quarta-feira, 31 de março de 2021

O "uso político" das forças armadas

Há um conflito entre Bolsonaro e setores das forças armadas.

O que equivale a dizer que existe um conflito entre diferentes setores das forças armadas.

Mas é bom lembrar que ali não tem nenhum santo.

Todos apoiaram o golpe de 2016, a condenação/prisão/interdição de Lula, a fraude eleitoral de 2018.

Todos apoiaram Bolsonaro. E muitos seguem apoiando, fazendo parte de seu governo e apoiando suas políticas.

Portanto, as juras de amor pela Constituição valem mesmo no que diz respeito a garantia da Lei e da Ordem.

Ademais, nada mais conveniente do que brigar com Bolsonaro neste momento, dissociando mesmo que seja um pouco a imagem das forças armadas da lambança que as mesmas forças armadas ajudaram a produzir, por exemplo no que diz respeito à difusão da pandemia.

E como se não bastasse, uma parte da imprensa, dos setores democráticos e da esquerda estão "comprando" a tese segundo a qual um presidente da República só poderia nomear como comandante de uma força (Aeronáutica, Marinha, Exército) um nome que atenda aos critérios da corporação.

Corporativismo semelhante ao que, em casos como o da PGR e outros, nos fez engolir nomes inaceitáveis.

Na democracia que defendemos, as forças armadas devem se subordinar ao "poder civil" e isto inclui a livre nomeação dos comandantes das três forças.

O problema, portanto, é o seguinte: Bolsonaro não deveria poder nomear ninguém, porque Bolsonaro ocupa a presidência por conta de uma fraude e além disso cometeu inúmeros crimes de responsabilidade.

E muitos destes generais deveriam ser passados para a reserva, processados e condenados como cúmplices passivos ou ativos do genocídio. Ops, usei a palavra proibida!!


A desordem do dia

Está na página do Ministério da Defesa a "ordem do dia alusiva ao 31 de março de 1964".

Quem quiser ler, pode achar aqui:  https://www.gov.br/defesa/pt-br/centrais-de-conteudo/noticias/ordem-do-dia-alusiva-ao-31-de-marco-de-1964-2021

Ordem-do-dia em ambientes democráticos é uma lista de assuntos que devem ser debatidos.

Já ordem-do-dia em ambientes castrenses é uma lista de ordens que devem ser cumpridas.

No caso, a ordem-do-dia trata da interpretação que a cúpula das forças armadas, através do ministro da Defesa, quer nos impor acerca do golpe militar de 1964.

No manual de instruções da "democracia liberal", o ministro da Defesa deveria ser um civil.

No Brasil, entretanto, desde o final do governo Temer os ministros da Defesa passaram a ser militares.

E o que diz a ordem-do-dia de 31 de março de 2021 acerca do golpe militar de 1964?

Nada.

Pois segundo a ordem-do-dia, não houve golpe militar, não houve golpe de Estado em 1964.

Houve um "movimento".

Segundo a ordem-do-dia, a Guerra Fria trouxe ao Brasil "um cenário de inseguranças com grave instabilidade política, social e econômica. Havia ameaça real à paz e à democracia".

Então os "brasileiros perceberam a emergência e se movimentaram nas ruas, com amplo apoio da imprensa, de lideranças políticas, das igrejas, do segmento empresarial, de diversos setores da sociedade organizada e das Forças Armadas, interrompendo a escalada conflitiva, resultando no chamado movimento de 31 de março de 1964".

"Chamado movimento".... chamado por quem? 

"Chamado" pelos que não querem chamar as coisas pelos seus verdadeiros nomes: genocidas, assassinos, torturadores, ocultadores de cadáveres, ditadores, golpistas.

Nessa história da carochinha, as Forças Armadas, tadinhas, "acabaram assumindo a responsabilidade de pacificar o País, enfrentando os desgastes para reorganizá-lo e garantir as liberdades democráticas que hoje desfrutamos".

Os autores da ordem-do-dia estão no ramo errado. 

Deveriam sair das forças armadas e ir trabalhar no ramo de roteiros de ficção sobre realidades alternativas e paralelas.

Afinal, segundo a ordem-do-dia não houve conspiração por parte de militares.

Nem houve o golpe do parlamentarismo, a Operação Popeye da vaca fardada, nem a Brother Sam.

Tampouco ocorreu a farsa que declarou vaga a presidência, quando Jango estava no Brasil.

E as torturas eram assunto dos "porões", não uma política de Estado.

Mas demos um desconto! Afinal o texto da ordem-do-dia é "alusivo", ou seja, não diz respeito apenas a interpretação deles sobre 1964. 

É também a interpretação deles sobre o que ocorreu entre 2016-2021, em que as forças armadas estariam igualmente "assumindo a responsabilidade de pacificar o País" e enfrentando os "desgastes" decorrentes.

Mas ali na frente, como em 1979, virá uma "anistia", um amplo "pacto de pacificação" que desta feita os livraria de responder por mais de 300 mil vidas perdidas.

Este roteiro demonstra que a relação entre as forças armadas e o povo brasileiro é um caso típico de violência doméstica continuada: os caras batem, causam imensos danos, depois pedem desculpas, depois batem de novo, causam imensos danos, depois pedem desculpas outra vez... e perante o tribunal da história, ainda têm a desfaçatez de apresentar este círculo vicioso como um "pacto de pacificação".

O momento "realismo fantástico" da ordem-do-dia é a afirmação segundo a qual o "cenário geopolítico atual apresenta novos desafios, como questões ambientais, ameaças cibernéticas, segurança alimentar e pandemias. As Forças Armadas estão presentes, na linha de frente, protegendo a população".

Protegendo a população?

Da pandemia?

Da fome?

Se é deste jeito que nos "protegem", dá para prever o que nos aconteceria em caso de invasão estrangeira: o Marechal Philippe Pétain pareceria um valente.

O general Walter Souza Braga Netto termina sua ordem-do-dia nos convidando a celebrar os acontecimentos de 31 de março de 1964.

Seu convite será atendido pela totalidade da cúpula militar, inclusive pelos que foram demitidos ontem. Nisto não há a menor diferença entre eles. E aí reside parte essencial do abismo que separa as forças armadas que temos das forças armadas que necessitamos.


ps. por estas e por outras, o programa de reconstrução e transformação do Brasil, aprovado pelo DN do PT, não poderia ter calado acerca do tema forças armadas. Cada dia que passa sem um posição firme a respeito, pior fica. 



terça-feira, 30 de março de 2021

Um roteiro para entender a confusão atual



Observação: este artigo foi escrito antes da demissão formal dos comandantes militares.

1.Usar o método matrioska (ou cebola): de fora para dentro.

2.Desde a crise de 2008, os Estados Unidos operam para recuperar o espaço perdido na América Latina e Caribe.

3.O apoio do governo Obama contribuiu para o golpe de 2016 e para a condenação/prisão/interdição de Lula. Agora temos Biden, que foi vice de Obama.

4.O golpe tem antecedentes históricos (1964), ensaios parciais (2005, 2013*), importantes protagonistas civis (Aécio, Cunha, Temer), envolvimento pleno das “instituições” (judiciário, parlamento), sendo que as forças armadas jogaram papel essencial em pelo menos dois momentos: no condenação, prisão e interdição de Lula; e na construção e vitória da candidatura Bolsonaro.

5.Bolsonaro não foi um acidente, não foi um raio em céu azul, primeiro porque ele é legítimo produto da ditadura militar, segundo porque sua candidatura foi planejada e sustentada pela cúpula das FFAA, terceiro porque “faz sentido” um governo militar nesse contexto em que a classe dominante opera sua “ponte para o passado”.

6.A classe dominante brasileira está nos empurrando de volta aos anos 1920, quando o Brasil era um país primário exportador, submisso ao imperialismo, onde a política era assunto oligárquico e a questão social era caso de polícia. A situação de sócia menor de interesses estrangeiros tem várias implicações, entre as quais a superexploração da força de trabalho, a permanente ameaça às liberdades democráticas da maioria do povo, a perpetuação de uma mentalidade colonizada e padrões de desenvolvimento inferiores aos das potências mundiais. Mas há uma implicação adicional: depois de meio século de industrialização (1930-1980), quarenta anos de desindustrialização estão espremendo um país de 210 milhões de habitantes no figurino estreito que o país tinha quando éramos cerca de 40 milhões de almas. O retrocesso iniciou nos anos 1980, prosseguiu nos anos 1990 por obra dos neoliberais e – depois do hiato de governos encabeçados pelo PT – o retrocesso segue desde 2016 por conta dos ultraliberais associados ao bolsonarismo neofascista. Por tudo isso, a associação entre neofascismo e neoliberalismo não ocorre por acaso: na ausência de desenvolvimento, a brutal desigualdade existente no país não encontra válvula de escape e a questão social vira caso de polícia (e de milícia). O bolsonarismo, a tutela militar, o fundamentalismo, o genocídio pandêmico e a ampliação do comércio de armas de fogo não são, portanto, raio em céu azul.

7.O governo Bolsonaro é um governo militar (presidente militar, vice-presidente militar, grande número de ministros militares, grande número de militares em todos os cargos do governo e, principalmente, a hegemonia da visão de mundo construída nas casernas). Mas o governo Bolsonaro não é uma ditadura militar clássica, primeiro porque o presidente é um cavernícola de baixo escalão castrense (afastado do exército por razões degradantes, político profissional por 28 anos, miliciano, tosco etc.); segundo porque o presidente foi eleito, ainda que numa eleição fraudada; terceiro, porque sendo um governo eleito, os demais poderes fáticos impõem limites em tese maiores do que numa ditadura (mídia, sistema judiciário, parlamento, as próprias FFAA e sua extensão policial, o grande capital). Em tese, porque na prática estes poderes fáticos tem contribuído gostosamente para o que mais interessa a eles: a aplicação do programa econômico social ultraliberal.

8.Todo este contexto, circunstâncias e personagens levam a concluir que o governo (e a conjuntura brasileira como um todo) são caracterizadas pela crise permanente, pela instabilidade permanente, pelo sobressalto e por reviravoltas permanentes.

9.Um dessas reviravoltas é Lula com direitos políticos de volta. As principais reações a isso foram: em parte da oposição de centro-esquerda, reacender as expectativas de um regresso triunfal ao governo; na direita gourmet, a busca desesperada por uma terceira via eleitoralmente viável; na extrema-direita, incluída a extrema-direita militar, a reação é a escalada: ameaças (contra Lula, contra governantes que estão tentando conter a pandemia etc.); processos com base na LSN, por exemplo contra pessoas que chamam Bolsonaro de genocida; notas agressivas (de Bolsonaro falando de estado de sítio, de Etchegoyen criticando as decisões do STF etc.); incentivo à insubordinação das PMs contra governadores de estado (o caso mais extremo é o da Bahia, mas a nota assinada por pelo menos 16 governadores mostra que não se trata de um problema localizado).

10.Detalhe: tudo isto ocorre na véspera de um aniversário do golpe militar de 1964. A esse respeito, é preciso estar atento para a extensão e conteúdo das mobilizações que estão sendo convocadas em defesa da intervenção militar. E, também, analisar a famosa ordem do dia.

11.É neste quadro que ocorreu a recomposição ministerial do 29 de março. As mudanças (até agora) foram: Ministério das Relações Exteriores: Ernesto Araújo x Carlos Alberto França; Ministério da Defesa: General Fernando Azevedo e Silva x General Braga Netto; Ministério da Justiça e Segurança Pública: André Mendonça x Delegado da Polícia Federal Anderson Gustavo Torres; Casa Civil: General Walter Souza Braga Netto x General Luiz Eduardo Ramos Baptista Pereira; Secretaria de Governo: General Luiz Eduardo Ramos x Deputada Federal Flávia Arruda;  Advogacia-Geral da União (AGU): José Levi Mello do Amaral Júnior x André Mendonça.

12.Há especulações de todo tipo acerca dos motivos e dos efeitos da reforma ministerial. Acomodar centrão e afastar os militares que o desobedecem são as mais frequentes. Sobre a desobediência também há diversas teses: a entrevista do general Paulo Sergio, a relação com os governos estaduais, a resistência a um possível estado de sítio, articulações de militares a favor de outra candidatura presidencial em 2022 etc.

13.Na direita gourmet, em particular no oligopólio da mídia, mais do que análise, há quase um convite para que os militares derrubem Bolsonaro. Um conhecido direitista chamado Marco Antonio Villa agora descobriu que “o presidente está caminhando para um golpe de Estado. [...] [Bolsonaro] é um golpista, um nazi-fascista, ele não é um democrata. Ele conspira contra a Constituição e o fez durante 30 anos de vida parlamentar". E o conhecido jornalista Mário Sergio Conti foi além e defendeu abertamente uma “operação Valquiria” contra Bolsonaro.

14.Na oposição de centro-esquerda, também apareceram vozes comemorando o teor da nota do ex-ministro da Defesa (que diz que seu papel no governo teria sido defender as forças armadas como instituição de Estado) e as declarações do general Santos Cruz (segundo o qual os militares “não vão entrar em aventura”). Acontece que as forças armadas em geral e estes militares em particular apoiaram a ascensão de Bolsonaro e seu governo. Ademais, um ministro é um ministro, ou seja, pode se achar “de Estado” mas sempre será “de governo”.

15.Aliás, Santos Cruz é um cidadão muito criativo. Segundo ele: “Não há clima para um golpe de Estado. As Forças Armadas têm uma postura institucional muito forte. Não embarcam nessa onda. As Forças Armadas têm estruturas fortes de comando, de liderança, de hierarquia, de respeito à legalidade (...) As Forças Armadas e seus comandantes têm consistência grande. Não se imagine que se possa lançar as Forças Armadas em uma aventura. Os militares não ficam embarcando em qualquer canoa. Não é fácil mexer com as Forças Armadas politicamente. Os comandantes são todos muito discretos. Não se envolvem com política. É uma gente séria.”

16.Claro que é positivo que Santos Cruz fale contra um autogolpe. Mas seus argumentos são deveras interessantes, digamos assim. Ele diz, por exemplo, que não há “clima” para um golpe de Estado. Clima??? O simples fato de um militar dar declarações deste tipo já mereceria processo e, quem sabe, prisão. Mas o que esperar de um governo que tem um presidente golpista e que coloca um militar no ministério da Defesa, criado exatamente para ampliar o controle civil sobre as forças armadas?? Aliás, Santos Cruz diz que os militares não ficam embarcando em qualquer canoa. Mas embarcaram na canoa bolsonarista. Diz que não seria fácil mexer politicamente com as FFAA. Mas as FFAA intervieram abertamente na política em toda a história republicana brasileira, inclusive desde 2016. Diz que os comandantes seriam todos muito discretos, mas os militares estão por todas as partes no governo Bolsonaro, com salários e controlando orçamentos nada discretos. Diz que os comandantes não se envolveriam com política, seriam gente séria. Claro, preferiram tutelar sem se desgastar... mas Bolsonaro é difícil de tutelar, seu governo não está num bom momento e isto está afetando a popularidade das forças armadas.

17.Seja como for, a reforma ministerial mostra que se criaram (e tendem a se aprofundar) as divisões no partido militar. Estas divisões podem ter várias causas, inclusive o estilo de Bolsonaro [e, como observou uma companheira, a relação direta do cavernícola com os policiais militares, bem como com a baixa oficialidade e soldadesca]. Mas o principal motivo parece ser político: o aprofundamento da crise afeta a unidade do partido militar, inclusive porque amplia o risco de Bolsonaro ser afastado ou perder as eleições, arrastando junto na derrota seus patronos, o que faz com que alguns setores do Partido militar comecem a buscar alternativas. A alternativa tutela não funcionou; a possibilidade de deixar tudo como está é perigosa, especialmente por conta do fator Lula, que a cúpula das forças armadas não aceita de nenhuma maneira; e não é nada trivial construí ruma terceira via. E, para complicar tudo, a caneta está nas mãos de Bolsonaro, que sabe disto tudo e não é do tipo que deixa como está para ver como é que fica. Neste sentido, a crise atual é lembrada por alguns como uma versão farsesca do ocorrido com Ednardo em 1976 e com Frota em 1977. 

18.Frente a tudo isto, sem prejuízo de compreender melhor os detalhes do que houve, do que está ocorrendo e do que pode vir a ocorrer, é bastante claro que nós não devemos fazer.

-primeiro: lembrar que vivemos em Estado de exceção e que os fatos recentes mostram que a exceção avança, não recua. 

-segundo: perceber que os mesmos fatos recentes apenas confirmam que o cavernícola tem um modus operandi, que mesmo isolado não cede no que considera essencial.

-terceiro: não subestimar o inimigo. Sobre este terceiro ponto, um bom exemplo de subestimação está no recente tweet do deputado Freixo: “URGENTE! O ministro da Defesa, general Fernando Azevedo e Silva, acaba de anunciar que deixará o cargo. Na nota, falou sobre a importância das Forças Armadas atuarem como instituições de ESTADO. Começa a desmoronar um dos principais pilares de sustentação de Bolsonaro”. Outro exemplo de subestimação é a declaração do Antonio Augusto de Queiroz, do Diap, segundo o qual faltaria pouco para o impeachment de Bolsonaro. Um governo que carrega 300 mil mortos nas costas e ainda não caiu, não pode ser subestimado desta forma.

-quarto: não terceirizar. Bolsonaro tem que ser derrubado por nós, pela esquerda, pela classe trabalhadora. Se Bolsonaro for derrubado ou derrotado pela direita gourmet, ou por uma parte dos militares, os desdobramentos disto para a classe trabalhadora não serão positivos.

-quinto: o que vem por aí é mais crise, não menos crise. Não exatamente porque os comandantes venham a pedir demissão (escrevo isto na manhã de 30 de março), nem apenas porque se aprofunde a divisão nas forças armadas. Mas principalmente porque há uma crise sistêmica profunda no mundo e no Brasil; e os métodos que a classe dominante adotou para tentar resolver esta crise aprofundam a crise. Por isso, embora estejam tendo sucesso em aplicar seu programa, na verdade exatamente porque estão tendo sucesso em aplicar seu programa, todas as instituições golpistas (inclusive a mídia oligopolista) estão em estado de crise. Como disse o próprio Bolsonaro, ele veio para destruir. Portanto, a bagunça institucional não deveria surpreender ninguém, muito menos a figuras como Braga Neto, talvez um dos militares que mais saiba quem é quem nas milícias do Rio de Janeiro.

-sexto: o único jeito de superar a crise é destruindo suas causas. E não será a direita gourmet, nem as “instituições”, muito menos as forças armadas, que serão capazes de fazer isso. Só o povo pode destruir as causas da crise, indo na raiz do problema. No nosso caso, a classe dominante e seus tentáculos. Ou, como diria o cavernícola no seu jargão tão peculiar: com lagartixas não basta cortar o rabo.


ps.a entrevista do general Paulo Sérgio, falando como o exército teria combatido a pandemia, é a versão castrense das recentes decisões do STF. Fachin, Cármen Lúcia e outros confessaram que durante anos desconheceram a Constituição, ou seja, foram cúmplices de um crime. E o general Paulo Sérgio, ao afirmar que o exército teria tido maior êxito em se proteger da Covid 19, confessa por tabela que o exército sabe muito bem as consequências nefastas - sobre o povo - das políticas que vem sendo aplicadas pelo governo militar de Bolsonaro, governo que até há pouco tinha um general da ativa no ministério da Saúde.

ps2.nos dias 31 de março e 1 de abril a esquerda precisa marcar presença. Inclusive nas ruas, com as medidas sanitárias indispensáveis.

*ps3.a respeito do que ocorreu em 2013, que obviamente não pode ser resumido a um de seus aspectos, sugiro ler: http://valterpomar.blogspot.com/2013/06/a-direita-tambem-disputa-ruas-e-urnas.html

quarta-feira, 24 de março de 2021

A “justiça” tarda. E falha!

Chegará o dia em que descobriremos cada detalhe dos reais motivos que levaram a ministra Cármen Lúcia a virar seu voto e decidir pela suspeição do juiz Sérgio Moro. Mas não é preciso esperar tanto para compreender uma das razões que a levaram a divergir de Gilmar Mendes e Ricardo Lewandowski no tocante a cobrar de Moro as “custas processuais”. Afinal, neste pequeno detalhe esconde-se uma questão de fundo: quem vai pagar as "custas" das decisões adotadas pelo sistema judiciário brasileiro desde 2016 até hoje?

Não é preciso retroagir até o “mensalão”, a chamada AP 470. Para efeito de análise, basta a Operação Lava Jato: quem vai pagar os danos causados à soberania nacional, ao desenvolvimento, ao bem estar social, às liberdades democráticas? Quem vai restituir as vidas perdidas, os empregos cancelados, a fome, o sofrimento infligido a parte importante do povo brasileiro?

Cobrar as “custas processuais” de Moro é o de menos; a questão é de quem o povo brasileiro vai cobrar o que fizeram e seguem fazendo com o nosso país desde 2016. Para isto, não basta entregar às feras os anéis de Moro e Dallagnol. Estes dois e sua quadrilha não teriam ido longe, se não tivessem contado com o respaldo de grande parte do sistema judiciário, do oligopólio da mídia, do parlamento e (não esqueçamos) da cúpula das forças armadas. Aliás, não esqueçamos também, o suposto herói de ontem é o mesmo juiz que suspendeu a posse de Lula em 18 de março de 2016, contribuindo assim para o sucesso do golpe contra Dilma.

A suspeição de Moro no caso do triplex, a devolução dos direitos políticos de Lula, a anulação dos demais processos (sítio, por exemplo), a condenação e prisão dos verdadeiros criminosos, nada disso vai recompor o estrago feito. Para começo de conversa, não fará ressuscitar as centenas de milhares de brasileiros e brasileiras que morreram devido as escolhas do governo Bolsonaro e seus aliados no trato da pandemia. Aliás, Bolsonaro não teria sido eleito se Lula tivesse sido candidato, e Lula teria sido candidato se o Habeas Corpus 164493 tivesse sido aceito quando foi impetrado.

Por isso, é meia verdade dizer que “justiça foi feita” neste 23 de março. Na verdade, um crime foi tardiamente confessado por alguns de seus autores. E restará às dezenas de milhões de vítimas deste crime lutar muito para tentar reparar, mesmo que parcialmente, os danos causados.

Lula de novo presidente será um passo fundamental neste sentido. Mas há outros passos que devem ser dados, entre os quais vou citar apenas um: cortar em pedacinhos, depois salgar, queimar, jogar ácido e enterrar bem fundo a fé que parte da esquerda segue mantendo no sistema judiciário e nas chamadas “instituições” de nosso antipático Estado. Esta fé contribuiu e muito para nos paralisar, desde 2005 até 2021. 

Não foram as leis, não foram as instituições, não foi a "justiça" que tornaram possível a decisão de 23 de março. Foi a luta política, seja a mantida por nós da esquerda democrática, popular e socialista, seja a verdadeira guerra civil que está em curso entre as diferentes facções do golpismo. E também será a luta política que vai decidir se vamos ou não conseguir cobrar todas as "custas processuais" de quem é devido, a saber: da classe dominante, da turma da grana, da toga, da farda e da pena de aluguel.

Que este 24 de março seja de muita luta e manifestação. Pois só a luta nos salvará da catástrofe!

 

quinta-feira, 18 de março de 2021

Fala na reunião do Diretório Nacional do PT (18 de março de 2021)

Boa tarde companheiras, boa tarde companheiros.

Inicialmente quero destacar:

1/ a necessidade de convocar prontamente um DN com mais tempo, para deliberar;

2/ a necessidade de convocar um encontro extraordinário para definir nossa linha para o período 2021-2022;

3/ a importância de aprovarmos uma resolução reforçando a convocação do dia nacional de luta no dia 24 de março, semana que vem.

Isto posto, eu quero usar o restante da minha fala para resumir as ideias principais da contribuição que Jandyra, Natalia, Patrick, Júlio e eu apresentamos para esta discussão.

Primeiro, é muito importante que tenhamos recuperado nossos direitos políticos.

Pois é preciso destacar isso: não foi Lula que recuperou seus direitos, foi a maioria do povo que recuperou o direito de poder votar nele para presidente da República.

Segundo, esta decisão não resultou principalmente de nossas pressões e lutas, mas sim decorreu principalmente dos conflitos entre as diferentes facções do golpismo.

Terceiro, esta decisão veio com 5 anos de atraso.

Se a decisão tivesse vindo em tempo hábil, muito provavelmente Lula teria sido candidato, teria vencido as eleições de 2018 e teríamos conseguido fazer aqui o que conseguimos fazer na Argentina e na Bolívia.

Portanto, não podemos esquecer nem perdoar: Fachin e os demais são cúmplices de toda a desgraça que se abateu sobre o país, inclusive os quase 300 mil mortos e os quase 40 milhões de desempregados.

Esta gente toda terá que ser julgada e não me refiro a julgamento pela história.

Quarto, como já foi dito aqui, esta decisão não é fato 100% consumado.

O impacto da decisão, tanto no povo e na esquerda, quanto nas diferentes facções da direita, foi muito grande.

Isto significa que é líquido e certo que virá reação do lado de lá, ou melhor, virão diferentes reações dos diferentes setores que compõem o lado de lá.

Que reações? Sem que isso signifique hierarquia de probabilidades, vou listar algumas destas possíveis reações vindas dos diferentes setores do lado de lá.

1º tentar reverter a decisão no plenário do STF

2º atentar contra a vida de Lula

3º restringir brutalmente as liberdades

(não vamos minimizar estas prisões e processos com base na LSN, atentados que começam a ocorrer, a autorização judicial para comemorar o golpe militar de 1964, a disseminação de armamento automático em mãos de gente rica, nem vamos desconhecer que alguns destacamentos militares programaram operações de GLO nesta segunda quinzena de março)

(aliás, no limite não devemos nem mesmo desconsiderar uma operação do tipo “tirar o bode da sala”, em que Mourão e outros setores das forças armadas entreguem o anel para preservar os dedos)

4/tentar construir uma candidatura de terceira via, capaz de ir ao segundo turno e vencer no segundo turno, seja contra Bolsonaro, seja contra Lula

5/tentar seduzir o PT para uma suposta “unidade nacional”, nos fazendo assumir compromissos com a continuidade de aspectos do programa da “ponte para o futuro”.

E é preciso diferenciar o apoio de arrependidos, não importa se honestamente arrependidos ou não, da tentativa de nos comprometer com a preservação do que eles fizeram.

Neste sentido foram muito importantes várias afirmações que Lula fez no discurso de 10 de março. Por exemplo o que ele falou sobre a Petrobrás.

É preciso ficar claro que queremos voltar para desmontar a “ponte para o futuro”.

6/e no limite pode ocorrer de parte importante das elites apoiarem novamente o genocida no segundo turno

Não devemos subestimar nenhuma destas operações.

Nem devemos subestimar o Bolsonaro, que segue demonstrando resiliência e capacidade de reação.

E que pode se beneficiar do fato da eleição estar marcada para 2022, quando a tendência é que a situação esteja melhor do que agora.

Esse é um dos motivos pelos quais não devemos nem podemos cometer o erro de achar que a disputa com Bolsonaro será resolvida em 2022, pela via eleitoral.

Pode ser que venha a ser assim.

Mas o melhor para nós é que a disputa com Bolsonaro seja resolvida agora, na disputa política em torno da vacina, do auxílio, de medidas em favor do emprego e do desenvolvimento.

As pessoas estão sofrendo e morrendo aqui e agora.

E é preciso politizar esta disputa, colocando como parte decisiva de nossa ação a luta pelo Fora Bolsonaro, pelo impeachment, pela interdição imediata de Bolsonaro.

Até porque não podemos dizer que o presidente é genocida e não tomar medidas à altura disto.

Aliás, esta nossa reunião começou as 15h.

Duas horas e 30 minutos depois, morreram mais de 225 pessoas de Covid 19.

A cada dois minutos, morrem 3 pessoas.

Também por isso não basta FALAR de impeachment, é preciso mobilizar e articular efetivamente no sentido de afastar AGORA este cidadão.

Não em 2022, mas agora.

Neste sentido, reitero a importância de fazer do dia 24 de março um momento de medir forças.

E de tomar outras medidas nesse sentido.

E é preciso achar maneiras e formas de mobilizar presencialmente.

Nos Estados Unidos a mobilização “vidas negras importam” – mobilização que ocorreu no meio da pandemia -- foi fundamental para derrotar Trump nas eleições, pois engajou eleitoralmente setores que antes não estavam dispostos a isto.

No Paraguai, neste momento, está em curso uma forte mobilização de rua contra um governo que não está fazendo a coisa certa no combate à pandemia.

E no Brasil é indispensável que recuperemos todos os espaços, inclusive as ruas. Não dá para deixar as ruas com a direita, nem dá para nossa mobilização presencial começar apenas depois da vacinação e da decorrente imunização.

É preciso achar meios e formas, adequadas a cada situação concreta, para reforçar nossa presença nas ruas.

Por fim, quero reforçar muito o que o Humberto disse aqui: a instabilidade é um traço dominante da conjuntura.

E é assim por conta da crise, da profunda crise em que estamos metidos.

Uma crise desta exige de nós, exige do PT e de toda a esquerda, mais capacidade política, mais unidade de comando e mais capacidade de pronta resposta.

E temos que reconhecer que estamos muito longe disto.

Eu quero terminar registrando que hoje a Fundação, a Escola e a SNFP lançaram o ciclo de 13 jornadas de debate sobre o socialismo no século XXI.

Por sugestão do Aloizio Mercadante, começamos neste dia 18 de março exatamente para homenagear os 150 anos da Comuna de Paris.

E um dos ensinamentos da Comuna e de todas as outras lutas que vieram antes e depois é que a classe dominante é impiedosa, desalmada e brutal.

Até por isso, precisamos manter nossa guarda bem alta, inclusive porque 31 de março e Primeiro de abril estão logo ali.

Muito obrigado.

Abertura das 13 jornadas de debates sobre o socialismo no século 21

 

Bom dia a todas.

Bom dia a todos.

Cumprimento a quem nos assiste através das redes sociais associadas a Fundação Perseu Abramo.

E cumprimento aos que estão conosco nesta sala zoom.

Estamos reunidos aqui para dar início às 13 jornadas de debates sobre o Socialismo no Século 21.

Cabe lembrar que há 20 anos, a Fundação Perseu Abramo e a Secretaria Nacional de Formação Política do PT organizaram outro ciclo de debates, então intitulado “A luta pelo socialismo no século XXI”, sob a coordenação do professor Antônio Candido.

E antes disso, em 1987, o Instituto Cajamar realizou o Seminário Internacional 70 anos de experiências de construção do socialismo.

Estas e outras iniciativas decorrem de um compromisso firmado no dia 10 de fevereiro de 1980, quando o Partido dos Trabalhadores nasceu defendendo “a construção de uma sociedade que responda aos interesses dos trabalhadores e dos demais setores explorados pelo capitalismo”, “um sistema econômico e político que só existe para beneficiar uma minoria de privilegiados”, no lugar do qual “o povo possa construir uma sociedade igualitária, onde não haja explorados nem exploradores”. 

Desde então, muitas mudanças ocorreram no mundo, no Brasil e no próprio PT, entre as quais destacamos o ciclo de governos de esquerda e progressistas na América Latina, a exemplo dos governos Lula e Dilma.

O segundo governo Dilma foi interrompido por uma ofensiva golpista que, em nome de afastar  o PT e retomar o neoliberalismo, abriu as portas para tudo o que mais reacionário existe na sociedade brasileira: a submissão aos interesses imperialistas, a repressão às liberdades democráticas, o culto à desigualdade social, o estímulo à violência e a todas as formas de opressão, discriminação e fundamentalismo. 

Contra as elites que emulam a guerra de todos contra todos tão típica do capitalismo, especialmente em sua fase neoliberal, as esquerdas em geral e o Partido dos Trabalhadores estamos convocados a resistir, a lutar, a acumular forças para virar o jogo e retomar o caminho do desenvolvimento, da soberania, da liberdade e do bem estar social.

Tarefas que exigem uma firme defesa dos interesses imediatos e históricos da classe trabalhadora, entre os quais se destaca a construção de uma “sociedade igualitária, onde não haja explorados nem exploradores”, uma sociedade que pode receber vários nomes, mas que nosso Partido dos Trabalhadores chama de socialismo.

Em um contexto de profunda crise sistêmica mundial, quando o neoliberalismo ultrareacionário veste a camisa do terraplanismo e do negacionismo anticientífico, patrocinando uma “guerra cultural” que visa demonizar os opositores, a defesa do socialismo se afirma mais do que nunca como a defesa da humanidade, da ciência e da vida em nossa Terra.

Neste sentido, não há como deixar de lembrar que no dia hoje, 18 de março de 2021, o Brasil caminha velozmente para atingir o macabro número de 300 mil pessoas, compatriotas nossos, mortos pelo Covid 19, a grande maioria dos quais poderia ter sobrevivido se o governo Bolsonaro não fosse o principal aliado do vírus.

Não há como deixar de recordar, também, das dificuldades e sofrimentos porque passam quase 40 milhões de brasileiros e brasileiras que gostariam de trabalhar, mas não encontram ou nem mesmo se animam mais a buscar um emprego, neste nosso país, cuja economia e sociedade estão sendo vítimas de uma política ultraliberal que vem sendo implementada desde 2016.

Frente a tanto sofrimento, tanta intolerância e tantas incertezas, nada mais adequado do que a luta. Não uma luta cega, mas uma luta orientada por propostas de reconstrução e transformação estrutural da sociedade brasileira e do mundo. Propostas que naturalmente exigem profundo e democrático debate.

Pensando assim, a Fundação Perseu Abramo, a Escola do PT e a Secretaria Nacional de Formação Política do PT convidam toda a sociedade brasileira, a começar pelos partidos e movimentos sociais, democráticos, populares e de esquerda, para estas 13 jornadas de debate sobre o socialismo no século 21.

A partir do dia 27 de março, de 15 em 15 dias, ao longo de seis meses, debateremos sobre o passado, o presente e o futuro do socialismo.

A programação detalhada das 13 jornadas está disponível na página eletrônica da FPA.

As pessoas convidadas para expor e comentar buscam expressar a diversidade do PT e da esquerda, inclusive diferentes tendências, partidos, intelectuais sem partido, brasileiros e estrangeiros. 

Todas as jornadas serão gravadas para posterior edição e divulgação. E as exposições também serão publicadas em formato de minilivros digitais. 

A coordenação geral das 13 JORNADAS DE DEBATE SOBRE O SOCIALISMO NO SÉCULO 21 é de Alberto Cantalice e Valter Pomar, ambos diretores da Fundação Perseu Abramo, sob a orientação de um Grupo de Trabalho composto pela direção da FPA, da Escola do PT e da SNFP do Partido dos Trabalhadores.

Esta primeira mesa, que abre nossa jornada, conta com a participação de três militantes de esquerda, três trabalhadores da educação, três professores.

O primeiro a falar será Yanis Varoufakis.

Varoufakis nasceu em 24 de marzo de 1961, foi ministro das Finanças da Grécia entre 27 de janeiro e 6 de julho de 2015. Atualmente é professor da Universidade de Texas em Austin e um dos protagonistas da chamada Internacional Progressista.

Por conta do fuso horário, a fala de Varoufakis foi gravada em formato de vídeo, em inglês; e será transmitida com a tradução simultânea feita pelo nosso colega Leandro Moura.

Em seguida falará o professor Fernando Haddad.

Haddad nasceu em 25 de janeiro de 1963, foi ministro da Educação e prefeito da cidade de São Paulo. Atualmente é presidente do Conselho Curador da Fundação Perseu Abramo e um dos protagonistas do Grupo de Puebla.

Para concluir a mesa, ouviremos Nilma Gomes.

Nilma Lino Gomes nasceu no dia 13 de março de 1964, é professora titular emérita da Universidade Federal de Minas Gerais, foi reitora da Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (UNILAB) e ministra do Ministério das Mulheres, da Igualdade Racial e dos Direitos Humanos.

Antes de passar a palavra para Varoufakis, Haddad e Nilma, três registros, até para que não digam que não falamos de flores e espinhos.

Primeiro registro: FORA GENOCIDA!

Segundo registro: há poucos dias, no 8 de março de 2021, o povo brasileiro recebeu de volta nossos direitos políticos. Direitos que nos foram tirados para que as eleições de 2018 pudessem ter o resultado que tiveram. Pois bem: seguimos vigilantes e não aceitaremos que nos tirem de novo estes direitos.

Terceiro e último registro: começamos este seminário no dia 18 de março de 2021 por sugestão do nosso companheiro Aloizio Mercadante, presidente da diretoria da Fundação Perseu Abramo, exatamente para marcar o aniversário de 150 anos da épica jornada da Comuna de Paris.

A Comuna de Paris durou pouco. Na semana de 22 a 28 de maio de 1871, a Semana Sangrenta, dezenas de milhares de comunardos foram mortos em combate, executados, presos e deportados.

Apesar de derrotada e afogada em sangue, a experiência da Comuna de Paris marcou e segue marcando um antes e um depois na história da luta pelo socialismo.

Numa tradução livre das palavras de Karl Marx:

Graças à Comuna de Paris, a luta da classe trabalhadora contra a classe dos capitalistas e contra o Estado que representa os interesses dos capitalistas entrou em uma nova fase. Seja qual for o desenlace imediato dessa vez, foi estabelecido um novo ponto de partida que tem importância para a história de todo mundo".

Viva a Comuna de Paris, e um grande viva a todos e a todas que nos últimos 150 anos deram o melhor de suas vidas por um mundo realmente livre de todas as formas de exploração, opressão e dominação. Um mundo socialista.

Com a palavra, o professor Yanis Varoufakis.

quarta-feira, 17 de março de 2021

Exposição sobre conjuntura na reunião da Direção Nacional do MST (17/3/2021)

Boa tarde companheiras.

Boa tarde companheiros.

Agradeço o convite para falar nesta reunião da Direção Nacional do MST, compartilhando a tarefa com o Wellington Dias, com Cristiano Zanin e com o João Pedro.

Meu ponto de partida é o seguinte: desde a crise de 2008, o mundo, a América Latina e o Brasil entraram num período de crise profunda.

Não sabemos que desfecho esta crise vai ter. 

O que sabemos é que, neste contexto de crise, a classe dominante brasileira fez uma opção, a de reconverter o Brasil em uma nação primário-exportadora, campeã mundial da exploração da classe trabalhadora, com o mínimo possível de liberdades democráticas e com o máximo possível de submissão aos Estados Unidos.

Esta opção não é do Bolsonaro apenas, não é dos militares apenas, não é da extrema direita apenas. 

É uma opção do conjunto da classe dominante brasileira, embora possa haver e de fato existam entre eles diferenças de grau, de ritmo, de decisão; e embora também, à medida que a crise se aprofunda e as consequências desta opção regressiva vão ficando claras, uma parte da classe dominante queira “parar na metade do caminho”.

Seja como for, é esta opção regressiva -- fazer o Brasil voltar ao que era em 1920 -- é esta opção que está na base de nossa crise social, econômica, política e cultural. 

Afinal, não é fácil fazer o Brasil de 2021 (urbano e com 220 milhões de habitantes) caber no molde estreito do Brasil de 1920 (rural e com 40 milhões de habitantes).

Mas é esta "opção regressiva" que eles trilham faz tempo, especialmente desde a "ponte para o futuro" e do golpe do impeachment, passando pela decisão de condenar-prender-interditar o Lula, pela decisão de votar no cavernícola no segundo turno de 2018, opção que também orientou e segue orientando todas as anti-reformas e privatizações e políticas ultraliberais que adotaram nesse período (EC95, trabalhista, previdência etc.).

Neste caminho regressivo, há dois acontecimentos importantíssimos, com impactos conjunturais, táticos e estratégicos.

O primeiro acontecimento é a pandemia, que agrava todas as tendências a que me referi antes, que aumenta o sofrimento do povo e que, ademais, permite enxergar de maneira didática qual o preço que esta elite de merda está disposta a nos fazer pagar, nessa operação de tentar fazer um país de 220 milhões de pessoas caber no molde de um país de 40 milhões de pessoas.

Em resumo: falar de "genocídio" não é um exagero retórico.

O segundo acontecimento importante foi o que ocorreu no dia 8 de março, quando por uma decisão monocrática do ministro Edson Fachin, Lula recuperou os direitos políticos.

Não tenho tempo aqui para comentar os motivos e as intenções reais do Fachin. Mas quero destacar duas coisas.

Primeiro: a decisão do Fachin deve-se principalmente à disputa feroz que está em curso entre eles.

Segundo: é típico dos momentos de crise este tipo de situação, quando decisões subjetivas, individuais, pessoais, precipitam acontecimentos de dimensão histórica. 

Mas atenção: isto pode valer a nosso favor, mas também pode valer contra nós. Ou seja: outras decisões subjetivas de inimigos podem nos surpreender e causar imenso dano, assim como decisões subjetivas de pessoas do nosso campo podem nos fazer perder oportunidades (e claro, também muito antes pelo contrário, podem nos fazer avançar melhor).

Seja como for, é extremamente positivo que Lula tenha recuperado seus direitos, aliás, NOSSOS direitos, porque o que roubaram foi nosso direito de ter votado nele em 2018 e com isso ter voltado a governar o país, fazendo no Brasil o que ocorreu na Argentina, na Bolívia e que espero que venha a ocorrer também no Equador.

Qual a consequência política da recuperação dos direitos políticos de Lula?

Antes a luta política no Brasil estava sendo polarizada pela direita gourmet versus a direita bolsonarista.

Foi assim na eleição de 2020 e foi assim na eleição do Senado e da Câmara. E até mesmo no debate da pandemia, parecia as vezes que a disputa se restringia a Dória versus Bozo.

Pois bem: com Lula em cena, a luta política no Brasil volta a ser polarizada pela esquerda versus a direita. Como foi por exemplo em 1989, 1994, 1998, 2002, 2006, 2010, 2014 e 2018.

Mas tem algumas novidades importantes: a direita com que polarizamos agora não é liderada por Collor, nem por FHC, mas por Bolsonaro.

E, portanto, ilude-se quem achar que esta disputa vai ser resolvida de acordo com as regras do jogo antigo.

O jogo é novo e as regras são novas.

Neste sentido:

1/não podemos achar que a situação jurídica está resolvida. Eles podem reverter no plenário do STF a decisão de Fachin. Aliás, há quem ache que Fachi decidiu o que decidiu exatamente para empurrar uma decisão para um ambiente onde os defensores da Lava Jato podem ter maioria, diferente da chamada segunda turna, onde existe maioria para derrotar Moro;

2/não podemos achar que a disputa se trava em 2022, a disputa se trava aqui e agora, se não formos capazes de impor derrotas aqui e agora ao Bolsonaro, 2022 pode não ocorrer, assim como podemos não chegar como gostaríamos em 2022;

3/não podemos achar que 2022 está garantido, primeiro porque não se pode subestimar a força do Bolsonaro (o que ele mantém de apoio ainda é suficiente para ele ir ao segundo turno e a situação pode mudar nos próximos meses); e também porque a classe dominante (diferente de nós) dispõe de várias alternativas, sobre as quais eu quero falar um pouco.

3.1.eles podem dar um "golpe dentro do golpe", seja voltando a interditar juridicamente o Lula, seja atacando fisicamente o Lula, seja fazendo um movimento do tipo "tirar o bode da sala", ou seja, os militares afastarem o Bolsonaro e por exemplo colocando Mourão no comando;

3.1.1.sobre isso vale apontar um efeito paradoxal da devolução dos direitos de Lula: ficou muito evidente o papel desta personalidade na história e se voltarem a interditar, resta saber qual será a reação: o povo vai reagir ou virá um profundo desânimo?

3.2.eles podem construir uma candidatura alternativa da direita gourmet; tem o Ciro desejando este lugar (mas o comportamento dele não ajuda), mas há outros nomes possíveis e além disso há disposição, vontade e necessidade deles de buscar uma alternativa e não podemos subestimar a direita gourmet, nem nos encantar bestamente com declarações recentes como as de Delfim Netto e de FHC;

3.3.eles podem terminar apoiando Bozo mais uma vez, até porque para um pedaço da classe dominante o cavernícola está entregando o que prometeu e no curto prazo eles estão lucrando como nunca (e para eles o lucro de curto prazo é o que interessa);

3.4.eles podem oferecer um abraço de afogado, apresentando Lula como uma espécie de "candidatura de União Nacional", desde que por exemplo Lula se comprometa a não desfazer o que eles fizeram desde 2016. Cabe lembrar, neste sentido, que se voltarmos à presidência da República, as condições de fazer políticas de transformação social serão menores do que eram em 2003. Sem rupturas, não vai...

3.4.1.vale dizer que contribui para esta pressão em favor de uma suposta unidade nacional a “dinâmica dos palanques estaduais”, ou seja, a busca por amplas alianças em alguns estados, com a conta sendo paga pela nacional (o oposto do que ocorria entre 2002 e 2014, quando em nome da vitória da candidatura nacional da esquerda, se empurrava governadores a fazer políticas de aliança com a direita nos estados).

Por conta do que expus antes, é essencial:

1/achar maneiras de retomar a mobilização ANTES da vacinação ser completada, pois se deixarmos para fazer depois pode ser tarde demais (sem o "vidas negras importam" talvez Trump não tivesse sido derrotado);

2/ampliar a pressão sobre Bolsonaro, pelo Fora Bolsonaro, pelo impeachment, pela interdição imediata do cavernícola. Não faz sentido (nem político, nem moral) dizer que temos um genocida, um miliciano, um beneficiário de golpes e fraudes na presidência... e se comportar como se fosse aceitavel ele ficar até 2022 lá;

3/debater e tomar medidas práticas para lidar com a força da direita pentecostal e com a força da direita armada (FFAA, polícias, mílicias e armamento na mão de ricos);

4/tirar consequências práticas da análise segundo a qual vivemos num ambiente de tensão crescente, crise crescente, instabilidade crescente... e uma das consequências práticas é a de que precisamos de estratégia adequada, tática adequada e comando unificado.

Encerro lembrando que comecei falando que os acontecimentos aqui no Brasil foram e seguem sendo muito influenciados pela situação mundial.

E esta situação mundial continua muito, mas muito tensa. A chegada do Biden não significou mais paz mundial, como alguns imaginavam.

E o imenso pacote de investimento que os EUA estão colocando não significa que não possamos ter um novo e brutal ciclo de crise, muito antes pelo contrário. 

Enfim, tudo exige mais capacidade política e mais capacidade de comando. 

E aconteça o que acontecer no curto prazo, segue sendo fundamental recuperar maioria política, ideológica e organizativa na classe trabalhadora brasileira; e construir uma nova estratégia de luta pelo poder, que vá muito além das disputas institucionais e eleitorais, da presença em mandatos e governos.

SEM REVISÃO

segunda-feira, 15 de março de 2021

A "carta aberta" de Boaventura

Um amigo me enviou a “Carta abierta a dos jóvenes indígenas ecuatorianos”, assinada por Boaventura de Sousa Santos.

Datada de 13 de março de 2021, a carta de Boaventura está reproduzida ao final deste texto e também pode ser acessada no seguinte endereço:

https://blogs.publico.es/espejos-extranos/2021/03/13/carta-abierta-a-dos-jovenes-indigenas-ecuatorianos/

Em sua "Carta", Boaventura diz estar “perplexo” com a “controversia internacional suscitada entre varias familias de izquierda” acerca das eleições presidenciais no Equador.

Nas preliminares da carta, Boaventura apresenta Andrés Arauz como “un cierto regreso al correísmo”, Guillermo Lasso como “representante de la derecha oligárquica” e Yaku Pérez como “indígena, candidato del movimiento Pachakutik”.

Boaventura afirma que “inicialmente Yaku Pérez no había sido el candidato elegido por los pueblos y las nacionalidades indígenas, sino por el movimiento Pachakutik. Pachakutik nació como brazo político de la CONAIE (Confederación de Nacionalidades Indígenas de Ecuador), pero su posterior trayectoria política, especialmente su alineamiento en los últimos años con el gobierno de derecha neoliberal de Lenín Moreno, creó algunas tensiones entre el movimiento indígena”.

No segundo turno (onde confrontam-se um “correista” e alguém da “direita oligárquica”) Boaventura afirmar ser “particularmente intrigante” o “silêncio” de determinados “jóvenes líderes indígenas” que ele considera importantes aliados; e a eles dirigiu uma consulta.

Ao final desta consulta, Boaventura chegou a conclusão de não está “en condiciones para aconsejaros sobre las mejores decisiones concretas en el conflicto en curso”. 

E acrescenta: “Sé que os decepciono; con toda legitimidad podéis decir que os he hecho perder vuestro precioso tiempo. Por eso, quiero explicaros las razones de mi decisión. Expresaré mis razones en forma de perplejidades”.

A essa altura, já posso confessar que “perplexo” fiquei eu, com a "perplexidade" de Boaventura.

O que mais alguém de esquerda poderia fazer no segundo turno das eleições do Equador, salvo orientar o voto em Arauz contra Lasso?

Pode ser um voto crítico.

Pode ser um voto acompanhado da decisão de fazer oposição a quem quer que vença.

Mas não se julgar em “condições” de aconselhar o voto em Arauz é uma posição que a mim surpreende.

Até porque toda a argumentação de Boaventura vai no sentido de apoiar Arauz.

Boaventura diz que “me deja atónito el hecho de que muchos de los que han firmado declaraciones contra el candidato Arauz también firmaron declaraciones contra Evo Morales, del mismo modo que negaron la existencia de un golpe de Estado en Bolivia, lo que también ocurrió con el propio Yaku Pérez”.

Boaventura também denuncia as manobras feitas pela Colômbia, tentando envolver Arauz com o Ejército de Liberación Nacional (ELN), como parte de “una típica maniobra de gestación de un golpe”.

Boaventura constata que “el debate ecuatoriano está protagonizado por intelectuales y activistas de izquierda, entre los cuales destacan las corrientes feministas y ecologistas. En él han intervenido colegas, amigos y amigas a los que admiro mucho y con quienes he trabajado a lo largo de los años. Si Arauz es de izquierda, al menos en comparación con Lasso, sería de esperar que las energías se canalizaran para derrotar al candidato de la derecha y que el movimiento indígena se involucrara a fondo en eso. No es esto lo que está ocurriendo. En el momento en que os escribo, la asamblea de una de las organizaciones de la CONAIE decidió recomendar el voto nulo en la segunda vuelta de las elecciones. Hay que analizar las razones de la neutralidad entre un candidato de izquierda (quizás equivocada, pero izquierda de todas maneras) y un candidato de derecha banquero y miembro del Opus Dei”.

Neste ponto de sua carta, Boaventura faz uma digressão sobre o que é “esquerda”, que o leva a debater o “neoextractivismo”, a “polarización entre estatismo y movimientismo” e a “transformación muy repentina de los parámetros de la polarización política”.

Boaventura reconhece que “la concepción movimientista corrió el riesgo de conducir a la despolitización de los movimientos sociales, un riesgo tanto mayor cuanto más evidente era el apoyo recibido de organizaciones no gubernamentales, financiadas por el Norte Global, en su mayoría destinadas a evitar que los movimientos sociales se conviertan en movimientos políticos”.

Depois passa a fazer uma crítica ao “centralismo y el tecnocratismo de Rafael Correa”, contraposto a uma simultânea “nueva creatividad de las fuerzas de izquierda”: “Sin saber muy bien cuál sería el fin último de sus luchas, las nuevas izquierdas parecían, sin embargo, dar por sentado que tendrían que basarse en amplios procesos de participación democrática, en el reconocimiento de la diversidad étnico-cultural y de los derechos de la naturaleza, en la refundación plurinacional del Estado, en la lucha anticolonialista y antipatriarcal. La lucha anticapitalista que exigía, como mínimo, una mejor redistribución social se articulaba ahora con la lucha contra el colonialismo (contra el racismo, la discriminación étnico-racial, la concentración de tierras, la expulsión de pueblos indígenas y campesinos, la xenofobia, la monocultura del saber científico) y contra el patriarcado (contra la dominación heterosexual, la violencia doméstica y el feminicidio)”.

Segundo Boaventura, “ante la discrepancia entre el gobierno de Correa y las transformaciones de las fuerzas de izquierda y del movimiento indígena, las frustraciones se acumularon. Y, como podemos ver, todavía están muy vivas”.

Ao mesmo tempo, Boaventura reconhece que “si Correa hubiese sido solamente y para todos los ecuatorianos lo que describí anteriormente, ¿sería imaginable que el candidato que reclama su herencia hubiera sido el más votado? Obviamente no. Es que el Gobierno de Correa tuvo muchas otras dimensiones que, si bien pueden ser desvalorizadas por ciertos sectores de la población, fueron muy importantes para otros”.

(No meio deste reconhecimento das qualidades positivas do que ele chama de "correísmo", aparece uma frase que me chamou a atenção: Correia “se afirmó como un líder nacionalista, defensor de la soberanía ecuatoriana contra el imperialismo estadounidense (recuerdo el impacto del cierre de la base de Manta en 2009), aunque, con el correr de los años, tuvo que caer bajo otra influencia extranjera, la de China”.)

Depois de apresentar o que ele chama de “perplexidades”, Boaventura se pergunta: “¿Por qué ahora, que la derecha oligárquica vuelve a tener a su candidato en la segunda vuelta de las elecciones, algunas fuerzas de izquierda y sectores del movimiento indígena defienden el voto nulo en la segunda vuelta de las elecciones? Para analizar esta coyuntura os propongo la siguiente hipótesis de trabajo: Ecuador es hoy quizás el país del subcontinente donde la divergencia entre la redistribución económico-social y el reconocimiento étnico-social es más pronunciada y donde dispone de menos puentes para superarlo”.

Boaventura aponta corretamente que a luta por uma “sociedad anticapitalista, anticolonialista, antipatriarcal, ecologista, feminista, plurinacional, radicalmente democrática, autodeterminada” é uma luta “inminentemente política. Las banderas aparentemente apolíticas de las ONG no tienen otra finalidad que desarmar el movimiento popular. Es por eso que están fuertemente financiadas por los países del Norte Global. Entiendo que muchos de ustedes, frustrados con la política formal, prefieren canalizar su activismo fuera del sistema político de partidos. Pero en la medida en que lo consideren importante, es bueno saber lo que está en juego. Incluso siendo la lucha concebida como política, no es fácil organizarla. Sabemos que no podemos confiar en las instituciones, pero tampoco podemos vivir sin ellas. Tendremos que luchar con un pie en las instituciones y el otro fuera. Tendremos que luchar dentro del Estado, contra el Estado y fuera del Estado con diferentes formas de organizar las luchas, algunas de las cuales ni siquiera se han intentado todavia”.

Boaventura diz, também, que nesta luta os nossos aliados não estarão “entre las fuerzas de derecha. E agrega: "por supuesto, todo será más fácil si Arauz se manifiesta claramente en sintonía con la transición y no con el regreso al passado”.

Diz também que no “reciente debate ecuatoriano, una de las ausencias más ruidosas ha sido el factor de la intervención extranjera. Algunos de los participantes en el debate están tan dominados por el odio y el resentimiento hacia Correa que ven su fantasma por todas partes y consideran que su injerencia es siempre avasalladora. ¿Será que así no ven o esconden otro fantasma mucho más presente?”

E agrega: “Arauz ofrece muchas menos garantías de alineamiento antichino que Lasso o Pérez. ¿Estará ahí la benevolencia con la que Estados Unidos y la OEA miran a los candidatos anticorreístas?”

Depois de ler tudo isto, simplesmente não consigo entender o que vem a seguir, a saber, as linhas com que Boaventura encerra sua carta. 

Reproduzo na íntegra:

“Querida amiga, querido amigo: Mis perplejidades no terminan aquí, pero son suficientes para intentar justificar por qué no intervengo más asertivamente en el debate que estáis teniendo en Ecuador. Mi deseo es que seáis vosotros, los ecuatorianos y sobre todo los más jóvenes, quienes decidáis las cuestiones que están abiertas, para las cuales, además, no hay soluciones inequívocas a la vista. Lo importante es que lo hagáis con una reflexión profunda sobre los conflictos que atraviesan vuestro país y sin injerencia externa, ya sea de intelectuales-activistas internacionalistas bien intencionados, como yo, pero que, como yo, están siempre sujetos a cometer errores; y también sin la injerencia de países extranjeros, ya sean Estados Unidos, países europeos, países de América Latina o China. Una cosa es cierta: lo que decidáis tendrá consecuencias importantes, positivas o negativas, para el futuro del resto del mundo, que se ve afectado por estas polarizaciones. No se está impunemente en el centro del mundo”.

Cada um decide onde e como quer intervir "más assertivamente".

E talvez a opção por apresentar os seus argumentos sob o título comum de “perplexidades” e dizer que não estaria “en condiciones para aconsejaros sobre las mejores decisiones concretas en el conflicto en curso” possa ser um recurso retórico para, ao mesmo tempo, não “romper pontes” com seus aliados e buscar conduzí-los de maneira suave para uma posição correta.

Mas o fato é que todos os argumentos de Boaventura conduzem a indicar o voto em Arauz.

E todos os argumentos conduzem, também, à necessidade de intervir “más asertivamente en el debate" em curso no Equador. 

Entre outros motivos, porque não se trata de um “debate” apenas. 

Ademais, da mesma forma que Boaventura lembra a seus amigos que não se pode estar "impunemente en el centro del mundo”, também vale lembrar que não se pode ser impunemente um "intelectual ativista internacionalista bem intencionado".

 

ABAIXO SEGUE O TEXTO CRITICADO

ESPEJOS EXTRAÑOS

Carta abierta a dos jóvenes indígenas ecuatorianos

BOAVENTURA DE SOUSA SANTOS

Querida amiga, querido amigo:

Os agradezco todo el tiempo que habéis dedicado a conversar conmigo durante las últimas semanas sobre el proceso electoral en curso en vuestro país. Como os dije, quedé perplejo por toda la controversia internacional suscitada entre varias familias de izquierda sobre vuestro actual proceso electoral. Recapitulando: parece ser una astucia de la razón que el proceso político de Ecuador, un país situado en el centro del mundo, como su propio nombre indica, se haya convertido en las últimas semanas en el campo de una feroz disputa entre intelectuales y activistas de izquierda, oriundos no solo de Ecuador, sino también de otros países de América Latina, así como de Europa, de Estados Unidos, de Sudáfrica y de la India. El motivo de la disputa es el proceso de las elecciones presidenciales que se está llevando a cabo. En la primera vuelta ganó, sin mayoría absoluta, Andrés Arauz, que representa un cierto regreso al correísmo (designación dada al gobierno de Rafael Correa entre 2007 y 2017); en segunda posición (tras algún recuento de votos) quedó Guillermo Lasso, representante de la derecha oligárquica. En tercer lugar, quedó Yaku Pérez, indígena, candidato del movimiento Pachakutik. El conflicto se centró inicialmente en un posible intento de fraude electoral que habría arrebatado a Pérez el segundo lugar. Este conflicto jurídico-electoral era, de hecho, una metamorfosis del conflicto que se había librado antes para evitar que Andrés Arauz fuera candidato debido a sus vínculos con Rafael Correa. Además, es bueno recordar que las estrategias típicas de la lawfare (guerra jurídica) habían impedido a Correa postularse como vicepresidente de Arauz.

Resuelto (aparentemente) este conflicto, la disputa se orientó a decidir a qué candidato apoyar en la segunda vuelta. La controversia cruzó repentinamente las fronteras del país y derivó en un extremismo de insultos y contrainsultos, peticiones de censura y contracensura, que me sorprendió y dejó perplejo. Fue por eso que me puse en contacto con vosotros en el transcurso de estas semanas. Después de todo, una vez más y como siempre en Ecuador, los pueblos indígenas eran protagonistas de los cambios políticos, pero las voces del debate, tanto en Ecuador como en el extranjero, no eran indígenas en su abrumadora mayoría. Del movimiento indígena solo se sabía que estaba dividido, ya que inicialmente Yaku Pérez no había sido el candidato elegido por los pueblos y las nacionalidades indígenas, sino por el movimiento Pachakutik. Pachakutik nació como brazo político de la CONAIE (Confederación de Nacionalidades Indígenas de Ecuador), pero su posterior trayectoria política, especialmente su alineamiento en los últimos años con el gobierno de derecha neoliberal de Lenín Moreno, creó algunas tensiones entre el movimiento indígena. El silencio fue particularmente intrigante en el caso de los jóvenes líderes indígenas que, además, en el pasado tuvieron algunas divergencias con los líderes indígenas y también con el Gobierno, situación que seguí de cerca, como sabéis. Cuando el 15 de agosto de 2014 presidí la Sala Especial para el Yasuní del Tribunal Ético de los Derechos de la Naturaleza, presidido por mi amiga Vandana Shiva, los mejores aliados del tribunal, además de los pueblos indígenas, fuisteis vosotros.

 

Por todas estas razones decidí consultaros. Hoy me dirijo a vosotros para deciros que he llegado a la conclusión de que no estoy en condiciones para aconsejaros sobre las mejores decisiones concretas en el conflicto en curso. Sé que os decepciono; con toda legitimidad podéis decir que os he hecho perder vuestro precioso tiempo. Por eso, quiero explicaros las razones de mi decisión. Expresaré mis razones en forma de perplejidades.

¿La democracia está primero? Uno de los aprendizajes de las izquierdas en las últimas décadas, tanto en América Latina como en otras regiones del mundo, es que son las fuerzas de izquierda las que defienden firmemente la democracia liberal, incluso reconociendo todos sus límites y apostando siempre, a partir de ella, por radicalizar la democracia, es decir, transformar relaciones de poder en relaciones de autoridad compartida. La experiencia nos dice que la derecha no sirve a la democracia, sino que se sirve de ella cuando le conviene y la descarta cuando no le conviene. Recuerdo bien que, cuando el 30 de septiembre de 2010 las fuerzas policiales intentaron un golpe de Estado contra Rafael Correa, mi amigo Alberto Acosta pasó por mi hotel y corrimos a la sede de la CONAIE, donde pasamos todo el día. En ese momento, ya había quejas justas del movimiento indígena contra Correa, pero entonces el objetivo no era defender a Correa, sino la democracia que representaba.

De ser así, una vez comprobado que no hubo fraude electoral en estas elecciones de 2021, la disputa política debería centrarse en los programas políticos de cada candidato. ¿Por qué el debate sigue centrándose en la integridad de los candidatos y no en sus programas? Hay que tener en cuenta que, en varios países del continente, la derecha neoliberal, al no tener otro programa político más allá de las recetas neoliberales, viene jugando el argumento de la moralidad contra los candidatos de izquierda, acusándolos de corrupción. Además, cabe recordar dos hechos perturbadores. El primero es que ha estado en marcha en Ecuador una auténtica lawfare contra Rafael Correa por presuntos delitos cometidos, lo que parece no tener otro propósito que neutralizarlo políticamente. Esta guerra procuraba alcanzar al candidato que reivindicaba la herencia de Correa, Andrés Arauz. Semejante neutralización política ocurrió antes contra Manuel Zelaya (Honduras), Cristina Kirchner (Argentina), Fernando Lugo (Paraguay), Lula da Silva y Dilma Rousseff (Brasil) y Evo Morales (Bolivia). En todos estos casos, la injerencia de Estados Unidos fue evidente. Me deja atónito el hecho de que muchos de los que han firmado declaraciones contra el candidato Arauz también firmaron declaraciones contra Evo Morales, del mismo modo que negaron la existencia de un golpe de Estado en Bolivia, lo que también ocurrió con el propio Yaku Pérez.

El segundo hecho inquietante es que, en el momento de redactar esta carta, no se descarta un último intento de anular las elecciones o apartar al candidato más votado. Fue esta sospecha la que llevó al Secretario General de la ONU a hacer recientemente una declaración en el sentido de hacer todo lo posible a fin de mantener la segunda vuelta de las elecciones en la fecha programada. Hace unas semanas, el Fiscal General de Colombia viajó expresamente a Quito para entregar "las pruebas" de que Arauz había recibido dinero de la organización guerrillera colombiana Ejército de Liberación Nacional (ELN) para financiar su campaña. Los desmentidos inmediatos de Arauz y del propio ELN, así como la notoria inverosimilitud de este hecho, no impidieron que "las investigaciones" comenzaran. Sabemos que Colombia es hoy un país satélite de Estados Unidos y que el secretario de la Organización de los Estados Americanos (OEA), Luis Almagro, un personaje siniestro que urdió el golpe de Estado en Bolivia, se reunió en Washington con el presidente de Ecuador, Lenín Moreno, quien ha dejado claro que su candidato favorito es Lasso y, en segundo lugar, Pérez. Me parece que podríamos estar ante una típica maniobra de gestación de un golpe. La ley ecuatoriana es clara: los candidatos gozan de inmunidad y las leyes electorales no pueden cambiarse durante el periodo electoral. Sin embargo, como hemos visto en Brasil, no sabemos hasta dónde puede llegar la furia persecutoria de la lawfare.

¿La izquierda está primero? El debate ecuatoriano está protagonizado por intelectuales y activistas de izquierda, entre los cuales destacan las corrientes feministas y ecologistas. En él han intervenido colegas, amigos y amigas a los que admiro mucho y con quienes he trabajado a lo largo de los años. Si Arauz es de izquierda, al menos en comparación con Lasso, sería de esperar que las energías se canalizaran para derrotar al candidato de la derecha y que el movimiento indígena se involucrara a fondo en eso. No es esto lo que está ocurriendo. En el momento en que os escribo, la asamblea de una de las organizaciones de la CONAIE decidió recomendar el voto nulo en la segunda vuelta de las elecciones. Hay que analizar las razones de la neutralidad entre un candidato de izquierda (quizás equivocada, pero izquierda de todas maneras) y un candidato de derecha banquero y miembro del Opus Dei. Debéis analizar las razones, y sobre todo, estar atentos a los posibles planes para impedir que el proceso electoral siga su curso. ¿Se estará preparando el próximo capítulo de la lawfare? ¿Acaso están en juego en Ecuador los dolores de parto del nacimiento de una nueva izquierda, una izquierda verdaderamente propia del siglo XXI? Hasta donde yo sé, los partos siempre son dolorosos. De ahí las dos siguientes perplejidades.

¿Qué es la izquierda? Durante mucho tiempo, la izquierda fue concebida como el conjunto de teorías y prácticas políticas transformadoras que, durante los últimos ciento cincuenta años, resistieron a la expansión del capitalismo y al tipo de relaciones económicas, sociales, políticas y culturales que este genera, y que así han procedido en la creencia de la posibilidad de un futuro poscapitalista, de una sociedad alternativa, más justa, porque está orientada a satisfacer las necesidades reales de las poblaciones, y más libre, porque está centrada en la realización de las condiciones para el ejercicio efectivo de la libertad. Por muchas razones que no puedo detallar en esta carta, esta concepción ha sido objeto de mucha discusión. Las principales características de esta discusión fueron las siguientes. Un mayor conocimiento entre los movimientos populares en el mundo permitió ver que las divisiones políticas en muchos países no se expresan a través de la dicotomía izquierda/derecha. Incluso en aquellos países donde la dicotomía está en vigor, se ha generado un gran debate sobre el significado de cada uno de los términos. Por ejemplo, las luchas sociales y políticas contra la injusticia han ampliado enormemente las dimensiones de la injusticia y, por tanto, de la dominación. A la injusticia económica y social se han añadido la injusticia étnico-racial, la injusticia sexual, la injusticia histórica, la injusticia lingüística, la injusticia epistémica y otras injusticias basadas en la discapacidad, la casta, la religión, etc. Esta expansión planteó nuevas cuestiones, por ejemplo, la de la jerarquía entre las injusticias y, en consecuencia, de las luchas contra ellas. Se prestó nueva atención a los diferentes contextos específicos en los que se llevan a cabo las luchas y se hizo necesario distinguir entre luchas importantes y luchas urgentes. Fue posible, por ejemplo, defender que las tres principales formas de dominación producidas por la modernidad eurocéntrica son el capitalismo, el colonialismo (que apenas cambió de forma a pesar de los procesos de independencia política de las colonias) y el patriarcado.

No obstante, en el continente latinoamericano los debates también adquirieron otras dimensiones particularmente importantes. Distingo tres principales. La primera fue el cuestionamiento de la dicotomía izquierda/derecha en vista de los modelos de desarrollo económico y social adoptados por gobiernos de izquierda durante la primera década del siglo. La polarización pasó a ser entre los partidarios y los opositores del neoextractivismo (redistribución social basada en la explotación sin precedentes de los recursos naturales, con la consiguiente expulsión de los pueblos indígenas y campesinos, la degradación ecológica y el abandono de la discriminación étnico-cultural, étnico-racial y sexual/heterosexual). Incluso se inventó un nuevo término, "progresismo", para caracterizar a los gobiernos que, aunque se decían de izquierda, no lo eran en opinión de los opositores al neoextractivismo.

La segunda dimensión fue la polarización entre estatismo y movimientismo. La tradición de las fuerzas políticas de izquierda en el subcontinente (como en gran parte del mundo) defendió casi siempre la necesidad de controlar el Estado para, a partir de él, llevar a cabo la deseada transformación social. Las frustraciones con la experiencia histórica (de las que el estalinismo es el ejemplo extremo) empeoraron a principios del siglo XXI con los proyectos de desarrollismo neoextractivista en el continente latinoamericano. Estos proyectos fueron protagonizados por el Estado, casi siempre en articulación con el capitalismo neoliberal global, un aspecto que los opositores al neoextractivismo vieron como la continuidad de la explotación colonial. De ahí que hayan ganado peso concepciones como las de "transformar el mundo sin tomar el poder" (una expresión mal entendida de John Holloway), que comenzaron a centrar las propuestas de izquierda en la lucha por una nueva hegemonía (la de los derechos de la naturaleza) y en la valoración de los proyectos comunitarios basados ​​en las ideas de autodeterminación y de plurinacionalidad. Si la concepción estatista exageró el poder transformador del Estado cuya matriz es, al fin y al cabo, capitalista colonialista, patriarcal y monocultural, la concepción movimientista corrió el riesgo de conducir a la despolitización de los movimientos sociales, un riesgo tanto mayor cuanto más evidente era el apoyo recibido de organizaciones no gubernamentales, financiadas por el Norte Global, en su mayoría destinadas a evitar que los movimientos sociales se conviertan en movimientos políticos.

La tercera dimensión característica del subcontinente, aunque no exclusiva de él, es la transformación muy repentina de los parámetros de la polarización política. Frente al revanchismo agresivo, a veces golpista, de los gobiernos de derecha que sucedieron a los gobiernos progresistas, la principal polarización pasó a ser entre democracia y dictadura. Y ante la coyuntura particularmente dramática y dolorosa derivada de la forma incompetente e incluso criminal con la que los gobiernos de derecha han enfrentado la crisis de salud, la principal polarización pasó a ser entre política de vida y política de muerte. Esta última mutación está particularmente presente en Brasil y en Ecuador.

Los debates dentro de las fuerzas de izquierda están abiertos. Por un lado, dieron visibilidad y potencia política a luchas sociales muy diversas. Por otro lado, crearon nuevas divergencias que han resultado difíciles de conciliar. Mientras no se supere esta dificultad, las luchas de izquierda, en lugar de articularse, se fragmentan aún más; en lugar de fortalecerse, se debilitan aún más. Dos dificultades resultan particularmente paralizantes: las divergencias sobre el papel del Estado y de las luchas institucionales; y las divergencias sobre la jerarquía entre los motores de las luchas (¿clases sociales o identidades étnico-raciales o sexuales?) y entre objetivos sociales de las luchas (¿redistribución social o reconocimiento de la diversidad?). Detrás de estas dificultades está la mega-dificultad creada por la divergencia entre desarrollismo/extractivismo y buen vivir/derechos de la naturaleza.

De todos estos debates, quizás la única conclusión segura, por ahora, es que las fuerzas de izquierda saben mejor lo que no quieren que lo que quieren. Durante mucho tiempo sufrieron la pandemia política (que precedió a la del coronavirus) y que se instaló en el mundo después de la década de los 80, de que no hay alternativa al capitalismo y de que, por eso, llegamos al fin de la historia. Curiosamente, las señales de que las fuerzas de izquierda pueden sentirse inmunizadas contra el virus del neoliberalismo surgieron inicialmente con especial fuerza en Ecuador. Veamos.

El debate ecuatoriano es muy dependiente de la erosión del imaginario de izquierda provocada por el centralismo y el tecnocratismo de Rafael Correa. Más que cualquier otro líder político de izquierda de la primera década del 2000, Correa concibió a la izquierda como un proyecto soberanista, impuesto desde arriba, centralista, monocultural, antiimperialista, centrado en la redistribución social pero conservador en cuanto a los derechos reproductivos de las mujeres y hostil al diálogo constructivo con la sociedad civil organizada. Este período coincidió con la época en que surgió una nueva creatividad de las fuerzas de izquierda. Esta circunstancia se debió a varios factores, entre los que distingo el fin del bloque soviético y el surgimiento de nuevos sujetos políticos, principalmente mujeres, pueblos indígenas, campesinos, movimientos ecologistas, el Foro Social Mundial. Esta transformación animó nuevamente la idea de las alternativas. Esta idea salió fuertemente reforzada de las Constituciones Políticas de Ecuador (2008) y de Bolivia (2009), Constituciones que apuntaban a la refundación plurinacional del Estado y a alternativas al desarrollo capitalista basadas en las filosofías y prácticas de los pueblos indígenas. Sin saber muy bien cuál sería el fin último de sus luchas, las nuevas izquierdas parecían, sin embargo, dar por sentado que tendrían que basarse en amplios procesos de participación democrática, en el reconocimiento de la diversidad étnico-cultural y de los derechos de la naturaleza, en la refundación plurinacional del Estado, en la lucha anticolonialista y antipatriarcal. La lucha anticapitalista que exigía, como mínimo, una mejor redistribución social se articulaba ahora con la lucha contra el colonialismo (contra el racismo, la discriminación étnico-racial, la concentración de tierras, la expulsión de pueblos indígenas y campesinos, la xenofobia, la monocultura del saber científico) y contra el patriarcado (contra la dominación heterosexual, la violencia doméstica y el feminicidio).

Ante la discrepancia entre el gobierno de Correa y las transformaciones de las fuerzas de izquierda y del movimiento indígena, las frustraciones se acumularon. Y, como podemos ver, todavía están muy vivas. De ahí la siguiente perplejidad.

¿Quién es finalmente Rafael Correa? Si Correa hubiese sido solamente y para todos los ecuatorianos lo que describí anteriormente, ¿sería imaginable que el candidato que reclama su herencia hubiera sido el más votado? Obviamente no. Es que el Gobierno de Correa tuvo muchas otras dimensiones que, si bien pueden ser desvalorizadas por ciertos sectores de la población, fueron muy importantes para otros. Correa garantizó la estabilidad política durante diez años, lo que no es poca cosa en un país donde en los diez años anteriores hubo siete presidentes. Fue el creador de renombre internacional de la auditoría de la deuda externa de Ecuador, lo que permitió una reducción significativa de la deuda. Privilegió la redistribución social y los beneficios sociales llegaron a muchos que nunca habían tenido condiciones mínimas para vivir con dignidad. La pobreza bajó del 36,7% en 2006 al 22,5% en 2016 y las desigualdades medidas por el coeficiente de Gini disminuyeron y hubo un aumento de las clases medias. Estableció la gratuidad de la educación pública en todos los niveles y mejoró los salarios del personal docente. Construyó muchas infraestructuras básicas de las que carecía el país. Se afirmó como un líder nacionalista, defensor de la soberanía ecuatoriana contra el imperialismo estadounidense (recuerdo el impacto del cierre de la base de Manta en 2009), aunque, con el correr de los años, tuvo que caer bajo otra influencia extranjera, la de China.

Y lo cierto es que, a pesar de toda la contestación social, Correa logró elegir a su sucesor, su vicepresidente, Lenín Moreno, quien poco después se rendiría ante la más mediocre servidumbre al FMI y a los intereses geoestratégicos de Estados Unidos en la región, volviéndose cómplice de la política persecución contra Rafael Correa. Esto significa que lo menos que puede decirse es que el país que dejó Correa al finalizar sus mandatos era una sociedad más justa, al menos en algunos aspectos, que el país gobernado por sucesivas oleadas de derecha controladas por las élites oligárquicas. ¿Por qué ahora, que la derecha oligárquica vuelve a tener a su candidato en la segunda vuelta de las elecciones, algunas fuerzas de izquierda y sectores del movimiento indígena defienden el voto nulo en la segunda vuelta de las elecciones? Para analizar esta coyuntura os propongo la siguiente hipótesis de trabajo: Ecuador es hoy quizás el país del subcontinente donde la divergencia entre la redistribución económico-social y el reconocimiento étnico-social es más pronunciada y donde dispone de menos puentes para superarlo. De ahí mis dos siguientes perplejidades.

¿Qué es la transición? Uno de los principales problemas que enfrentarán hoy las izquierdas en trabajo de parto es la cuestión de la transición. Empezamos a saber que queremos una sociedad anticapitalista, anticolonialista, antipatriarcal, ecologista, feminista, plurinacional, radicalmente democrática, autodeterminada. Sabemos que se trata de un cambio de paradigma de civilización. ¿Cómo luchamos por él? En primer lugar, debemos saber que la lucha es inminentemente política. Las banderas aparentemente apolíticas de las ONG no tienen otra finalidad que desarmar el movimiento popular. Es por eso que están fuertemente financiadas por los países del Norte Global. Entiendo que muchos de ustedes, frustrados con la política formal, prefieren canalizar su activismo fuera del sistema político de partidos. Pero en la medida en que lo consideren importante, es bueno saber lo que está en juego. Incluso siendo la lucha concebida como política, no es fácil organizarla. Sabemos que no podemos confiar en las instituciones, pero tampoco podemos vivir sin ellas. Tendremos que luchar con un pie en las instituciones y el otro fuera. Tendremos que luchar dentro del Estado, contra el Estado y fuera del Estado con diferentes formas de organizar las luchas, algunas de las cuales ni siquiera se han intentado todavía.

¿Y con qué aliados? No es creíble que podamos encontrarlos entre las fuerzas de derecha. La derecha, cuando vuelve al poder, lo hace con más revanchismo que nunca. Véanse los casos de Bolsonaro en Brasil, de Macri en Argentina o de la golpista Áñez en Bolivia. ¿Es prudente arriesgar lo mismo con Lasso en Ecuador? Por supuesto, todo será más fácil si Arauz se manifiesta claramente en sintonía con la transición y no con el regreso al pasado. Como jóvenes que sois, tenéis en vuestras manos el futuro del país. Hay tres áreas en las que debéis prestar especial atención: la transición para salir del extractivismo, la educación intercultural y el cogobierno con la CONAIE para dar seguimiento concreto a la plurinacionalidad consagrada en la Constitución de 2008. Las dos primeras áreas constan en el programa de Arauz, pero tanto ellas como la tercera dependen de vuestra presión política organizada, que debe continuar (y no terminar) con las elecciones. Lo más importante es aprender de los errores del pasado.

¿Se acabó el imperialismo? En el reciente debate ecuatoriano, una de las ausencias más ruidosas ha sido el factor de la intervención extranjera. Algunos de los participantes en el debate están tan dominados por el odio y el resentimiento hacia Correa que ven su fantasma por todas partes y consideran que su injerencia es siempre avasalladora. ¿Será que así no ven o esconden otro fantasma mucho más presente? Sabemos que el imperio ha cambiado muchas tácticas (por ejemplo, de las dictaduras militares a la lawfare), pero no alteró su estrategia. Sabemos que la Guerra Fría entre Estados Unidos y China está adquiriendo proporciones muy preocupantes. Estados Unidos es un imperio en declive y, como otros en el pasado, se vuelve aún más agresivo en la búsqueda de zonas de seguridad extraterritoriales. Para Estados Unidos, sin gran influencia en África y sin confiar mucho en Europa y todavía menos en Asia, América Latina es la única región del mundo que consideran que les pertenece incondicionalmente. El precio que pagan los países por desobedecer es enorme, aunque sean muy problemáticos desde el punto de vista de las nuevas izquierdas, como, por ejemplo, Cuba, Venezuela o Nicaragua. Arauz ofrece muchas menos garantías de alineamiento antichino que Lasso o Pérez. ¿Estará ahí la benevolencia con la que Estados Unidos y la OEA miran a los candidatos anticorreístas? A la luz de la experiencia reciente (por no mencionar la menos reciente), ¿pueden los ecuatorianos arriesgarse a un nuevo alineamiento incondicional con Estados Unidos? Estoy seguro de que conocéis bien lo que está pasando en Brasil y lo que iba aconteciendo en Bolivia.

Querida amiga, querido amigo:

Mis perplejidades no terminan aquí, pero son suficientes para intentar justificar por qué no intervengo más asertivamente en el debate que estáis teniendo en Ecuador. Mi deseo es que seáis vosotros, los ecuatorianos y sobre todo los más jóvenes, quienes decidáis las cuestiones que están abiertas, para las cuales, además, no hay soluciones inequívocas a la vista. Lo importante es que lo hagáis con una reflexión profunda sobre los conflictos que atraviesan vuestro país y sin injerencia externa, ya sea de intelectuales-activistas internacionalistas bien intencionados, como yo, pero que, como yo, están siempre sujetos a cometer errores; y también sin la injerencia de países extranjeros, ya sean Estados Unidos, países europeos, países de América Latina o China. Una cosa es cierta: lo que decidáis tendrá consecuencias importantes, positivas o negativas, para el futuro del resto del mundo, que se ve afectado por estas polarizaciones. No se está impunemente en el centro del mundo.