José Eduardo Cardozo foi secretário-geral nacional do PT e
por duas vezes disputou a presidência nacional do Partido, apoiado por setores
da esquerda petista, basicamente aqueles agrupados na chamada Mensagem ao
Partido, assim como na tendência Democracia Socialista.
Ministro da Justiça durante a maior parte do governo Dilma,
Cardozo recebeu e segue recebendo as mais duras críticas, especialmente por seu
“republicanismo”.
Na entrevista reproduzida ao final destes comentários,
disponível também em http://google.com/newsstand/s/ CBIwtb_dzjI,
Cardozo busca responder a alguns de seus críticos.
Cardozo afirma que sua postura no “tratamento dessa questão de
investigações, acho que não existe nenhuma autocrítica a fazer. O que existe é
uma má compreensão do papel do ministro da Justiça quanto ao trabalho da
Polícia Federal. Ele é o chefe administrativo da Polícia Federal, mas não tem
nenhum poder de influência nos inquéritos”.
A questão reside exatamente
nisto: aceitar que o papel do ministro da Justiça, por extensão do governo, se
limitava a condição de espectador.
Ou seja: frente a uma Polícia Federal e a
uma Operação Lava Jato partidarizada e tucanizada, atuando no padrão Al Capone,
o ministro e boa parte do governo se conformaram em adotar o figurino Woodstock.
Não se tratava, portanto, de uma “infração funcional”, mas
de uma conspiração para derrubar um
governo legitimamente eleito.
Frente a qual o ministro Cardozo e boa parte
do governo não fizeram uso adequado de seus cargos, exceto mandar abrir eventuais inquéritos e
sindicâncias.
Limitar-se a dizer que o ministro da Justiça não tem jurisdição
para isso, equivale a dizer que a legalidade não tem instrumentos legítimos
para se defender da ilegalidade.
Aceita esta premissa, o que restaria ao ministro da Justiça?
Ser espectador passivo de uma escalada de ilegalidades.
Nas palavras de
Cardozo: “o ministro da Justiça não tem como fazer nada. É isso que as pessoas
em geral não entendem”.
Verdade seja dita, Cardozo não se limitou a não fazer nada. Na minha opinião, ele contribuiu direta e indiretamente para criar um clima de normalidade,
frente à escalada de barbaridades.
Exemplo disto ele nos dá ao responder o
seguinte: “eu posso ter a convicção,
enquanto ministro da Justiça, de que a busca e apreensão foi indevida, mas não
tenho o poder, e cometerei um crime, se determinar à Polícia Federal que não
cumpra. Então, se há uma ordem ilegal, a parte prejudicada tem que recorrer ao
tribunal superior”.
Falando de outro jeito: o então ministro ajudou a validar a
tese de que estava em curso uma operação “legal”. Ele agiu dentro da lei, frente
aos que usavam a lei para cometer uma ilegalidade. E segue achando que fez
certo. Nisto consiste parte do “excesso de republicanismo”.
Claro que se o ministro tivesse outra atitude, isto por si
só não resolveria o problema.
Mas se o governo como um todo tivesse se defendido,
tivesse reagido, tivesse compreendido o que estava em jogo, o desfecho poderia
ter sido diferente.
Entretanto, pelo menos até certo momento, parte do
governo e parte do próprio PT avaliavam a Operação Lava Jato como algo no
fundamental positivo, exageros a parte.
Cardozo acha que “as pessoas compreendem mal as coisas e chamam de excessivo
republicanismo aquilo que, evidentemente, é republicanismo não excessivo, que é
o não cometer crimes no exercício do poder”.
Eu gostaria de perguntar ao ex-ministro: a Operação Lava Jato e o
impeachment foram operações “republicanas” ou foram “crimes cometidos no
exercício do poder”?
Ampliando o raciocínio: quando as classes dominantes usam
o aparato do Estado de Direito para golpear a democracia, qual deve ser a
atitude dos democratas?
Na mesma entrevista, Cardozo diz ter sido acusado, ao mesmo tempo, de não
controlar a Polícia Federal e de ter instrumentalizado a Polícia
Federal para atacar os tucanos. E conclui: “decidam-se. Ou eu não controlo ou
eu instrumentalizo”.
No meu catálogo, o
nome deste raciocínio é sofisma. Afinal, o “decidam-se” refere-se a petistas e
a tucanos, que por motivos óbvios fazem acusações antagônicas. Acontece que o
governador tucano segue no posto, enquanto a presidenta petista foi
derrubada...
Para Cardozo, o erro do PT teria consistido, ao menos no fundamental, em “ter as relações com o
PMDB que tivemos, ter confiado no PMDB e outras coisas mais que podemos
discutir”. De fato, este foi um erro. Embora falte no raciocínio de muita gente, inclusiva nesta entrevista de Cardozo que estamos comentando, o devido tratamento as relações mantidas com o grande capital.
Isto posto, pergunto: uma vez constatado o erro, uma vez
que estava em curso uma operação ilegal travestida de legalidade, o ministro da
Justiça e o conjunto do governo não poderiam ter reagido de outra maneira?
O fato é que não o
fizeram. E, ao menos no caso de Cardozo, seguem achando que fizeram correto. A
conclusão é: se tiverem a chance, vão agir do mesmo jeito outra vez.
O absurdo da postura de Cardozo é maior agora do que antes.
Pois antes, ele tinha uma postura sobre a Lava Jato mais otimista. Como ele
próprio admite na entrevista que estamos comentando, sua opinião em 2014 é de que “não existia nada
que mostrasse que o caminho a ser seguido daria onde deu, com abusos etc. Naquele
momento, em 2014, pelo que me lembro, não estava materializada nenhuma
violência, nenhum abuso”.
Hoje ele afirma que “não se combate a corrupção com abuso,
com o pisoteamento de direitos. Não se combate a corrupção com, digamos assim,
o “rasgar da Constituição”. Eu tenho visto na Lava Jato, apesar do combate à
corrupção, situações abusivas, violações de direitos, e isso eu considero absolutamente
inaceitável. Ou seja, o correto é combater a corrupção de frente, com coragem,
mas também com respeito ao estado de direito”.
Pois então: visto retrospectivamente, frente ao rasgar da Constituição, o máximo que o
ministro da Justiça podia fazer era abrir sindicâncias??? Era mandar apurar “abusos”???
É impressionante como, depois de tudo o que aconteceu, se insista nisto.
Há outros aspectos da entrevista que são igualmente impressionantes –
como o “comedimento” que ele adota frente a Rodrigo Janot e Gilmar Mendes --, mas
falar disto nos levaria longe demais.
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“Nosso problema não
era excesso de republicanismo”: o ex-ministro José Eduardo Cardozo fala ao DCM
Diario do Centro do Mundo · 20/09/2017
Dilma e Cardozo
POR RIBAMAR MONTEIRO, de Brasília.
O ex-ministro da Justiça e ex-advogado Geral da União nos
governos Dilma, José Eduardo Martins Cardozo, falou ao DCM.
DCM – Há alguma autocrítica a ser feita quanto a um possível
republicanismo ingênuo?
Cardozo – Sobre a postura que o governo Dilma Rousseff teve,
que eu tive, no tratamento dessa questão de investigações, acho que não existe
nenhuma autocrítica a fazer. O que existe é uma má compreensão do papel do ministro
da Justiça quanto ao trabalho da Polícia Federal. Ele é o chefe administrativo
da Polícia Federal, mas não tem nenhum poder de influência nos inquéritos.
Pela lei, quem preside o inquérito é o delegado de polícia.
O ministro da Justiça não pode dizer quem é investigado e quem não é. O que ele
pode fazer é, diante de infrações funcionais, pedir a abertura de inquéritos ou
de processos disciplinares. No meu caso, sempre que chegou a mim notícia de
possível infração funcional, eu mandei abrir inquérito e sindicâncias.
Ocorre que muitas vezes as pessoas falavam “houve um
vazamento seletivo”, e não era isso. O juiz Moro e outro juiz haviam levantado
o sigilo. Se o juiz levantou o sigilo, não é vazamento. É uma situação pública.
Á vezes também falavam que “a Polícia Federal fez uma busca e apreensão
indevida”, só que tinha uma ordem judicial. A Polícia Federal era mero
executor. E aí, neste caso, não há como dizer que a Polícia Federal tenha
praticado algum abuso. Se existe abuso nesse caso, é do juiz que decidiu e o
ministro da Justiça não tem jurisdição para isso.
A ordem judicial não pode ser questionada?
Não existe essa hipótese. O juiz dá uma ordem à Polícia
Federal. Ela tem que cumprir. Se a ordem é ilegal, inconstitucional, é o
Judiciário que tem que rever. Ou se o juiz cometer uma irregularidade, é o
Conselho Nacional de Justiça que tem que ver. O ministro da Justiça não tem
como fazer nada. É isso que as pessoas em geral não entendem.
Mas o senhor acha que o Conselho Nacional de Justiça tem,
digamos, uma postura mais conservadora, principalmente em relação às possíveis
arbitrariedades cometidas pelo juiz Sergio Moro?
O que se tem entendido é que no exercício da atividade
jurisdicional, em princípio, o CNJ não pode examinar o mérito da decisão. A
menos que exista alguma situação, digamos assim, abusiva, como prova de que o
juiz foi subornado ou uma situação escandalosa. Se não o CNJ não pode rever
isso. Então, eu posso ter a convicção, enquanto ministro da Justiça, de que a
busca e apreensão foi indevida, mas não tenho o poder, e cometerei um crime, se
determinar à Polícia Federal que não cumpra. Então, se há uma ordem ilegal, a
parte prejudicada tem que recorrer ao tribunal superior.
Esse é o procedimento. Não é porque eu tenho uma
discordância com o ministro da Justiça de uma ordem judicial que ela não vai
ser cumprida. É um absurdo. Não é porque uma informação veio para a imprensa
que necessariamente é um vazamento ilegal, porque o juiz pode ter levantado o
sigilo. Houve casos de vazamento ilegal, sem sombra de dúvidas, houve, e em
todos os casos nós mandamos abrir inquérito quando a questão estava posta no
âmbito da Polícia Federal.
Houve vazamentos, por exemplo, que não estavam no âmbito da
Polícia Federal, mas sim da Procuradoria-Geral da República. Nesses casos o
ministro da Justiça não tem jurisdição, nem para, efetivamente, abrir uma
sindicância para apurar. Aí é o Conselho Nacional do Ministério Público.
Então, há uma confusão muito grande. Eu achei até curioso,
porque eu via umas pessoas amigas dizendo que “não, esse republicanismo
excessivo, basta o Michel Temer assumir, que tudo se mudará e a ingenuidade
parará”. Eu ria, porque sabia que é uma visão equivocada. Óbvio que o que
aconteceu durante o governo Temer, com três diferentes ministros da Justiça, é
uma situação em que, mesmo aqueles que queriam estancar a sangria, não
conseguiram, evidentemente, evitar que as trocas acontecessem. Ou seja, as
pessoas compreendem mal as coisas e chamam de excessivo republicanismo aquilo
que, evidentemente, é republicanismo não excessivo, que é o não cometer crimes
no exercício do poder.
É injusta essa classificação de republicanismo ingênuo da
sua gestão à frente do Ministério da Justiça?
Não é que eu ache injusta, acho um verdadeiro absurdo,
porque ao mesmo tempo em que eu era acusado de não controlar a Polícia Federal,
setores da oposição, quando eram investigados, como aconteceu no caso do metrô,
me diziam que eu instrumentalizava a Polícia Federal para atacar os tucanos.
Quer dizer, decidam-se. Ou eu não controlo ou eu instrumentalizo.
O ministro da Justiça não pode dizer “descumpra essa ordem
judicial”. Ele não pode dizer “investigue ‘a’ e não investigue ‘b”’. Se não ele
comete crime. Então, há uma má compreensão das coisas. O nosso erro não está
nisso, mas sim em ter as relações com o PMDB que tivemos, ter confiado no PMDB
e outras coisas mais que podemos discutir. Agora, por ora, eu não posso
compreender que não cometer um crime seja um erro.
Em casos específicos, como o do delegado da PF que declarou
apoio a Aécio Neves em rede social, houve abertura de sindicância?
Em todos os casos que houve abuso foi aberta uma
sindicância. No caso do apoio ao Aécio em rede social eu determinei a abertura
de uma sindicância e foi apurado que aquele WhatsApp que eles mandavam era uma
rede privada e, por isso, podiam manifestar as suas opiniões. E não havia ali
prova de quebra de sigilo profissional. Ou seja, não se configurava crime nem
infração funcional.
Se, eventualmente, alguns comentários que eles fizessem
ofendesse a honra de alguém, este alguém deveria entrar com uma ação, porque a
ação penal é privada. Se a manifestação tivesse sido pública, ou se tivesse
ocorrido vazamento, aí sim seria ilegal. Mas realmente não ocorreu. Era uma
rede privada, alguém entrou nela e passou para o jornal O Estado de S.Paulo.
O senhor concorda com a postura do atual ministro da
Justiça, Torquato Jardim, em relação à PF, Lava Jato?
Veja bem, eu não vi nenhuma situação. Não estou concordando
nem discordando. Eu vi um relatório da Polícia Federal dizendo que o presidente
Temer é o chefe de uma quadrilha. E acho que isso foi feito no exercício normal
da legalidade. Se estivesse eu lá, diriam “ah, você foi republicano demais!”. A
questão não é ser republicano “demais”, é que nessa apuração o ministro da
Justiça não tem poder de ingerência, mesmo que ele a situação errada.
Mas acha que o Temer tem tomado atitudes diferentes? Por
exemplo, nomeando a segunda da lista da PGR para procuradora Geral da República
que trocou a equipe da Lava Jato?
Qual a diferença? Só a nomeação da segunda colocada? Que
outras coisas ele fez? Todo Procurador Geral que entra, muda. A nomeação de
primeiros colocados foi feita pelo presidente Lula, com o ministro Marcio
Thomaz Bastos, Tarso Genro, e outros. Seguiu-se a mesma linha no governo Dilma.
E eu quero lembrar que Michel Temer chegou a dizer, no começo do governo dele,
que nomearia o primeiro da lista.
Depois ele tem um litígio com o Janot, que manda
investigá-lo, por isso ele não nomeou. O Michel Temer só não nomeou o primeiro
colocado, possivelmente, porque tinha um litígio aberto com o PGR, que fez a
primeira denúncia da História do Brasil contra um presidente da República em
exercício.
Como avalia a Lava Jato atualmente?
O combate à corrupção é fundamental em qualquer país, porque
a corrupção é um dos fatores que gera exclusão social, embora não se faça essa
associação. Alguns acham que o desvio de dinheiro público para certa finalidade
é correto. Não é verdade. O pobre precisa mais do serviço público do que o rico
e, portanto, desvio de dinheiro público gera menos serviço público. Porém, não
se combate a corrupção com abuso, com o pisoteamento de direitos. Não se
combate a corrupção com, digamos assim, o “rasgar da Constituição”.
Eu tenho visto na Lava Jato, apesar do combate à corrupção,
situações abusivas, violações de direitos, e isso eu considero absolutamente
inaceitável. Ou seja, o correto é combater a corrupção de frente, com coragem,
mas também com respeito ao estado de direito.
Em relação a esses abusos, na sua época, o senhor via e não
podia fazer alguma coisa ou não via?
Eu disse, quando os abusos estavam sob a minha
responsabilidade, sempre fiz. Quando houve os vazamentos pelo juiz Moro do
áudio do ex-presidente Lula, decidido pelo juiz Moro, eu já não era mais
ministro da Justiça. Era advogado Geral da União e entrei com reclamação no
Supremo, que disse que aquilo estava errado e recolheu o material.
Ou seja, quando eu estava no exercício das funções, os
abusos que me diziam respeito eram apurados no limite da minha competência. Da
mesma forma, se eu fosse o ministro da Justiça e o juiz Moro tivesse divulgado
aqueles áudios, eu não podia tomar nenhuma medida. Mas eu estava na AGU, onde
entrei com ação, num caminho correto.
Em nota emitida pela então presidenta Dilma Rousseff em
2014, logo após a prisão de Renato Duque, ela disse que a operação poderia
mudar o Brasil para sempre. Se arrepende deste apoio à operação?
Acho que naquele momento não existia nada que mostrasse que
o caminho a ser seguido daria onde deu, com abusos etc. A prisão do Paulo
Roberto Costa aconteceu porque ele tentou subtrair documentos de seu
escritório. Ou seja, havia uma justificativa, não posso dizer que isso era
abusivo. O que eu recrimino na Lava Jato não é o combate à corrupção, que é
correto e saudável, não importa de onde ela venha.
Recrimino a Lava Jato fazer prisões sem fundamento,
conduções coercitivas fora das hipóteses legais, não respeitar o direito das
pessoas, condenando por convicções, mas sem provas. Vamos separar o joio do
trigo. Naquele momento, em 2014, pelo que me lembro, não estava materializada
nenhuma violência, nenhum abuso. Daí porque, talvez, Dilma tenha soltado essa
nota.
Sobre os abusos atuais, destacaria quais? O senhor falou que
atualmente a Lava Jato comete vários abusos e que não concorda com isso.
Não, não é atualmente. Eu falei sempre. Não estou dizendo
que é atualmente. Estou dizendo que não concordo com nenhum abuso da Lava Jato.
A grande questão é se o ministro tinha o poder de intervir.
Se eu tenho um processo criminal, por exemplo, contra o
presidente Lula, e o juiz dá uma busca e apreensão desnecessária, como eu acho
que foi o caso, o governo federal não tem o que fazer. Quem tem que agir são os
advogados do presidente Lula.
É uma ordem judicial, o ministro da Justiça não tem o que
fazer. Se a busca e apreensão tivesse sido feita pela PF sem mandado judicial,
na hora: instalação de processo disciplinar contra o delegado responsável etc.
Na medida em que a busca e apreensão foi determinada por um
juiz de direito, que é um outro poder, isto é, o ministro da Justiça é
Executivo, ali é Judiciário. Não cabe ao chefe da pasta da Justiça tomar
nenhuma medida de âmbito administrativo, ou mesmo criminal, contra o juiz. Quem
tem que tomar é a parte que foi prejudicada, no Conselho Nacional de Justiça.
Aí voltamos à questão da possível tendência do CNJ de
recusar esses pedidos. O senhor concorda com essa visão?
Acho que depende do caso. Existem muitas situações em que eu
poderia discordar do posicionamento do CNJ e outras em que eu concordo. Não dá
para ser passional. Muitas vezes as críticas que são feitas ignoram a
constitucionalidade, por desconhecimento, não por má-fé. Não dá para
generalizar. Há casos em que o CNJ agiu corretamente e há casos em que eu
discordo. Vamos discutir caso a caso.
No caso do presidente Lula, como é uma decisão de mérito do
juiz, o CNJ, possivelmente vai dizer que não pode examinar esta matéria porque
isto do plano da liberdade do juiz para decidir. Se o CNJ interfere, tira a
independência do julgador.
E a sua opinião em relação a isso?
A minha opinião pessoal é que aquela busca e apreensão, e a
condução coercitiva, não tinham o menor sentido. Aliás, sou contra a condução
coercitiva fora das hipóteses legais. Há matéria jurídica que diz que pode
haver condução coercitiva com base no poder geral de cautela, ou seja, para
evitar que a pessoa fale com os advogados etc. Isso está sendo recorrente no
Brasil.
Eu acho que isto é clamorosamente ilegal.
Mas acha que o poder Judiciário, em casos como o do
ex-presidente Lula, agiu nas brechas da lei?
Não. Eu acho que no caso não havia nem brecha na lei. É
contra a lei. Minha opinião jurídica. Está acontecendo no País inteiro, não é
só na Lava Jato, condução coercitiva fora das hipóteses do Código de Processo
Penal. E, curiosamente, eu fui o relator, como deputado, desta lei. A minha
compreensão, no momento em que votei, em que fiz o relatório, era de que
condução coercitiva só pode ser dada nos casos em que a lei expressamente
determina. Mas infelizmente a interpretação de muitos juízes não é essa.
Cardozo
Sobre o impeachment da ex-presidente Dilma, em que momento o
senhor sentiu que a batalha havia sido perdida?
No momento em que foi aprovado na Comissão da Câmara o
prosseguimento do processo eu achei que era irreversível. Mas era uma impressão
minha, alguns setores do governo achavam que era possível evitar na Câmara a
autorização. Eu, por ter sido deputado oito anos, conhecendo o poder que
Eduardo Cunha tinha na Câmara, via que era impossível. Avaliava que se a Câmara
autorizasse seria um processo irreversível, como acabou sendo.
O senhor acha que o campo majoritário do PT, ao qual
pertencem o ex-presidente Lula e a atual presidenta do PT, senadora Gleisi Hoffmann,
foi injusto com o então ministro da Justiça José Eduardo Cardozo em algum
momento?
Não. Eu acho que todo mundo tem direito à opinião. Em alguns
momentos, não por má-fé, mas por desconhecimento de como as coisas funcionam,
fizeram críticas. Eu respeito, mas basta ver a realidade para verificar que
eram críticas injustas. Inclusive pessoas da área jurídica próximas, juízes
etc, me perguntaram: “mas o que queriam que você fizesse?”. Porque, realmente,
é um desconhecimento. Não acho que tenha havido má-fé.
A esquerda, tem, tradicionalmente, o vício de olhar
problemas onde não existem e deixa de olhar onde eles existem. Nosso problema
ali não era, efetivamente, o excesso de republicanismo. Porque não se pode
pedir que um ministro cometa crime. Que era o que, na verdade, alguns queriam,
mas talvez não soubessem nem que era crime. Os problemas eram outros. Quando
você olha de forma enviesada a situação, para encontrar uma explicação dentro
do nosso próprio campo, deixa de ver que a realidade é muito mais complexa.
O senhor se arrepende de ter apoiado, dentro do PT, a
reeleição da ex-presidenta Dilma, em 2014, no lugar da volta do ex-presidente
Lula?
De forma nenhuma. Ao contrário. A Dilma Rousseff é uma
mulher honesta, íntegra. Tenho uma admiração absolutamente profunda por ela e
acho que o partido escolheu uma pessoa que se comportou de forma digna no
cargo. Infelizmente a conjuntura política determinou um processo que nós não
tivemos condições de evitar.
Acredita que teria sido diferente se o ex-presidente Lula
tivesse concorrido em 2014?
É muito difícil falar por hipótese. Impossível fazer um
exercício de futurologia retroativa.
Uma análise, ministro.
Análise retroativa é “engenheiro de obra pronta”, porque as
variáveis você não controla no processo político. Eu não faço isso. Acho o
seguinte: a Dilma sofreu um golpe. Imaginar que a culpa seria dela ou que outro
não sofreria o golpe é um exercício de futurologia retroativa.
Dilma Rousseff poderia ter dialogado mais com o Congresso,
por exemplo?
Acho que todos nós podemos verificar um problema aqui, outro
lá, na conduta de todo mundo. Agora, a grande questão que não podemos
menosprezar é que já vivíamos um momento de crise. Os setores conservadores e
neoliberais achavam que nos derrotariam em 2014 e perderam a eleição.
No momento seguinte iniciaram uma campanha clara de
deslegitimação de Dilma e de busca de um fato para o impeachment. O jogo se
desequilibra quando aqueles que achavam que podiam parar a Lava Jato agem,
estancar a sangria da classe política, coisa que Michel Temer também não
conseguiu, achavam que era perfeitamente possível, tirando Dilma, resolver o
“problema”.
E tinha uma pessoa que comandava isso em relação ao Temer:
Eduardo Cunha. Talvez o homem que teve mais poder como presidente da Câmara.
Ora, essa junção dos neoliberais com Eduardo Cunha e aqueles que queriam parar
a Lava Jato, nos tira a maioria, impedindo que o governo Dilma governasse,
passando uma imagem de que o País estava ingovernável.
A isso se somam os interesses de setores da grande mídia,
que nos desestabilizavam na opinião pública. E uma outra questão, que eu não
tenho ideia e não falo sem provas, porque não sou dos que fala por convicções e
sem provas, até que ponto certos interesses internacionais, ligados ao pré-sal
e a outras questões em que o Brasil agia de forma soberana, não influenciaram
no processo de forma determinante. Ou seja, esses fatores desestabilizaram o governo
e criaram as condições para o golpe.
E já tem candidato para 2018?
Lula. Indiscutivelmente, Lula.
Acha que parte do PT chegou a jogar contra a Dilma em 2014,
por preferir a candidatura do Lula já naquela eleição?
Não vi ninguém jogando contra. Havia setores que não se
agradavam muito da forma de Dilma governa. Senti que alguns setores faziam
críticas, mas não jogo contra.
Se o PMDB não estivesse nos governos petistas, acredita que
o golpe teria acontecido antes ou depois?
O PMDB foi um dos principais artífices do golpe. Não sei se
outro partido, com a mesma compulsão por ocupar o poder a qualquer preço,
estaria lá ou não. Esse tipo de análise, como eu disse, não dá para fazer. O
que dá para saber é que o PMDB foi determinante para o golpe, seja por meio de
Eduardo Cunha ou Michel Temer. Tivesse sido uma outra pessoa, que não Michel
Temer, talvez o golpe tivesse sido dificultado. Tivesse Dillma Rousseff a sorte
de ter um vice como José de Alencar, seguramente ele não conspiraria contra ela
como Michel Temer fez.
O senhor concorda com a acusação do Janot de que o Temer é o
chefe de uma organização criminosa?
Por mais que eu tenha críticas a Michel Temer, ele tem o
direito de defesa. Quero isso para os meus adversários e aliados. O direito de
defesa. Foi feita a denúncia e vamos aguardar a decisão do poder Judiciário.
Mas é a favor da saída do Temer?
Rigorosamente a favor da saída. É insustentável ele
continuar com este governo. Eu sempre defendi, desde o primeiro minuto, que
este governo não teria legitimidade para governar. Novas eleições ou o retorno
de Dilma do processo de impeachment eram questões-chave para a restauração
democrática do Brasil.
Michel Temer tem de exercer seu direito de defesa fora do
cargo de presidente da República?
Sim. Aliás, é inconcebível que o Congresso Nacional, que
determinou o impeachment de Dilma Rousseff com aqueles argumentos pífios,
meramente de gestão orçamentária – como todos os governos anteriores fizeram –
não abra sequer um processo, diante do conjunto de indícios e demonstrações que
existem contra Temer. É incrível um impeachment ocorrer por aquelas razões e é
incrível que sequer um processo criminal seja aberto, agora, com tantos
indícios.
O que tem a dizer das críticas ao senhor sobre sua
participação, junto com o Moro, em evento em Londres?
Acho incrível como as pessoas confundem firmeza de posição
com falta de educação. Eu não me considero uma pessoa mal educada. Cumprimento
todas as pessoas de quem discordo, o que não muda uma vírgula dos meus
argumentos, do meu discurso. No caso do juiz Moro, eu o cumprimentei, a
organização nos colocou lado a lado, ele não foi descortês comigo, nem eu fui
com ele. Mas basta verificar o teor do que eu falei, criticando prisões
realizadas para que pessoas delatassem, conduções coercitivas fora da lei, dos
termos que coloquei anteriormente. Tudo isso mostra que havia um antagonismo de
posições muito claro.
Não preciso xingar ninguém, maltratar, para que a minha
verdade seja mais nitidamente entendida. Repito: há pessoas que confundem falta
de educação e deselegância com firmeza de conduta. No parlamento é muito comum
termo embates e depois conversarmos. Eu posso ser bem-educado, cortês e, ao
mesmo tempo, duríssimo com um adversário. Não é porque estou num ringue de boxe
que vou cuspir no oponente.
Mas o senhor tem críticas a uma parcela da mídia, que
alimenta esse tipo de pré-julgamento?
Não vi a repercussão deste caso específico. Recebi muitos
cumprimentos pelo que tinha falado e me espantei quando algumas pessoas
disseram que eu havia me curvado ao Moro. Voltando ao boxe, não preciso dar
golpe baixo para ganhar uma luta. Se meu argumento é melhor, venço com
dignidade e educação.
E quando a mídia faz uma edição enviesada a culpa já não é
do lutador. Estou no ringue, o resto não é culpa minha.
Na sexta o Janot se manifestou contrário à anulação do
impeachment da Dilma. Segundo ele, o processo foi autorizado e conduzido com
base e motivação idônea e suficiente. No mesmo dia, mais tarde, ele denunciou o
Temer como chefe de uma organização criminosa. É um contrassenso?
Eu acho que ali há um grande contrassenso, sim, porque uma
das argumentações que usamos no processo de impeachment foi o desvio de poder,
que anularia tudo. Argumentamos que Eduardo Cunha, como presidente da Câmara,
abriu o processo sem base, por vingança contra o PT que não o apoiou no
Conselho de Ética.
O Ministério Público pediu o afastamento do Cunha,
justamente porque ele utilizava estratégias ilegais para obstruir a Justiça e
evitar a cassação. Nesse pedido, o MP enumera vários fatos, só não cita o
impeachment e diz que no impeachment não há prova do desvio de poder. Há, sim,
inclusive pela fala do próprio Ministério Público em outros processos.
Discordo, com muita veemência.
Como vê o possível envolvimento de membros do MP próximos a
Janot em crimes da Lava Jato?
Tem que ser investigado com bastante critério. Repito: não
sou dos que prejulga. No caso, o Ministério Público, se tem indicadores, e
parece que tem, de que haveria o envolvimento do procurador Miller em fatos que
conduzem depoimentos que armavam eventuais flagrantes etc, eu acho que isso tem
que ser investigado de forma rigorosa.
Como vê a figura do agora ex-procurador Geral da República,
Rodrigo Janot?
Como uma pessoa que conduziu o Ministério Público com
acertos e erros. Esse clima passional de ora endeusamento ora demonização é
absurdo. Vivemos um clima de passionalidade e intolerância que não resolve nada
no Brasil.
Poderia citar alguns acertos e erros dele?
A delação da JBS, da maneira que foi feita, sem nenhuma
condenação, eu acho que foi um equívoco. Embora ele tenha uma justificativa,
dizendo que as provas coletadas eram muito fortes. Eu, pessoalmente, acho que
ali há uma situação de equívoco. Creio que poderia haver uma discussão sobre
eventual pena à JBS.
Agora, eu não conheço a totalidade das provas coletadas, tem
coisa em sigilo. Então, é tudo muito superficial. Eu poderia dizer, vendo de
fora, que o correto talvez fosse a pena, mas sem que se apure e se investigue
tudo, não dá para falar. É injusto. Eu me revolto quando há pré-julgamento.
Joesley Batista afirmou que fez um “contrato fictício” com
seu sócio…
Eu fui citado num áudio em que, pelo que pude depreender,
ele estava querendo fazer uma armação comigo. Esperava até ser gravado como
ministro, deputado, marido. Mas como advogado, por um cliente, me parece um
verdadeiro absurdo. Me senti muito mal. O advogado é inviolável. Diante disso
tudo, posso dizer que me senti um tanto entristecido, mas acho que é necessário
investigar para que não se cometa injustiças.
Sobre o Palocci, já sabia que em algum momento ele acusaria
o ex-presidente Lula?
Não. Sabia que se o Palocci fizesse delação talvez tivesse
que acusar para que a delação fosse aceita. É sabido que nas delações os
investigados falam aquilo que os investigadores querem ouvir. Portanto, se ele
tivesse uma estratégia de delação, até pela proximidade que tinha do presidente
Lula, para negociar sua delação, falaria alguma coisa do presidente Lula.
O que o senhor acha das acusações?
Alguns fatos, como a questão dos aeroportos (Palocci acusa
Dilma Rousseff de ter favorecido a Odebrecht no leilão para a concessão do
Aeroporto do Galeão), são um absurdo. Eu vi que aquilo não tinha nada a ver com
a Odebrecht. Sei da relação não boa que Dilma tinha com a Odebrecht. Em nenhum
momento aquilo foi decidido. Não que fosse da minha área. Eu vi discussões.
Dilma achava que era um absurdo ter a concentração de
aeroportos em uma ou em poucas empresas. Então, isso foi uma discussão técnica,
que veio com a Anac etc. Dizer que isso foi colocado como decisão de Dilma por
pressão da Odebrecht é um verdadeiro absurdo. Isto eu vi. E vejo, pela
imprensa, outros relatos do tipo: “ele me falou isso”, vazias de significado. A
impressão que me dá é que Palocci, nas circunstâncias em que se encontra,
preso, desenvolveu uma estratégia para poder reduzir sua pena.
Como vê a figura do Gilmar Mendes?
É uma figura polêmica, magistrado que em dados momentos
recebe críticas por tomar uma posição publicamente e em outros momentos tem
tomado decisões garantistas, por exemplo, quando vota para que certas situações
de prisão preventiva não sejam prolongadas. Portanto, uma pessoa polêmica e
cada um de nós terá a sua posição sobre ele.
É a favor de mandato para o STF?
Sim. Sou favorável que sigamos o modelo das cortes
constitucionais europeias, com mandato.
É a favor do impeachment de Gilmar Mendes?
Não. Acho que nesse momento temos que buscar uma situação de
comedimento em relação ao exercício da função judicial. Tá? É claro que alguns
juristas, amigos meus inclusive, levantaram alguns problemas dele que podem
gerar discussão. Mas eu acho que no Brasil, neste momento, temos que buscar
situações das mais, digamos assim, comedidas, e pedir às pessoas, aos
magistrados, comedimento. O acirramento de coisas nesse momento não contribui
para o país.
O post “Nosso problema não era excesso de republicanismo”: o
ex-ministro José Eduardo Cardozo fala ao DCM apareceu primeiro em Diário do
Centro do Mundo.