Segue entrevista concedida ao Henrique Cézar, Presidente do Diretório Municipal de Socorro/SP e estudante de jornalista na UNESP/Bauru-SP.
O PT debateu por muitos anos qual o modelo de socialismo deveria adotar (um artigo seu na Caros Amigos chega a citar a existência de 4 grandes correntes ideológicas dentro do PT atualmente: social-liberalismo, desenvolvimentismo, social-democracia e socialismo). Após 35 anos de partido e 13 anos de governo, é possível definir qual socialismo o PT tentou adotar e implantar?
A opinião do PT sobre o socialismo se alterou muito, ao longo destes 35 anos.
As formulações iniciais do Partido eram muito genéricas, mas foram ganhando consistência ao longo dos anos 1980. Um marco disto são as definições do V Encontro nacional (1987), que falam de um programa e de uma estratégia democrático-popular e socialista.
A crise do socialismo soviético e a ofensiva neoliberal perturbaram profundamente esta reflexão.
No início dos anos 1990, a esquerda brasileira dividiu-se: 1) uma parte defendia manter a estratégia adotada pela esquerda
nos anos 1980; 2) outra parte defendia atualizar aquela estratégia às novas condições; 3) um terceiro setor defendia mudar de estratégia para aproximar-se das posições que na Europa e na América Latina eram conhecidas como "centro-esquerda".
Em síntese, podemos dizer que a combinação entre ofensiva neoliberal e crise do socialismo de tipo soviético estimulou fortes mudanças no pensamento político e ideológico da maior parte da esquerda brasileira. Algumas destas mudanças já
vinham se acumulando de antes, como resultado de uma análise que se fazia desde os anos 1950 acerca dos limites do socialismo soviético e da estratégia proposta pelos partidos comunistas.
Não foram mudanças uniformes, até porque a esquerda brasileira não é nem nunca foi homogênea, representando diferentes setores sociais e expressando diferentes visões político-ideológicas. Qual foi o sentido predominante das mudanças no pensamento da esquerda brasileira, sob o efeito da crise do socialismo de tipo soviético?
As mudanças que nos parecem predominantes e fundamentais -- ou seja, aquelas mudanças que afetaram a maior parte da esquerda e que determinaram a partir de que postura esta esquerda atuou num cenário marcado pelo
deslocamento da correlação de forças em favor do Capital e do imperialismo-- foram as seguintes:
Cresceu o questionamento acerca do papel protagonista da classe trabalhadora e, de maneira mais ampla, acerca do papel das classes e da luta de classes no funcionamento e na transformação da sociedade brasileira.
Cresceu também o questionamento acerca do papel dos sindicatos e dos partidos políticos, bem como do significado mesmo da
"esquerda" e da "vanguarda".
Houve uma progressiva substituição do socialismo pelo desenvolvimento como ideia estruturante do pensamento de
grande parte da esquerda brasileira.
O que nos anos 1930 a 1980 era uma subordinação política (com setores da esquerda socialista e comunista apoiando os setores democráticos burgueses na luta contra os setores conservadores) converteu-se pouco a pouco numa subordinação teórica e ideológica: setores da esquerda adotando como seu programa máximo o capitalismo.
Derivado disto, a "revolução política e social" e as "reformas estruturais" foram sendo deixadas de lado em favor da promoção
de políticas públicas a serem implantadas por governos eleitos nos marcos de democracias eleitorais.
As grandes interpretações e narrativas típicas da tradição marxista foram sendo progressivamente substituídas, ou por visões
tradicionalmente vinculadas a tradição liberal-democrática e a conservadora, ou por discursos fragmentários cuja matriz de fundo
era um irracionalismo intelectual de tipo religioso.
Algumas destas mudanças deitam suas raízes nos anos 1950 e 1960. Outras nos anos 1970-1980, de luta contra a ditadura militar e contra a "transição conservadora para a democracia". Várias ganharam ímpeto no período 1990-2002, marcado pela oposição da esquerda aos governos neoliberais. Todas repercutem ainda hoje, no período 2003-2015, quando parte da esquerda brasileira participa do governo do país.
Tais mudanças ideológicas devem ser vistas no contexto de um processo mais amplo, que alterou as condições objetivas e subjetivas em que vive e atua tanto a classe trabalhadora quanto a militância de esquerda. Entre estas alterações, destacam-se: 1) a destruição e fragmentação do parque produtivo e a consequente redução, dispersão e fragmentação da classe trabalhadora assalariada, seja de sua fração industrial, seja de seus setores comerciais e de serviços; 2) a constituição de uma imensa massa humana que não encontra opções para vender sua força de trabalho, sendo muitas vezes obrigada a sobreviver de expedientes miseráveis e antissociais; 3) a cooptação de parcelas melhor remuneradas da classe trabalhadora, inclusive de amplos setores da intelectualidade profissional (professores, comunicadores, artistas) pelo modo de vida e pensamento neoliberal; 4) a renovação geracional da classe trabalhadora, num contexto de enfraquecimento da consciência e da solidariedade de classe; 5) e, ironicamente, a normalização da vida política do país, com eleições regulares de dois em dois anos, abrindo passo para americanizar as eleições brasileiras e domesticar paulatinamente parte das esquerdas.
Olhando em perspectiva histórica, o efeito global destas mudanças no pensamento político e ideológico da maior parte da esquerda brasileira teve um efeito paradoxal. Por um lado, a flexibilização sem traição permitiu à esquerda brasileira vergar como junco, sem quebrar, conseguindo manter uma força social e institucional nos anos 1990 e ganhar a presidência da República em 2002. Por outro lado, esta mesma flexibilização sem traição reduziu a capacidade da esquerda brasileira liderar transformações mais profundas na sociedade.
Pois as tais mudanças corresponderam a uma ampliação da hegemonia burguesa, tanto na classe trabalhadora quanto em vastos setores da esquerda, que incorporaram horizontes programáticos, paradigmas explicativos, prioridades políticas, métodos de financiamento, padrões de funcionamento e estilos de democracia interna típicos dos chamados partidos tradicionais.
Como resultado disto tudo, cresce o número dos que seguem reafirmando o socialismo, mas como "horizonte". Cresce o número dos que abandonam o socialismo enquanto alternativa globalmente superior ao capitalismo, transformando-o em missão civilizatória do próprio capitalismo (ou seja, em "valores" socialistas). Cresce o número dos que Identificam socialismo com democracia, economia de mercado e Estado de bem-estar. Ou seja, com socialdemocracia .
O enfraquecimento do socialismo como bússola e como alternativa concreta foi acompanhado pela conversão de amplos setores da esquerda, até então influenciados pelo marxismo, às ideias keynesianas e neoliberais.
Como fruto dessas alterações, a polarização dominante no debate da esquerda brasileira nos anos 1990 passou a dar-se entre duas correntes de opinião: o reformismo desenvolvimentista e o reformismo social-liberal, com as correntes socialistas (revolucionárias ou reformistas) geralmente reduzidas a apoiar as posições expressas pela corrente desenvolvimentista.
Enfim, há hoje um fosso enorme entre: 1) o que o PT diz em suas resoluções congressuais acerca do socialismo; 2) o que pensam a respeito os milhões de pessoas que são petistas; 3) o que o PT faz de concreto no sentido de lutar pelo socialismo.
Evidentemente, pelos motivos citados, até agora não tivemos nenhuma oportunidade de "aplicar" medidas socialistas.
Hoje, vivemos a chamada maior crise da história do partido. Além dos escândalos que envolvem dirigentes petistas, a militância parece distante e até com um sentimento de traição. Contudo, durante as gestões de Lula e Dilma, conquistas importantíssimas aconteceram para o país. Como petista histórico que acompanhou vários processos dentro do partido, valeu a pena lutar para o PT chegar ao poder?
A classe trabalhadora brasileira ainda não chegou ao poder e, portanto, o PT não chegou ao poder.
Quem detém o poder no Brasil, hoje e desde 2003, é quem já detinha o poder.
Quanto a crise, não acho que sua causa esteja nos escândalos. O problema é de outra natureza: esgotou-se a estratégia adotada desde 1995. Como nos últimos 20 anos se deixou em segundo plano a estratégia, até mesmo na hora de entender a crise tem gente que só olha a árvore, sem perceber a floresta.
Note que a crise também existe na Argentina e na Venezuela.
Atinge, em maior ou menor menida, todos os governos progressistas da região, que são progressistas porque, em maior ou menor medida, com maior ou menor radicalidade, querem superar a hegemonia neoliberal.
Entretanto, gostando ou não disto, admitindo ou não isto, todos atuam nos marcos desta hegemonia (ou seja, nos marcos da hegemonia do capital financeiro e transnacional, em especial dos EUA). Além disto (e por isto), todos os governos progressistas da região buscaram aproveitar-se da "janela de oportunidades" comerciais e de investimentos externos aberta, especialmente, entre 2000 e 2005.
De maneira muito simplificada, esta "janela" estava apoiada nas necessidades e interesses econômicos dos Estados Unidos e da China. Necessidades que geraram uma forte demanda por commodities, fornecidas entre outros pelo Brasil. Pois bem: desde a crise de 2007-2008, tanto a China quanto os Estados Unidos estão alterando os termos de sua relação. Entre os muitos efeitos disto, há dois que impactam pesadamente o conjunto dos denominados "países em desenvolvimento", inclusive os latino-americanos e caribenhos: o fim do que alguns chamam de super-ciclo de commodities e a redução (ao ponto da inversão) no fluxo de capitais vindo das "metrópoles".
Evidentemente, quem aproveitou aquela "janela de oportunidades" para fazer mudanças estruturais (tanto na economia quanto na política) está mais preparado para enfrentar a conjuntura aberta a partir de 2008. Quem, pelo contrário, não fez reformas estruturais neste período e – pior ainda—achou que a janela se prolongaria por ainda muito tempo, agora enfrenta maiores dificuldades.
Que tipo de mudanças estruturais deveriam ter sido tentadas? Sobre isto há várias respostas, que correspondem aos diferentes interesses de classe e aos diferentes programas políticos existentes na sociedade brasileira. Mas existe um critério objetivo para definir qual deveria ser o "programa mínimo" das reformas estruturais: o que está no centro do conflito entre as classes (dentro de cada país) e entre os Estados (no âmbito internacional).
Tomando este critério, as mudanças estruturais que deveriam ter sido tentadas, no caso brasileiro, a partir de 2003, são as seguintes:
a) desenvolvimento de uma indústria forte e tecnologicamente avançada, com os desdobramentos que isto tem no âmbito da ciência e da engenharia nacionais (sem o que não se altera o "lugar" do Brasil na divisão internacional do trabalho);
b) constituição de um setor financeiro poderoso e público (sem o que não haverá recursos para o desenvolvimento e continuaremos submetidos à ditadura do capital financeiro);
c) reforma agrária e universalização das políticas sociais (sem o que não há condições materiais para combinar crescimento econômico com elevação do bem-estar social);
d) integração regional (possibilitando cadeias produtivas, economia de escala, recursos e retaguarda estratégica);
e) ampliação da auto-organização da classe trabalhadora e ampliação das liberdades democráticas do conjunto do povo, com destaque para quebra do oligopólio da comunicação, reforma política e do Estado, outra política de segurança pública e de Defesa, outra política de educação e cultura (sem tais medidas, a classe dominante terá os meios para sabotar e reverter o processo de mudanças).
Como sabemos, no caso brasileiro, tais mudanças estruturais não foram tentadas. Melhoramos a vida do povo, sem fazer nenhuma destas reformas estruturais. Se olharmos outros países da América Latina e Caribe, veremos situações diferentes, que ajudam a compreender porque a mesma situação internacional provoca respostas políticas distintas, ainda que dentro de uma dinâmica similar.
Uma questão é: por qual motivo no caso brasileiro aquelas mudanças estruturais não foram nem ao menos tentadas? Isso obviamente remete para as opções ideológicas, programáticas, estratégicas e táticas feitas pela maior parte da esquerda brasileira ao longo dos anos 1990, opções que vem sendo testadas a partir de 2003.
No período dos Fernandos, a ofensiva neoliberal fez o país regredir, provocando como efeito colateral uma alteração nas concepções da esquerda brasileira, que fez o PT (força hegemônica na esquerda dos anos 1990) assumir posições estratégicas similares àquelas do PC e do PTB antes do golpe militar de 1964. A saber: uma aliança estratégica com setores da classe dominante, uma opção preferencial por mudanças via conciliação, bem como certa fé tocante nas instituições.
A maior parte da esquerda brasileira acreditou, aderiu e contribuiu com a referida estratégia que podemos denominar como de conciliação. Maximizou seus efeitos positivos e minimizou seus defeitos. Mesmo aqueles que percebiam os riscos, não tomaram as medidas corretivas necessárias.
Os riscos eram de três tipos. Primeiro, a progressiva perda de apoio na classe trabalhadora, nos setores populares em geral, nos chamados setores médios e na juventude, que de conjunto constituíram a base de apoio para o crescimento da esquerda ao longo dos anos 1990. Segundo, o risco da melhoria das condições de vida do povo provocarem -- lembrai-vos da taxa de lucro!!!-- uma mudança na posição daqueles setores do empresariado capitalista que pareciam engajados na política de conciliação. Terceiro, uma mudança no ambiente internacional, que estreitasse a margem de manobra de uma politica "ganha-ganha", que pretendia melhorar a vida dos pobres sem reduzir o lucro dos ricos.
Quando veio a crise de 2007-2008, o governo brasileiro reagiu bem: mais mercado interno, mais integração regional, mais Estado. Naquela ocasião, a Petrobrás foi fundamental. Mas, novamente, as mudanças estruturais não foram feitas. De forma geral, quando temos força e estamos bem, prevalece a ideia de que se tentar melhor, estraga. Na véspera das eleições de 2010, o debate na direção do Partido dos Trabalhadores demonstrou que parte importante não tinha consciência de que a marolinha converter-se-ia num tsunami, o que além das dificuldades gerais causadas para a economia brasileira, contribuiria para acelerar a mudança na posição do empresariado brasileiro.
Sem mudanças estruturais, esgotou-se rapidamente a capacidade do Estado investir. E frustrou-se também a tentativa de forçar o oligopólio financeiro privado a investir na produção. Frente a isto, o que fez o governo no período 2011-2014? Manobrou como pode o dia-a-dia do caixa, manteve uma política ortodoxa de juros e cambial, depositou imensas expectativas no papel dinamizador da Petrobrás e apostou nas desonerações contra a "greve de investimentos" do setor privado, na expectativa de que o empresariado privado respondesse com manutenção de empregos, ampliação na produção e redução nos preços. Como sabemos, manteve-se o desemprego sob controle, mas fora isto o grande capital beneficiado pelas desonerações preferiu apostar nas possibilidades abertas pela taxa de juros.
No período 2011-2014, o grande empresariado como um todo, inclusive os setores que haviam apoiado a política de conciliação, reclamavam uma mudança fundamental na "política econômica": que o governo detivesse e revertesse a política de ampliação do salário direto e indireto da classe trabalhadora. Como o governo não fez isto, o resultado foi o deslocamento de setores cada vez mais amplos do grande capital em favor da oposição. Este deslocamento já havia sido antecipado pelos setores médios. E, o mais grave, foi acompanhado também do deslocamento de camadas populares, inclusive na classe trabalhadora. O que explica o fato da eleição de 2014 ter sido não apenas vencida por Dilma, mas também quase perdida.
A disputa presidencial de 2014 não apenas foi duríssima, como teve continuidade após as eleições. Alguns setores da esquerda reclamam disto, num tom indignado que apenas demonstra as ilusões que há entre nós, tais como acreditar que a direita brasileira respeita as instituições, quando a vida e a história demonstra que sua (deles) visão é outra: para eles tudo, para os inimigos nem mesmo a lei.
A disputa eleitoral de 2014 não se interrompeu desde o segundo turno, não apenas porque a direita sentiu gosto de sangue, mas também porque há um problema de fundo não resolvido. E o problema de fundo não resolvido é o seguinte: a atual situação (política, econômica e social) não agrada a nenhuma das classes fundamentais da sociedade brasileira. Estamos numa situação de impasse estratégico, não apenas tático, não apenas político, não apenas institucional.
É por isto que para os setores encabeçados pelo PT não é suficiente manter o governo, conquistado legitimamente nas eleições de 2014. É preciso achar caminhos para colocar o governo à serviço daquelas mudanças estruturais que deveriam ter sido feitas quando éramos mais fortes.
A quais fatores você atribui as manifestações de ódio contra o PT por parte da sociedade? Esse processo é reversível ou o PT dificilmente voltará a conquistar a simpatia de parcela considerável dos eleitores?
Começando pelo final: o PT tem todas as condições de reconquistar o apoio da maior parte da classe trabalhadora brasileira. Mas para isto, precisa fazer as mudanças de que falei na resposta anterior. O que vai gerar ainda mais ódio da parte de setores minoritários da sociedade brasileira, que odeiam o PT não exatamente pelo que fizemos ou deixamos de fazer, mas sim nos odeiam pelo que somos, por quem representamos.
O PT, em especial sua base no Congresso, é capaz de garantir hoje a sustentação para que o impeachment da presidenta Dilma Rousseff não aconteça? Você acredita na possibilidade do impeachment?
Acredito que há forças reacionárias que desejam o impeachment. E que o impeachment só não saiu porque houve mobilização popular contrária e, também, porque as forças reacionárias estão divididas: existe a direita partidária, a direita social, a alta burocracia de Estado, o grande capital e o oligopólio da mídia, cada setor com táticas que oscilam em torno de duas variantes fundamentais:
a) empurrar o governo da presidenta Dilma Rousseff a implementar o programa econômico conservador, desgastando a esquerda e facilitando assim reconquista plena, em 2018, do governo federal;
b) afastar a presidenta Dilma, seguindo-se novas eleições ou uma presidência interina de Michel Temer (esta segunda alternativa é chave para entender o texto programático divulgado pelo PMDB em novembro de 2015).
Em algumas situações, divisões na direita ajudam a esquerda. Mas na situação atual, a esquerda é "alvo fixo" para os ataques vindos dos diferentes setores da direita. Como nos desenhos animados: rompe a barragem e cada vez que o herói tampa um furo, outros furos aparecem.
Ajuda nisto o fato de, apesar das diferenças táticas, haver um amplo consenso estratégico entre as forças reacionárias, em torno dos seguintes objetivos:
a) realinhar o Brasil ao bloco internacional comandado pelos Estados Unidos (portanto, afastando-o tanto dos BRICS quanto da integração latino-americana);
b) reduzir os níveis de remuneração, direta e indireta, da classe trabalhadora brasileira (o que inclui desde alterações na legislação trabalhista até cobrança de serviços públicos, passando por revisão nas políticas de reajuste do salário mínimo e repressão aos movimentos sociais reivindicatórios);
c) reduzir o acesso dos setores populares às liberdades democráticas em particular e aos direitos humanos e sociais em geral.
Como eles têm unidade estratégia, existe a possibilidade deles se unificarem em torno da tática do impeachment. Por isto, só a resistência popular é antídoto seguro.
Alguns historiadores, como Lincoln Secco, apontam que as mudanças dentro do PT foram graduais. Você concorda ou houve alguma ruptura decisiva que implicou nesse novo comportamento do PT, mais distante de suas propostas de fundação e de suas bases?
Todo processo histórico envolve gradualismo e rupturas. A metamorfose do PT também foi assim. Agora, por razões que busquei explicar na minha tese de doutorado (que intitula-se exatamente A metamorfose), considero central levar em conta não o que acontece "no" PT, mas o que acontece "com" o PT e fora dele. No link a seguir está minha tese, escrita há uma década e sob diversos aspectos ultrapassada, mas mesmo assim sugiro a leitura do último capítulo:
Em meados da década de 1990, tendências de esquerda superaram o campo majoritário do PT e conseguiram fazer maioria no diretório nacional. Contudo, essa divisão de forças durou pouco tempo. Por que a esquerda petista não conseguiu prosperar no comando do partido?
Há vários motivos, entre eles o fato de termos conseguido maioria relativa no Diretório Nacional (mas não na bancada, não entre os prefeitos, não no movimento sindical) em 1993, num momento em que setores importantes do Partido acreditavam que as eleições de 1994 seriam uma espécie de terceiro turno de 1989. Mas não foi isto o que aconteceu. Fomos derrotados no primeiro turno por FHC. Mesmo assim, no encontro nacional do PT ocorrido em Guarapari perdemos a eleição por 2 votos (na tese guia) e por 16 votos (na escolha do presidente do Partido). E mesmo esta pequena diferença só existiu porque houve fraudes (na eleição de delegados na cidade de Diadema/SP e na eleição de delegados no estado da Paraíba) e porque um setor da esquerda (Rui Falcão, Candido Vacccareza, Sílvio Pereira) apoiaram o grupo majoritário. Em condições normais, teríamos mantido maioria. Entretanto, o fundamental -- politicamente falando-- era a mudança no contexto mais amplo da luta de classes.
A eleição de Jose Dirceu como presidente do partido foi decisiva para esse processo de mudanças internas do PT que levaram o partido a alianças conservadoras e de certo modo isolaram a esquerda do partido das grandes decisões, inclusive no governo?
Dirceu foi, junto com Lula, o formulador e o executor da orientação estratégica adotada pelo Partido em 1995, estratégia que mostrou seus efeitos colaterais nas crises de 2005 e 2015.
Em 2005, após estourar o escândalo do mensalão, muitos pensaram que o governo de Lula estava acabado, junto com o PT. Contudo, o presidente intensificou sua presença juntos aos movimentos sociais e grupos à esquerda no PT. Atos em defesa do governo foram organizados pela CUT, MST e em setembro cerca de 300 mil petistas foram às ruas participar do PED – num sinal de defesa do partido. Ou seja, em meio à crise, ainda foi possível mobilizar uma parcela da militância. Hoje, você entende ser possível mobilizar a militância para defender/sustentar o governo e o partido, caso o cenário político continue se agravando?
Sim, é possível, sempre e quando se demarque o campo de classe, se gire à esquerda. Vale lembrar que setores do grupo majoritário do Partido, em 2005, defendiam adiar o PED porque achavam que a militância não ia comparecer. A base do Partido é melhor do que sua direção. E a base quer defender o PT, quer defender a política que venceu as eleições de 2014. E faz um enorme esforço para defender o governo Dilma, apesar do ministro da Fazenda, apesar do ministro da Justiça, apesar do ministro das Cidades, apesar da ministra da Agricultura etc....
Ainda em 2005, no epicentro da crise do mensalão, percebeu-se uma nova demonstração de forças da esquerda no PED (exceto Ricardo Berzoini, todos os demais candidatos eram ligados a tendências mais à esquerda). O que faltou para a esquerda assumir o comando do partido em momento tão crítico e estratégico?
Voto. E faltou voto porque um setor da esquerda, setor então liderado por Plínio de Arruda Sampaio, decidiu sair do PT entre o primeiro e o segundo turno das eleições para presidência nacional do PT. E decidiram sair porque achavam que o PT já era. Eles saíram, perdemos por pouco e mesmo assim deslocamos o Partido e o governo para a esquerda, como ficou claro na eleição de 2006 e no segundo mandato de Lula. O esquerdismo causa dano equivalente ao direitismo.
O 5º Congresso foi o primeiro grande evento do PT que participei presencialmente (minha filiação propriamente dita é recente e tenho 22 anos). Foi possível em vários momentos ver a militância se manifestando, entoando palavras de ordem e mesmo debatendo. Mas conversando com os próprios militantes, fiquei com a sensação de que nem de longe as manifestações se aproximam do passado. A militância petista está acuada (envergonhada, com medo, perdeu a esperança no partido etc.) ou o perfil do petista mudou ao longo dos últimos anos?
Há uma mudança no perfil da militância que comparece a este tipo de evento. E o problema não está na forma, na retórica, no teatro. O problema é de conteúdo: os delegados e delegadas presentes ao congresso foram eleitos em 2013, portanto representam um outro momento da vida do Partido. Foram eleitos num processo viciado pelo dinheiro, assim como pela influência de quem dirige máquinas parlamentares e governamentais. E grande parte trabalha nestas mesmas máquinas, o que em muitos casos reduz a sensibilidade frente a gravidade da situação política e social. Finalmente, há menos debate político e menos cultura política do que há 10 ou 20 anos.
É fato que José Dirceu foi condenado sem provas, todos os outros partidos usaram de práticas que o PT usou e nunca a mídia esteve tão empenhada em mostrar as falhas de um partido como agora com o PT. Porém o PT surgiu e cresceu por ser diferente e caiu nas mesmas armadilhas daqueles que criticavam. O PT precisa fazer uma autocrítica mais profunda em sua opinião? Como?
Claro que sim. Por um lado admitindo com mais clareza que baixamos a guarda frente ao modo tradicional de fazer política. Por outro lado, mudando o comportamento prático do partido. Infelizmente, estamos muito longe disto. Existe inclusive quem ache ser um erro falar em autocrítica.
Você se decepcionou com o resultado do 5º Congresso, realizado em junho, em Salvador?
Não. Sabia que havia grande chance da maioria dos delegados e delegadas, eleitas em 2013, noutro contexto, se renderam às pressões conformistas, governistas, aparelhistas. Mesmo assim, na principal das votações, tivemos 45% dos votos em favor de uma resolução que criticava abertamente a política econômica adotada neste segundo mandato Dilma. Se os delegados tivessem sido eleitos em janeiro de 2015, teríamos vencido.
Qual foi o grande erro do Partido dos Trabalhadores nesses 35 anos?
Ter reduzido o entrosamento, a ligação profunda que havia entre o Partido e a classe trabalhadora. Precisamos recuperar nosso apoio junto à classe. Não falo das dezenas de milhares de pessoas que vão às marchas, manifestações e congressos. Falo das dezenas de milhões que apoiaram as esquerdas nas eleições de 1989, 1994, 1998, 2002, 2006, 2010 e 2014, mas que agora estão decepcionados e em muitos casos sob hegemonia da direita.
Em artigo na revista Caros Amigos, você afirma que são reduzidas as chances de êxito na luta por mudar os rumos do PT. Neste cenário, ainda vale a pena estar no PT? Por quê?
Te respondo com uma analogia histórica, com toda imprecisão que as analogias possuem: no final dos anos 1910, a vanguarda da classe trabalhadora brasileira estava sob hegemonia do anarquismo. O anarquismo foi derrotado e parte do anarquismo apostou na criação do Partido Comunista. Mas foi apenas depois da Segunda Guerra Mundial que a estratégia do partido comunista tornou-se hegemônica na vanguarda da classe trabalhadora. O golpe de 1964 desmoralizou profundamente a estratégia do PC, mas a direção do PC dobrou sua aposta na mesma linha, provocando cisões, rupturas, saídas e também uma proliferação de novas organizações de esquerdas. Mas foi só nos anos 1980 que as lutas de uma nova classe trabalhadora dariam origem a uma nova estratégia hegemônica, simbolizada numa também nova organização, o Partido dos Trabalhadores, que reuniu a maior parte da vanguarda da classe. Hoje, aquela estratégia seguida desde 1995 pelo PT está sob imenso questionamento (a partir de dentro e também de fora; a partir da esquerda, mas principalmente por parte da direita). O que acontecerá se PT não for capaz de fazer autocrítica, se o PT não for capaz de (tentar e de ter êxito em) construir uma nova estratégia?
Neste cenário, os milhões de trabalhadores e de trabalhadoras que algum dia votaram, confiaram e inclusive militaram no Partido vão dividir-se. Uma minoria seguirá para outros partidos e movimentos de esquerda. Uma parte adotará posições conservadoras. E a ampla maioria vai afastar-se da política ativa durante muito tempo;
Neste cenário, o enfraquecimento do PT não será acompanhado do fortalecimento simultâneo de uma esquerda melhor do que o PT. No futuro, com pelo menos uma geração de intervalo, isto poderia/poderá acontecer. Mas de imediato, o enfraquecimento do PT teria/terá como resultado o fortalecimento da direita. E eventuais setores de esquerda que conseguissem/conseguirem crescer absorvendo o ex-petismo, o fariam num contexto de enfraquecimento da esquerda como um todo.
É por isto que, não apenas para derrotar a direita agora, mas também para evitar que se perca uma geração (como ocorreu em 1964), meu esforço continuará sendo no sentido de fazer o PT mudar de estratégia e fazer o governo mudar de politica. Sendo que o fundamental é fazer o PT mudar de estratégia, pois do ponto de vista histórico e estratégico é bem mais fácil conquistar e reconquistar governos, do que construir e reconstruir partidos.
O PT sempre foi o partido com maior influência nas classes trabalhadoras brasileiras. Também pode ser considerado como principal partido de esquerda do país. Uma derrota histórica do PT (o que pode ser compreendido de forma mais ampla como o fim do PT como força eleitoral, como defendem muitos fanáticos da direita) significaria também uma derrota de toda a esquerda brasileira e da classe trabalhadora no país?
Claro que sim.
É verdade que alguns setores da esquerda querem derrotar o PT, ou seja, consideram que o PT é o inimigo estratégico.
Algumas organizações de esquerda acreditam que adotar uma diretriz anti-petista os coloca em sintonia com amplos setores da classe trabalhadora, que estão irritados com o PT.
O que estas organizações de esquerda anti-petistas não percebem é que parte importante dos amplos setores da classe trabalhadora desgostosos com o PT, estão sob hegemonia da direita; e será esta direita, e não a "esquerda da esquerda", quem colherá os frutos de uma eventual derrota do PT. Derrota que, repetimos, poderá ocorrer independente dos melhores esforços que façamos, devido à confluência entre acertos do lado de lá e erros do lado de cá.
Seja como for, o principal desafio e objetivo do petismo é reconquistar o apoio da classe trabalhadora (com destaque para os jovens trabalhadores e jovens filhos de trabalhadores), o que depende em grande medida do PT mudar de estratégia e do governo mudar de política econômica.
O PT sairá derrotado nas eleições municipais de 2016? Haddad conseguirá se reeleger?
Isto depende do que fizermos daqui até lá. Se adotarmos a política certa, podemos ter uma vitória política e eleitoral, não apenas em São Paulo, mas em muitas cidades do país.
Muito têm se falado sobre a necessidade do PT voltar às origens. Isso é possível hoje?
Ninguém volta às origens. O que o PT precisa é colocar-se à altura dos desafios atuais. Entre outras coisas, construindo, tanto na teoria quanto na prática, outra estratégia. Uma estratégia de luta pelo socialismo, não apenas por um capitalismo pós-neoliberal. Uma estratégia de luta pelo poder, não apenas pelo governo. Uma estratégia das classes trabalhadoras, não de conciliação com setores da classe dominante.
Como e de que forma o Partido dos Trabalhadores pode superar a atual crise que desgasta sua imagem – crise essa fruto de erros e da tentativa de criminalização do partido por parte da direita e dos meios de comunicação.