O artigo abaixo foi escrito em dezembro de 2018, para a revista italiana Marxventuno. Seis meses depois, a revista acaba de ser publicada. Segue a versão original, em português.
As implicações estratégicas do giro à direita no Brasil
No dia 28 de outubro de 2018, Jair Messias Bolsonaro foi eleito presidente da República Federativa do Brasil. O novo presidente, conhecido popularmente pelo sobrenome Bolsonaro, é capitão da reserva do exército brasileiro, mas passou os últimos 28 anos como deputado federal. Ao longo de 7 mandatos consecutivos, notabilizou-se por defender posições racistas, misóginas, homofóbicas e de extrema-direita, tais como a defesa da ditadura militar, inclusive da tortura e do extermínio físico de militantes da esquerda brasileira.
Seja por defender publicamente este tipo de posição, seja pelo fato de sua candidatura ter sido lançada por um até então inexpressivo partido intitulado Partido Social Liberal (PSL), seja porque teria pouco tempo no horário eleitoral gratuito de rádio e televisão, a maioria dos analistas políticos de esquerda, centro e direita não acreditavam que Bolsonaro pudesse ir ao segundo turno e vencer as eleições presidenciais de 2018.
Cabe lembrar que nas eleições presidenciais de 1994, 1998, 2002, 2006, 2010 e 2014, a disputa fora polarizada pelo Partido dos Trabalhadores (PT) e pelo Partido da Social-Democracia Brasileira (PSDB). O PSDB vencera as eleições de 1994 e 1998. O PT vencera as eleições de 2002, 2006, 2010 e 2014. Este histórico indicava, ao menos supostamente, que as eleições de 2018 seriam outra vez polarizadas por estes dois partidos.
Era essa a aposta do PSDB, que no dia seguinte ao segundo turno das eleições presidenciais de 2014, decidiu desencadear um movimento pelo impeachment da presidenta Dilma Rousseff. Depois de perder quatro eleições presidenciais seguidas, o principal partido da burguesia brasileira chegou a conclusão de que seria muito difícil, através da via eleitoral, afastar o PT do governo federal. E apostou suas fichas numa ruptura institucional: o impeachment.
Cabe lembrar que o Brasil não é adepto do sistema parlamentarista. O Brasil é presidencialista. Portanto, para afastar o presidente da República, é preciso que este tenha cometido o chamado crime de responsabilidade. Melhor dizendo, é preciso que a maioria do Congresso Nacional entenda que o titular da presidência cometeu um crime de responsabilidade.
A Constituição brasileira define o crime de responsabilidade de maneira muito vaga. Mesmo assim, os juristas contratados pelo PSDB para elaborar a peça jurídica solicitando o impeachment tiveram que apelar para toda sua criatividade, formulando uma acusação que ficou conhecida no jargão político brasileiro como “pedalada fiscal”.
Há toda uma polêmica política, jornalística e jurídica acerca do que de fato teria ocorrido, se o que ocorreu de fato poderia ser tipificado como crime, se este crime podia ser considerado “crime de responsabilidade” e assim por diante. Para resumir a novela, logo depois do impeachment da presidenta Dilma Rousseff, o Congresso Nacional aprovou uma legislação legalizando aquilo que pouco antes denominara de “pedalada fiscal” e causa suficiente para afastar uma presidenta da República. Se isto não tivesse ocorrido, Michel Temer, que em 2010 e 2014 fora eleito vice-presidente e que ocupou a presidência depois que Dilma Rousseff foi afastada, também poderia ser acusado de ter cometido “crime de responsabilidade”.
Evidentemente, um “crime” orçamentário, que no caso em tela envolvia liberação de verbas de interesse popular, não é por si só suficiente para formar uma maioria parlamentar que aprove o impeachment de uma presidenta da República eleita com mais de 60 milhões de votos. Para que esta maioria parlamentar fosse formada, foram essenciais três elementos. Em primeiro lugar, a mobilização “contra a corrupção” de parte importante dos setores médios brasileiros. Em segundo lugar, a radicalização oposicionista da maior parte do grande empresariado capitalista. Em terceiro lugar, a decepção de parcela da classe trabalhadora.
Setores médios e corrupção
A corrupção é um tema da história brasileira desde a época da Colônia (1500-1822). No Brasil República (1889-2018), acusações de corrupção foram utilizadas pelos mais diferentes setores, para agredir seus respectivos adversários políticos. Mas foram principalmente os setores de direita que se notabilizaram por utilizar o tema, como o objetivo de desgastar e derrubar governos de orientação progressista, como os de Getúlio Vargas (1950-1954) e de João Goulart (1961-1964). No período mais recente, a acusação de corrupção também foi utilizada tanto pelos que defenderam o impeachment do neoliberal Fernando Collor (1989-1991), quanto da petista Dilma Rousseff (2011-2016).
Nos quatro casos citados, a mobilização contra a corrupção levou às ruas principalmente pessoas integrantes dos chamados setores médios. Assim como no caso do impeachment e da corrupção, há um imenso debate na academia, na imprensa e nos meios políticos, acerca do que seriam os setores médios (às vezes denominados de classes médias). Aqui neste texto utilizamos o termo “setores médios” para designar pessoas que integram um dos grupos a seguir relacionados: a) a classe dos trabalhadores pequenos proprietários, ou seja, proprietários de meios de produção que os exploram fundamentalmente com trabalho pessoal e familiar; b) uma fração da classe dos capitalistas, mais especificamente a fração dos pequenos capitalistas, ou seja, proprietários de meios de produção, que empregam trabalho assalariado, mas que dispõem de pequeno volume de capital e exploram pequeno número de assalariados, estando no limiar entre a classe dos capitalistas e a classe dos pequenos proprietários; c) uma fração da classe dos trabalhadores assalariados, ou seja, pessoas desprovidas de meios de produção, que vendem a sua força de trabalho em troca de um salário, mas que recebem um salário acima da média da classe trabalhadora, estando na fronteira entre a classe dos trabalhadores assalariados e a classe dos pequenos proprietários.
Os setores médios (trabalhadores assalariados de altos salários, trabalhadores pequenos proprietários, capitalistas de pequeno porte), embora provenham de três classes sociais diferentes (capitalistas, trabalhadores assalariados e trabalhadores pequenos proprietários), têm uma mentalidade política semelhante, especialmente na sua visão acerca dos setores da classe trabalhadora que recebem menores salários. Umaquestão essencial, que explica boa parte da semelhança citada, é: os setores médios são, em certo sentido, os maiores interessados em manter os salários baixos, as jornadas longas e os direitos trabalhistas reduzidos. Isto porque, diferente dos capitalistas de maior porte, os chamados setores médios têm muita dificuldade de lançar mão da produtividade como meio de compensar os ganhos salariais e os direitos conquistados pela classe trabalhadora.
Outra questão importante para entender a semelhança de mentalidade: no Brasil, os setores médios respondem por parte importante dos impostos pagos no Brasil. Eis um dos motivos pelos quais estes setores são muito facilmentesensibilizados pelo tema da corrupção. Evidentemente, nem de longe queremos afirmar que os setores médios sejam um bastião de honestidade e respeito à coisa pública. A verdade é muito distante disto. O que estamos dizendo é que, na mentalidade de grande parte dos setores médios, a corrupção pode envolver tanto o desvio de recursos públicos em favor do grande empresário, quanto pode envolver a política de transferência de renda em favor do trabalhador empobrecido. Para parte dos integrantes dossetores médios, tanto num caso quanto no outro, se está transferindo dinheiro “dele” (cidadão do setor médio) para outras camadas sociais. É por isso que a acusação de “corrupção”, lançada contra os governos Vargas, João Goulart, Lula e Dilma, foi aceita com tamanha facilidade por grande parte dos setores médios, mesmo que os dados, as estatísticas, os fatos, indicassem que a acusação não procedia ou, pelo menos, não procedia na escala alegada pelos acusadores.
No caso do PT e dos governos Lula e Dilma, os fatos não embasam a acusação de que eles sejam ou tenham sido “os mais corruptos do Brasil”. Porém, grande parte dos setores médios acredita piamente nisto. E o motivo é bastante simples: a acusação de “corrupção” lançada contra o PT mistura dois elementos diferentes. Por um lado, aquilo que podemos chamar de “corrupção” estrito senso (desvio de recursos públicos em favor de empresas privadas, através de agentes do Estado que recebem ilegalmente por favorecer aqueles desvios). Por outro lado, o emprego de recursos públicos, oriundos dos impostos pagos em grande medida pelos setores médios, para favorecer “gente que não merece”, evidentemente “não merece” na opinião de parcela dos setores médios. E que, além de “não merecer”, cobrariasalários mais altos do que antes, pois agora não estava mais sob ameaça direta da fome como antes, graças exatamente às políticas de transferência de renda e às políticas públicas em geral. No fundo, o que parte dos setores médios diz é que o PT e os governos Lula e Dilma teriam corrompido a finalidade do Estado. Vale dizer que esta acusação em si mesma também é um exagero, pois nos governos Lula e Dilma parte desproporcional do orçamento público continuou direcionado para os grandes capitalistas.
Por isto mesmo, alguém poderia se perguntar por qual motivo os setores médios não voltam sua raiva contra o setor financeiro. Afinal, o setor financeiro é, dentre todos os setores capitalistas, o que mais se beneficia das decisões do Estado brasileiro. É verdade que o faz de maneira “clean”: decisões aparentemente científicas, adotadas pelo Comitê de Política Monetária, aumentando em ponto vírgula alguma coisa a taxa de juros, transferem bilhões e bilhões de reais para os cofres do sistema financeiro. Mesmo assim, cabe perguntar: por quais motivos os setores médios não reclamam do desvio dos seus impostos, em favor do sistema financeiro, preferindo atacar as políticas públicas. Há vários motivos, mas um é essencial: os setores médios recebem, através de suas contas bancárias remuneradas, de suas poupanças e de suas aplicações, parcela daquilo que o grande capital financeiro abocanha. Mesmo que seja uma parcela pequena, funciona como um “cala boca”. Já os recursos públicos que vão para os setores populares geram benefícios indiretos: aumentam o poder de compra dos consumidores, é verdade, mas antes disso geram aumento nos salários. E o aumento nos salários não apenas amplia o custo pago pelos setores médios, como – desgraça das desgraças – permite que outros integrantes da classe trabalhadora (além daqueles que recebem altos salários) possam consumir bens que antes eram de acesso privativo dos setores médios. Portanto, fazendo com que certas marcas, certos serviços, deixem de ser símbolos de status privativos de um determinado segmento.
Mas é bom que se diga: nada disso que foi referido antes constitui um equívoco, uma “ilusão de ótica” dos setores médios, que estariam reclamando de fenômenos imaginários. Para comprovar isto, basta lembrar de uma frase repetida centenas de vezes pelo ex-presidente Luís Inácio Lula da Silva: no seu governo, os pobres melhoraram de vida e os ricos ganharam como nunca. A pergunta óbvia é: quem pagou a conta? E a resposta óbvia é: simbólica e materialmente, foram os setores médios. É por este motivo que, desde meados de 2003, os setores médios começaram a deslocar-se em direção à uma postura de oposição radical aos governos do PT. Não foi um processo homogêneo: alguns setores, em algumas regiões, em alguns momentos, fizeram este movimento antes. Além do mais, alguns fizeram este movimento com argumentos “de esquerda” e outros com argumentos “de direita”. Mas quando analisamos o fenômeno de conjunto, é perceptível que foi nos setores médios que ocorreu o primeiro deslocamento maciço de um segmento social em direção de uma postura de oposição cada vez mais radical ao petismo.
Precisava ter sido assim? Seria inevitável este giro oposicionista de grande parte dos setores médios? Em primeiro lugar, cabe reconhecer que o ocorrido no Brasil desde 2003, ocorreu de forma similar em outros países da América Latina e, também, em outros processos históricos marcados pela chegada de partidos de esquerda ao governo e/ou ao poder. Entretanto, talvez o fenômeno tivesse adquirido outras proporções se os governos petistas tivessem optado por conquistar os setores médios. Por exemplo, melhorando radicalmente as políticas públicas de saúde e educação, libertando os setores dos planos privados de saúde e das escolas privadas de primeiro e segundo grau. Ou desenvolvendo políticas de transporte público de massas de alta qualidade, que alterassem o modal de transporte, permitindo aos setores médios e ao conjunto da classe trabalhadora se mover de outra maneira, que não o carro privado. Ou desenvolvendo uma política de comunicação e cultura, que neutralizasse os ataques da direita e da extrema direita. Ou, principalmente, se os governos petistas tivessem travado a batalha por uma reforma tributária radical, incluindo a criação de um imposto sobre grandes fortunas, de maneira a financiar o progresso social dos setores populares através dos impostos pagos pelos setores realmente ricos da sociedade brasileira.
Claro que não sabemos, nem saberemos nunca, se políticas como as citadas poderiam ter neutralizado parcela expressiva da “raiva” que os setores médios tinham e seguem tendo do Partido dos Trabalhadores. Não sabemos nem mesmo se os governos petistas teriam êxito, caso tivessem tentado adotar tais políticas. O que sabemos é que não se tentou adotar tais políticas, ao menos não na escala necessária para enfrentar a batalha política e social armada no país desde 2003.
Afinal, uma análise rigorosa confirma que a melhoria no nível de vida dos setores populares foi “paga”, do ponto de vista econômico e social, em boa parte pelos setores médios. Esta é a base material da insurgência de grande parte desses setores, contra os governos petistas. E como se não bastasse esse elemento objetivo, há uma dimensão subjetiva: o PT foi pouco a pouco aderindo a um discurso segundo o qual suas políticas econômicas e sociais estavam tendo como resultado criar um “país de classe média”. Do ponto de vista científico, este discurso nunca teve o menor sentido. Afinal, o resultado agregado das políticas econômicas e sociais petistas, no seu melhor momento, não foi o de ampliar a “classe média”, mas sim o de ampliar os empregos, os salários e a capacidade de consumo de uma parte importante da classe trabalhadora. Os dados estatísticos que supostamente sustentavam as “teorias” acerca do “país de classe média” mostravam o oposto do pretendido, a saber, mostravam que crescia o número de trabalhadores que recebiam salários baixos. Trabalhadores e salários que, até do ponto de vista lógico, não estavam no “meio” de ninguém, nem de nada: nem “no meio” das grandes classes sociais, nem no meio da classe trabalhadora.
Entretanto, embora fosse um discurso sem embasamento científico ou lógico, a promessa de criar um “país de classe média” soava politicamente ameaçadora para os setores médios tradicionais. Dito de outra forma: este discurso apontava para uma ameaça de concorrência, potencial ou efetiva. Concorrência que era combatida, pelos setores médios influenciados pela direita política, com o discurso segundo o qual as políticas de “transferência de renda” eram “dinheiro para gente que não trabalha e não merece”. Concorrência que também era combatida pelos setores médios politicamente inclinados à esquerda, mas neste caso com o discurso segundo o qual as políticas de transferência de renda eram “meramente compensatórias”, métodos clientelistas típicos do populismo. O resultado político é que o discurso do “país de classe média” não conquistava os setores médios tradicionais, que não pretendiam abrir mão de seus privilégios relativos. Mas, o que é ainda pior, o discurso do “país de classe média” tampouco era útil no que diz respeito aos setores pobres que estavam ganhando empregos, salários e maior capacidade de consumo. Isto porque o discurso de classe média não convocava estes setores a se engajar no sindicato, nos partidos de esquerda, na luta social. Pelo contrário, convocava estes setores a se engajar no discurso da teologia da prosperidade, da ascensão individual, do progresso social como resultando da ampliação do consumo de bens comprados no mercado. Não é por outro motivo que uma pesquisa feita pela Fundação Perseu Abramo, entidade vinculada ao Partido dos Trabalhadores, revelava que os beneficiários das políticas sociais dos governos Lula e Dilma reputavam a melhoria de suas condições de vida a Deus, a família e a seu próprio esforço individual. Não a uma determinada política, não a um determinado governo, não a um determinado partido, nem mesmo a sua opção política em votar desta ou daquela forma. Noutros termos, podemos dizer que parcela dos setores populares, exatamente parte dos que melhoraram de vida durante os governos Lula e Dilma, passaram a se identificar mais e mais com os valores dos setores médiostradicionais. E, embora fossem beneficiados pelos governos Lula e Dilma, parcela desses setores populares estava preparada para mudar de posição política e voltar-se contra o PT, se e quando a situação econômica os fizesse perder os ganhos conquistados. Evidente que isto não vale para todos os setores beneficiados, mas vale para uma parte importante.
Tudo isto ajuda a entender a mobilização “contra a corrupção”, mais exatamente o engajamento nessa mobilização de grande parte dos setores médios brasileiros, tanto dos setores médios tradicionais quanto dos setores populares apelidados de “médios” devido à ampliação de sua capacidade de consumo durante os governos Lula e Dilma. Mas esta mobilização não foi suficiente para impor derrotas eleitorais ao PT em 2006, em 2010 e em 2014. Falemos agora da conversão oposicionista da maior parte do grande empresariado capitalista.
Grandes capitalistas e lucros
O Brasil ganhou forma no momento em que estava em curso a transição, na Europa, do feudalismo para o capitalismo. Desde então, o Brasil sempre esteve economicamente “atrasado” em relação às metrópoles do desenvolvimento capitalista (Inglaterra e Estados Unidos, por exemplo). Mas entre 1930 e 1980, a distância foi reduzida. Como em todos os países de desenvolvimento capitalista tardio, o Estado jogou um papel central na superação (mesmo que parcial) do atraso. Paradoxalmente, nunca foi tranquila a relação do empresariado capitalista com a política de desenvolvimento capitaneada pelo Estado. Pelo contrário, na massa dos empresários capitalistas sempre prevaleceu um discurso liberal, anti-Estado. A massa dos empresários capitalistas sempre esteve mais preocupada em manter a superexploração, resistindo o quanto pode contra a intervenção estatal, mesmo que esta comprovadamente resultasse em ganhos sistêmicos de produtividade.
A rigor, quem garantiu que o Estado jogasse um papel central no desenvolvimento capitalista no Brasil foi uma aliança entre pequena parte da classe dos capitalistas, com boa parcela das classes trabalhadores, mais precisamente parte daclasse dos trabalhadores pequenos proprietários e parte da classe dos trabalhadores assalariados.Nos momentos de intenso crescimento, a massa dos empresários capitalistas tolerava o protagonismo do Estado. Mas bastava o crescimento reduzir de intensidade, para a massa dos empresários capitalistas assumir seu discurso tradicional, pró-liberal, anti-Estado. Ou, dizendo de outra forma, passar a defender o Estado como sendo exclusiva e/ou principalmente instrumento de controle social sobre os pobres, não uminstrumento de desenvolvimento econômico social.
Tendo em vista esta atitude da classe dos capitalistas, seria bastante razoável que os trabalhadores assalariados e os trabalhadores pequenos proprietários usassem o Estado para implementar um tipo de desenvolvimento que não ficasse prisioneiro dos limites do capitalismo. E efetivamente houve alguns ensaios neste sentido. É o caso, por exemplo, da “função social da propriedade” estabelecida na Constituição brasileira, assim como do Sistema Único de Saúde ou do Estatuto da Cidade. Mas nunca passaram de ensaios. Nos três casos de governos progressistas que o Brasil experimentou (Vargas, Jango, Lula/Dilma) nunca se chegou perto de implementar uma reforma agrária que destruísse o latifúndio e impusesse limites ao agronegócio capitalista. Tampouco se implementou uma reforma tributária que impusesse limites ao enriquecimento. Nem se adotou uma reforma do sistema financeiro, que destruísse o oligopólio privado e no seu lugar estabelecesse o controle dos bancos públicos sobre as finanças nacionais. Muitos menos se adotaram medidas que submetessem a presença de empresas transnacionais aos interesses do desenvolvimento nacional e popular. E o papel das empresas estatais sempre foi mantido um ou mais degraus abaixo do necessário.
Vale dizer as medidas citadas acima, tomadas isoladamente ou quando efetivadas nas metrópoles imperialistas, são perfeitamente compatíveis com o capitalismo. Mas se adotadas sistematicamente e num país capitalista periférico, poderiam desencadear efeitos que iriam além dos limites do capitalismo. Talvez por isto mesmo, a coalizão de classe que sustentou cada um dos três governos progressistas citados no parágrafo anterior, nunca tentou implementar um programa que não ficasse prisioneiro dos limites do capitalismo realmente existente no Brasil. O argumento da hora variava, mas ele pode ser resumido na ideia de que seria prematuro o Brasil implementar um programa desta natureza. Afinal, como disse nos anos 1940 Luís Carlos Prestes, então secretário geral do Partido Comunista Brasileiro, o Brasil supostamente padeceria mais da falta do capitalismo, do que de seus efeitos.
O Partido dos Trabalhadores não fugiu a regra. Nos anos 1980, chegou a defender um programa democrático e popular articulado ao socialismo, assim como uma estratégia inspirada no governo da Unidade Popular chilena, que falava claramente em transição ao socialismo, através da construção de um Poder Popular e de uma área de propriedade socialista. Mas quando chegou à presidência da República, em 2002, já havia alterado tanto seu programa quanto sua estratégia. O programa passou a ser de superação do neoliberalismo, para colocar em seu lugar um capitalismo “produtivo”, que possibilitasse àclasse trabalhadora ter emprego, salários edireitos. E que permitisse ao Brasil recuperar posições perdidas no âmbito regional e mundial. Já a estratégia passou a ser de transformação lenta, segura e gradual do país, através dos processos eleitorais e da ação dos governos eleitos. O pressuposto desta nova estratégia e deste novo programa era, em linguagem popular, o seguinte: devagar se vai ao longe. Ou, como disse ao autor deste texto, nos anos 1990, o então secretário geral nacional do PT José Dirceu: faremos sucessivos governos progressistas, até que consigamos fazer um governo democrático e popular.
Nos anos 1990, a lógica econômica que embasava aquele programa e estratégia era a tese de que a ampliação do mercado consumidor de massaspermitiria, ao mesmo tempo, elevar o nível de vida do povo e conquistar o apoio dos capitalistas. Uma versão tupiniquim do fordismo, onde os trabalhadores teriam empregos e salários razoáveis, e os empresários teriam lucros crescentes. A questão é saber se aquele padrão de capitalismo, que sustentou a social-democracia europeia nos anos de ouro (1950-1970), era viável no Brasil do século XXI. Afinal, nos anos de ouro havia por um lado a “ameaça” do campo socialista, de outro lado a força da classe trabalhadora europeia ocidental. E havia, principalmente, um fato estrutural: os países capitalistas europeus faziam parte do polo imperialista do mundo. No Brasil do século XXI, não havia nada disto. O campo socialista havia derretido e a China estava empreendendo um caminho com efeitos muito contraditórios sobre a periferia do mundo. A classe trabalhadora na Europa Ocidental, nos Estados Unidos e também na América Latina amargava os efeitos de uma ou duas décadas de neoliberalismo. E, principalmente, o Brasil nunca fez parte do polo imperialista do mundo. Mesmo no seu entorno, as eventuais “ambições subimperialistas” do Brasil eram contidas pela presença de adversários muito mais poderosos.
Estes limitadores históricos e estruturais não impediram os governos Lula e Dilma de implementar, com maior ou menor sucesso, políticas que melhoraram a vida da maior parte do povo brasileiro. Mas a classe dos capitalistas brasileiros só tolerou isto enquanto ela pode manter altas taxas de lucro, possibilitadas pelo chamado boom das commodities. A crise de 2008 e a subsequente alteração na relação entre China e Estados Unidos transformaram o cenário mundial, contribuindo para que a classe dos capitalistas brasileiros voltasse ao seu “modo normal de ser”: liberal,anti-Estado e dependente, não apenas dependente das metrópoles capitalistas, mas principalmente dependente da super-exploração das classes trabalhadoras.
É por isso que, a partir de 2011, a maior parte dos capitalistas brasileiros foi evoluindo de uma política de “convivência pacífica” para uma posição de oposição total e intolerante frente ao PT. Ou seja, aproximando-se das posições que eram predominantes desde antes nos setores médios. Grande parte da esquerda brasileira demorou a dar-se conta disto. Até 2016, havia quem dissesse que os capitalistas não tinham interesse no impeachment. E mesmo em 2018, havia quem dissesse que o empresariado brasileiro não apoiaria um “aventureiro” como Bolsonaro.Mas a verdade é outra. Como deixaram claro várias pessoas do mercado financeiro, em entrevistas concedidas ao jornalista Cristiano Romero do jornal Valor, o Brasil estaria precisando de um governo estilo Pinochet. E esta posição não é apenas do setor financeiro. O conjunto da classe capitalista brasileiro voltou, entre 2015 e 2018, ao seu modo normal de ser, o que ajuda a entender a potência demonstrada, neste período, pelas mobilizações contra o PT: nelas passou a existir uma coalizão entre parte importante dos setores médios brasileiros e do grande empresariado capitalista. Mas esta coalizão não foi suficiente para vencer as eleições de 2014. Vejamos agora o que houve com a classe trabalhadora.
A virada de 2015
Lula foi eleito presidente da República em 2002. Em 2006 foi reeleito com maior votação, mesmo diante de uma campanha de acusações de corrupção. Em 2010 foi a vez da eleição de Dilma Roussef. Que foi reeleita em 2014. Quando olhamos a evolução das votações (em percentual de votos válidos) obtidas pelas candidaturas do PT, no segundo turno das eleições presidenciais de 2002, 2006, 2010 e 2014, fica claro o movimento de conjunto. Lula teve 61% dos votos válidos em 2002, Lula teve 60% dos votos válidos em 2006, Dilma teve 56% dos votos válidos em 2010, Dilma teve 51% dos votos válidos em 2014.
A queda de dez pontos percentuais, entre 2002 e 2014, resulta em parte dos movimentos já relatados, ocorridos entre os setores médios e entre os capitalistas. Mas, como é óbvio, os capitalistas e os setores médios tradicionais no Brasil não reúnem 49% do eleitorado brasileiro. A verdade é que grande parte dos que votaram nas candidaturas do PSDB, nas eleições presidenciais realizadas entre 2002 e 2014, são integrantes das classes trabalhadores. Já a maior parte dos que votaram nas candidaturas do PT, nestas mesmas eleições, são integrantes das classes trabalhadoras. E em 2014, foram essencialmente os trabalhadores (pequenos proprietários ou assalariados) que sufragaram Dilma Rousseff do PT.
Apesar disso, ou por causa disso, a presidenta Dilma Rousseff iniciou o seu segundo mandato tentando reatar pontes com o grande empresariado. Nomeou para seu ministro da Fazenda um quadro do sistema financeiro. E adotou uma política monetária que, em reunião do Diretório Nacional do PT ocorrida nos dias 31 de novembro e 1 de dezembro de 2018, a própria Dilma classificou como “neoliberal”. A expectativa da presidenta era, supostamente, recompor a aliança policlassista que havia sustentado os governos do PT desde 2003. Mas o resultado foi um desastre. Não atraiu os capitalistas, nem os setores médios tradicionais. Mas afastou setores da classe trabalhadora, que em 2014 haviam votado em Dilma e no PT para derrotar a direita. Contribuindo em alguma medida para o ocorrido em 2018, quando a candidatura do PT recebeu 45% dos votos.
O PT teria perdido a eleição presidencial de 2018 de qualquer maneira? Não há uma resposta 100% precisa para esta questão. O que podemos dizer com absoluta certeza é que o impeachment só foi vitorioso no Congresso Nacional porque, além da oposição do grande empresariado capitalista e dos setores médios tradicionais, o PT e o governo Dilma Rousseff perderam o apoio que tinham, até então, na maioria da classe trabalhadora. Uma parte dos trabalhadores que até então apoiavam o PT bandeou-se para a oposição, outra parte “lavou as mãos”. Criou-se assim o ambiente político sem o qual o impeachment não teria sido vitorioso.Entretanto, por qual motivo a oposição de centro, direita e extrema-direita optou pelo impeachment? Por qual motivo não aguardaram até as eleições de 2018, para impor uma derrota eleitoral “normal” ao PT?
Vale dizer que foi isso que o PT escolheu fazer em 1999. Em 1998 o presidente Fernando Henrique Cardoso fora reeleito no primeiro turno, mas logo em seguida promoveu uma desvalorização da moeda nacional e buscou um mega empréstimo junto ao Fundo Monetário Internacional. Isto, somado ao fato de Fernando Henrique Cardoso ter comprado os votos necessários para aprovar a reeleição presidencial, eram motivo político mais do que suficiente para pedir o impeachment.Entretanto, a maioria dos delegados e das delegadas presentes ao 2º Congresso Nacional do Partido dos Trabalhadores (realizado em 1999) decidiu que não pediria o impeachment e escolheu correr o risco de disputar e ganhar (ou perder) as eleições de 2002.
Em 2015-2016 o PSDB escolheu não correr o risco e decidiu defender o impeachment. Por quais motivos? Um dos motivos é que o PSDB escolhera correr o risco quando da crise política de 2005, quando tudo indicava que o PT estaria liquidado e que Lula seria derrotado nas próximas eleições. Mas, naquela ocasião, o PSDB foi novamente derrotado por Lula, que venceu as eleições presidenciais de 2006. Outro motivo é que as pesquisas de opinião, em 2014 e 2015, mostravam que Lula continuava a ser um forte candidato para as eleições presidenciais de 2018. E que parte do eleitorado popular que se recusara a votar em Dilma e também aquela parte que votara, mas se decepcionara em 2015, poderia votar em Lula para presidente. Isto contribuiu para que, em 2015-2016, o PSDB escolhesse não correr o risco. E escolhesse, também, não se limitar ao impeachment. O PSDB reforçou brutalmente a campanha de estigmatização e criminalização midiática e judiciária contra o PT. E deu total apoio para a condenação e a prisão ilegal de Lula, cometida em abril de 2018. O objetivo era mais do que claro: tirar o PT do comando da máquina governamental e tirar o candidato mais forte do PT da disputa eleitoral. Mais ou menos como, num jogo de futebol, conseguir que o juiz dê cartão vermelho para metade dos jogadores do time adversário, inclusive para o goleiro.
Portanto, podemos dizer com a mais absoluta certeza que o centro, a direita e a extrema direita não acreditavam que o PT perderia de qualquer maneira a eleição presidencial de 2018. Se acreditassem nisso, não teriam cometido oimpeachment, não teriam condenado e prendido Lula, não teriam impedido Lula de ser o candidato do PT. Dito de outra maneira: apesar dos erros cometidos pelo PT e pelos governos encabeçados pelo PT, havia uma parte da classe trabalhadora que estava disposta a votar na candidatura petista à presidência. Nas piores condições possíveis, esta parcela alcançou, nas eleições presidenciais de 2018, 47 milhões de votantes e 45% dos votos válidos. É por isso que grande parte do PT acredita que, se Lula tivesse sido candidato, provavelmente teria vencido as eleições presidenciais.
O desastre do PSDB e a extrema direita
Pelas razões já citadas, tanto o PT quanto o PSDB – ou pelo menos grande parte de seus respectivos quadros dirigentes – imaginavam que a eleição de 2018 seria mais um enfrentamento entre os dois partidos. Mas não foi. O PSDB, ao escolher o caminho do impeachment, da prisão e da condenação de Lula, empurrou o país um ambiente de extrema polarização. E contribuiu para que o PT estivesse num dos extremos desta polarização. O PT, ao resistir ao golpe e a prisão de Lula, ao denunciar a condenação e ao manter a candidatura de Lula até o limite do limite, bem como ao fazer oposição radical ao governo Temer, também fez a sua parte para ser um dos extremos da polarização política e social vigente no Brasil.Já o PSDB não conseguiu manter-se como o outro extremo da polarização. O motivo disto é muito simples: para criar o ambiente político necessário para o golpe contra Dilma e para a condenação e prisão de Lula, a Social Democracia Brasileira teve que convocar a extrema-direita para o primeiro plano da política nacional. Ao mesmo tempo, o PSDB – derrotado nas eleições presidenciais de 2016 – tornou-se sócio poderoso do governo Temer, que desde os primeiro até o último momento implementou um programa econômico e social desastroso, que o tornou profundamente impopular. Impopularidade que contaminou o PSDB e também o Movimento Democrático Brasileiro (MDB), este último o partido de Temer. Ou seja: a política do PSDB inviabilizou suas próprias chances eleitorais, ao tempo que projetou e fortaleceu seu “substituto”: a extrema direita, encabeçada por Jair Bolsonaro.
Bolsonaro ganharia as eleições de qualquer maneira? Novamente não há uma resposta 100% segura para esta questão. O que pode ser dito é que todas as pesquisas de opinião feitas até setembro de 2018 indicavam que Lula seria vitorioso nas eleições presidenciais. Aliás, é por isso que – de maneira totalmente ilegal e contrariando decisão liminar aprovada pela ONU – o Tribunal Superior Eleitoral cassou a candidatura Lula. As pesquisas de opinião também indicavam que a candidatura de Fernando Haddad, pessoa escolhida por Lula para substituí-lo na disputa eleitoral, conseguiu empatar com a candidatura de Bolsonaro.
É mais ou menos nesse momento de empatevirtual, que ocorrem quatro fenômenos que provavelmente decidiram o resultado das eleições presidenciais de 2018: 1) o engajamento total, na campanha de Bolsonaro, das empresas-disfarçadas-de-igreja; 2) o “voto útil” dos eleitores de centro-direita e direita, que migraram de outros candidatos em direção a Jair Bolsonaro, na expectativa de liquidar a fatura já no primeiro turno, com medo de perderem a eleição para o PT se ocorresse segundo turno; 3) o atentado contra Bolsonaro, sobre o qual pesam dúvidas até hoje, mas que foi fundamental para cristalizar seu eleitorado e neutralizar ataques de adversários; 4) a ampliação da campanha ilegal de envio de mensagens através das chamadas redes sociais.
O PT, que até então imaginava (ao menos majoritariamente) que seu adversário no segundo turno seria o PSDB, se deu conta naquele momento que teria que enfrentar uma candidatura da extrema direita. E foi aí que a campanha de Fernando Haddad cometeu, entre o final do primeiro turno e em parte do segundo turno, um erro fatal: ao invés de continuar priorizando a disputa do voto popular, começou a priorizar a disputa do votos dos setores médios e dos setores de centro. Este erro tinha como pressuposto uma visão equivocada acerca do que é, nas condições da política brasileira, uma “frente em defesa da democracia e contra o fascismo”. No Brasil, como já ficou demonstrado no passado e voltou a ser demonstrado nas eleições de 2018, os setores de centro e os setores médios não são consequentes na defesa da democracia. Portanto, seja para ganhar eleições contra a direita, seja para impedir um golpe da direita, tudo depende da mobilização das classes populares. Não se dando conta disto, pressionada pelo avanço da extrema-direita, a campanha de Fernando Haddad ziguezagueou entre uma campanha prioritariamente voltada aos setores populares e uma campanha voltada a disputar os setores médios e de centro. Acontece que os setores de centro, na sua maioria, lavaram as mãos: os dois maiores símbolos disto são o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso e o candidato à presidência Ciro Gomes, que não declaram voto nem fizeram campanha a favor de Haddad, nem fizeram campanha contra Bolsonaro. Já a extrema direita não teve dúvida alguma: concentrou seu discurso, tanto no primeiro quanto no segundo turno, nos setores populares. Exatamente aqueles que serão as maiores vítimas do governo Bolsonaro.
Mudança de regime e um novo período histórico
Este artigo está sendo finalizado pouco antes do presidente Bolsonaro ser oficialmente empossado, o que deve ocorrer no dia 1 de janeiro de 2019.Entretanto, as medidas anunciadas e os nomes indicados para compor o futuro ministério confirmam que estaremos diante de um governo profundamente autoritário, submisso aos Estados Unidos e ultraliberal.
Bolsonaro presidente promete seguir a mesma linha de Bolsonaro candidato: uma retórica violenta, de apologia do uso de armas, elogios àditadura militar, promotor de intolerância contra quem pensa diferente, sinalizando que vai tentar destruir os direitos humanos, as liberdades civis e democráticas da maioria do povo brasileiro. Por ter como objetivo declarado eliminar os oponentes, assim como por defender abertamente o uso de métodos ilegais e paramilitares de repressão, muitos setores da esquerda brasileira consideram que Bolsonaro seria neofascista. Mas o que é seguro é que estaremos diante de um governo visceralmente autoritário.
Bolsonaro nomeou para chanceler um diplomata de carreira, defensor do “choque de civilizações”, do “Ocidente cristão”, inimigo tanto do marxismo quanto do iluminismo e da fase jacobina da Revolução Francesa de 1789. Tanto o chanceler indicado quanto Bolsonaro e seu clã familiar vêm fazendo seguidos ataques contra Cuba, ao mesmo tempo que elogiam as posições dos governos dos Estados Unidos e de Israel. A isso se somam posições contrárias à soberania sobre a base de lançamento de foguetes de Alcântara, assim como ao controle nacional sobre a Amazônia brasileira. Tudo isto, mais a trajetória pregressa de Bolsonaro, confirmam que estamos diante de um governo entreguista, inimigo da paz e da integração regional, que pretende submeter profundamente o Brasil aos interesses dos Estados Unidos.
Bolsonaro escolheu como ministro responsável pela área econômica um “Chicago Boy”, defensor de posturas ultraliberais. Ao mesmo tempo, acabou com o Ministério do Trabalho, ato de um simbolismo sem igual. Trata-se de um governo que trabalhará ativamente para aumentar nossadependência externa, a financeirização, a desindustrialização e a primarização de nossa pauta exportadora, suprimir nossas políticas sociais, especialmente de empregos, salários, previdência, saúde, educação e habitação. Por razões já explicadas anteriormente, um país como o Brasil só se desenvolverá e principalmente só reduzirá as desigualdades sociais e regionais, se o Estado ocupar lugar central no planejamento, na indução e no investimento. Portanto, mesmo que no curto prazo não se deva descartar a possibilidade de ocorrer algum crescimentoeconômico, a tendência é de que ocorra uma piora generalizada nas condições de vida da maioria da população, inclusive porque já está ocorrendo um colapso dos serviços públicos em grande número de cidades e estados brasileiros.
Agora, tão importante quanto analisar o que fará ou deixará de fazer o governo Bolsonaro no plano das políticas públicas, é compreender qual seu lugar na história do Brasil. Acerca disso, há diferentes opiniões entre a intelectualidade e os partidos políticos que não apoiaram Bolsonaro, nem no primeiro, nem no segundo turno das eleições. A principal polêmica diz respeito ao seguinte: saber se as eleições de 2018 encerraram, ou não, o período histórico aberto na segunda metade dos anos 1980, com o fim da Ditadura, com a edição de uma nova Constituição em 1988 e com as eleições diretas de 1989 para a Presidência da República.
Os setores da esquerda que afirmam que não houve mudança de período histórico apresentam uma série de argumentos, entre os quais: o PT levou sua candidatura ao segundo turno e recebeu 47 milhões de votos ou 45% dos votos válidos; o PT elegeu a maior bancada na Câmara dos Deputados, 4 governadores de estado, 4 senadores e um grande número de deputados estaduais; foi o único dentre os principais partidos do país a sobreviver ao “tsunami” das eleições de 2018; confirmou dispor de uma militância excepcional e de imenso prestígio popular, especialmente no Nordeste do Brasil.
Contudo, estes resultados positivos obtidos pelo PT (ao qual devem se somar os resultados de outros partidos de esquerda e centro-esquerda) não alteram o resultado global das eleições de 2018. Depois de 4 eleições presidenciais seguidas, em que a candidatura do PT ficava em primeiro lugar no primeiro e no segundo turno, em 2018 o PT ficou no segundo lugar tanto no primeiro quanto no segundo turno. Além disso, obteve uma votação menor, em números absolutos e relativos, do que aquela obtida em cada uma das 4 eleições presidenciais anteriores.
Nas eleições para a Câmara dos Deputados, embora tenha mantido a primeira bancada e superado com larga vantagem os agora ex-grandes partidos (PSDB e MDB), o fato é que a bancada de deputados e deputadas do PT é inferior a todas que este partido elegeu desde 2002. No Senado, o PT também retrocedeu. Nas eleições para governador, embora tenha reafirmado suadianteira na região nordeste (governadores petistas em 4 dos 9 estados, além de ter participado da coligação vitoriosa em 9 dos 9 estados), o PT sofreu derrotas importantes em todo o país. Perdeu em dois estados que governava (Minas Gerais e Acre) e reduziu suavotação em estados política e eleitoralmente fundamentais (Rio de Janeiro, São Paulo, Rio Grande do Sul). No segundo turno, a candidatura de Fernando Haddad foi vitoriosa no maior número de cidades. Entretanto, quando consideramos o número de habitantes e o número de eleitores, a candidatura de Bolsonaro foi vitoriosa nas maiores cidades do país. De conjunto, portanto, os resultados eleitorais confirmam a força do PT, mas confirmam também que o PT recuou em relação a eleições anteriores. E tudo indica que este recuo eleitoral pode prosseguir, caso Bolsonaro e seus apoiadores tenham êxitos em sua ação e caso o PT não promova alterações na sua política e na sua conduta.
A tese sustentada neste artigo é que a eleição de Bolsonaro marca o fim de um período e o início de outro. E na base disto está o fato de que a maior parte da classe dominante brasileira – o empresariado capitalista -- alterou sua estratégia. Desde 1989 até 2014, esta classe majoritariamente tolerou, ainda que a contragosto, que a esquerda brasileira, liderada pelo PT, pudesse ser uma alternativa de governo. A partir de 2014, a maior parte da classe dominante passou a rejeitar tal possibilidade. E agora segue dando sinais claros de que vai operar para destruir as bases que possibilitaram, à esquerda brasileira, conquistar governos e governar.
Portanto, mais importante de que constatar que o governo Bolsonaro será autoritário, entreguista e ultraliberal, é perceber que seu papel histórico, do ponto de vista dos interesses da classe dominante brasileira, é reduzir ao mínimo o espaço político da esquerda brasileira. Para isso, o governo Bolsonaro implementará um plano sistemático de destruição das liberdades democráticas, ou seja, de todos os espaços, organizações e leis que permitiram que -- desde 1989 até 2014 -- a esquerda brasileira fosse alternativa de governo e pudesse “sonhar” em se converter em alternativa de poder. Estão na mira do governo Bolsonaro: os sindicatos e as centrais sindicais; os movimentos sociais urbanos e rurais; os partidos de esquerda, especialmente o Partido dos Trabalhadores; os direitos de mobilização e luta; e as próprias ideias de esquerda, que estão sendo estigmatizadas, perseguidas e criminalizadas. E, ninguém se iluda quanto a isso, também estão na mira do governo Bolsonaro a vida e a liberdade dos militantes da esquerda brasileira. E isso não é assim, apenas porque Bolsonaro é de extrema-direita. Isso é assim, principalmente, porque Bolsonaro é um instrumento adequado às opções feitas pela maior parte da classe dominante brasileira e de seus aliados nos setores médios tradicionais.
Depois de um período (1989-2014) em que aceitaram que a esquerda disputasse, vencesse e governasse o país, entramos em um período em que a maior parte da classe dominante brasileira não aceita que a esquerda possa disputar o governo nacional com chances de vitória, nem que possa ter meios de governar em favor das maiorias. Por isso operam para destruir os meios que tornavam possível ambas coisas: uma legislação que permite realizar políticas públicas estruturais em benefício da maioria; instituições de Estado que permitam executar estas políticas; um partido com força e presença nacionais; uma rede de movimentos sociais, populares e sindical com liberdade para lutar; um conjunto de ideias que cimentam um campo de forças democrático, popular e nacional.
E por quais motivos a classe dominante brasileira não aceita mais o regime político inaugurado em 1988? Essencialmente porque, em decorrência dos efeitos da crise de 2008 e da política em seguida adotada pelos EUA, houve uma redução noslucros dos grandes capitalistas brasileiros. E uma maneira de compensar isto era reduzindo os custos de produção, mais exatamente reduzindo a parcela da riqueza que fica com as classes trabalhadoras, diretamente ou através dos impostos pagos ao Estado para financiar políticas e serviços públicos, aposentadorias etransferências de renda. Mas para reduzir o salário direto e indireto dos trabalhadores assalariados e a parcela equivalente dos trabalhadores pequenos proprietários, era necessário reduzir as liberdades democráticas, reprimir os movimentos sociais, destruir o movimento sindical e popular, criminalizar a esquerda partidária e nossas ideias. Noutros palavras, era necessário “mudar de regime político”.
A mudança de regime irá até que ponto? Uma ditadura militar clássica? Um neofascismo tupiniquim? Não há como saber, até porque isso dependerá em parte da situação internacional, em parte da resistência oferecida pela esquerda e pelas classes trabalhadoras. Seja como for, provavelmente desde dezembro de 2014 e com certeza desde o final de outubro de 2018, o desafio posto para o conjunto da esquerda brasileira é qualitativamente diferente daquele enfrentado entre 1989 e 2019. E como o ponto de virada está ligado a crise de 2008, é fundamental perceber seus desdobramentos e ensinamentos.
Capitalismo e socialismo
A crise de 2008 e tudo aquilo que ocorreu depois confirmaram duas hipóteses. Primeiro, que o capitalismo em sua forma atual é extremamente instável, propenso a crises brutais, que se desdobram em guerras comerciais, políticas, culturais e militares. Segundo, que o capitalismo em sua forma atual tem baixa capacidade de reformar a si mesmo. Pelo contrário, opera para destruir as instituições estatais e não estatais que poderiam contribuir para uma reforma do próprio capitalismo. Dito de outra forma: é cada vez menor a chance de convivência pacífica entre o capitalismo, as políticas de bem estar social e as liberdades democráticas. Assim como é cada vez menor a chance de convivência pacífica das grandes potências entre si e destas frente aos países periféricos.
A luta entre as classes e a luta entre os Estados tendem ao acirramento. Parte da esquerda já sabia disto, antes de 2008. Mas parte da esquerda não acreditava nisto, antes de 2008. E segue semquerer acreditar, mesmo depois de 2018. Por isso mesmo, esta parte da esquerda continua deixando o socialismo na “fila de espera”. Antes, fazia isso porque considerava que o socialismo não seria necessário ou pelo menos não seria urgente. Afinal, do ponto de vista deste setor da esquerda brasileira, o país estaria supostamente conseguindo avançar, melhorar a vida do povo, ampliar as liberdades, afirmar a soberania, construir a integração regional, mudar pouco a pouco o mundo, mesmo que sem tocar nas bases estruturais do capitalismo existente no Brasil. E agora, depois do golpe de 2016 e da eleição de Bolsonaro, aquele setor da esquerda defende continuar mantendo o socialismo na “fila de espera”, porque pensa que a luta pelo socialismo não seria realista, factível na conjuntura atual. Afinal, dizem, a classe trabalhadora estariaperdendo tudo o que conquistou antes, logo a tarefa seria resistir, impedir o desmonte, recuperar o terreno perdido. E depois, quem sabe, quando tudo voltar ao normal, recolocar na ordem do dia bandeiras de mais longo prazo, tais como o socialismo. O jeito de pensar resumido nas linhas anteriores converte o socialismo em absolutamente nada. Pois ele não seria necessário quanto a classe trabalhadora está forte e não seria possível quanto a classe trabalhadora está fraca. Portanto, não serviria para nada, salvo para falar coisas bonitas em dias de festa.
Evidente que é possível conquistar muitos avanços, muitas reformas sociais e políticas, sem colocar em questão a propriedade privada sobre os meios de produção e sobre os instrumentos de poder. Mas a experiência latino-americana (1998-2018) e, antes disso, a experiência da social-democracia europeia (1945-1991), demonstram que a sobrevivência das reformas e dos avanços depende não do capitalismo, mas sim da correlação de forças entre a classe capitalista e as classes trabalhadoras. E por mais que as classestrabalhadoras melhorem suas posições, se elas não avançarem sobre a propriedade dos meios de produção e dos instrumentos de poder, os capitalistas sempre terão os meios para colocar as coisas no seu devido lugar. Por isso é que o tema do socialismo, entendido aqui no sentido de uma estratégia que visa fazer a classe trabalhadora construir e conquistar os meios de produção e os instrumentos de poder, é um tema inescapável para quem queira não apenas fazer mudanças mais ou menos superficiais, mas também transformações mais profundas e sustentáveis.
Claro, adotar como objetivo o socialismo, nos termos resumidos no parágrafo anterior, não garante o sucesso. O maior exemplo disto é a experiência da Unidade Popular chilena, protagonizada por partidos de esquerda que diziam claramente que seu objetivo era construir o socialismo, através da instituição de uma área de propriedade social e de um poder popular. Mas aqueles partidos tinham, ao menos majoritariamente, ilusões acerca do compromisso das forças armadas chilenas com a legalidade e a Constituição. Ilusões estas que contribuíram para que a experiência da Unidade Popular fosse derrotada de forma bárbara.
Se clareza acerca do objetivo estratégico não garante vitória, não ter claro o objetivo estratégico é garantia de derrota, mais cedo ou mais tarde, seja de que forma for. Por isso, embora a esquerda brasileira esteja hoje numa situação de defensiva, ela precisa enfrentar o problema estratégico, tanto no plano teórico quanto prático.
As formas de luta, o governo e o poder
O golpe de 2016 confirmou duas hipóteses. Primeiro, que o fato de um partido de esquerda ter conseguido conquistar o governo federal, mesmo que por quatro vezes seguidas, não é igual ou equivalente a este mesmo partido (e muito menos a classe trabalhadora) conquistar o poder. Segundo, confirmou que para defender ou para derrubar um governo eleito, é essencial combinar luta institucional com mobilização social, uma vez que parcelas fundamentais do aparato de Estado obedecem aos interesses da classe dominante. As duas ideias são quase obvias e é provável que grande parte da esquerda brasileira concorde com ambas. Entretanto, quando se trata de tirar consequências práticas destas ideias, a esquerda brasileira se divide em diferentes posições.
Alguns setores argumentam, por exemplo, que entre 2003 e 2014 a esquerda brasileira não tinha correlação de forças para fazer muito além do que priorizou fazer: disputar eleições, governar,implementar políticas públicas. Argumentam que se a esquerda tivesse tentado fazer mudanças que ultrapassassem estes limites, teria sido derrubada do governo! Acontece que a esquerda brasileira disputou eleições presidenciais em 1989, 1994 e 1998; ganhou as eleições presidenciais de 2002, 2006, 2010 e 2014; sempre respeitou as leis e as instituições, não fez nada além do permitido pela Constituição e, em muitos casos, ficou aquém do que a Constituição previa. Entretanto, apesar deste comportamento ordeiro, a esquerda foi derrubadaassim mesmo.
Portanto, ou bem a esquerda brasileira escolher mudar de lado e passar a defender o programa da centro-direita, na esperança de agindo assim poder governar em paz com as classes dominantes. Ou bem a esquerda brasileira discute qual a estratégia adequada para acumular forças, conquistar governos, usar estes governos como instrumentos de transformações mais profundas, e também como impedir que ocorram futuros golpes vitoriosos.
Discutir a estratégia significa, no fundamental, definir como articular as oito variáveis citadas a seguir: a luta cultural, a luta social, a luta eleitoral-institucional, a auto-organização da classe, as relações internacionais, a política de alianças, o programa e a questão do poder. Como é óbvio, há sobre cada um destes pontos uma enorme polêmica na esquerda brasileira. Uma das posições existentes, que coincide com a interpretação do autor deste artigo, sustenta que a esquerda deveria:
1) estabelecer como objetivo a conquista do poder, isto é, converter as classes trabalhadoras em classes dominantes, não se contentando em ser governo e sem ter ilusões no caráter supostamente neutro do aparato estatal;
2) construir um programa de transformações para o Brasil que combine medidas democrático-populares com medidas socialistas, isto é, que combine medidas em favor das classes trabalhadoras com medidas que restrinjamseveramente a propriedade dos capitalistas;
3) abandonar a ilusão em que a classe capitalista, ou qualquer uma de suas frações, é ou pode vir a ser aliada estratégica das classes trabalhadoras. Ou, em outras palavras, a esquerda deveriaabandonar a ideia de que seria correto ter como objetivo estratégico a construção, no Brasil, de um "capitalismo democrático e popular". A aliança capaz de transformar o Brasil seria entre a classe dos trabalhadores assalariados e a classe dos pequenos trabalhadores proprietários;
4) perceber que a política de alianças inclui, também, governos, partidos e movimentos de outros países, especialmente da América Latina. Sobre isso, a esquerda brasileira possui muitas experiências importantes, como o Foro de São Paulo, criado em 1990. Mas torna-se necessário que a esquerda entenda melhor a diferença entre a política externa do país e a política de relações internacionais do governo; a diferença entre os aliados regionais e os aliados de outras regiões do mundo; a diferença entre estar aberta ao diálogo com todos os setores "progressistas" e a necessidade de construir alianças estratégicas com a esquerda antiimperialista e socialista; a diferença entre a China e os Estados Unidos; e, por último, mas não menos importante, é necessário levar em consideração a diferença de tradições entre a esquerda brasileira e o restante da esquerda latino-americana e caribenha. Vale ressaltar que há muitos setores da esquerda na América Latina, assim como na Europa e nos EUA, que têm dificuldade em entender as peculiaridades históricas do Brasil e do PT;
5) colocar no mais alto nível de importância a) a auto-organização da classe, através de seus diferentes instrumentos, com ênfase nos sindicatos e no partido político e b) a luta cultural, necessária para construir uma consciência de classe socialista-revolucionário, democrático-radical e nacional-popular;
6) entender que a luta social (a mobilização independente das classes trabalhadoras em torno de seus objetivos imediatos), a luta eleitoral (a disputa por espaços no aparato estatal, pelos partidos ligados às classes trabalhadoras) e a ação institucional (dos mandatos, governos e de outras instituições do Estado conquistadas através da luta eleitoral) são diferentes formas que a luta de classes assume, sendo necessário analisar concretamente a centralidade de cada uma e a relação entre elas, a cada momento dado.
Portanto, do ponto de vista tático, a esquerda não deveria fetichizar as chamadas formas de luta. Não deveria dar à institucionalidade o status de dimensão/espaço prioritário, acima de tudo e de todos. Nem deveria pensar que toda e qualquer luta social seria produto do alinhamento dos astros, devendo estar no centro de toda a existência da esquerda. Já do ponto de vista estratégico, é preciso reconhecer que a "luta social" é superior à "luta eleitoral-institucional", simplesmente porque que esta última é em si mesma uma mediação entre a classe trabalhadora e a institucionalidade burguesa. Portanto, um terreno onde a classe trabalhadora está sujeita a dois princípios liberais: o princípio do "voto individual" que supostamente iguala a todos; e o princípio da predominância do menos consciente sobre o mais consciente. A luta eleitoral e a ação institucional operam em um terreno construído e controlado, ao menos no fundamental, pela classe dominante. Portanto, enquanto esse controle não for substancialmente modificado, a institucionalidade continuará a ser um espaço a ser parcialmente conquistado pelas classes trabalhadoras, mas a partir "de fora" e tendo como o objetivo mudar tudo.
Conclui-se que, nesse sentido estratégico, a luta social é mais importante para a classe trabalhadora do que a luta eleitoral-institucional. Os que dentro da esquerda são oponentes dessa afirmação, frequentemente argumentam que a experiência regional latino-americana, desde 1998, teria comprovado a importância da disputa eleitoral e do exercício dos governos para toda a esquerda latino-americana. Mas é preciso lembrar quatro “detalhes”. Primeiro, que a conquista dos governos esteve diretamente ligada à acumulaçãode forças que a esquerda de cada país fez, em outras áreas além da eleitoral. Segundo, que os avanços proporcionados pelos governos progressistas e de esquerda na América Latina estavam relacionados, em alguma medida, à força que a esquerda tinha fora das instituições. Terceiro, que a capacidade dos governos de resistir aos ataques internos (da classe dominante de cada país) e externos (dos Estados Unidos e seus aliados) também está relacionada à força e capacidade de mobilização que a esquerda de cada país tem na sociedade. Quarto, que sofremos derrotas importantes na região, em alguns casos derrotas vinculadas a superestimação do “institucional” frente ao “social”.
No Brasil, desde 1995, mas especialmente entre 2002 e 2014, predominou em parte da esquerda a ideia de que a luta eleitoral e a ação do governo seriam “formas superiores”, mais avançadas que a luta social, a luta cultural e a auto-organização da classe. Para ser mais exato, predominou na prática uma superestimação da luta eleitoral e da ação institucional, deixando em segundo ou terceiro plano tudo que estivesse relacionado à auto-organização da classe, à luta cultural e às lutas sociais. Claro que havia, também, um setor minoritário de esquerda que subestimava a importância das disputas eleitorais, subestimava a importância de governar o país, superestimava e fetichizava toda e qualquer luta e movimento social. Mas o golpe de 2016, a prisão de Lula e a eleição de Bolsonaro não podem ser imputados aos erros e preconceitos da ultra-esquerda, podendo isto sim ser relacionados às opções derivadas de uma estratégia eleitoral e institucionalista.
O golpe de 2016, o apoio da classe dominante a Bolsonaro e toda a ofensiva que vem sendo movida contra a esquerda brasileira estão, obviamente, relacionados ao fato desta esquerda representar os interesses dos setores populares e também porque a ação concreta desta esquerda, quando esteve no governo, incomodava efetiva ou potencialmente a classe dominante. Mas o golpe de 2016 e o que veio depois, se tinham como motivo e objetivo atacar os acertos da esquerda brasileira, só foram bem sucedidos devido aos erros da esquerda brasileira. E entre esses erros está, sem dúvida, uma estratégia que acreditava no Estado como um espaço neutro e prioritário para o acúmulo de forças. Nas palavras de um importante ex-ministro do governo Lula, uma visão que encarava o Partido dos Trabalhadores como parte integrante do aparato estatal e não, como deveria ser, uma alternativa sistêmica.
Se a esquerda brasileira quiser voltar ao governo, e se não quiser - uma vez no governo - ter o mesmo destino que teve em 2016-2018, então esta esquerda precisa formular uma estratégia adequada ao novo período histórico. O que inclui combinar as disputas eleitorais e a presença nos governos, com a construção das condições para ser poder. Naturalmente, este tipo de raciocínio pode parecer contrário ao senso comum: quando estamos mais fracos, é quando precisamos de uma estratégica mais radical, mais socialista, mais voltada a disputa do poder. Mas é exatamente isto: a esquerda está chamada a se mover em uma direção diferente daquela indicada pelo senso comum. Quando se trata de definir orientações táticas, é fundamental considerar o senso comum. Mas o mesmo não é verdade quando se trata de definir orientações estratégicas, porque elas visam definir o caminho em direção a objetivos que por enquanto não fazem parte do senso comum das pessoas.
O sentido estratégico do giro a direita no Brasil
A coalizão vencedora nas eleições presidenciais de 2018 no Brasil é encabeçada por Bolsonaro e pela extrema-direita, mas inclui a maior parte da classe dominante brasileira (os empresários capitalistas), parte expressiva dos setores médios (assalariados de alta renda e empresários capitalistas de pequeno e médio porte), parte expressiva do aparato de Estado (com destaque para o sistema judiciário, as forças armadas e as policiais militares), o oligopólio da mídia e seus associados, a maior parte da base social e eleitoral dos partidos de centro-direita (MDB e PSDB inclusive) e, por último mas não menos importante, os governos e as comunidades de inteligência dos Estados Unidos e de Israel. Foi esta ampla coalizão que conseguiu promover o impeachment/golpe contra a presidenta Dilma Rousseff; conseguiu condenar, prender e interditar a candidatura de Lula; conseguiu atrair o voto departe das classes trabalhadoras e conseguiu que outra parte se abstivesse de votar.
Por todos os motivos expostos ao longo deste artigo, as eleições de 2018 constituem uma derrota eleitoral, revelam uma derrota estratégica e, além disso, confirmam uma vez mais o esgotamento da estratégia adotada até aqui pelo Partido dos Trabalhadores e pela maior parte da esquerda brasileira. Desde 1995, prevaleceu no PT e na maior parte da esquerda brasileira a mesma “ilusão estratégia”: a de que seria possível buscar e materializar certos objetivos de médio prazo -- bem estar, democracia, soberania e integração -- e ao mesmo tempo “conviver” – ainda que de maneira mais ou menos conflituosa -- com a classe dominante e com seus instrumentos de poder.
Por causa daquela ilusão estratégica, não foram poucos os que disseram que o golpe não viria, que Lula não seria preso, que Bolsonaro não se elegeria, tudo porque o empresariado capitalista e seus principais operadores não embarcariam nestas “aventuras”. Curiosamente, a extrema-direita nunca acreditou na sinceridade dos iludidos e sempre achou que havia, por detrás de nossa postura predominantemente moderada, uma sórdida conspiração em marcha, uma “revolução silenciosa”, “gramscista”, urdida por uma articulação entre o PT e o Foro de São Paulo, para converter o Brasil em um instrumento de implementação da “URSAL”.
A vida demonstrou o contrário das ilusões: para o empresariado capitalista, o “estratégico” é fazer o Brasil voltar à “normalidade”. E a “normalidade”, em nosso país, é uma esquerda política e social frágil, incapaz de garantir os direitos sociais e políticos que foram conquistados pela classe trabalhadora no Brasil e noutras regiões do mundo. A crença socialdemocrata nas possibilidades de convivência entre capitalismo e democracia, a crença republicana no caráter neutro do Estado e de seus aparatos, a crença ecumênica acerca da coexistência pacífica entre democracia, oligopólio da mídia e fundamentalismo, a crença liberal no bom comportamento dos Estados Unidos, integram o pano de fundo da estratégia adotada pelo PT e pela maior parte da esquerda brasileira nas últimas décadas. Mas a postura predominante no empresariado capitalista brasileiro, em seus sócios internacionais e também nos “setores médios tradicionais”, não é a da conciliação de classe. Embora em alguns momentos, determinados setores e porta-vozes do grande empresariado tenham estabelecido relações amistosas com governos e lideranças de esquerda, o que predominou ao fim e ao cabo foi o mesmo que em toda nossa histórica: o máximo de exploração, com o mínimo de bem estar, liberdades e soberania.
O sucesso da nova estratégia dos capitalistas impõe aos trabalhadores brasileiros que também mudem de estratégia. Devem continuar lutando por ser governo e por governar. Mas sua estratégia tem que levar em devida conta que o “lado de lá”está tendo êxito em destruir as condições necessárias, tanto para que os partidos de esquerda possam vencer, quanto para que possam governar. Sendo assim, é preciso uma nova estratégia.
O sucesso da extrema-direita envolveu fatores circunstanciais, mas envolveu principalmente dois movimentos centrais e explícitos: a) a construção de um núcleo duro de ideias; b) a construção de um movimento de luta pelo poder. Em ambos casos, o contraste é total. Enquanto parte da esquerda abandonou há tempos a ideia contida na tese da “ditadura do proletariado”, a extrema-direita defende sem meias palavras a ditadura militar. Enquanto parte da esquerda acreditava na neutralidade do Estado, a extrema-direita colonizava o núcleo duro do Estado: o judiciário e as forças armadas.
O processo de formulação, no âmbito da teoria, e de aplicação, no âmbito da prática, de uma nova estratégia não será algo rápido nem tranquilo. Envolverá lutas e polêmicas no âmbito da esquerda e dos setores democráticos, que conviverão com os ataques da extrema-direita e com as reviravoltas da situação nacional e internacional. Uma nova estratégia não será formulada, portanto, a frio e distante das lutas práticas. Pelo contrário. Tampouco será formulada tentando copiar estratégias de situações passadas (1968-1974, 1978-1989, 1995-2015 etc.). O Brasil que temos diante de nós é profundamente diferente e exige uma análise concreta da situação concreta. Certamente será necessário defender o patrimônio acumulado pela esquerda nas últimas décadas, patrimônio que se concentra no Partido dos Trabalhadores e na pessoa de Lula, o que ajuda a entender a importância da campanha pela anulação da sentença e pela libertação de Lula. E será preciso ampliar, organizar, formar e mobilizar a classe trabalhadora, único caminho para enfrentar as ameaças legais e ilegais do bolsonarismo; para defender as liberdades democráticas, o bem-estar, a soberania nacional e a integração; para derrotar o capitalismo e edificar o socialismo.