Em tais
condições, mesmo que o Partido venha a adotar uma estratégia e táticas corretas
para o momento histórico que o Brasil atravessa (outra condição essencial para
barrar a ofensiva reacionária), sem núcleos atuantes e estreitamente ligados às
organizações democráticas e populares de todos os tipos, não será possível
derrotar as forças reacionárias e garantir a preservação dos direitos
democráticos e populares.
Além disso,
é preciso considerar que a grande maioria das organizações de massa tem
limitações e dificuldades ainda maiores para organizar os trabalhadores e
trabalhadoras do setor informal, que apresentam um baixo nível de organização e
sindicalização.
Nas últimas décadas, o neoliberalismo promoveu
duas iniciativas combinadas: de um lado, uma ofensiva ideológica do
empreendedorismo individualista e meritocrático que estimula os trabalhadores e
trabalhadoras a serem “patrões de si mesmos”; de outro, o aumento da
informalidade, da precarização e da desregulação das relações de trabalho, uma
tendência que agora se aprofunda com a aprovação da terceirização irrestrita e
da antirreforma trabalhista. Hoje, são cerca de 22 milhões de pessoas na
informalidade, sendo que a maior
parcela é composta por mulheres e jovens, em especial as mulheres negras.
Para organizar as trabalhadoras, seja do
setor formal ou informal, é preciso construir uma cultura política que não
apenas incorpore as mulheres nos espaços de poder e decisão, por exemplo por
meio de instrumentos como a paridade, como também combater qualquer tipo de
violência contra as mulheres dentro e fora das organizações de massa.
Será
necessário correr contra o tempo para reestabelecer fortes laços com as
organizações sociais de base e se empenhar na criação dessas organizações onde
elas não existam, tendo como eixo principal a luta pelos direitos sociais
básicos, de modo a evitar que se concretize o perigo deles serem completamente atropelados
pela ofensiva reacionária.
Faz-se
necessário, portanto, um trabalho consistente no sentido de, através da própria
luta, elevar a consciência política e ampliar a participação massiva da classe
trabalhadora e dos setores populares, refletindo seus anseios, defendendo-os e
transformando-os numa ação poderosa. Este trabalho será possível apenas
se conhecermos, efetivamente, qual a realidade da classe trabalhadora, e
entendermos como deve ocorrer o diálogo com cada um dos diferentes grupos que a
compõe.
Apontamos ao
longo deste documento nossa crítica à estratégia e a tática adotada pelo nosso
Partido dos Trabalhadores, em seu recente 6º Congresso. Seguiremos defendendo
que o Partido altere sua estratégia, subordinando a esta nova estratégia as
diferentes orientações táticas demandadas pela conjuntura. Da mesma forma,
seguiremos insistindo na necessidade de alterar, mais que o funcionamento, o espírito
predominante no Partido.
Precisamos
de um partido enraizado na classe trabalhadora, presente em suas lutas
cotidianas e gerais, um partido de massas e militante, um partido que promova
os valores do socialismo e da revolução. A tendência petista Articulação de
Esquerda pretende dar uma modesta contribuição neste sentido. Em 2015 dissemos
ser necessário um “Partido para tempos de guerra”. Mas não foi isto o que ocorreu. Sofremos uma
derrota. Agora, sob condições piores do que antes, precisamos fazer com que
nosso Partido esteja à altura de vencer esta guerra.