domingo, 25 de fevereiro de 2018

Plano e projeto: Lula e as eleições 2018

No dia 22 de fevereiro de 2018, o Partido dos Trabalhadores realizou -- na Casa de Portugal, centro de São Paulo – uma grande plenária para comemorar seu 38º aniversário.

Muitos dos que discursaram, repetiram o bordão: “o PT não tem plano B”.

Então, ao convocar o último orador, o mestre de cerimônias disse que naquele momento falaria “aquele que não é um plano, mas é um projeto, é o nosso projeto, Luiz Inácio Lula da Silva”.

Não sei se a frase foi planejada ou saiu na emoção, mas achei perfeita.

Afinal, desde 1989, uma parte importante da esquerda brasileira vem apresentando, votando e defendendo Lula como uma espécie de encarnação & instrumento das transformações que queremos fazer no Brasil.

Eleger Lula e Lula governar passaram a ser, para esta parcela da esquerda, uma espécie de “meta-síntese”.

Como se pode deduzir do que disse o próprio Lula, no memorável depoimento que deu ao inquisidor-mor(o), ele se converteu numa espécie de “Posto Ipiranga” da esquerda brasileira.

Revogação das medidas golpistas?  Tem que eleger Lula.

Assembleia Constituinte? Tem que eleger Lula.

Soberania, democracia e bem-estar? Tem que eleger Lula.

Vale dizer que na história da esquerda, tanto no Brasil quanto em outros países, não é a primeira vez que acontece este tipo de “fusão” entre um projeto e uma pessoa.

Esta recorrência demonstra que não se trata de um acaso, nem de uma “distorção”, mas sim de um traço inerente a luta política, em determinadas circunstâncias históricas.

Por outro lado, vários problemas decorrem desta identificação entre um projeto e uma pessoa. Por exemplo: ninguém dura para sempre e ninguém é infalível.

Por estes e outros motivos, é comum que a fusão entre um projeto e uma pessoa converta-se, muito facilmente, em confusão e dependência coletiva frente ao que esta pessoa defende (ou deveria defender) em cada momento e, também, em disputa acerca de quem são os verdadeiros defensores e/ou herdeiros do projeto.

No caso do Brasil de 2018, entretanto, há um problema mais imediato a ser considerado nesta relação entre pessoa e projeto: quem defende a necessidade de eleger Lula e de Lula voltar a governar, sabe que para isso se faz necessário impor várias derrotas aos golpistas.

Como não está nada fácil impor estas derrotas, alguns setores da esquerda já estão buscando vias alternativas, entre as quais apoiar outra candidatura (por exemplo: Boulos, Manuela, Ciro) ou lançar outro nome do próprio PT (operação que é abertamente estimulada por certos meios de comunicação).

Os que defendem estas vias alternativas, muitas vezes tomam o cuidado de exaltar o projeto Lula, ao mesmo tempo em que começam a construir seu respectivo plano “B”.

Para os que somos petistas mas não somos lulistas, para os que não confundimos projeto com plano, objetivo com instrumento, a situação que estamos vivendo em 2018 pode e deve ser explicada e solucionada de outra maneira.

A saber: os golpistas estão enfrentando dificuldades.

A situação internacional e a economia nacional não prometem um cenário de estabilidade.

Mesmo os que falam de sinais de recuperação econômica, tanto no país quanto fora, reconhecem que isto pode ser um fenômeno passageiro, com baixo impacto, sujeito a interferências de uma nova crise internacional e/ou da instabilidade política interna. 

Portanto, estes sinais de recuperação muito dificilmente vão impactar as expectativas das pessoas, pelo menos ao ponto de neutralizar as críticas dos que fazem oposição ao golpismo.

Às dificuldades econômicas, devemos somar as dificuldades no parlamento. Depois da blitzkrieg inicial, a base do governo foi incapaz de aprovar a reforma da Previdência. 

E existem as dificuldades eleitorais. Apesar do impeachment, da campanha de mentiras da mídia, apesar dos processos e da condenação, Lula segue liderando as pesquisas de opinião.

Por outro lado, os golpistas estão divididos em diferentes candidaturas (às quais acaba de somar-se, ao que tudo indica, a do próprio presidente ilegítimo). 

Nenhuma delas conseguiu, até agora, um bom desempenho nas pesquisas. 

Portanto, todas as candidaturas golpistas têm interesse em impedir Lula de concorrer, uma vez que isto ampliaria as chances de um dos golpistas vencer as eleições presidenciais. Contribui para este objetivo, também, desgastar Lula e disseminar a dúvida, na população, sobre se ele efetivamente conseguirá manter a candidatura.

As dificuldades eleitorais do golpismo são uma parte importante dos motivos que levaram Temer a decidir pela intervenção militar no estado do Rio de Janeiro. 

Mas, além da ameaça que significa para a democracia, para a vida e para os direitos de parte importante da população pobre e trabalhadora, a intervenção militar também constitui uma operação de altíssimo risco, não apenas para Temer, mas também para as Forças Armadas, sob qualquer ângulo que se observe. 

É verdade que hoje a pauta da segurança, assim como ontem a da corrupção, tem forte apelo popular. Mas é muito mais fácil começar do que concluir com êxito uma intervenção militar. As dificuldades são tantas que há quem especule sobre um acordo entre o governo Temer e o PCC.

Além disso, quem se beneficiará eleitoralmente da intervenção? Temer? Bolsonaro? Outra candidatura linha dura? Os que defendem algum tipo de “saída militar” para a crise política nacional?

Todo este contexto de dificuldades (econômicas, sociais, parlamentares, eleitorais, políticas etc.) coloca o bloco golpista diante da seguinte encruzilhada: 

a) permitir que Lula permaneça na disputa eleitoral, caso em que os golpistas correm alto risco de perder a eleição para o ex-presidente; 

b) retirar Lula da disputa eleitoral, na expectativa de transformar a eleição de 2018 num confronto entre as candidaturas golpistas, de modo a garantir que alguma delas venha a ser eleita.

Mas para que esta expectativa seja alta, não basta para os golpistas tirar Lula da disputa, inabilitando-o. É também necessário prendê-lo, para que ele não possa participar diretamente da campanha eleitoral. 

Embora haja dúvidas e disputa entre os golpistas, seu núcleo duro está decidido a prender Lula, recusar e/ou cassar seu registro. E se isto efetivamente ocorrer, o eleitorado não vai encontrar o nome de Lula na urna eletrônica.

Frente a esta hipótese, o que fazer?

Determinados setores da esquerda acham que este problema não lhes diz respeito, que devem registrar suas candidaturas independentemente de Lula ser ou não candidato, que uma eventual “ausência” de Lula pode inclusive favorecer eleitoralmente as candidaturas presidenciais de seus próprios partidos, que a eleição de 2018 vai ser como outra qualquer, que a esquerda disputará fragmentada e em muitos casos fazendo diferentes alianças com golpistas.

Lembrando que estas alianças com os golpistas não são apenas eleitorais: vide como se comportaram PSB e PDT na votação sobre a intervenção militar no Rio de Janeiro.

Outros setores da esquerda defendem deixar esta discussão para outro momento. Alguns são totalmente sinceros nesta defesa: estão agora se dando conta do problema, não tem clareza sobre o que fazer, pensam que antecipar esta discussão apenas criaria confusão e divisão entre nós. 

Mas há também os que não querem antecipar a discussão, para que prevaleça a inércia e para ganhar tempo para forjar o “plano B” dos seus sonhos.

Alguns setores da esquerda já têm e publicizam posição definida a respeito. 

Ou no sentido deliberado pela reunião realizada pelo Diretório nacional do PT no dia 16 de dezembro de 2017, a saber: eleição sem Lula é fraude e portanto "plano B" seria legitimar a fraude. 

Ou no sentido do "plano B": na hipótese de ser consumada mais uma violência contra Lula, defendem caminhar para uma solução feijão-com-arroz, em que Lula poderia continuar sendo nosso “projeto”, mas o “plano” propriamente dito seria lançar e/ou apoiar outra candidatura, que buscaria receber os votos do eleitorado lulista.

Não conheço nenhuma argumentação sólida em favor da tese de que seria possível, para a esquerda, ganhar as eleições de 2018 com outra candidatura que não a de Lula. Mas isto não é um argumento definitivo contra o chamado “plano B”, pois nenhuma candidatura pode dar garantia absoluta de que ganhará uma eleição.

Portanto, os argumentos contra o “plano B” devem ser outros, entre os quais cito os que seguem abaixo.

Argumento 1. Caso o PT viesse a aceitar a hipótese do “plano B”, seria muito mais fácil para os golpistas praticarem mais uma violência contra Lula. É por isso, aliás, que certos meios de comunicação estão em campanha pelo “plano B”, tendo inclusive suas candidaturas preferidas e estimuladas. Afinal, se as vítimas relativizam a gravidade da violência, os perpetradores podem agredir com mais facilidade. 

Invertendo o argumento: a defesa do direito de Lula ser candidato, combinada com a própria campanha em defesa da candidatura Lula, temperadas pela afirmação definitiva de que eleição sem Lula é golpe, criam um ambiente político que tornará mais difícil e custoso, para os golpistas, negar o registro e prender. Ou seja: se há alguma chance de impedir mais esta violência, esta chance não depende de embargos auriculares, mas sim da massificação da campanha em favor da candidatura Lula, massificação que será mais fácil de fazer, quanto mais fique claro que o "plano B" é útil ao golpismo.

Argumento 2. Caso o golpismo cometa mais esta violência, de impedir ou cassar o registro de Lula, nossa atitude de manter a candidatura de Lula, mesmo que o nome dele não esteja na urna eletrônica, estruturará de maneira muito potente nossa linha de campanha aos governos estaduais, ao Senado, à Câmara dos Deputados e às assembleias legislativas.  A esquerda combativa denunciará a fraude, defenderá a convocação de uma Assembleia Nacional Constituinte e novas eleições presidenciais, polarizando e acumulando forças para uma oposição radical ao atual e ao (neste cenário) futuro governo ilegítimo. 

Invertendo o argumento: participar da campanha eleitoral apresentando outra candidatura equivaleria, em alguma medida, a legitimar o processo fraudulento. Por tabela, equivaleria a legitimar o governo da direita que emergiria das urnas neste cenário. Portanto, seria dar uma dupla vitória para o golpismo. Além disso, participar nas condições de uma fraude, sem que Lula seja candidato, estimularia a dispersão das campanhas da esquerda, em várias candidaturas presidenciais, em dezenas de campanhas estaduais e milhares de campanhas proporcionais desestruturadas programaticamente e pulverizadas.

O conjunto da esquerda acompanhará o PT na tática aprovada pelo Diretório Nacional do PT dia 16 de dezembro de 2017? 

Não sabemos dizer. 

Para começo de conversa, a maioria de nossos aliados, mesmo na esquerda, não está atualmente convencida de que o PT vai mesmo manter Lula até o final, mesmo que neguem seu registro. 

Por outro lado, muitos de nossos aliados têm dúvidas sobre se o PT vai continuar sendo a força hegemônica no campo da esquerda. 

Por estes e por outros motivos, vários de nossos aliados de esquerda estão buscando seu próprio caminho. Logo, corremos mesmo o risco de sofrer aquilo que alguns chamam de “certo isolamento institucional”.

Agora, se isto efetivamente ocorrer, não terá sido a primeira vez na história do Partido dos Trabalhadores. 

Nossa tática eleitoral no período 1982 a 1988 também sofreu muitas críticas da parte de outros setores da esquerda. Nossa posição frente ao Colégio Eleitoral também não foi acompanhada por nenhum outro partido da esquerda. Nossa crítica ao Plano Cruzado foi duramente questionada. Igualmente criticaram nossa decisão de não votar, embora assinando, a versão final da Constituição de 1988.

Até pode ser que estivéssemos errados em algumas destas situações, mas o que elas demonstram quando examinadas de conjunto é que, em certas circunstâncias, algum isolamento pode ser um preço a pagar.

Não por coincidência, as situações citadas anteriormente ocorreram na década de 1980, na transição entre a Ditadura Militar e os governos neoliberais. 

Pois bem: hoje também estamos vivendo um período de transição. 

Esta transição pode resultar numa “ditadura neoliberal” – para citar um dos participantes de recente reunião da executiva nacional do PT – ou pode resultar num governo democrático e popular.

Neste contexto de transição, é previsível que parte da esquerda se aferre à estratégia, às táticas e às políticas de alianças adotadas no período histórico que está se encerrando. 

Algo parecido ocorreu durante a transição dos anos 1980: naquela época, enquanto o PT se projetava como força independente, outra parte da esquerda se aferrava à condição de aliada (subordinada) dos liberais do PMDB. 

Em alguns momentos, o PT pareceu (ou estava mesmo) isolado. 

Mas no final das contas, aquele “isolamento” virou apenas uma espécie de dano colateral do posicionamento firme que permitiu ao PT se projetar, perante grande parte da classe trabalhadora, como a principal força de esquerda que fazia oposição ao neoliberalismo, sem o que nunca teríamos chegado ao governo federal.

Para citar um exemplo oposto: a capitulação do setor hegemônico da esquerda em 1964 contribuiu para consolidar o golpe militar, mas também contribuiu para a fragmentação da esquerda no período seguinte. Fragmentação que incluiu, anos depois, como uma espécie de reação tardia frente à desmoralização, a opção de parte da esquerda por uma luta armada sem base popular.

Em sentido oposto ao que ocorreu em 1964 e de maneira similar ao que ocorreu nos anos 1980, no atual período de transição o PT precisa radicalizar. E a hora é agora. 

Para vencer no curto prazo, elegendo Lula e fazendo um governo de transformação, precisamos radicalizar. 

E se formos derrotados, ter radicalizado permitirá que nos mantenhamos como a principal força de oposição, criando assim melhores condições para uma vitória da esquerda, num momento seguinte.

Radicalizar é preciso, ademais, porque uma coisa é certa: na transição que estamos vivendo e no que virá depois, em nenhuma hipótese prevalecerá a “conciliação de classes”.

Se conseguirmos registrar Lula dia 15 de agosto e sua candidatura estiver na urna eletrônica, nosso desafio será o de ganhar as eleições presidenciais, eleger Lula, garantir a posse e governar num cenário muito mais difícil do que em 2003, 2007, 2011 e 2015.

Um cenário para o qual nosso programa deve ser organizado em torno de três eixos: a revogação das medidas golpistas; uma intervenção social de emergência, para gerar empregos e políticas sociais; e a convocação de uma Assembleia Nacional Constituinte.

Por óbvio, também pode ocorrer de a direita vencer as eleições, mesmo que Lula seja candidato. A própria direita não acredita muito nesta hipótese – e por isso prefere impedir o registro e prender Lula. Mas devemos considerar também este cenário.

Seja como for, o próximo período não será de “paz e amor”, mas de polarização, combates e disputas. 

Um cenário em que precisaremos ter cada vez mais clareza acerca do nosso projeto democrático-popular e socialista; acerca dos motivos que nos levam a repudiar a tática eleitoral intitulada de “plano B”; acerca das razões não apenas táticas, mas também estratégicas, pelas quais defendemos, em qualquer cenário, a candidatura Lula presidente.

sábado, 24 de fevereiro de 2018

Sobre a opinião nada renovadora de Mathias Alencastro


A Folha de S. Paulo publicou no dia 24 de fevereiro um texto de Mathias Alencastro, intitulado “Se não se transformar, o PT se tornará o MDB da nova esquerda”.

O texto afirma que o discurso da presidenta nacional do PT Gleisi Hoffman, feito no ato de aniversário do Partido dia 22 de fevereiro, teria reduzido “as tentativas de discussão sobre a renovação do partido à intriga, mesquinha e inconsequente, do ‘plano B’", e teria sugerido "que este debate está sendo travado de ‘fora para dentro’.”

Gleisi simplesmente não disse isso. E Mathias Alencastro mistura, propositalmente ou não, dois assuntos diferentes.

Um assunto é a “renovação do partido”, ou seja, a discussão sobre seu programa, sua estratégia, seu funcionamento cotidiano, suas táticas e sua relação com a classe trabalhadora e demais setores da sociedade brasileira.

Outro assunto é a proposta segundo a qual o PT deveria lançar e/ou apoiar outro nome, que não Lula, para presidente da República.

O discurso de Gleisi dia 22 de fevereiro versou sobre este segundo assunto.

Os dois assuntos estão ligados? Claro que sim. Mas estão ligados de uma maneira contrária ao senso comum.

Quem deseja renovar o Partido, no sentido de garantir que ele seja mais socialista, mais radical, mais vinculado à classe trabalhadora, não abre mão da candidatura Lula.

Já quem deseja “renovar” o Partido, no sentido de fazer ele se tornar mais “domesticado”, defende que o PT abra mão da candidatura Lula e legitime a fraude que se pretende praticar contra o povo brasileiro.

O que a companheira Gleisi disse é que esta campanha pelo “plano B” vem de fora para dentro. Vem, por exemplo, da Folha de S. Paulo, onde o artigo de Mathias Alencastro está sendo publicado e onde foi publicado, há alguns dias, um artigo ridículo sobre o mesmo tema.

Gleisi tem toda razão, não apenas factualmente, mas também no sentido mais amplo, a saber, na determinação de “a quem interessa” o crime.

Afinal, o sonho dourado dos golpistas é tirar Lula da disputa eleitoral e o PT aceitar isto como algo normal, substituindo o nome dele por outra candidatura, como se isso fosse resultado legítimo da normalidade democrática.

Vale dizer que o próprio Mathias Alencastro reconhece que Gleisi tem razão. 

Segundo Alencastro, a mensagem de Gleisi seria clara: “qualquer iniciativa da sociedade civil para discutir o futuro do segundo maior partido do Brasil deve ser invariavelmente interpretada como uma ameaça”.

Vou deixar de lado o “invariavelmente” e também a menção ao “segundo partido”. 

Vou também deixar de lado o verbo “discutir”. 

O miolo da questão é: Alencastro reconhece que a “sociedade civil” estaria se movimentando para pressionar o PT, para que o PT lance outro nome que não Lula. Portanto, Alencastro reconhece que Gleisi tem razão: o movimento por um “plano B” vem de fora para dentro.

E como a “sociedade civil” é muita gente, pergunto: de que setor está vindo esta pressão em favor de um plano B? Dos sindicatos? Dos movimentos populares? Da imprensa alternativa de esquerda? Dos que respondem a pesquisas de opinião?

Deixo ao leitor a resposta para a questão acima e sigo adiante.

Mathias Alencastro diz que durante décadas, os grandes partidos de esquerda teriam sido “avessos a toda tentativa de renovação e abertura”. Mas “o quadro mudou completamente nos últimos anos”. 

Alencastro cita em apoio desta opinião a ascensão de Jeremy Corbin no Labour Party, a aliança do Partido Socialista com o Partido Comunista em Portugal, a catástrofe que atingiu o Partido Socialista francês e a agonia lenta que estaria vitimando o Partido Socialista Operário Espanhol.

Acho divertido ler estes argumentos, não pelo que eles tenham de exato ou inexato, mas porque me fazem lembrar a pressão feita, nos anos 1990, para que o PT ficasse parecido com a socialdemocracia europeia. 

Deu no que deu. 

Nos últimos anos, apareceu gente tomando novos modelos: o insubmisso Melenchon, Tsipras do Synaspinos-Syriza, Pablo Iglesias do Podemos etc e tal. 

Agora o modelo são os social-democratas de esquerda. Antes eram os social-democratas de direita. Mas num caso como no outro, querem que tomemos a esquerda europeia como modelo do que fazer aqui no Brasil. 

Independente da opinião que tenhamos sobre cada caso concreto citado por Alencastro, não seria correto para o PT e para ninguém da esquerda brasileira adotar modelos estrangeiros, sejam quais forem.

Até porque, cá entre nós, todos os casos citados envolvem partidos socialdemocratas, com anos e às vezes décadas de capitulação frente ao neoliberalismo, em queda acentuada de popularidade, que se viram diante do dilema de renovar por dentro ou serem atropelados por fora por outro setor da esquerda. 

O caso do PT não tem nada que ver com isto. 

Entre outros motivos porque o risco que o PT corre não é o de ser superado pela esquerda. O risco que corremos é o de sermos atropelados – junto com toda a esquerda, inclusive a antipetista – pela direita.

Mathias Alencastro afirma que no caso do PT, o “debate programático sobre a questão da renovação e da abertura não pode mais ser postergado”. 

Não sei em que mundo o Mathias Alencastro vive e o quanto ele conhece do PT, mas no mundo que eu vivo este debate vem sendo feito há anos. 

E não acontece no vácuo. 

Acontece no meio de uma luta sem quartel contra a direita, contra os meios de comunicação, contra o grande capital, que interfere abertamente neste debate. E que hoje sonha em fazer o PT desistir da candidatura Lula, de preferência em favor de uma alternativa que tenha jeito de coxinha.

Acontece que Mathias Alencastro na verdade considera que o “plano B” é o caminho da “renovação”. 

De fato poderia ser, mas seria uma renovação pela direita, pois na prática aceitar o tal plano B seria uma capitulação frente a fraude e frente ao golpe.

Alencastro diz que “num cenário sem candidato nem aliança, o PT não teria escolha senão se transformar no MDB da esquerda, vendendo palanque e tempo de televisão ao melhor comprador”. 

Isto é simplesmente falso, história da carochinha para assustar incautos. 

Num cenário em que neguem o registro de Lula e inclusive o prendam, o PT teria outras alternativas. 

Não estamos condenados a legitimar uma fraude. 

Na pior das hipóteses, se o nome de Lula não estiver na urna eletrônica, podemos e devemos transformar nossas candidaturas a governos estaduais, ao senado, a câmara dos deputados e assembleias legislativas em campanhas de denúncia da fraude, de defesa da convocação de uma Assembleia Nacional Constituinte, de defesa de novas eleições presidenciais, denunciando e acumulando forças para uma oposição radical contra o presente e o futuro governo ilegítimo.

Alencastro termina seu texto falando da “provável, e entusiasmante, tomada de poder do PSOL por Guilherme Boulos, e a consolidação de Ciro como principal liderança da oposição”, que se converteriam em “clientes” do que ele chama de “projeto petista de sobrevida melancólico”. 

Traduzindo: se o PT não lançar um plano B, Ciro e Boulos vão disputar o espólio do eleitorado lulista.

Deixemos neste texto Ciro e Boulos de lado. Vamos nos concentrar no essencial: Alencastro – este que fala da “renovação” – só pensa em candidaturas, alianças e eleições.

Bem ao estilo social-democrata-europeu-de-pensar, ele fala de sociedade civil, mas seu modo de pensar a politica não vê outra coisa que não a institucionalidade eleitoral tradicional.

Isto já seria um defeito em condições normais de temperatura e pressão. 

Mas na conjuntura atual, em que o golpismo está rasgando a institucionalidade democrática, precisamos ser um pouco mais ousados. 

E não cair na armadilha de achar que 2018 será uma eleição como outra qualquer, onde devemos nos comportar de maneira tradicional.

A verdade, ironicamente, é que a opinião de Mathias Alencastro não tem nada de renovadora. E, ao contrário, a posição que ele critica em Gleisi é que representa, neste momento, um caminho real de renovação.









domingo, 18 de fevereiro de 2018

Hoje a revolução não é possível?


Há alguns dias, importante dirigente nacional do PT enviou, através do “zap” um artigo publicado na tribuna de debates do jornal El País.

Intitulado “Por que hoje a revolução não é possível?”, o artigo foi publicado em 3 de outubro de 2014 e vem assinado por Byung-Chul Han, conhecido por suas reflexões acerca das redes sociais.

O artigo pode ser lido no seguinte endereço: https://brasil.elpais.com/brasil/2014/09/22/opinion/1411396771_691913.html?id_externo_rsoc=whatsapp

O artigo expressa um ponto de vista muito comum em setores da esquerda brasileira e mundial, para quem a revolução seria não apenas um fenômeno raro, mas também um fenômeno do passado, impossível de ocorrer nos dias atuais.

Se isto fosse mesmo verdade, estaríamos diante da disjuntiva reforma ou barbárie.

O artigo toma como ponto-de-partida uma polêmica entre Byung-Chul Han (daqui por diante denominado de BCH) e Antonio Negri, este último porta-voz de um ponto de vista influente em setores da esquerda que tratam a revolução de forma, digamos, apocalíptica.

BCH começa fazendo perguntas: “Por que o regime de dominação neoliberal é tão estável? Por que há tão pouca resistência? Por que toda resistência se desvanece tão rápido? Por que a revolução já não é mais possível apesar do crescente abismo entre ricos e pobres? Para explicar isso é necessária uma compreensão adequada de como funcionam hoje o poder e a dominação.”

Para facilitar nossa conversa, suponhamos que todas estas afirmações – vertidas capciosamente na forma de perguntas – são totalmente corretas.

Vamos supor, portanto, que nenhum dos acontecimentos ocorridos no mundo entre 1979 e 2018 contradiz aquelas afirmações.

Vamos supor, então, que os últimos 40 anos foram marcados por uma dominação neoliberal “estável”, por uma resistência que se “desvanece rápido”, por uma revolução que “não é mais possível”.

Mesmo que aceitemos estes pressupostos, não há como negar que nem sempre foi assim e não é a primeira vez que parece ser assim.

Nem sempre foi assim: entre 1642 (revolução inglesa) e 1979 (revolução iraniana), houve diversos “regimes de dominação” que foram questionados e destruídos.

Nesse questionamento e destruição, assim como no surgimento de novos “regimes”, jogaram papel importante tanto as guerras quanto as revoluções.

Não é a primeira vez que isto acontece: entre 1642 e 1979, houve diversos períodos dominados pela “estabilidade”, em que as reformas e contrarreformas predominaram sobre as guerras e as revoluções.

Mas visto em perspectiva histórica, estes períodos de estabilidade apenas acumularam material explosivo para uma próxima rodada de instabilidade que, em alguns casos, resultou em guerras, revoluções e mudanças de “regime”.

Detalhe importante: nestes períodos de aparente estabilidade, sempre havia gente de bom senso afirmando algo assim como: antes de mim, o Dilúvio...

Assim como havia, é importante reconhecer, gente que via uma revolução atrás de cada esquina. Mas voltemos a BCH, porta-voz da suposta estabilidade definitiva do regime de dominação.

Segundo ele, “para explicar isso é necessária uma compreensão adequada de como funcionam hoje o poder e a dominação”.

É muito importante compreender adequadamente tudo isto. Infelizmente, BCH promete, mas não entrega. E se não parece ser assim, é devido (novamente) a um truque retórico.

Num primeiro momento, a técnica de BCH consistiu em apresentar afirmações preconceituosas disfarçadas de perguntas.

Agora sua técnica consiste em falar da árvore e esquecer do bosque.

O atual “regime de dominação” é parte integrante do capitalismo contemporâneo. E quem defende uma revolução, precisa, efetivamente, decifrar os mecanismos de dominação. Mas existe uma relação muito forte entre a estabilidade do capitalismo e a estabilidade da dominação. Motivo pelo qual não basta falar da “dominação”: é preciso entender como se articulam “dominação” e “exploração”.

BCH afirma: “Quem pretende estabelecer um sistema de dominação deve eliminar resistências. Isso é certo também para o sistema de dominação neoliberal”.

Acontece que o objetivo dos capitalistas não é “estabelecer um sistema de dominação”, o objetivo dos capitalistas é acumular capital.

Dito de outra forma: o sistema de dominação não é um fim em si mesmo, é um meio. Portanto, quem deseja compreender o sistema de dominação, precisa compreender o capitalismo.

BCH segue outro caminho: “a instauração de um novo sistema requer um poder que se impõe frequentemente através da violência. Mas esse poder não é idêntico ao que estabiliza o sistema por dentro”.

Ou seja: seu fio da meada é o “poder”, o poder que “instaura”, o poder que “estabiliza”. Não há uma análise sobre a natureza econômico-social da tal ordem, não há uma análise sobre a exploração, apenas se fala da “dominação”.

Este tipo de abordagem resulta em conclusões defeituosas.

Por exemplo, vejamos o seguinte trecho: “O poder estabilizador da sociedade disciplinadora e industrial era repressivo. Os proprietários das fábricas exploravam de forma brutal os trabalhadores industriais, o que ocasionava protestos e resistências. Nesse sistema repressivo são visíveis tanto a opressão como os opressores. Existe um oponente concreto, um inimigo visível diante do qual a resistência faz sentido”.

Sempre com o intuito de facilitar, vamos fingir que todas as frases acima sejam totalmente verdadeiras.

Pergunto: por qual motivo a história evoluiu de maneira tão diferente em países onde existia a tal sociedade “disciplinadora e industrial”?  Por qual motivo em algumas delas houve revoluções e noutras não? Por qual motivo as principais revoluções do século XX (México, China, Rússia) ocorreram exatamente naquelas sociedades onde a “indústria” era cercada por camponeses por todos os lados?

É óbvio que a resposta para tais “diferenças evolutivas” só pode ser encontrada se a análise deixar de lado generalizações do tipo “sistema de poder” e se dedicar a análise histórica concreta da luta de classes.

Mas isto implicaria em abordar a evolução do capitalismo como sistema de exploração, não apenas como sistema de dominação; o que resultaria em perceber que as contradições do modo de produção capitalista estão na base dos conflitos fundamentais de nossa sociedade. E que, portanto, é nestas contradições que reside o segredo que explica porque alguns períodos históricos são ditados predominantemente pela “reforma”, enquanto outros são marcados pela “revolução”.

Alias, é importante lembrar que até hoje, mesmo nos momentos históricos marcados pela revolução, o capitalismo demonstrou alta capacidade de resistência e resiliência.

Portanto, em última análise não é o atual “sistema de dominação” que garante a estabilidade. A ordem é inversa: a estabilidade da dominação depende da dinâmica da exploração. Ou ainda: a instabilidade é determinada pelas contradições e crises do capitalismo, pela luta entre os capitalistas e destes com os trabalhadores.

Nem todo capitalismo em crise desemboca numa revolução, assim como nem toda revolução resulta em vitória revolucionária. Mas não existe revolução vitoriosa num capitalismo em fase de expansão.

Quem não se dá conta disto, se contenta com frases do tipo: “é ineficiente o poder disciplinador que com grande esforço oprime os homens de forma violenta com seus preceitos e proibições. É essencialmente mais eficiente a técnica de poder que se preocupa com que os homens por si mesmos submetam-se à trama da dominação”.

Tal frase é uma obviedade, válida em diferentes situações históricas. A saber: a dominação pela hegemonia é mais estável do que a dominação pela força.

O que não é uma obviedade? Compreender por que, em determinadas situações históricas, é possível derrotar a dominação, não importando se esta dominação está baseada na hegemonia ou na força. E a resposta é: são as crises do capitalismo que abrem esta possibilidade.

BCH parece acreditar que só recentemente surgiu esta “técnica de poder que se preocupa com que os homens por si mesmos submetam-se à trama da dominação”. Mas se ele acredita nisto, está redondamente enganado. O escravismo antigo e as várias modalidades de feudalismo abundam em exemplos de submissão “por si mesmos” à “trama da dominação”.

BCH também parece acreditar que os mecanismos de dominação e hegemonia são mais potentes hoje do que no passado. E nisto ele está provavelmente certo. Mas por quais motivos são, ou pelo menos parecem mais potentes neste período que ele chama de neoliberal? Exatamente porque nos últimos 40 anos o capitalismo – como modo de produção, exploração, circulação – tornou-se mais hegemônico do que nunca.

Mas exatamente porque ele é mais hegemônico do que nunca, suas contradições também são mais potentes do que nunca foram. E por isso o momento em que ele parecer ser mais “estável” é também o momento em que sua “instabilidade” se torna mais aguda.

Dito de outra forma: no momento em que a situação objetiva parece ser mais a propícia para que ocorra uma revolução, neste mesmo momento os elementos subjetivos parecem ser os menos propícios para que ocorra uma revolução.

Para quem acredita que os elementos subjetivos (a politica) atuam no vácuo, a única conclusão é aquela proposta por BCH: hoje a revolução não é mais possível. Ou ainda: antes havia um sujeito revolucionário, hoje não há mais.

Mas quem se dê ao trabalhar de estudar os processos revolucionários realmente existentes, vai perceber que existe uma dinâmica muito mais complexa entre os fatores ditos objetivos e subjetivos.

Vai perceber, também, que o determinante nesta dinâmica são os fatores objetivos, vinculados à maneira de ser do capitalismo, não os fatores subjetivos, vinculados à maneira como as pessoas enxergam o capitalismo.

Os fatores objetivos (por exemplo, o desenvolvimento acumulado das forças produtivas, a velocidade e a natureza da acumulação de capital etc.) determinam a capacidade que o capitalismo tem de compensar, neutralizar, reduzir os danos causados pelos fatores destrutivos que ele próprio gera.

Dito de outra forma: há momentos em que o capitalismo perde grande parte de sua capacidade de auto-reforma. Nestes momentos, a revolução se torna possível e necessária, o que não a converte (nem à sua vitória) em provável ou inevitável.

E se muita gente acreditar que a revolução não é possível, isto não impedirá que uma revolução ocorra, apenas tornará mais difícil que ela triunfe.

Ou seja: neste sentido, BCH não explica a estabilidade do regime de dominação; a análise de BCH contribui, mesmo que não seja esta sua intenção, para a estabilidade do regime de dominação.

Por exemplo: “é importante distinguir entre o poder que impõe e o que estabiliza. O poder estabilizador adquire hoje uma forma amável, ‘smart’, e assim se faz invisível e inatacável. O sujeito submetido nem sequer é consciente de sua submissão. Acredita ser livre. Essa técnica de dominação neutraliza a resistência de uma forma muito eficiente. A dominação que submete e ataca a liberdade não é estável. Por isso o regime neoliberal é tão estável, é imunizado contra toda a resistência porque faz uso da liberdade, em lugar de submetê-la”.

Cá entre nós, em que mundo BCH vive?

Peço ao leitor que pense na quantidade de guerras imperialistas, repressões violentas, opressão sistemática aos direitos de organização e manifestação ocorridas desde 1979, em todo o mundo.

Se fosse verdade que “o regime neoliberal é tão estável, é imunizado contra toda a resistência porque faz uso da liberdade, em lugar de submetê-la”, a população carcerária dos Estados Unidos não seria do tamanho que é; o Ato Patriota não teria sido necessário; não estariam crescendo como estão, em todo o mundo capitalista, as restrições aos direitos democráticos básicos e os orçamentos militares, para não falar dos sistemas de monitoramento e controle digitais.

Mesmo o leitor que não conhece a história da Coreia do Sul percebe o ponto débil do exemplo que BCH dá sobre o que teria ocorrido naquele país: “A opressão da liberdade gera resistência de imediato. Ao contrário, isso não ocorre com a exploração com a liberdade. Depois da crise asiática, a Coreia do Sul estava paralisada. Veio então o FMI e deu crédito para os coreanos. Para isso, o Governo teve que impor a agenda neoliberal com violência contra os protestos. Hoje mal existe resistência na Coreia do Sul. Pelo contrário, predomina um grande conformismo e consenso com depressões e síndrome de Burnout. Hoje a Coreia do Sul tem a mais alta taxa de suicido do mundo. A pessoa emprega a violência contra ela mesma, em lugar de querer mudar a sociedade. A agressão ao exterior que teria como resultado uma revolução cede diante da autoagressão”.

Novamente vamos supor que as frases são todas corretas e nos perguntemos: o que BCH está nos dizendo? A resposta é: ele está afirmando que a classe dos capitalistas da Coréia do Sul obteve, numa determinada situação, uma vitória contra os trabalhadores sul-coreanos. Vitória que talvez não tivesse ocorrido, se esta classe capitalista tivesse adotado outra tática.

Pois bem: o que isso prova acerca da possibilidade ou não da revolução, seja na Coreia do Sul, seja noutros países do mundo? A resposta é: não prova nada. Ou ainda: prova que a simples existência de condições objetivas para que ocorra uma revolução não garantem que ela ocorra, assim como a ocorrência de uma revolução não garante que ela se torne vitoriosa.

Isto não quer dizer que BCH esteja errado, quando dá a entender que a opressão política aberta (e também as guerras, acrescentamos nós) são variáveis decisivas para fazer os fatores subjetivos entrarem em movimento. 

O erro de BCH está em outro lugar: não perceber que a dinâmica objetiva do capitalismo conduz, de tempos em tempos, para situações de opressão política aberta e para situações de guerra. E que estamos exatamente num destes momentos.

BCH polemiza com a “multidão” de Negri. Trata-se de uma polêmica do roto com o esfarrapado. Nos dois lados da polêmica, há similar cegueira: não perceber o papel das classes sociais, substituída num caso por uma “multidão cooperativa, interconectada, capaz de se transformar em uma massa de protesto e revolucionária global” e, noutro caso, pela “solidão do auto empregado isolado, separado”.

Novamente, BCH não está errado quando afirma que “não se forma uma massa revolucionária com indivíduos esgotados, depressivos, isolados”. O erro está em não se dar conta de que esta não é a primeira vez na história em que a classe trabalhadora vive uma mutação na sua forma de ser e viver; agora como antes, a desestruturação das formas anteriores de ser e viver da classe trabalhadora não fazem com que esta classe deixe de existir.

BCH se apresenta como crítico do capitalismo. E considera não ser possível “explicar o neoliberalismo de um modo marxista”. E por qual motivo? 

Porque, diz ele, “no neoliberalismo não existe lugar nem sequer para a “alienação” a respeito do trabalho. Hoje dedicamo-nos com euforia ao trabalho até a síndrome de Burnout [fadiga crônica, ineficiência]. O primeiro nível da síndrome é a euforia. Síndrome de Burnout e revolução se excluem mutuamente. Assim, é um erro pensar que a multidão derrotará o império parasitário e instaurará a sociedade comunista”.

Novamente, não sei em que mundo BCH vive. Primeiro, há no mundo centenas de milhões de desempregados. Segundo, não sei onde ele enxerga “euforia” na atitude daquelas centenas de milhões que estão empregados. Muito mais fácil é enxergar alienação. Terceiro e mais importante: o marxismo, especialmente sua análise do capitalismo, é de uma atualidade tão evidente, que até mesmo porta-vozes do capitalismo reconhecem isto.

Claro, uma revolução, especialmente uma revolução vitoriosa, supõe uma classe trabalhadora emancipada da dominação política e ideológica exercida, sobre ela e contra ela, pela classe dos capitalistas. Supõe, ainda, que as pessoas tenham tempo livre para fazer política. Não admira que medidas como a redução da jornada de trabalho sejam comuns em períodos revolucionários.

Finalmente: BCH termina seu texto criticando o “sharing” e a “comunidade”, que na opinião de alguns autores seriam uma espécie de antecipação, exemplo e modelo de um comunismo possível.

Esta é uma discussão muito interessante, mas qual é o lugar dela numa discussão sobre se a revolução é ou não possível?

A revolução no sentido estrito da palavra é a derrubada da classe dos capitalistas, derrubada promovida pela classe que é, ao mesmo tempo, oprimida e explorada pelos capitalistas: a classe trabalhadora.

Mas também podemos falar da revolução no sentido amplo da palavra, ou seja, da destruição do capitalismo e da criação de outro modo de produção.

E o que seria a essência desta revolução no sentido amplo?

Seria a constituição de uma sociedade baseada na produção e na propriedade coletiva, uma sociedade que planeja suas necessidades e suas atividades, uma sociedade organizada para produzir valores de uso e não mercadorias, uma sociedade que supere toda forma de exploração e opressão – portanto, que supere não apenas o capitalismo, mas também a divisão da sociedade em classes.

Em vários aspectos, esta sociedade já começa a ser antecipada. O aumento da produtividade e a redução do custo de produção criam as bases materiais para o desaparecimento, não apenas das carências, mas inclusive da exploração do ser humano pelo ser humano. E começam a ser testadas antecipações de como se poderia organizar a humanidade, em novas bases.

Claro: várias destas antecipações terminarão se demonstrando estéreis. E nenhuma delas, tomada isoladamente, será capaz de superar o capitalismo. 

Pelo contrário: todas as novidades “socialistas” serão inevitavelmente sufocadas pelo capitalismo, se este não for superado de conjunto.

Algo parecido ocorreu na longa transição do feudalismo para o capitalismo. 

E também por isto a revolução burguesa capitalista foi, naquela época, possível e necessária.

Por analogia, hoje a revolução socialista também é possível e necessária, seja para impedir a barbárie, seja para fazer florescer brotos socialistas e comunistas que já estão por aí.

Que ela seja possível e necessária, não quer dizer que ela vá ocorrer efetivamente, nem quando, nem sob que formas. Mas é sintomático que El País tenha aberto espaço para debater o assunto.


sexta-feira, 9 de fevereiro de 2018

Para ler depois do Carnaval


Em 2013, quando comemoramos 10 anos de chegada à presidência da República, o tom predominante em nosso Partido era de extremo otimismo.

Um exemplo deste otimismo é o livro Um salto para o futuro, escrito por Luiz Dulci e lançado em março daquele ano. Sua leitura deixa claro como era difícil, naquela época, apontar e muito mais difícil debater a sério os problemas, as deficiências, as dificuldades, as ameaças que pairavam sobre nós e que desabaram sobre nossas cabeças pouco tempo depois.

Desde então, cinco anos passaram por debaixo da ponte. Mas parece que foi muito mais tempo. Tanto é assim que agora, quando o PT está comemorando seus 38 anos de fundação, o clima é totalmente diferente daquele otimismo. Predominam os debates acerca da possível prisão de Lula, da cassação de sua candidatura e da própria legenda do PT, assim como a respeito da perseguição contra inúmeras lideranças petistas, tudo isto no contexto das contrarreformas.

A discussão não é mais sobre o “salto para o futuro”, mas sim sobre o regresso ao passado, através da “ponte” construída pelos golpistas. Predomina não o otimismo de 2013, mas o pessimismo, mesmo quando disfarçado de realismo.

O curioso é que, tanto hoje quanto naquela época, segue igualmente difícil travar o debate sobre nossos problemas e como superá-los. Num e noutro caso, um dos maiores obstáculos para o debate é o senso comum do curto prazo.

Por senso comum de curto prazo, nos referimos, por exemplo, às palavras de um candidato à presidente nacional do PT no PED de 2013: primeiro eleger a Dilma, depois discutir a alteração de rumos.

A recusa em debater, já em 2013, a necessária mudança de rumos contribuiu para que nosso terceiro mandato ziguezagueasse entre três posições: a) repetir a dose do que fora feito no segundo mandato de Lula, b) tentar enfrentar os inimigos sem plano nem organização e c) fazer um choque ortodoxo.

Mas o desastre não bastou para curar: hoje o senso comum de curto prazo continua aí, fazendo com que grande parte do PT não pense noutra coisa senão as eleições de 2018. E, muitas vezes, precisamente numa determinada campanha, transformando nosso partido numa somatória de micropartidos, cada qual envolvido com sua campanha. 

Antes que alguém diga, vale esclarecer: o PT deve e precisa ter fortes candidaturas a governador, a senador, a deputado federal e estadual nas eleições de 2018.

O problema não reside nisto, mas no seguinte: mesmo supondo que o PT tenha um ótimo resultado nas eleições de 2018, inclusive elegendo Lula presidente da República, isso não teria as mesmas implicações que teve em 2002, 2006 e 2010. Desta vez, se ganharmos, o lado de lá agirá como em 2014 e continuará operando na frequência golpe; e fará de tudo para impedir nossa posse e para sabotar de maneira violenta nosso governo.

Contra isso, não basta ter uma política eleitoral exitosa. É preciso ter outra linha política, acompanhada de níveis de organização e mobilização totalmente diferentes dos que tivemos até hoje.

O mesmo raciocínio vale para o caso de uma derrota total ou parcial nas eleições de 2018: o que virá depois disso não serão menos, e sim mais ataques violentos. Contra os quais adiantarão muito pouco as posições institucionais que tivermos conquistado em 2018, especialmente se estas posições tiverem sido conquistadas numa linha de “respeito à ordem” e “conciliação de classe”.

Basta ver, para comprovar isto, o reduzido papel que nossos governos de estado jogaram e seguem jogando na luta contra o golpe. Aliás, vale lembrar que entre 1990 e 2002, nossos governos estaduais foram mais úteis na luta contra o neoliberalismo exatamente ali onde predominava uma concepção mais radical de enfrentamento politico.

Portanto, não se está dizendo que ter posições institucionais seja inútil. O que se está dizendo é que a “utilidade” estratégica dos nossos mandatos aumenta ou diminui muito, a depender da linha política e do nível de organização extra-institucional do partido e do conjunto da classe.

Não há quem fale contra a necessidade de outra linha politica. Nem quem discorde da necessidade de mudar profundamente os métodos de funcionamento do conjunto da esquerda. Aliás, “retomar o trabalho de base” está virando um chavão.

Mas há uma distância enorme e evidente entre o discurso e a prática. Em parte isto ocorre por inércia, noutros casos por falta de imaginação e/ou de experiência, mas principalmente porque um pedaço importante do nosso partido simplesmente não tirou todas as consequências do que ocorreu em 2016 e segue acreditando na possibilidade de mudar o país sem impor uma derrota profunda à classe dos grandes capitalistas brasileiros.

O que há de fundamental para ser dito a respeito, no que diz respeito a nossa atitude frente ao grande capital, está no seguinte texto: https://www.pagina13.org.br/sobre-a-condenacao-de-lula/

A dificuldade de compreender o papel da classe dos grandes capitalistas não é um problema cognitivo. Não é que as pessoas “não entendam”. O problema é de outra natureza: existe um setor do Partido, assim como existe um setor na classe trabalhadora, que não considera necessário impor uma derrota profunda à classe dos grandes capitalistas. Pelo contrário, acham que o caminho de “derrotar profundamente” nossos inimigos de classe é, além de inviável, prejudicial aos nossos objetivos de curto e médio prazo: seria como o ótimo utópico virando inimigo do bom possível.

Daí provém, igualmente, a indiferença ou até repulsa destes setores a qualquer referência ao socialismo – e sua predileção por palavras de ordem tipo “nação”, “soberania”, “Estado” e “desenvolvimento”.

Em última análise, é aquela postura que está por detrás das políticas de aliança com forças de direita e centro-direita, por detrás das ilusões republicanas nas instituições do “Estado democrático de direito”, por detrás das atitudes que não tomamos contra o oligopólio da mídia. No fundo, no fundo, tudo remete a um problema de classe, mais exatamente de como tratar a classe dominante.

No passado recente, a hegemonia do pensamento conciliador não colocou em risco nossa sobrevivência no curto prazo. Pelo contrário, no curto prazo aquela atitude pragmática pode até ter contribuído, em alguns casos, para nosso crescimento institucional. Entretanto, no médio prazo, sabemos quais foram suas consequências.

Na atual conjuntura e no futuro visível, entretanto, a hegemonia do pensamento conciliador pode levar a desdobramentos catastróficos para o PT, não apenas no médio, mas também no curto prazo. Não apenas devido a decisões politicas no sentido estrito, mas também porque sua influência contribui para que não adotemos mudanças urgentes em nossas políticas de organização e mobilização de massa.

Quando falamos de medidas urgentes, estamos nos referindo a ações práticas que busquem dar conta do que é comentado a seguir.
Em primeiro lugar, como resultado do veloz desmonte daquilo que de positivo foi feito entre 2003 e 2016, estamos vendo aparecer uma nova configuração social da luta de classes, diferente daquelas em que atuamos na maior parte dos últimos trinta anos. Como lidar com esta “nova” situação, em particular com a “nova” classe trabalhadora?

Em segundo lugar, em parte como desdobramento da ofensiva do capital contra nós, em parte resultado dos métodos utilizados para derrotar o PT, estamos vendo aparecer uma “nova normalidade” institucionalidade, diferente daquela a que nos acostumamos desde 1988. Como atuar nesta “nova” institucionalidade?

Em terceiro lugar, as operações da direita para destruir o PT, assim como as tentativas que várias esquerdas fazem de “superar” o PT, estão atingindo seu clímax e sua combinação pode levar a uma situação que não vimos em nenhuma das eleições presidenciais, desde 1989 até 2014. Que linha adotar frente a isto?

Em quarto lugar, as transformações acima relacionadas estão tornando cada vez mais difícil a vida interna do Partido, seja por dificuldades materiais, seja por perda de capacidade de mobilizar parcela de nossa base social (que, entretanto, pode seguir votando em nós), seja por esgarçamento das relações entre os diferentes setores do Partido, seja por insuficiência dos nossos instrumentos. Neste último caso, assistimos à crescente terceirização, para movimentos e também para outras organizações políticas, de ações que deveriam ser feitas pelo nosso partido. Que medidas organizativas adotar frente a tudo isto?

Parte do que deveria ser feito, em nossa opinião, está aqui descrito: https://www.pagina13.org.br/para-enfrentar-a-ofensiva-golpista-radicalizar-a-luta-popular/

Nem tudo que precisa ser feito, poderá ser feito. E pouco do que poderá ser feito, trará consequências imediatas. Mas começar imediatamente terá, por si mesmo, efeitos positivos tanto na nossa capacidade de atacar o golpismo, quanto em nossa capacidade de nos defendermos dos ataques dos golpistas.

Começar imediatamente contribuirá, também, para impor certos limites à capacidade de atração de nossos amigos e adversários de outros setores da esquerda, alguns dos quais estão agindo publicamente como aqueles herdeiros que esperam a morte do parente para ficar com um pedaço do espólio.

(Um comentário lateral, válido para alguns, não para todos: quanto mais tentam disputar o espólio, mais ficam parecidos com aquilo que criticam e mais se condenam a repetir de forma piorada e acelerada os erros que cometemos e que hoje estamos chamados a corrigir. Sem falar dos que não percebem que uma eventual destruição do PT arrastaria atrás de si toda a esquerda. Mas para quem acredita que o PT pode ser "ultrapassado pela esquerda", estes alertas soam tão oportunistas quanto, antes, soavam os alertas de que haveria um golpe.)

Já foi dito que tudo o que é vivo um dia morre; e todos os vivos morrem um pouco a cada dia, sem nunca ter certeza de quanto resta pela frente. Feita esta ressalva, não há nenhuma razão para que o PT não sobreviva por muito tempo ainda.

Vejam o caso do Partido Comunista e também o caso do Partido Trabalhista. Um fundado em 1922, outro em 1945. Ambos seguem por aí. 

A questão relevante, claro, não é saber se o PT sobreviverá, mas como ele sobreviverá, com qual influência social e com que linha política.

Nenhuma destas questões está dada de antemão. Variáveis internacionais e nacionais vão incidir nisto, a começar pelos desdobramentos da luta atualmente em curso entre o grande capital e a classe trabalhadora.

Mas uma coisa é certa: o que quer que ocorra nos próximos anos, incluindo aí as modificações na própria classe trabalhadora, esta continuará necessitando de um partido de classe, de massas, socialista e revolucionário.

Se nós que somos militantes do PT não formos capazes de solucionar e superar as dificuldades atuais, será muito mais difícil para as futuras gerações.

Se, pelo contrário, formos capazes de alterar nossa linha política, nossa política de organização e mobilização da classe trabalhadora, nosso legado às futuras gerações não será um problema, mas uma solução: o Partido dos Trabalhadores.

Seremos capazes? Parte importante da resposta saberemos nos próximos dias, semanas e meses. A nossa reação frente a uma possível ordem de prisão contra Lula, assim como nossa postura frente às eleições de 2018 terão, para o futuro do PT, um significado similar ao que tiveram a nossa postura frente ao Colégio Eleitoral e frente à Constituição de 1988. 

Portanto, mesmo sabendo que até isso pode ser desrespeitado pelo golpismo, aproveitemos bem os próximos dias de Carnaval, sabendo que depois (ver ressalva em negrito acima) viveremos, nós e nosso aniversariante de 38 anos, momentos inesquecíveis.




Sobre momentos passados
A fundação do Partido dos Trabalhadores ocorreu no dia 10 de fevereiro de 1980.
Mais detalhes sobre o ocorrido naquela data estão disponíveis no seguinte endereço: http://csbh.fpabramo.org.br/blog/1980-nasce-o-pt-voce-sabe-quem-estava-no-colegio-sion
Desde 1980, a trajetória do PT mereceu todo tipo de análise, vinda de amigos e inimigos.
Meu ponto de vista a respeito está no livro A metamorfose: http://www.periodicos.uem.br/ojs/index.php/EspacoAcademico/article/view/37001/19157
A história do PT pode ser dividida em quatro grandes momentos:
-de 1980 a 1989, quando predominou a luta contra a ditadura e contra a transição conservadora;
-de 1990 até 2002, marcado pela luta contra o neoliberalismo;
-de 2003 até 2016, tendo como variável principal a presidência da República;
-desde 12 de maio de 2016, quando fomos empurrados para a oposição.
Em cada um destes períodos, o PT adotou diferentes programas, estratégias, táticas, modelos de organização interna e métodos de relação com a classe trabalhadora e o conjunto da população.
A transição entre um momento e outro sempre foi acompanhada de uma crise interna.
Por exemplo: a disputa sobre a própria afirmação do PT, entre 1980 e 1983; a disputa de rumos entre “moderados” e “radicais”, ocorrida entre 1990 e 1995; a  a disputa de rumos ocorrida entre 2002 e 2005; e a disputa atualmente em curso, sobre qual deve ser a linha política do PT frente ao golpe.
Uma análise da luta interna entre 1990 e 1995, bem como entre 2002 e 2005, pode ser lida aqui: https://issuu.com/pagina13/docs/resolucoes_ii_congresso_da_ae__1_