domingo, 18 de agosto de 2019

Juliana Cardoso na CNB: um “detalhe” da polêmica



Recebi muitas versões acerca do fato, inclusive dois textos, um de Julian Rodrigues e outro Chico Macena. 

O episodio é rumoroso, e espero seja esclarecido nos mínimos detalhes. Mas o que pretendo comentar é um detalhe lateral, que aparece em um texto que Chico Macena enviou à Juliana Cardoso.

Lá está dito o seguinte: “Assim como nos da CNB e tantos outros militantes, sempre defendeu o PT e o legado do nosso governo Lula/Dilma: a criação do ministério das mulheres e todas as políticas de gênero e saúde da mulher (Saúde tua bandeira histórica), as cotas nos serviços públicos e nas universidades, a reparação com os países africanos,  a regulamentação dos Quilombolas e das terras Indígenas (minha pequena Índia), o aumento real do salário mínimo, as políticas de desenvolvimento regionais, a defesa da soberania, um padrão altivo nas políticas externas, enfim, tudo que nossos governos fizeram, ainda que para alguns tenha sido apenas “uma conciliação de classes”, não uma posição de classe, de quem sempre teve lado, como você que sempre teve lado: o da classe trabalhadora. Você continua defendendo esse legado, que não é por acaso que todos os dias querem destruir, retroceder.”

Notaram a mágica?

Macena cita uma lista de realizações positivas, engatando em seguida a frase: “enfim, tudo que nossos governos fizeram, ainda que para alguns tenha sido apenas ‘uma conciliação de classes’, não uma posição de classe, de quem sempre teve lado”.

Opa! Opa!

Se nossos governos tivessem feito “apenas” o “tudo” que Macena citou, de fato não faria muito sentido falar de “conciliação de classe”.

Acontece que aquilo que Macena cita NÃO é “tudo” que nossos governos fizeram.

Há inúmeras outras ações, que Macena não cita.

Por exemplo: fomos campeões em fechar rádios comunitárias. E nunca antes na história um governo errou tanto nas nomeações ao STF.

E tem uma outra lista, daquilo que não fizemos, nem tentamos fazer.

Por exemplo: punir os criminosos da ditadura, mudar o currículo das escolas militares, quebrar o oligopólio da comunicação, libertar o BC do controle do sistema financeiro privado etc.

Acho que todos, inclusive Macena, conhecem as três listas de cor e salteado.

A do que fizemos em benefício do povão, a do que foi feito em benefício dos ricos e a do que não fizemos ou nem tentamos fazer.

Quando uma parte do PT crítica a estratégia de conciliação de classes, estamos nos referindo a política que orientou o conjunto da obra.

Não apenas as três listas citadas, mas também e principalmente a crença de que se fossemos republicanos, eles seriam democratas.

Deu no que deu.

Fico feliz que Macena não goste de ser acusado de adepto da conciliação de classe.

E ficaria ainda mais feliz, se não tivéssemos praticado a tal conciliação.

Lula estaria livre. E Bolsonaro na cadeia.

sexta-feira, 16 de agosto de 2019

Comentários sobre a entrevista de Márcio Pochmann



Está tendo grande repercussão a reportagem publicada pelo Sul21 acerca de uma palestra proferida pelo companheiro Márcio Pochmann, em Porto Alegre, no dia 12 de agosto de 2019.

Não assisti a palestra, assim não tenho como verificar se a reportagem captou corretamente o que foi dito. Mas não tenho motivos para duvidar, seja devido ao autor da reportagem, seja porque coincide com o que ouvi Pochmann dizer em outros espaços.

Sendo assim, farei a seguir alguns comentários, com base em parte das aspas e transcrições de Sul21. Não comentarei o que Pochmann fala sobre 2020.

Pochmann critica certa “narrativa inapropriada que nos leva à acomodação e a saídas individuais”, uma narrativa segundo a qual estaríamos vivendo um período de transformações em relação às quais não temos muito o que fazer. Exemplos: a globalização financeira e a inovação tecnológica.

Paradoxalmente, Pochmann reproduz o que ele próprio critica, quando afirma que estaríamos vivendo a transição de uma sociedade industrial para uma sociedade de serviços.

Esta “narrativa” serve, na minha opinião, para naturalizar, tornar inevitável e nos fazer aceitar uma desindustrialização precoce, implementada em favor das grandes potências industriais do mundo.

Quem conduz essa “transição”? Segundo Pochmann, a extrema-direita. Esta afirmação, posta nestes termos, tem dois equívocos. 

O primeiro é não perceber que a desindustrialização começou nos anos 1980 e vem desde então. A extrema-direita chegou só agora, quando ela se faz necessária para esmagar a única resistência real ao processo: a classe trabalhadora. 

O segundo equívoco é não indicar a classe que está por detrás da desindustrialização: as frações que encabeçam o empresariado capitalista. Aliás, cá entre nós, foram frações capitalistas que sustentaram 1932 e também que apoiaram grande parte das operações reacionárias ocorridas em nossa história.

Pochmann diz que estaríamos “vivendo um período pré-insurrecional onde a população está extremamente insatisfeita e a extrema-direita tem maior facilidade de conversar com o povo do que a esquerda. Precisamos prestar muita atenção neste momento, pois estamos definindo o país que teremos nos próximos 40 ou 50 anos”.

Acho que Pochmann mistura alhos com bugalhos. 

Ele tem razão quando fala que estamos vivendo uma transição, mas esta transição consiste na reconversão de nosso país em economia primário-exportadora, ao estilo do que fomos antes de 1930. De fato, falar de “transição da indústria para serviços” faria pleno sentido somente se fossemos uma nação capitalista madura. 

Pochmann tem razão quando intui que esta transição tem um potencial explosivo, a medida que recoloca dilemas similares aos que, nos anos 1880-1930, foram resolvidos à bala. E, portanto, ele está certo ao apontar a possibilidade de grandes conflitos, convulsões e explosões sociais. Até porque, hoje, mais de 80% da população vive nas cidades, diferente do que era o país antes de 1930.

Seja como for, caso prevaleça a reprimarização, o padrão resultante será tão instável que não tem como durar 50 anos. O ciclo desenvolvimentista conservador durou isto porque era capaz de absorver parte das tensões sociais. Um “ciclo” primário-exportador vai exacerbar as tensões a tal ponto, que não tem como durar 40 ou 50 anos. Portanto, o que realmente pode durar varias décadas é o que virá “depois de amanhã”; e seria desastroso se a classe trabalhadora não aproveitar a oportunidade para impor uma alternativa socialista.

Neste sentido, é preciso ir além de obviedades do tipo: “a extrema-direita tem maior facilidade de conversar com o povo do que a esquerda”. 

Qual é a base empírica disto? A última pesquisa 100% confiável demonstrou que a extrema direita tem maior facilidade de “conversar” com 57 milhões, nós com 47 milhões e 31 milhões não caíram no papo de nenhum dos pólos em disputa. 

Se considerarmos estes números no contexto de 130 anos de República, a verdade é: a) na maior parte de nossa história, a esquerda teve mais dificuldade de “conversar”; b) desde 1989 até 2014, foi o período em que a esquerda “conversou” com mais gente. 

Mas será que “conversar” é o verbo adequado? O uso desta palavra faz certo sentido para quem abre uma palestra citando Habermas. Mas foi com “conversa” que a extrema-direita conquistou a presidência?? Será com “conversa” que a esquerda vai derrotar o fascismo???

A afirmação quase ingênua e óbvia segundo a qual a direita “conversa” com “mais facilidade” é a porta de entrada para o que me parece ser o núcleo da palestra de Pochmann. A saber: “a sociedade do final dos anos 70 e início dos anos 80, que deu origem ao PT, não existe mais. Se seguirmos fazendo as coisas do jeito que fizemos até aqui não teremos melhores resultados do que os que já obtivemos”. 

Novamente, como discordar de uma verdade tão óbvia? Acontece que, como dizia um velho, se a essência fosse igual a aparência, a ciência seria desnecessária.

Vejamos as aspas: “Na década de 80, tínhamos uma burguesia industrial no país. Hoje, a indústria brasileira representa menos de 10% do PIB, o que equivale ao que tínhamos em 1910. Hoje, temos o predomínio de uma burguesa comercial, que quer comprar barato e vender caro. Nos anos 80, tínhamos uma classe média assalariada, que praticamente não existe mais. Hoje, temos uma classe média de PJs (pessoas jurídicas) e consultores. Houve um desmoronamento do emprego clássico da classe média. A classe trabalhadora também mudou. Cerca de quatro quintos dos trabalhadores estão concentrados no setor terciário, nas diversas áreas de serviços. Eles não estão mais concentrados em grandes fábricas, mas em shoppings center, complexos hospitalares, prestando serviços para condomínios de ricos. A classe trabalhadora está cada vez mais ligada a um trabalho imaterial e submetida a nova organização temporal e espacial. Essa nova realidade não faz parte do discurso dos sindicatos e dos nossos partidos. Estamos com uma retórica envelhecida”.

Sobre a primeira parte da descrição, me chama a atenção que Pochmann não fale da burguesia financeira e do agronegócio. Será que falou na palestra e o Sul21 não destacou?

Sobre a segunda parte da descrição feita por Pochmann, me causa espanto que ele diga que a “classe trabalhadora está cada vez mais ligada a um trabalho imaterial”. Como é??? Que é que existe de “imaterial” na maior parte das atividades exercidas por quem trabalha no setor de serviços??? 

Claro que certa propaganda vende a “uberização” (e similares) como um serviço de alta tecnologia, imaterial. Mas nós não podemos levar isto a sério. A maior parte da classe trabalhadora está sendo submetida a serviços fisicamente degradantes; chamar isso de “trabalho imaterial” é uma daquelas “narrativas” que Pochmann mesmo crítica.

Na terceira parte de sua descrição, Pochmann diz que essa “nova realidade não faz parte do discurso dos sindicatos e dos nossos partidos. Estamos com uma retórica envelhecida”. 

Novamente a influência de Habermas se faz presente: o problema estaria no “discurso”, na “retórica envelhecida”.

É curioso! A direita, segundo Pochmann, teria mais “facilidade” de conversar com o povo. Já a esquerda teria uma “retórica envelhecida”. 

Pergunto: tem algo mais “velho” do que o discurso de Bolsonaro? Um discurso que enfileira preconceitos que às vezes têm um século ou mais de existência! Será que o problema da retórica da esquerda é mesmo estar “envelhecida”??

Tenho a impressão de que a “embocadura habermasiana” conduziu Pochmann a uma armadilha lógica. Como nosso problema é conversar, então nossa dificuldade estaria em não dominarmos a gíria moderna...

Mas supondo que consigamos dominar a gíria, a pergunta é: o que vamos dizer? 

Vamos buscar incorporar esta “nova” classe trabalhadora nos sindicatos e nos partidos? Vamos lutar pela soberania, pela reindustrialização do país, pelos direitos liberdades perdidas e também pelas até agora não alcançadas? 

Sei que não é esta a posição de Pochmann, que inclusive enfatiza fortemente a importância dos partidos e sindicatos, mas cabe recordar que ao longo da história, alguns setores da esquerda sempre utilizaram o pretexto dos novos tempos para abandonar bandeiras supostamente “velhas”, mas que de fato seguiam e seguem atuais. 

Claro que há novidades. Mas é como na saúde pública: novas doenças convivem com o regresso de doenças que pensávamos erradicadas para sempre. Portanto, nossa “retórica” e principalmente nossa ação política e organizativa (que inclui, mas não se limita ao “discurso”) precisa sempre combinar doses de “novo” com doses de “velho”. 

Vejamos o caso das igrejas evangélicas. 

Pochmann diz que “hoje, cerca de 80 milhões de brasileiros frequentam semanalmente assembleias, as assembleias de Deus. Por volta de 2032, os evangélicos já serão maioria no Brasil. A lógica que rege esse fenômeno está mais ligada à subjetividade das pessoas do que à racionalidade. Essas igrejas são espaços de sociabilidade onde as pessoas podem falar sobre seus desejos e anseios. Lá elas encontram laços de fraternidade e solidariedade. Temos que ter a humildade de reconhecer a nossa defasagem de compreensão dessa realidade”.

Cá entre nós: este fenômeno é mesmo “novo”? No passado, a Igreja Católica não ocupava um “lugar” similar? Aliás, recebendo para isso forte apoio político e material de parte das elites! Como hoje ocorre, por exemplo, com as igrejas citadas por Pochmann.

Que fique claro: não estou dizendo que não há novidades. Claro que há. O que estou dizendo é que em muitos casos estamos diante de formas novas, formas assumidas por velhos fenômenos. 

A isto vale acrescentar uma indagação: os serviços, as igrejas evangélicas e o crime organizado prosperaram só depois de 2016? Ou parte de nós, embalada por um discurso chapa branca, não conseguia enxergar o que estava diante dos narizes?

Pochmann finaliza a primeira parte de sua intervenção dizendo que “o ciclo político da Nova República desapareceu e com ele também desapareceu a possibilidade de termos governos de conciliação. E sem a conciliação o que temos é a polarização”.

Aqui novamente estamos diante de afirmações que merecem certo questionamento. 

O ciclo político da Nova República inclui os governos Sarney, Collor, Itamar, FHC, Lula e Dilma. Os quatro primeiros aplicaram programas que de “conciliadores” tinham muito pouco ou quase nada. Já os governos Lula e Dilma buscaram, explicitamente, atender aos interesses do empresariado capitalista e dos setores populares. Neste sentido, foram governos que acreditaram na “possibilidade” da conciliação. Mas esta “possibilidade” era real? Ou era em grande medida uma ilusão?

Pochmann, ao menos segundo as aspas transcritas, parece seguir acreditando que esta possibilidade existia mesmo. A questão é: se era possível, porque agora deixou de ser? Terá sido a emergência de fenômenos novos, que ainda não compreendemos? Ou terá sido a maior facilidade da direita em “conversar”? Ou será que estávamos iludidos e não vimos que a nossa atitude conciliatória apenas criava as condições para os golpes de que fomos vítimas e para a emergência de uma extrema-direita que usa e abusa da polarização?

Estas são algumas das observações que faço a partir da leitura do que disse Pochmann, segundo o Sul21.

Não revisado 
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quinta-feira, 8 de agosto de 2019

Análise da tese da CNB


SEM REVISÃO, PODE CONTER ERROS

Parte 1
Nove chapas se inscreveram para disputar a eleição de delegados/as ao 7o. Congresso Nacional do PT.

O regulamento do Congresso determinava que cada tese devia apresentar uma tese com no máximo 20 mil caracteres.

Oito chapas cumpriram o determinado. Uma descumpriu e apresentou uma tese com 100 mil caracteres.

Quem é do ramo, sabe: é mais fácil escrever muito do que pouco. Escrever pouco exige capacidade de síntese e definir prioridades. O oposto da embromação.

A tese de 100 mil caracteres foi inscrita por Luiz Soares Dulci, em nome da Coordenação Nacional da CNB (Construindo um novo Brasil). Grupo que hoje controla mais de 40% do Diretório Nacional do PT.

Isto justifica que se estude com cuidado o que a tese afirma, ao longo de 8 capítulos, intitulados: 

1. ANÁLISE DE CONJUNTURA INTERNACIONAL: AMÉRICA LATINA E O MUNDO NO SECULO XXI

2. CONJUNTURA NACIONAL E ESTRATÉGIA: RESISTIR AO AUTORITARISMO NEOLIBERAL E CONSTRUIR A ALTERNATIVA DEMOCRÁTICA E POPULAR

3. LULA LIVRE: URGÊNCIA DEMOCRÁTICA E LUTA DE NOSSO POVO!

4. ELEMENTOS DE UMA PLATAFORMA DE DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO COM JUSTIÇA SOCIAL

5. Violência e resistência nas periferias

6. O governo Bolsonaro e o direitos das maiorias

7. As eleições para prefeitos(as) e vereadores(as) em 2020. 

8. ORGANIZAÇÃO PARTIDÁRIA

Dada a extensão do texto, a análise do que propõe o grupo atualmente majoritário no DN do PT será feita em capítulos.

Parte 2
Vejamos o que diz a CNB sobre a CONJUNTURA INTERNACIONAL: AMÉRICA LATINA E O MUNDO NO SECULO XXI.

A análise da “conjuntura” tem início em... 1945, passa pela “substituição do modelo fordista” pelas “cadeias globais de produção”, desembocando na hegemonia financeira e na crise de 2008, a “maior crise econômica desde a depressão mundial dos anos 1930”, crise que “não foi totalmente superada”, com a possibilidade de “queda no crescimento do PIB mundial em 2019 e a possibilidade de início de nova recessão que o mundo estaria menos preparado para enfrentar do que a crise iniciada em 2008”. 

A análise destaca, também, “a passagem de um mundo bipolar, marcado pela presença dos campos capitalista e socialista, para um mundo unipolar sob a hegemonia imperial estadunidense num primeiro momento, embora a atualidade aponte para o surgimento de um sistema multipolar ainda em processo de consolidação”.

E salienta que o “quadro internacional de profundas transformações se completou com a crise da democracia liberal” (...) “assistimos desde o final do século XX à uma regressão na qualidade da democracia em função da ascensão da extrema direita que hoje chegou ao poder pela via eleitoral em vários países”. 

O texto afirma, ainda, que “a tática para promover mudanças de regime (regime change) atualmente é a chamada “guerra híbrida”. 

E qual a conclusão que se tira destas análises, em termos de estratégia política? 

Diz a tese: “No seu conjunto esses fenômenos, todos de caráter regressivo, geraram um novo período histórico, com uma correlação desfavorável para as classes trabalhadoras dentro de cada país, particularmente para os países do Sul do mundo e a América Latina”.

Diz também: “a direita tende a blindar-se autoritariamente nos governos, buscando impedir o retorno democrático da esquerda. As eleições de outubro na Argentina, Bolívia e Uruguai serão uma prova da capacidade da direita para se manter no governo no caso argentino ou para seguir desalojando a esquerda do governo no caso boliviano e uruguaio. É um processo aberto, inclusive no Brasil. Não está definido que a direita, de volta ao governo, consiga manter-se e a Argentina pode ser a prova disso. Nem que a esquerda consiga retornar ao governo. É uma disputa aberta onde o Brasil é um caso estratégico, pelo peso que tem o país e que tem uma esquerda relevante, além da liderança do Lula”.

No plano mundial, “as turbulências também tendem a se prolongar. A decadência relativa da hegemonia estadunidense não permite prever seu fim”.

Sendo o período histórico atual caracterizado por uma disputa de hegemonia, porque o modelo adotado pelo capitalismo neoliberal, embora ainda mais radical do que no período anterior e apesar da crise da democracia liberal, não tem poder absoluto e precisa assim buscar mecanismos cada vez mais autoritários para implementar seu projeto. (...) A America Latina e, em especial, os países que já tiveram ou ainda tem governos antineoliberais, todavia, tem condições de se situar como epicentro dessa disputa hegemônica em escala mundial, pelo aprendizado adquirido durante os anos de governo, e o extraordinário legado de crescimento econômico e inclusão social que permite comparar as políticas do passado com as do presente”.

A conclusão da tese, portanto, é que estamos diante de um “processo aberto”.

Ou, como diria o Barão de Itararé, tudo pode acontecer, inclusive nada.

Nesse “processo aberto”, a direita pode fazer quase tudo; já a esquerda deve... buscar ganhar as eleições!!

Tudo muda, o mundo não é mais o mesmo, mas a estratégia proposta pela CNB segue sendo essencialmente eleitoral.

Parte 3 

Vejamos o que diz a tese da CNB sobre a CONJUNTURA NACIONAL E ESTRATÉGIA: RESISTIR AO AUTORITARISMO NEOLIBERAL E CONSTRUIR A ALTERNATIVA DEMOCRÁTICA E POPULAR”.

Vimos, no capítulo anterior, que a análise da “conjuntura internacional” da CNB começa em 1945. Já a análise da conjuntura nacional começa em janeiro de 2019. Freud explica.

O texto faz um longo discurso contra o governo Bolsonaro, incluindo passagens como: “O governo, no entanto, prefere virar as costas aos problemas reais do país, mesmo que estejam causando grande sofrimento popular, para apostar em uma verdadeira guerra ideológica e pretensamente moral, criando um clima artificial de intolerância e violência contra todos os que se mobilizam em defesa da legalidade democrática, dos direitos dos trabalhadores e dos pobres e do respeito à diversidade: negros, mulheres, comunidade LGBT, entre outros.”

A retórica parlamentar do texto da CNB confunde as coisas. O “clima” de violência não é “artificial”: está em curso uma guerra contra o povo. E o governo promove esta guerra para implantar seu programa. Ele “prefere” fazer isto, porque é através da intimidação que ele paralisa seus opositores.

Ao adotar um estilo de discurso-denúncia, o texto subestima a força do inimigo; por exemplo não percebe que, para as elites, o “fracasso” do governo Bolsonaro na área econômica não é “evidente”. As elites apoiam o governo exatamente porque ele promove com altíssimo nível de desemprego e queda na renda dos trabalhadores”. As elites não se preocupam com a difícil situação “do mercado interno”, ainda que este represente 80% da economia brasileira.

A tese da CNB critica o “descompromisso do governo com as instituições e os métodos democráticos”. A expressão “descompromisso” é evidentemente inadequada, pois logo em seguida se afirma que o Brasil está “em uma assustadora marcha para o Estado Policial. A verdade é que os comportamentos abertamente fascistas estão se tornando a regra do governo Bolsonaro e dos grupos de extrema direita que o apoiam, pondo em risco o que ainda existe de Estado de Direito em nosso país”.

Nesse contexto, qual deve ser a estratégia do PT? 

Segundo a tese da CNB, “deve ser ao mesmo tempo de resistência ao projeto destrutivo do governo Bolsonaro e de acumulação de forças para que o Brasil possa retornar o mais rápido possível o caminho da transformação social”. 

De um lado, “barrar as políticas regressivas da extrema direita”; de outro lado, é preciso “propor ao país, e trabalhar para que ela alcance progressivamente o mais amplo respaldo social e político, uma alternativa progressista consistente ao desastre civilizatório que é o governo Bolsonaro”. 

E qual seria o conteúdo dessa “alternativa progressista” que será construída “progressivamente”? 

Ela deve ser “baseada em uma Plataforma de medidas emergenciais e estruturais capazes de tirar o país da crise e recolocá-lo no caminho do verdadeiro desenvolvimento”, com “independência nacional, crescimento econômico, geração de empregos, distribuição de renda, inclusão social e vigoroso combate às mais diversas discriminações”. 

Além disso, a Plataforma de medidas emergenciais deve dar “a devida centralidade às reformas imprescindíveis para que o Brasil se torne de fato mais democrático, mais próspero e menos desigual: a Reforma do Estado, a Reforma Política, a Reforma Tributária, a reforma dos Sistemas de Comunicações, a Reforma Agrária e a Reforma Urbana, entre outras”. 

Como se não bastasse, a plataforma “emergencial” deve ser elaborada “a partir do Programa Democrático Popular – que conserva toda sua pertinência e forte sentido emancipatório – , no qual inspirou-se o nosso programa presidencial de 2018, e que pode e deve ser enriquecido no diálogo com os partidos aliados, os movimentos sociais e o conjunto da opinião pública democrática”.

E, quase calando quem acusa a CNB de moderação programática, a tese afirma que o nosso “Programa Democrático Popular, de reformas estruturais para o país, se articula do ponto de vista estratégico com o projeto histórico do Socialismo Democrático, o “Socialismo Petista”, reafirmado e consolidado ao longo de toda a trajetória do PT”.

Sendo que o socialismo é tudo de bom: “construir, com o apoio das maiorias populares, uma nova sociedade livre, plural e solidária, uma sociedade em que o direito à vida não seja objeto de compra e venda, em que o direito à felicidade não seja uma mercadoria à qual poucos tem acesso e tantos não, em que milhões de seres humanos não sejam condenados à miséria, à fome, à morte para satisfazer a ganância de lucro, o luxo e o desperdício de uma minoria de privilegiados. Uma sociedade que não seja, pela sua própria lógica, como é a sociedade capitalista, injusta, excludente, discriminatória, marginalizadora. Uma sociedade de fato sustentável, fruto de uma nova relação com a natureza. Uma sociedade humanista em que a liberdade e a igualdade de direitos não sejam uma ficção. Uma sociedade, enfim, que seja não só materialmente mais justa, mas também ética e culturalmente superior”.

Evidentemente a tese da CNB não explica por qual motivo não tentamos realizar as reformas estruturais entre 2003 e 2016; nem explica por quais motivos, naquele mesmo período, o “socialismo” perdeu tanto espaço nas formulações, preocupações e ações práticas do Partido e de seus mandatos.

Seja como for, depois da supracitada radical afirmação de princípios, a tese da CNB afirma que “para barrar a ofensiva reacionária do governo Bolsonaro e das oligarquias dominantes, o PT deve continuar empenhado em construir a unidade das forças progressistas tanto no parlamento quanto na sociedade”. 

Sendo necessária a “atuação conjunta das bancadas progressistas na Câmara e no Senado” e a “aliança entre os governadores progressistas”. E também “continuar apoiando e fortalecendo a Frente Brasil Popular e a Frente Povo sem Medo”. E a “unidade dos partidos e dos movimentos progressistas”. 

A tese da CNB usa e abusa do termo “progressista”, adotado tanto para denominar o programa alternativo de reformas democrático popular articulado com o socialismo; quanto para falar das alianças imediatas contra Bolsonaro.

E como se não bastasse, a tese da CNB esclarece que “não há contradição entre consolidar a unidade dos progressistas e, ao mesmo tempo, buscar alianças mais amplas, até com personalidades e setores de centro, em prol do Estado de Direito e de outras causas que extrapolam o campo das esquerdas”.

No papel pode não haver contradição. Mas basta lembrar da luta pela liberdade de Lula, para perceber que, entre os progressistas e setores de centro, não é consenso que Lula livre seja “crucial para a recuperação da plena democracia no país”.

A elasticidade atribuída ao termo “progressista” acaba por tornar desnecessário o uso da clássica expressão “unidade da esquerda”. Assim, a antiga estratégia de centro-esquerda converte-se numa “unidade dos progressistas” & “alianças mais amplas com setores de centro”.

A isso se agrega a “estratégia da maioria”.

A saber: “tanto na resistência ao governo de extrema direita, cujo instrumento decisivo é a mobilização massiva da sociedade, sem prejuízo da batalha institucional, quanto na acumulação de forças para retomarmos nosso projeto transformador, o PT deve reafirmar a sua estratégia de maioria, um dos elementos-chave (desde o “Manifesto de Fundação”) do ideário do partido, e dela extrair as necessárias consequências políticas e organizativas”.

E o que seria está “estratégia de maioria”? 

A tese da CNB explica assim: “Trata-se de construir uma maioria consistente na sociedade – que não seja apenas eventual, conjuntural, mas que se afirme como verdadeira hegemonia democrática de ideias e valores – se queremos chegar novamente ao governo federal com efetiva sustentação para promover as mudanças imediatas e históricas que são a própria razão de ser do PT.”

Ou seja: não se trata —como defende a esquerda do Partido — de construir uma nova estratégia; tratar-se-ia isto sim de “reafirmar” uma “estratégia de maioria” que (supostamente) o PT defenderia desde 1980.

(Aqui um p.s.: recomendamos aos curiosos que leiam as resoluções do PT entre 1980 e 1987 e se busque onde estaria a tal “estratégia da maioria”.)

E como esta “estratégia de maioria” visa “chegar novamente ao governo federal”, trata-se no final das contas de construir uma “maioria” eleitoral.

Não uma maioria eleitoral petista ou de esquerda. O objetivo proposto pela CNB é fazer com que “o PT e os partidos progressistas voltem a ser maioria”.

E para isso, “além de consolidar o apoio daqueles 47 milhões que votaram em nós, (...) precisamos também trabalhar para reconquistar aqueles setores sociais – especialmente das classes populares – que nos apoiaram em 2002, 2006, 2010 e 2014, e foram decisivos para que ganhássemos as quatro eleições e pudéssemos governar o país, e que se afastaram de nós no último período, por uma razão ou por outra, acabando por votar no candidato da extrema direita”.

Infelizmente a tese da CNB não arrisca explicar por quais motivos perdemos o apoio daqueles setores sociais. 

Seja como for, através de deslizamentos sucessivos, o nobre objetivo de construir uma “verdadeira hegemonia democrática de ideias e valores” é reduzido pela tese da CNB à construção de uma maioria eleitoral.

Evidentemente saudamos a intenção de reconquistar os apoios perdidos na classe trabalhadora. Mas a maneira como a tese da CNB aborda o problema nos mantém prisioneiros de uma “estratégia eleitoral”, que já demonstrou ser insuficiente, seja para transformar as estruturas do país, seja para nos defender da ofensiva reacionária, seja para avançar em direção ao socialismo.


Parte 4

A tese da CNB conclui sua análise da conjuntura nacional dizendo que a eleição presidencial de 2018 foi “manchada”.

A resistência em chamar as coisas por seu nome (o que ocorreu em 2018 foi uma grande fraude) se repete no item seguinte da tese: LULA LIVRE: URGÊNCIA DEMOCRÁTICA E LUTA DE NOSSO POVO!

Lá se diz que a “Lava Jato não surgiu em um vácuo político preenchido pelo voluntarismo de seus agentes diretos, ela é fruto de uma conjuntura à qual favoreceu e pela qual foi favorecida”. 

Se diz, também que a “hipertrofia do Poder Judiciário, moralmente avalizada pelo discurso do combate à corrupção e que vinha sendo gestada há pelo menos uma década, pavimentou o caminho ao poder de um projeto autoritário, obscurantista e neoliberal”.

Mas não se diz que amplos setores da esquerda, amplos setores do PT e diversas decisões de nossos governos contribuíram não apenas para tal “hipertrofia”, como também para “avalizar moralmente” a Lava Jato.

Basta lembrar o elogio feito por Fernando Haddad à Lava Jato, em pleno segundo turno das eleições presidenciais de 2018!!!

A tese da CNB pula estes “detalhes” e passa direto à uma análise das “revelações trazidas pelo site The Intercept”. Nada do que se diz a respeito é novidade.


Chama a atenção, contudo, a subestimação do problema que enfrentamos: se é verdade que a inocência do Presidente Lula fica cada vez mais comprovada, se é verdade que a aura de “combate a corrupção” da Lava Jato desmorona, também é verdade que há amplos setores da população que seguem apoiando Moro e a prisão de Lula. Assim como é verdade que a Lava Jato foi um instrumento de uma operação que contou com o apoio do conjunto da classe dominante e de seus aparatos estatais.


No que diz respeito à campanha Lula Livre, a tese da CNB reproduz posições que não vão além das resoluções já aprovadas pelo conjunto do Partido. Sendo notáveis: o silêncio acerca do Lula Livre nas eleições presidenciais de 2018 e 2022; a ausência de qualquer menção a postura de Ciro Gomes, “plano B” de tantos; e de qualquer reflexão sobre o ainda reduzido engajamento de tantos setores do PT na campanha.


Parte 5

Na reunião do DN do PT, realizada em julho de 2019, setores da CNB resistirem enfaticamente a incluir o tema “programa” na pauta oficial do 7o. Congresso. Um dos argumentos utilizados foi o de que o Partido já dispunha de um programa, inclusive aquele apresentado nas eleições presidenciais de 2018.

E, de fato, o item “ELEMENTOS DE UMA PLATAFORMA DE DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO COM JUSTIÇA SOCIAL” parece copiar e colar o programa de 2018, com direito inclusive a uma nota de rodapé e a passagens cheias de lirismo tais como “Mobilidade e acessibilidade urbana: uma cidade ágil que valoriza a vida” e “Promover o diálogo federativo na construção de solução para os problemas regionais e locais”.

Grande parte dos “elementos” apresentados são consenso no Partido. 

Mas é impressionante que não haja nenhuma reflexão séria acerca da insuficiência do que é proposto, frente ao retrocesso produzido desde 2016.

Por exemplo: como desmontar a institucionalidade golpista?

A tese da CNB repete algumas das posições do PT, tais como “Revogar a reforma trabalhista (Lei 13.467/2017)”, Revogar a Lei 13.429/2017” e revogar a EC90.

Mas a tese da CNB não repete a posição, também adotada pelo PT, de convocação de uma Assembleia Nacional Constituinte.

Se aprovada a tese da CNB, estará legalizado o ato arbitrário cometido por Fernando Haddad durante a campanha de 2018.

E sem Constituinte, como ficam temas como o poder judiciário e as forças armadas, sobre os quais a tese da CNB nada diz?

Sem a Constituinte, como “Revogar o legado do arbítrio: medidas antinacionais e antipopulares”, como “Promover Reforma Política com Participação Popular”, como “Promover a Reforma do Estado e do Sistema de Justiça”, como “Promover a Democracia, o Pluralismo e a Diversidade na Mídia”??? 

Outro exemplo da insuficiência do que é proposto pela tese da CNB: como reindustrializar o país, sem estatizar empresas que foram privatizadas e sem criar novas estatais?

A tese da CNB, repetindo o programa presidencial de 2018, parece crer que basta adotar as políticas públicas certas e será possível “reverter à desindustrialização e que contribuir efetivamente com o desenvolvimento do País, de modo a distribuir seus ganhos entre toda a sociedade e posicionando o Brasil entre as principais economias industriais do planeta”.

A questão é: as indústrias capitalistas privadas realmente existentes não possuem nem a escala, nem a “disposição” de cumprir estes objetivos.

É preciso criar novas empresas, controladas pelo Estado e, em muitos casos, protegidas de uma competição internacional mais desigual do que nunca.

A ausência desta proposta na tese da CNB reflete a influência anti-estatista neoliberal, que coloca este setor do PT numa posição mais recuada do que varios governos burgueses, no Brasil e no mundo, entre 1930 e 1980. A exceção é a proposta de “controle 100% estatal da Petrobras e Eletrobrás, empresas nacionais estratégicas para o desenvolvimento nacional”. 

Nesta mesma linha de “influência” alheia, chama a atenção o fato de que a tese da CNB não proponha uma política de enfrentamento à hegemonia do agronegócio. O que se propõe é “fortalecer a agricultura familiar”, objetivo compartilhado por todo o PT, mas insuficiente.

Sem falar do que faremos com o agronegócio, várias das propostas citadas (tais como “Desapropriar e destinar para a Reforma Agrária os latifúndios” e “atualizar os índices de produtividade”) terão o mesmo destino que tiveram entre 2003 e 2016.

Acrescente-se a estranha proposta de “combater a venda de terras para estrangeiros”. Combater? Por qual motivo não se fala em proibir??

Entretanto, o tema programático sobre o qual a tese da CNB deixa mais a desejar, onde existe menos reflexão séria acerca da insuficiência do que é proposto, é o que trata do setor financeiro.

A pergunta é: será possível financiar as políticas públicas, será possível implantar uma política de desenvolvimento, será possível ter governabilidade sobre a economia nacional, sem ESTATIZAR o oligopólio financeiro?

A tese da CNB parece acreditar que sim. Que basta “o fortalecimento dos bancos públicos e dos bancos de desenvolvimento nacional e regional, além de participação social na definição da regulação do sistema financeiro, visando coibir a especulação e o rentismo”.

Com dois “detalhes” muito sintomáticos: a tese da CNB não defende revogar a Lei de responsabilidade fiscal, nem fala explicitamente em acabar com a autonomia de fato do Banco Central. Novamente, a tese copia o programa de 2018, mas na versão que foi arbitrariamente cortada pelo candidato, durante a campanha eleitoral!

Sem estatizar o oligopólio financeiro, mesmo a mais radical reforma tributária (aliás, por qual motivo uma reforma radical como a proposta na tese, não foi pelo menos tentada entre 2003 e 2016???) será esterilizada.

Em resumo: os ““ELEMENTOS DE UMA PLATAFORMA DE DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO COM JUSTIÇA SOCIAL” permanecem dentro dos limites do que se fez (ou do que devia ter sido feito) entre 2003 e 2014.

Neste, como nos itens já analisados, o texto da CNB é prisioneiro do passado.

Parte 6

O item mais interessante da tese da CNB é o que trata da “Violência, cultura e trabalho nas periferias no Brasil”.

Nesse item, se comemora a “mobilidade social vertical”, a transformação física e cultural das periferias do país, ao mesmo tempo que se reconhece “a elevação das taxas de homicídios e das taxas de encarceramento”.

Frente ao paradoxo, a tese da CNB busca certo consolo em um argumento bizarro, vindo de quem desde 1994 governa varios estados do país: “Em que pese tais questões serem da alçada dos governos estaduais dentro do pacto federativo, é preciso reconhecer que a contribuição do Partido dos Trabalhadores e da esquerda como um todo sempre foi muito tímida na área da segurança pública”.

Além de bizarro, trata-se de um argumento que tenta jogar luz no lugar errado. Pois o tema dos homicídios e encarceramento só pode ser compreendido a luz da luta de classes, nos marcos de um certo padrão de “mobilidade social” instalado desde 2003.

Como reconhece a própria tese da CNB, “a presença destes problemas tem perseguido outros indicadores, como as de crescimento econômico, fazendo crer que a regulação das atividades ilegais não acompanhou o que tem sido vulgarmente chamado de desenvolvimento”. 

De toda forma, a tese da CNB faz bem ao apontar a questão, afirmando que nossa proposta deveria ser “a consolidação de um ciclo virtuoso de concertação dos subalternos”, buscando “nos movimentos sociais das periferias” um “caldo de cultura rico em ideias e ideais emancipatórios que pode – e deve, de acordo nossa ação – ser o cimento de um novo arranjo de lutas”.

Mas a tese alerta ser preciso “dar sentido e movimento estrutural a este amálgama de ativismos, que tem pés fincados no chão do seu cotidiano, mas que precisam voltar os olhos também para o roubo das elites aos fundos públicos e a atenção para a entrega das nossas riquezas. É necessário articular o ativismo espalhado pelo Brasil às lutas por soberania nacional, pois esta não existirá sem soberania popular. O mesmo vale para a defesa da democracia e dos direitos”.

A tese da CNB conclui usando termos que são muito utilizados por nós: “reconectar com essa nova classe trabalhadora, batalhadora, informal e precária”.

Curiosamente, o tema do crime organizado, das milícias e das igrejas pentecostais não é abordado. Como em outras questões, a tese da CNB possui lacunas muito sintomáticas e algumas vezes quase incompreensíveis.

Parte 7

A tese da CNB dedica um item para tratar do “governo Bolsonaro e o direitos das maiorias”.

O item começa com uma afirmação ousada: “a vitória da extrema direita no Brasil não foi alicerçada pela primazia do debate econômico, nem sobre as saídas para os verdadeiros problemas do povo brasileiro, aliás, não foi calcada por debate nenhum, uma vez que seu candidato não se colocou a disposição para debater, temendo que a sua carência de propostas para o país pudesse causar a sua derrota. Para ganhar as eleições, utilizou-se de uma estratégia testada nos EUA por Donald Trump, da abordagem predominante sobre valores, costumes e comportamento social através de uma bem articulada –– e frequentemente ilegal –– presença nas redes sociais, fazendo com que o debate sobre os problemas do Brasil se transformasse no debate sobre os “supostos” problemas das pessoas”.

Esta afirmação transforma parte da aparência em essência. Como classificar, por exemplo, o bordão: “com direitos mas sem empregos, sem direitos mas com empregos”? Isso é um debate “econômico” ou sobre os problemas das “pessoas”?

Talvez seja mais exato dizer que a campanha de Bolsonaro, ao estilo das campanhas da extrema direita noutras regiões do mundo, foi altamente ideologizada, polarizadora, confrontacionista. E manipulou temas com potencial de dividir é confundir a classe trabalhadora, aproveitando-se de que nestes temas a esquerda (ao contrário do que diz a tese da CNB) apresentava fissuras.

Por exemplo: interrupção da gravidez e programas educacionais que tratavam de orientação de gênero e sexual já vinham provocando divergências no PT, em bancadas parlamentares, governos e campanhas. A direita atacou pontos onde já havia fissuras.

Quem não recorda do presidente do PT SP embarcando na onda da “ideologia de gênero”?

Quem não recorda das posturas udenistas de diferentes setores da esquerda brasileira?

Quem não recorda das diferenças acerca de como tratar a ditadura e a segurança pública?

Quem não recorda das alianças entre candidaturas petistas com igrejas conservadoras?

Sem levar em consideração as diferenças pré-existentes na esquerda (e no PT), fica difícil compreender porque “ainda não conseguimos dar o embate condizente”. 

Isto posto, a tese da CNB está correta ao enfatizar que estamos diante de direitos que não são de “minorias”, nem “setoriais”. Mas se acreditamos mesmo nisso, temos que repensar a lógica “setorializada” com que são manejados (vide, por exemplo, o que a tese da CNB diz sobre percentuais de emendas parlamentares etc.)); e temos que reconhecer que nossos governos não conseguiram superar grande parte dos problemas que atingem as “maiorias” de nosso país. 

E como enfrentar? As propostas feitas pela tese da CNB nos parecem insuficientes, parciais ou inclusive incorretas. E citam o fato, sem oferecer uma explicação: por quais motivos outros partidos (de esquerda e mesmo de direita) estão elegendo, por exemplo, mais parlamentares negros do que nós?

Parte 8

Segundo a tese da CNB, as eleições para prefeitos (as) e vereadores (as) de 2020 serão marcadas por "conflito e insegurança", "desqualificação da política", ataques aos "direitos da maioria do povo bem como a soberania do país em benefício do capital financeiro".

A tese aponta que a "maioria das cidades brasileiras enfrenta situação muito difícil desde o golpe": finanças comprometidas, em função dos efeitos da Emenda Constitucional 95/16, resultando em desmonte de políticas. E, depois da eleição de 2018, "os efeitos da política econômica do governo Bolsonaro", "associados ao desmonte do Estado e ao ataque aos direitos e as políticas sociais", têm gerado "dificuldades imensas de financiamento dos municípios". 

O texto relata uma piora geral nas condições ambientais, econômicas, sociais, políticas e ideológicas. E conclui dizendo que, "nesse contexto, as eleições terão grande importância para denunciar as políticas antipopulares e antinacionais do governo Bolsonaro, mas também e, sobretudo, mostrar que há alternativa ao que está sendo feito. Queremos voltar a governar as cidades para trazer de volta para a maioria da população políticas de fortalecimento do direito à saúde, educação públicas, à moradia e ao transporte com qualidade, distribuição de renda, combate à fome e desenvolvimento urbano". "Vamos recuperar e aperfeiçoar as orientações e ações de nossos governos municipais e estaduais e, especialmente, dos governos Lula e Dilma que mudaram a vida da maioria do povo".

Será factível, neste cenário de terra arrasada que a tese descreve, fazer aquilo que o texto propõe? Pois uma coisa é se "inspirar" nas orientações do que foi feito, outra coisa é "recuperar e aperfeição as ações que foram feitas entre 2003 e 2016.

A tese da CNB permite, nessa questão, duas leituras. Numa delas, as eleições de 2020 são, principalmente, um momento de denúncia, mobilização, luta política. Noutra, há expectativas de fazer algo semelhante ao que fizemos desde 1989.

A tese da CNB lembra que "nas eleições de 2020 não haverá coligação na chapa proporcional"; "por essa razão, o partido enfrentará o desafio de participar das eleições lançando o maior número possível de candidaturas, de mulheres, de negros e negras, de jovens e aquelas que representam a força e o compromisso com as lutas sociais".

Ao mesmo tempo, defende "construir alianças que permitam fortalecer o polo de oposição democrática, comprometido com a defesa dos direitos, da realização da justiça social, e da soberania do Brasil".

Reaparece aqui o problema já apontado em itens anteriores: a primazia do eleitoral. 

Segundo o texto, "a derrota da ultradireita é nas próximas eleições é um dos objetivos centrais para construirmos maioria na sociedade e acumularmos forças para retomar o governo do Brasil. Precisamos mais que 30% da preferência popular. Os setores que nos apoiam têm a expectativa de que voltemos a governar o país. Devemos buscar consolidar o apoio das 47 milhões de pessoas que votaram em Fernando Haddad e ir além".  

Ou seja: o movimento principal não é a maioria na sociedade que se expressa nas urnas; o movimento principal é a maioria nas urnas que serve para construirmos maioria na sociedade.

Em decorrência deste ponto de vista, a tese da CNB propõe "manter a coesão da frente de esquerda e centro-esquerda e buscar diferentes setores da sociedade a partir do compromisso e engajamento em lutas concretas em defesa dos direitos sociais e de condições dignas de vida".

O texto não cita nomes, nem partidos, mas está claro que defende uma política de alianças para além da esquerda (que sabemos quem é) e para além da centro-esquerda (que não sabemos de quem se trata, exatamente).

Em qualquer caso, o objetivo é que "ocorram deslocamentos políticos de setores democráticos e progressistas (...)deslocamentos que favoreçam a vitória das frentes de esquerda e de centro-esquerda nas principais cidades, se possível desde o primeiro turno".

Ou seja: o que a tese da CNB defende é a política de alianças ampla, adotada entre 1996 e 2016. E qual o objetivo? Segundo diz a tese, "nossas experiências nos governos de Estado e nas Prefeituras serão decisivas para levar às urnas a esperança em 2022".

Portanto, por onde quer que se observe, o que a tese da CNB está propondo, para o período 2019-2022, é algo similar ao que foi feito nos anos 1990, na luta contra o governo FHC.

Parte 9 e última

Chegamos, finalmente, ao último item da tese da CNB, intitulado "organização partidária".

O texto exalta a importância do PT, para logo em seguida deixar clara a necessidade "de atualização do seu projeto para o país, de suas políticas de médio e curto prazo, de suas formas de organização interna e da maneira de se relacionar com a sua base social, com as outras forças progressistas e democráticas e com o conjunto da população. Isso é ainda mais necessário em tempos de grande reestruturação produtiva e inovação tecnológica, que provocam mudanças vertiginosas nas formas de sociabilidade e de comunicação entre as pessoas. E especialmente depois de o PT ter sido ilegalmente derrubado do governo pelo golpe do impeachment, de ter sofrido a mais implacável tentativa de destruição que um partido político já viveu no país, de ver a sua maior liderança perseguida, condenada e presa, de termos perdido as eleições presidenciais de 2018, não obstante o expressivo resultado conquistado e a afirmação da importante liderança nacional de Fernando Haddad".

O texto reitera: "o país vive uma mudança drástica de ciclo político que demanda do PT não só a compreensão do seu significado, mas a tomada de posições que lhe permitam resistir com eficácia ao projeto destrutivo da extrema direita e, ao mesmo tempo, disputar com sucesso a hegemonia democrática na sociedade, tal como apontamos antes". 

E caso alguém não tenha entendido, o texto desenha: "Parte indissociável desses objetivos é repensar e aperfeiçoar a estrutura organizativa do PT, seu funcionamento, sua transparência, sua permeabilidade à influência de seus militantes, filiados e simpatizantes, bem como sua relação com os movimentos sociais, com a intelectualidade, a área jurídica, a área artística, a juventude, entre vários outros setores".

E, incorporando ideais que circulam em outros setores do Partido, a tese da CNB diz explicitamente que "a questão central que deve orientar o nosso debate organizativo é como conectar de modo mais profundo (e, em muitos casos, reconectar) o partido com as percepções, sentimentos e aspirações dessa ampla e diversificada base social", não havendo "dúvida de que tal reconexão supõe uma reforma interna do PT".

 A partir deste diagnóstico, o que a CNB propõe fazer? A resposta aparece no final do texto.

Antes, neste mesmo capítulo, a tese da CNB denuncia a realidade da "nova política" proposta pela direita, contrapondo a isto o virtuosismo da vida interna do PT, que "ao se insurgir contra a velha cultura das elites, produziu uma nova forma de fazer política no Brasil. Contestando o velho mandonismo, construindo de baixo para cima e da sociedade para o Estado um partido para atuar não apenas nos períodos eleitorais, mas no dia a dia do povo trabalhador. Uma agremiação em que cada integrante tem uma parcela do poder de decisão, em que o funcionamento se dá por instâncias democráticas em todos os níveis e em que a legislação eleitoral e partidária, que deve ser cumprida por razões formais, não é limite para novos experimentos de participação interna. Vencendo as restrições da LOP, Lei Orgânica dos Partidos Políticos, herança do regime militar, o   Partido adotou o modelo de decisões coletivas e garantiu aos filiados o direito de escolher livremente os seus dirigentes e, por meio de prévias internas, seus candidatos às eleições. Um partido que nasceu das lutas sociais e delas se alimenta permanentemente, e que busca não somente representar, mas encarnar a vontade de independência política dos trabalhadores e do conjunto das classes populares".

Nenhuma palavra é dita sobre o que está ocorrendo na vida real do Partido, nos últimos anos. 

No lugar disso, se fala que o "PT rompeu também com dogmas da esquerda tradicional, construindo uma crítica consistente – e pela esquerda – às experiências do chamado “socialismo real”, afirmando um projeto alternativo de socialismo democrático e libertário, o chamado “Socialismo Petista”. Ao mesmo tempo questionou vários de seus paradigmas de organização e funcionamento, entre eles o “centralismo democrático”, substituindo-o pela discussão de seus membros nas respectivas instâncias partidárias, pela decisão coletiva e pela unidade de ação após a decisão tomada. Abriu-se ainda à existência de tendências internas e proporcionalidade nas direções, expressão da ampla diversidade que caracteriza o PT, com o papel de debater, ideias, elaborar, construir e defender posições no âmbito interno do partido. O que unifica o conjunto dos petistas não é esta ou aquela doutrina ideológica, filosófica ou religiosa – mas o seu programa político de transformações emergenciais e estruturais para o país".

E, como se fosse pouco, o texto também comemora o fato do PT ter se insurgido "contra as práticas corriqueiras das elites políticas conservadoras no Brasil tais como o fisiologismo, o assistencialismo, o clientelismo, buscando gerar cidadania e inclusão social. Construiu uma denúncia importante da apropriação do Estado brasileiro pelas classes dominantes, pregou e praticou um combate permanente contra a corrupção e em defesa da ética e da transparência na gestão pública".

Aliás, "na última década, fiel a esse compromisso visceral com a democracia, o PT fez uma nova série de inovações na sua estrutura organizativa. Instituiu, por exemplo, o sistema de cotas nas direções em todos os níveis, ampliando e fortalecendo as secretarias setoriais, para garantir às maiorias sociais e aos segmentos socialmente discriminados os seus direitos dentro do partido: aos negros e negras, à mulheres, à comunidade LGBT, à juventude". 

Assim, a primeira parte deste item diz que o mundo mudou e que o PT precisa mudar; já a segunda parte do item faz tantos elogios a nós mesmos, que cabe perguntar por que mesmo o PT deveria gastar tempo fazendo um congresso estatutário em 2021. Afinal, o partido descrito na tese da CNB parece funcionar muito bem. 

O paradoxo é (supostamente) resolvido assim: "Temos orgulho de ser uma esquerda democrática e libertária e de nossa trajetória fortemente inovadora em matéria de organização interna. Mas é preciso não esquecer que mesmo as organizações mais criativas e transformadoras sofrem os efeitos do tempo e das contradições da vida política, e podem acomodar-se, perder vitalidade e até burocratizar-se. Mesmo uma organização como a nossa, tão ousada e atenta aos fenômenos emergentes da vida contemporânea, corre o risco de ficar defasada em relação às novas realidades sociais e aos novos desafios da luta política".

Portanto, nossos problemas "podem" ocorrer; "corremos o risco" de que eles ocorram.  Não se trataria, portanto, de problemas urgentes, de cuja solução depende nossa sobrevivência.

Isto posto, a tese passa a falar da necessidade de "unir os partidos de esquerda e de centro-esquerda e os movimentos sociais e criar, no parlamento e nas ruas, um forte movimento de resistência ao desmonte da economia nacional, do Estado democrático e das políticas públicas de combate à pobreza e de inclusão social, que interessam ao conjunto das classes populares e também às classes médias assalariadas, entre outros setores".

Sendo necessário, "também", "criar um movimento mais amplo de oposição, buscando aliança com todos os que acreditam na democracia, indo além do campo da esquerda e da centro-esquerda, para barrar o avanço do Estado Policial, garantir o Estado de Direito e libertar Lula da prisão arbitrária em que se encontra".

A CNB parece esquecer que Bolsonaro não foi personagem central do golpe de 2016, nem foi Bolsonaro quem condenou e prendeu Lula. Os que fizeram isto foram, essencialmente, os setores que a CNB quer atrair para uma frente em defesa da democracia.

Em seguida, o texto volta a afirmar que "o período atual exige novas formas de organização para o PT", sendo "hora de o PT avaliar a sua organização, as condições e a efetividade da sua militância e das suas direções espalhadas por todo o país", "(re)examinar o modelo e o funcionamento da nossa organização partidária em seus vários aspectos", "avaliar com seriedade a situação das nossas instâncias de base e das direções, bem como dos setoriais, das bancadas parlamentares, dos governos estaduais e municipais liderados pelo PT", "perguntar em que medida essas instâncias estão cumprindo plenamente o seu papel, ou se o seu formato e método de funcionamento deve ser alterado para responder melhor aos desafios atuais do partido e do país", "refletir coletivamente sobre a sistemática vigente de financiamento público e de autofinanciamento do partido, assim como dos critérios de destinação de recursos. O mesmo vale para áreas estratégicas do partido, fundamentais para a qualidade e o resultado da nossa atuação coletiva, a exemplo da comunicação (interna e externa) e da formação política".

Outros temas são citados ("novos espaços de participação interna para militantes, filiados e apoiadores", "implementação de um sistema eletrônico de comunicação com o conjunto dos filiados", "envolvimento dos filiados e filiadas, inclusive de pequenos municípios, nas ações cotidianas e nas campanhas políticas gerais do partido", "organização dos setoriais nos estados e municípios", "definição de uma política específica, do conjunto do partido, para a chamada transição geracional, estimulando a filiação de jovens ao PT e favorecendo a candidaturas de jovens em todos os níveis").

Isto posto, a tese da CNB avisa que "várias medidas para melhorar a organização do partido podem ser tomadas pela própria Direção Nacional. Outras, segundo as regras do PT, exigem uma reforma estatutária propriamente dita, que deve ser objeto de um congresso específico, convocado para esse fim, com toda a necessária preparação política e técnica. Nesse sentido, propomos que o 7º Congresso convoque um Congresso Extraordinário de Reforma Estatutária para 2021".

Ou seja: existiria uma potencial necessidade de reorganizar, mas esta necessidade pode aguardar um ou dois anos. Isto supondo que este congresso não terá o mesmo fim do plebiscito sobre as eleições diretas, aprovado por unanimidade no sexto congresso, adiado diversas vezes e agora suprimido da memória.

Como já foi dito, a tese da CNB é marcada por diagnóticos próximos da realidade, aos quais seguem propostas que repetem políticas do passado.

Mas no caso da organização, o diagnóstico está muito aquém da realidade. A situação do Partido é gravíssima. O quadro pintado pela tese da CNB não corresponde a vida real. O PT tem necessidade de uma urgente revolução organizativa. Adiar isso para 2021 (ou para sabe-se lá quando) é uma atitude que revela muito não apenas sobre o que pensa a tendência atualmente majoritária, mas também sobre os interesses que movem alguns de seus dirigentes, especialmente aqueles que estão a frente de cargos nas instâncias partidárias.

SEM REVISÃO, PODE CONTER ERROS