Este texto foi escrito como parte de uma
coletânea que está sendo organizada para publicação pela FES-ILDIS e pela
Universidad Andina Simón Bolívar-Ecuador.
Valter Pomar é doutor em história e professor
de economia política internacional na Universidade Federal do ABC (São Paulo,
Brasil). Militante do Partido dos Trabalhadores. Integrou entre 1997 e 2013 a
Comissão Executiva Nacional do PT. Foi secretário de relações internacionais do
PT e secretário executivo do Foro de São Paulo. Correio eletrônico: pomar.valter@gmail.com
No dia 9 de novembro de 1989, a esquerda brasileira
estava totalmente concentrada nas eleições presidenciais, cujo primeiro turno
aconteceria no dia 15 daquele mesmo mês e ano.
No Brasil, a eleição presidencial direta anterior
havia ocorrido no dia 3 de outubro de 1960. Naquele ano, três candidatos
disputaram o cargo: 1) Jânio Quadros, lançado por pequenos partidos e apoiado
pela União Democrática Nacional, principal partido da direita brasileira; 2) Marechal
Lott, lançado pelo Partido Social Democrático, de centro-direita e apoiado pelo
Partido Trabalhista Brasileiro e pelo Partido Comunista; 3) Adhemar de Barros,
do Partido Social Progressista, também de centro-direita.
Jânio Quadros venceu as eleições com 5.636.623
votos (48,27%). Marechal Lott recebeu 3.846.825 votos (32,93%). Adhemar de
Barros alcançou 2.195.709 votos (19,56%). O total de votantes, incluindo quem
votou em branco ou anulou, foi de 12.586.354, menos de 1/5 da população total
do Brasil em 1960, estimada em 70.992.343 pessoas.
A legislação eleitoral brasileira vigente
naquela época permitia que presidente e vice-presidente fossem eleitos
separadamente. Por este motivo, o vice-presidente eleito em 3 de outubro de
1960 foi João Goulart, que concorrera na chapa encabeçada pelo Marechal Lott.
Jânio Quadros e João Goulart tomaram posse no
dia 31 de janeiro de 1961. Poucos meses depois, em 25 de agosto de 1961 Jânio
Quadros renunciou à presidência, com motivações que até hoje provocam polêmica
entre os historiadores e cientistas políticos.
A direita política e militar buscou impedir a
posse do vice-presidente João Goulart, que no momento da renúncia encontrava-se
em visita oficial à República Popular da China. A esquerda desencadeou uma “campanha
pela legalidade” para garantir a posse de João Goulart na presidência.
Regressando da China, no dia 1 de setembro
Goulart já chegara ao Brasil. As forças de direita e João Goulart chegaram então
a um acordo: ele tomaria posse na presidência da República, mas quem governaria
seria um primeiro-ministro.
No dia 2 de setembro de 1961 o Congresso aprovou
uma lei convertendo o Brasil ao parlamentarismo. Entretanto, no dia 6 de janeiro de 1963 um
plebiscito popular reintroduziu o presidencialismo. Vários sinais indicavam que
a esquerda venceria as eleições presidenciais marcadas para o ano de 1965. Os setores
de direita reagiram preventivamente com o golpe militar de 1 de abril de 1964.
A ditadura militar acabou com as eleições
diretas para presidente da República, estabelecendo que a escolha do primeiro
mandatário do país se faria de forma indireta, através de um “Colégio
Eleitoral” cuja composição seria determinada pela legislação.
Durante a ditadura ocorreram várias eleições
presidenciais indiretas, a última das quais em 15 de janeiro de 1985. Esta
aconteceu logo após uma campanha por eleições diretas, que foi um sucesso de
mobilização popular, mas que fracassou em obter os 2/3 de votos necessários no Congresso
para reestabelecer o direito do povo escolher diretamente o presidente da
República.
Após a derrota da campanha pelas Diretas Já, a
oposição à ditadura dividiu-se: a maior parte decidiu participar das eleições
indiretas para presidência da República, marcadas para 15 de janeiro de 1985.
Um pequeno setor da oposição, encabeçado pelo Partido dos Trabalhadores (criado
em 1980 e então com cinco anos de idade), recusou participar da eleição
indireta e determinou a seus oito deputados federais que não comparecessem ao Colégio
Eleitoral. Naquela época, todos os deputados federais eleitos em 1982 faziam
parte do Colégio Eleitoral que escolheria o presidente da República.
A disputa no Colégio Eleitoral opôs duas
candidaturas: 1) Paulo Maluf, um notório corrupto e aliado dos militares, lançado
pelo Partido Democrático Social (PDS), partido que dava sustentação parlamentar
à ditadura; 2) Tancredo Neves, quadro histórico do liberalismo brasileiro,
ex-ministro da Justiça de Getúlio Vargas em 1954, arquiteto da solução
parlamentarista em 1961. Tancredo foi lançado candidato pelo Partido do Movimento
Democrático Brasileiro (PMDB), de oposição à ditadura.
Tancredo Neves venceu a disputa no Colégio
Eleitoral mas nunca exerceu a presidência: morreu antes de tomar posse, devido
a complicações originadas de uma diverticulite (inflamação no intestino).
Quem assumiu a presidência da República foi seu
companheiro de chapa, o vice-presidente eleito José Sarney. Sarney era um recém-convertido
à oposição depois de duas décadas servindo à ditadura militar, inclusive como presidente
nacional do PDS até pouco antes das eleições indiretas.
Em 1986, no ano posterior às eleições indiretas,
ocorreram eleições para o Congresso Constituinte. A proposta de convocar uma
Assembleia Constituinte livre e soberana fora recusada pela oposição liberal e
pelos militares. As forças de centro-direita alcançaram ampla maioria dentre os
parlamentares eleitos.
O Congresso Constituinte (1987-1988) decidiu adiar
as eleições presidenciais inicialmente previstas (pela legislação da ditadura) para
o ano de 1988. O primeiro turno da eleição presidencial foi convocado para o
dia 15 de novembro (em que se comemora a proclamação da República no Brasil) e o
segundo turno previsto para o dia 17 de dezembro de 1989.
Para a maior parte do eleitorado brasileiro, a
eleição presidencial de 1989 foi sua primeira oportunidade de escolher o presidente
da República.
Todas as forças políticas do país lançaram
candidato à presidência. O primeiro turno das eleições foi disputado por 22
candidatos, dos quais 18 eram patrocinados por um único partido, sem qualquer
tipo de coligação.
Destas candidaturas, no máximo cinco defendiam
posições que podemos classificar como de esquerda. Estamos falando de Luís
Inácio Lula da Silva (apoiado pelo Partido dos Trabalhadores, pelo Partido
Socialista Brasileiro e pelo Partido Comunista do Brasil), Leonel Brizola
(apoiado pelo Partido Democrático Trabalhista, filiado a Internacional
Socialista), Roberto Freire (do Partido Comunista Brasileiro), Fernando Gabeira
(do Partido Verde) e Celso Brant (do Partido da Mobilização Nacional).
O segundo turno da eleição presidencial de 1989
foi disputado entre Collor e Lula. Pela primeira vez na história do Brasil, um
operário militante de um partido socialista chegou às portas da presidência da
República. Mas foi Fernando Collor de Mello, um playboy apoiado pelo establishment,
quem ganhou as eleições, ainda que por relativamente pouco: 35 milhões (53,03%)
contra 31 milhões de votos (46,97%).
Importante registrar que mais da metade da
população brasileira teve direito a participar do processo eleitoral: 82.074.718
eleitores numa população total pouco inferior a 143 milhões.
O governo de Collor foi breve -- em 1992 o
Congresso votou seu impeachment por
corrupção --, mas a ele coube o lamentável papel de inaugurar oficialmente o
neoliberalismo no Brasil. Em 2002, três eleições presidenciais depois, Lula seria
eleito presidente da República.
Repassar estes acontecimentos serve para
ilustrar por quais motivos a atenção da esquerda brasileira no dia 9 de
novembro de 1989 estava concentrada na disputa presidencial.
Qualquer que tenha sido o impacto da “queda do
Muro de Berlim” na política brasileira, este impacto esteve muito longe de ser determinante
no desempenho surpreendente da candidatura de Lula ou na vitória de Collor.
Em certa medida isto é óbvio: a débâcle do socialismo de tipo soviético ocorreu entre 9 de novembro de 1989
(queda do Muro de Berlim) e 25 de dezembro de 1991 (fim da URSS). Por isto, seu
impacto na esquerda brasileira foi mais forte ao longo da década dos 1990.
Além disto, há outro fator a ser considerado: nos
anos 1980 a esquerda brasileira exalava otimismo. Embora a ditadura não tenha
sido derrubada, ela foi derrotada. E isto aconteceu em grande medida graças a
um processo de mobilização social, cujo epicentro foi a mobilização do
operariado industrial.
Com isso, a década dos 1980 no Brasil teve uma
dupla face: foram anos de profunda crise econômica e social, mas também foram
anos de ascensão política e ideológica das classes trabalhadores, das
organizações populares e dos partidos de esquerda.
Para citar alguns fatos: em 1979 é reorganizada
a União Nacional dos Estudantes, em 1980 é criado o Partido dos Trabalhadores,
em 1983 é fundada a Central Única dos Trabalhadores, em 1986 teve início o
Movimento Sem Terra, em 1987 o Partido Comunista Brasileiro e o Partido
Comunista do Brasil já estão atuando na legalidade, em 1988 a esquerda elegeu
prefeitos em cidades que reúnem 1/3 do produto interno bruto nacional e grande
parte da população. Em 1989, Lula disputou o segundo turno presidencial e chegou
“quase lá”.
O otimismo da esquerda brasileira nos anos 1980
ajuda a entender porque os acontecimentos na URSS e no Leste Europeu foram
encarados, por grande parte da esquerda brasileira, como parte de um movimento
de renovação do socialismo.
Aliás, quem ousasse dizer o contrário corria o
risco de ser acusado de saudosismo, de nostalgia pouco autocrítica ou
simplesmente anatemizado como “stalinista”, “palavrão” (xingamento) que se usava com abundância proporcional à
falta de reflexão acerca do significado do termo.
O otimismo da esquerda brasileira resistiu à
derrota de 1989 e esteve presente pelo menos até as eleições presidenciais de
1994, quando Lula foi derrotado ainda no primeiro turno pelo social-democrata
Fernando Henrique Cardoso.
Só então ficou clara, para grande parte da
esquerda brasileira, a força do capitalismo neoliberal e o grau de hegemonia alcançado
pelos Estados Unidos depois da “queda do Muro”.
Frente a esta correlação de forças, a esquerda
brasileira dividiu-se: 1) uma parte defendia manter a estratégia adotada pela
esquerda nos anos 1980; 2) outra parte defendia atualizar aquela estratégia às
novas condições; 3) um terceiro setor defendia mudar de estratégia para
aproximar-se das posições que na Europa e na América Latina eram conhecidas
como “centro-esquerda”.
Nos anos 1990, portanto, o debate travado na
esquerda brasileira foi fortemente influenciado pelo balanço acerca da “queda
do Muro”.
Em síntese, podemos dizer que a crise do
socialismo de tipo soviético estimulou fortes mudanças no pensamento político e
ideológico da maior parte da esquerda brasileira.
Algumas destas mudanças já vinham se acumulando
de antes, como resultado de uma análise que se fazia desde os anos 1950 acerca
dos limites do socialismo soviético e da estratégia proposta pelos partidos
comunistas.
Não foram mudanças uniformes, até porque a
esquerda brasileira não é nem nunca foi homogênea, representando diferentes
setores sociais e expressando diferentes visões político-ideológicas.
Qual foi o sentido
predominante das mudanças no pensamento da esquerda brasileira, sob o efeito
da crise do socialismo de tipo soviético?
Resumimos nos parágrafos a seguir as mudanças
que nos parecem predominantes e fundamentais, ou seja, aquelas mudanças que
afetaram a maior parte da esquerda e que determinaram a partir de que postura
esta esquerda atuou num cenário marcado pelo deslocamento da correlação de
forças em favor do Capital e do imperialismo.
Cresceu o questionamento acerca do papel
protagonista da classe trabalhadora e, de maneira mais ampla, acerca do papel
das classes e da luta de classes no funcionamento e na transformação da
sociedade brasileira.
Cresceu também o questionamento acerca do papel
dos sindicatos e dos partidos políticos, bem como do significado mesmo da “esquerda”
e da “vanguarda”.
Houve uma progressiva substituição do socialismo
pelo desenvolvimento
como ideia estruturante do pensamento de grande parte da esquerda brasileira.
O que nos anos 1930 a 1980 era uma subordinação
política – com setores da esquerda socialista e comunista apoiando os setores
democráticos burgueses na luta contra os setores conservadores -- converteu-se pouco
a pouco numa subordinação teórica e ideológica: setores da esquerda adotando
como seu programa máximo o capitalismo.
Derivado disto, a “revolução política e social”
e as “reformas estruturais” foram sendo deixadas de lado em favor da promoção de políticas públicas a serem
implantadas por governos eleitos nos marcos de democracias eleitorais.
As grandes interpretações e narrativas típicas
da tradição marxista foram sendo progressivamente substituídas, ou por visões
tradicionalmente vinculadas a tradição liberal-democrática e a conservadora, ou
por discursos fragmentários cuja matriz de fundo era um irracionalismo intelectual
de tipo religioso.
Algumas destas mudanças deitam suas raízes nos anos
1950 e 1960. Outras nos anos 1970-1980, de luta contra a ditadura militar e
contra a “transição conservadora para a democracia”. Várias ganharam ímpeto no período
1990-2002, marcado pela oposição da esquerda aos governos neoliberais. Todas
repercutem ainda hoje, no período 2003-2015, quando parte da esquerda brasileira
participa do governo do país.
Tais mudanças ideológicas devem ser vistas no
contexto de um processo mais amplo, que alterou as condições objetivas e
subjetivas em que vive e atua tanto a classe trabalhadora quanto a militância de
esquerda.
Entre estas alterações, destacam-se: 1) a
destruição e fragmentação do parque produtivo e a consequente redução,
dispersão e fragmentação da classe trabalhadora assalariada, seja de sua fração
industrial, seja de seus setores comerciais e de serviços; 2) a constituição de
uma imensa massa humana que não encontra opções para vender sua força de
trabalho, sendo muitas vezes obrigada a sobreviver de expedientes miseráveis e antissociais;
3) a cooptação de parcelas melhor remuneradas da classe trabalhadora, inclusive
de amplos setores da intelectualidade profissional (professores, comunicadores,
artistas) pelo modo de vida e pensamento neoliberal; 4) a renovação geracional
da classe trabalhadora, num contexto de enfraquecimento da consciência e da
solidariedade de classe; 5) e, ironicamente, a normalização da vida política do
país, com eleições regulares de dois em dois anos, abrindo passo para
americanizar as eleições brasileiras e domesticar paulatinamente parte das
esquerdas.
Olhando em perspectiva histórica, o efeito
global destas mudanças no pensamento político e ideológico da maior parte da
esquerda brasileira teve um efeito paradoxal.
Por um lado, a flexibilização sem traição
permitiu
à esquerda brasileira vergar como junco, sem quebrar, conseguindo
manter uma força social e institucional nos anos 1990 e ganhar a presidência da
República em 2002.
Por outro lado, esta mesma flexibilização sem traição
reduziu
a capacidade da esquerda brasileira liderar transformações mais profundas na
sociedade.
Pois as tais mudanças corresponderam a uma
ampliação da hegemonia burguesa, tanto na classe trabalhadora quanto em vastos
setores da esquerda, que incorporaram horizontes programáticos, paradigmas
explicativos, prioridades políticas, métodos de financiamento, padrões de
funcionamento e estilos de democracia interna típicos dos chamados partidos
tradicionais.
Como exemplo, podemos citar: 1) a crescente
moderação programática do Partido dos Trabalhadores, principal força política
da esquerda brasileira; 2) as concessões que os governos democráticos e
populares fazem a aspectos importantes do receituário neoliberal; 3) o
paulatino distanciamento entre a esquerda eleitoral e os setores mais radicalizados
do movimento social; 4) a incapacidade de estabilizar uma intelectualidade
orgânica ou, noutros termos, de criar um pensamento capaz de servir de guia para a ação da classe trabalhadora
brasileira em sua luta contra o capitalismo e pelo socialismo.
Não existe uma única esquerda no Brasil, mas o
que predomina é um imenso déficit teórico, programático e estratégico.
Até mesmo os setores hegemônicos no Partido dos
Trabalhadores reconhecem a pobreza crescente das interpretações que fazemos
acerca do Brasil. O mesmo pode ser dito, embora em menor medida, acerca do que
pensamos da região e do mundo.
Como o PT é parcela expressiva da esquerda
brasileira, impactando fortemente os demais setores da esquerda, a resultante é
a já apontada: um imenso déficit teórico, programático e estratégico.
É tentador, mas seria equivocado, atribuir a
causa principal deste déficit aos efeitos colaterais da “queda do Muro”.
Para simplificar o argumento, a existência de
um forte campo socialista (em algum momento entre 1945 e 1991) não
necessariamente contribuiu para a esquerda brasileira construir uma
interpretação adequada acerca da sociedade brasileira. Mutatis mutandis, a crise do socialismo soviético não pode ser
vista como a variável fundamental. Noutras palavras, não cabe importar
modelos nem exportar responsabilidades.
Feita esta ressalva, é correto dizer que para
superar o atual déficit teórico, programático e estratégico, os setores
hegemônicos da esquerda brasileira terão que fazer um novo balanço da crise do
socialismo; terão que reafirmar a centralidade da luta de classes e o papel
protagonista da classe trabalhadora; terão que valorizar novamente o papel dos
sindicatos, dos partidos políticos, das esquerdas e das vanguardas; terão que
retomar o socialismo como ideia bússola; terão que combinar novamente políticas
públicas, reformas estruturais e revolução política e social, vinculando
participação nas democracias eleitorais com disposição de ir muito além dos
limites deste tipo de democracia. E, finalmente, para superar o atual déficit
teórico, programático e estratégico, os setores hegemônicos da esquerda
brasileira terão que retomar as grandes interpretações e narrativas típicas da
tradição marxista.
Não se confunda nada disto com a defesa das
estratégias, dos programas e das teorias que caracterizavam o chamado socialismo
soviético.
Podemos e devemos debater que contribuição tais
estratégias, programas e teorias deram à luta pelo socialismo entre 1917 e
1991.
Mas se entendemos realmente a teoria como guia
para a ação, então nosso desafio atual é fazer análise concreta da situação
concreta, produzindo uma teoria, um programa e uma estratégia que sejam
adequadas ao período atual. Tarefa na qual terão pouca utilidade tanto os idólatras
quanto os apóstatas do socialismo de tipo soviético.
Hoje, um balanço da “queda do Muro” deve
forçosamente constatar que a débâcle
do socialismo de tipo soviético abriu um período de defensiva estratégica para
as forças anticapitalistas. Inclusive para aquelas que nunca compartilharam o
socialismo de tipo soviético ou que dele distanciaram-se em algum momento (como
é o caso do Partido Comunista da China).
Desde 1991, o capitalismo tornou-se mais
hegemônico do que nunca. E como não podia deixar de ser, empurrou o mundo para
uma crise de vastas proporções, como vimos a partir de 2007-2008. Crise que é
acompanhada pelo declínio relativo da hegemonia dos Estados Unidos e pela
ascensão de outros polos de poder em escala mundial.
Um quarto de século depois da “queda do Muro” e
do fim da URSS, o cenário mundial é de instabilidade, crise, guerras, revoltas
e busca de alternativas. Revoluções como as de 1917 e de 1949, por enquanto
ainda não.
Vista por quem mantém compromissos com o
socialismo, o “breve século XX” (1917-1991) recorda Sísifo, condenado a
empurrar uma pedra morro acima, para vê-la desabar mais adiante e ter que
recomeçar novamente, eternamente.
Esta imagem diz respeito, como é óbvio, apenas
aos que continuam tentando dar bases teóricas e viabilizar praticamente o
socialismo, neste início do terceiro milênio. Mas não afeta, ou não atinge com
a mesma força, aqueles setores da esquerda que acreditam no socialismo como
agente civilizatório do capitalismo.
Estes parecem se contentar com o fato da história
dos últimos 150 anos ter confirmado que tudo aquilo que a sociedade capitalista
moderna possui de “civilizada”, o possui graças ao esforço e ao sacrifício do
movimento socialista e da classe trabalhadora.
Do ângulo destes setores da esquerda, o
socialismo é encarado como uma “etapa superior” do movimento democrático,
liberal e progressista iniciado pela burguesia contra a sociedade feudal. Deste
mesmo ângulo, episódios mais “desagradáveis” da história do movimento
socialista podem ser apresentados exatamente como “desvios” resultantes da vã
tentativa de superar o capitalismo. Para os partidários deste ângulo de visão, ao
se tornar radicalmente anticapitalista, o socialismo abandona seus propósitos
reformistas e humanitários e converte-se em “totalitarismo”. Ou seja:
adulterando a famosa frase de Marx, para esta esquerda o limite do “socialismo”
que defendem é o próprio capitalismo.
Já para aqueles setores da esquerda que
defendem superar o modo de produção capitalista, a história oferece muitas
interrogações.
É verdade que o capitalismo se confirmou como
profundamente contraditório, sofrendo crises cíclicas e cada vez mais
devastadoras. Ocorre que só muito raramente tais crises desdobraram-se em
processos revolucionários.
Desde as referências de Marx ao espectro do
comunismo (1847-1848), até as notícias da ofensiva final da esquerda
salvadorenha (1988-1989), a história da esquerda tem sido marcada por muitas
“revoluções que faltaram ao encontro”.
Além disso, apenas uma parte dos processos
revolucionários resultou na vitória de forças ligadas ao movimento socialista e
na constituição de governos estáveis pós-revolucionários. Mais relevante ainda:
não há até hoje caso de revolução socialista triunfante em nenhum dos países
capitalistas mais avançados. O que significa dizer que a transição socialista
foi empurrada para começar exatamente onde o capitalismo desenvolveu-se
tardiamente, obrigando as forças socialistas a empenhar enormes esforços no
desenvolvimento das forças produtivas.
Durante muito tempo, estes problemas foram
fartamente compensados, no imaginário do movimento socialista revolucionário,
pelo impacto mundial de revoluções vitoriosas (com destaque para Rússia, China,
Cuba e Vietnã); pela importância geopolítica dos países cujos governos surgiram
dessas revoluções; bem como pelos efeitos que a existência de um “campo
socialista” produziu nas condições de luta e vida dos trabalhadores dos países
capitalistas “avançados”.
Enquanto o reformismo social-democrata alimentava-se
dos progressos “civilizatórios” que a esquerda obtivera sob o capitalismo, o
socialismo revolucionário alimentava-se do progresso político e social
verificado nas regiões do mundo que (acreditava-se então) a revolução teria
definitivamente libertado do capitalismo.
Isto, combinado com os avanços do movimento de libertação
nacional e do desenvolvimentismo nos países da periferia capitalista, gerou
durante a segunda metade do século XX, a impressão de que, apesar dos problemas,
o socialismo avançava.
Impressão reforçada pela crise estrutural do
capitalismo, visível a partir de 1970-1975. Num aparente paradoxo, foi
exatamente em seguida a esta crise que todos aqueles “progressos” anteriormente
citados foram detidos, tendo início um movimento de regressão.
O paradoxo é aparente, pois do que se trata é
algo na verdade simples: o socialismo de tipo soviético soube combater e
inclusive vencer na luta contra o tipo de capitalismo existente até 1945. Mas
não conseguiu combater e terminou derrotado na luta contra o tipo de
capitalismo surgido da crise de 1970-1975.
A partir de então, os países libertos da
opressão colonial foram novamente subordinados a interesses
metropolitanos. Os países que se
industrializaram após a Segunda Guerra Mundial passaram a experimentar a “desindustrialização”.
As conquistas obtidas pela classe trabalhadora nos países capitalistas
centrais, materializadas no chamado Estado de bem-estar social, foram atacadas
e ainda hoje seguem sendo parcialmente anuladas. Durante os anos 1990, o
desmanche do socialismo soviético abriu uma nova fronteira de expansão para o
capitalismo.
O retrocesso generalizado das posições
conquistadas pela esquerda, ao longo do século XX, foi acompanhado por
transformações no funcionamento do capitalismo, bem como por transformações nas
classes trabalhadoras, tais como a redução do campesinato e a ampliação da
proletarização vis a vis a perda de peso relativo do operariado industrial.
Todos estes fenômenos tiveram duríssimos
efeitos sobre os partidos de esquerda. No ângulo programático, muitos partidos
comunistas derivaram para formulações de tipo social-democrata, centradas na
ideia de realizar reformas que melhorem as condições de vida para as maiorias
sociais, sem tocar nos fundamentos do capitalismo.
Muitos partidos social-democratas e também
comunistas derivaram para formulações de tipo neoliberal, centradas na ideia de
que o bom funcionamento da sociedade e, inclusive, a possibilidade de melhoria
nas condições de vida das maiorias sociais, depende do livre-funcionamento do
capitalismo, que deve ser liberto das regulamentações típicas do welfare state.
Um dos efeitos mais profundos da
contra-ofensiva do Capital foi no terreno ideológico e afetou duramente os
setores de vanguarda da classe trabalhadora.
No Brasil, toda uma geração de trabalhadores
adquiriu sua consciência de classe através das lutas travadas a partir do final
dos anos 1970 e início dos anos 1980. Esta geração evoluiu progressivamente das
reivindicações básicas para um programa democrático e popular, que --
consciente ou inconscientemente -- articulava a execução das chamadas tarefas inconclusas da revolução
democrático-burguesa, com as tarefas socialistas.
A polarização dominante, no debate travado
pelas esquerdas neste período, se dava entre os adeptos de uma estratégia
revolucionária e os adeptos de uma estratégia reformista de transformação
social. Mas para ambas, o socialismo era o objetivo estratégico.
O resultado das eleições presidenciais de 1989 e
1994 impactou profundamente a esquerda brasileira. O balanço feito por grande
parte dos trabalhadores conscientes pode ser resumido em três ideias-chave: 1) nosso
caminho para o poder passa pela vitória nas eleições presidenciais; 2) uma
vitória nas eleições presidenciais exige moderar o programa e ampliar as
alianças; 3) esta moderação é inevitável numa situação mundial de triunfo do
capitalismo e desaparecimento do socialismo soviético.
A questão de fundo -- chegar ao governo
federal, para fazer exatamente o quê, numa conjuntura que supostamente bloqueava
o socialismo -- foi sendo “respondida” ao longo dos anos, através de sucessivas
alterações no programa das esquerdas brasileiras.
Estas alterações foram feitas sob o impacto da
conjuntura e, também, sob o impacto de uma intensa revisão ideológica. A
análise da crise do socialismo foi parte integrante da revisão geral do
programa e da ideologia socialista que animavam grande parte da esquerda
brasileira até o final dos anos 1980.
Este processo de revisão seguiu seu curso, durante
os anos 1990, em várias direções distintas, simultâneas e complementares.
Por exemplo, reafirmar o socialismo, mas como “horizonte”.
Abandonar o socialismo enquanto alternativa globalmente superior ao
capitalismo, transformando-o em missão civilizatória do próprio capitalismo (ou
seja, em “valores” socialistas). Identificar socialismo com democracia,
economia de mercado e Estado de bem-estar. Ou seja, com social-democracia.
O enfraquecimento do socialismo como bússola e como alternativa concreta foi acompanhado pela conversão de amplos
setores da esquerda, até então influenciados pelo marxismo, às ideias
keynesianas e neoliberais.
Como fruto dessas alterações, a polarização
dominante no debate da esquerda brasileira nos anos 1990 passou a dar-se entre
duas correntes de opinião, ambas reformistas: o reformismo desenvolvimentista e o reformismo social-liberal, com as correntes socialistas
(revolucionárias ou reformistas) apoiando as posições expressas pela corrente
desenvolvimentista.
Desta polarização surge a base real da lenda
segundo a qual haveria identidades entre o Partido dos Trabalhadores e o
Partido da Social-Democracia Brasileira. A afinidade realmente existente se
limita ao reformismo social-liberal defendido por setores do PT, setores que
realmente estavam e seguem estando próximos dos neoliberais do PSDB.
Ao longo dos anos 1990, os setores hegemônicos
da esquerda brasileira foram colocando em terceiro plano as tarefas de natureza
socialista, mantendo em segundo plano as reformas estruturais de natureza
democrático-burguesas, deixando em primeiro plano como objetivo principal “combater
o neoliberalismo”, não mais com o objetivo de superar o capitalismo e sim com o
objetivo de desenvolver um capitalismo que fosse “progressista”.
Os resultados práticos disto só ficariam claros
quando a esquerda venceu as eleições presidenciais de 2002 e passou a governar
o país. Por exemplo, a “reforma agrária” realizada durante os governos Lula e
Dilma tem uma natureza qualitativamente distinta daquela defendida pela maior
parte da esquerda até 1994.
Resumindo o que dissemos até agora: a revisão
geral do programa, da estratégia e da ideologia que animavam grande parte da
esquerda brasileira até o final dos anos 1980 ocorreu sob o duplo impacto da
situação nacional e internacional. E a situação internacional incluía não
apenas os efeitos da “queda do Muro” (ou seja, do desmanche do socialismo de
tipo soviético), mas também os efeitos da ascensão do neoliberalismo.
Nos anos 1990, quando o ciclo neoliberal dava
sinais de esgotamento, vários autores começam a fazer o balanço dos
acontecimentos das décadas anteriores de 1970 e 1980, buscando entre outras
coisas entender porque as forças de esquerda não tiveram êxito frente às
possibilidades abertas pela “grande crise” de 1970-1975.
No caso da América Latina, este balanço foi
muito focado na derrota das tentativas guerrilheiras, bem como na derrota do
governo Allende, derrotas geralmente associadas à suposta ou real
predominância, na esquerda, de posições e de atitudes “vanguardistas”,
“voluntaristas” e “esquerdistas”.
Como desdobramento deste balanço, parte da
esquerda passou a realizar uma defesa da democracia como método e/ou como valor
universal.
Caberia mais estudo para verificar em qual
medida, mas certamente este viés de análise favoreceu um ambiente propício para
a recepção de um balanço também enviesado das derrotas sofridas pela esquerda na
Europa e nos Estados Unidos, derrotas que tiveram na moderação (e não no
esquerdismo) programática e política seu componente fundamental.
A adesão formalista à “democracia eleitoral” contribuiu
para colocar amplos setores da esquerda sob influência ideológica da estratégia democratizante que assumiu
grande importância no arsenal utilizado pelas forças capitalistas no ataque às
posições socialistas nos anos 1980.
Toda esta mutação intelectual possui uma base
objetiva: o enfraquecimento relativo da classe trabalhadora, no Brasil e no
mundo, vis a vis o fortalecimento da burguesia.
Sua possível reversão depende no fundamental de
uma alteração também objetiva nesta correlação de forças. Mas a construção de
outra visão de mundo (um processo “subjetivo”) joga um papel neste processo “objetivo”.
E a construção de outra visão de mundo depende, nas condições atuais, não
apenas de uma crítica teórica ao desenvolvimento capitalista, acompanhado da
formulação de uma alternativa, mas também de uma autocrítica do percurso
desenvolvido pela esquerda brasileira no último período.
Podem contribuir positivamente neste processo
de autocrítica certas mediações que
ajudam a compreender diferenças importantes entre determinadas correntes da
esquerda brasileira e seus similares europeus. Como é perceptível, a esquerda
moderada brasileira tende a ser mais radical que seus congêneres no Velho
Mundo.
Vejamos a seguir algumas destas mediações, que
funcionaram como uma espécie de airbag
ideológico durante o acidentado período da “queda do Muro” e do fim da URSS.
Uma primeira medição importante é dada pela
luta de classes no Brasil. Aqui o neoliberalismo é um visitante tardio, que foi
recebido com muita resistência por uma esquerda que possuía relevante
influência social e institucional. Nestas condições, o balanço da “queda do
Muro” corria paralelo à análise dos efeitos das reformas neoliberais no Leste
Europeu. E uma pessoa de esquerda não precisava de muito esforço para perceber
que o fortalecimento do capitalismo não resultara em mais democracia, nem
ampliara o bem-estar dos que viviam nos antigos países socialistas, o que por
sua vez dizia algo sobre o regime social que havia nestes países antes da “queda
do Muro”, tornando mais difícil jogar fora a criança junto com a água de banho.
Uma segunda mediação importante é que o
principal protagonista das políticas neoliberais no Brasil era o Partido da
Social Democracia Brasileira (PSDB). Embora este partido tivesse pouco que ver
com a social-democracia europeia -- cujas raízes estão no movimento socialista
do século XIX, sob forte influência do marxismo -- o fato é que importantes
próceres do PSDB, como Fernando Henrique Cardoso e José Serra, justificavam alguns
de suas opções a partir de uma leitura inspirada nas críticas da “segunda
internacional” acerca do que teria ocorrido ao socialismo soviético. O
resultado prático foi vacinar parcelas
importantes da esquerda e reduzir a influência de algumas posições da
Internacional Socialista e similares.
Uma terceira mediação importante diz respeito a
Cuba. O governo cubano não foi derrubado e o Partido Comunista conseguiu não
apenas manter importante apoio e legitimidade popular, como preservar parte das
políticas públicas que até então garantiram ao povo da Ilha um padrão de vida
superior a países similares na América Latina. Isto introduzia variáveis
importantes no debate sobre a crise do socialismo, evitando a tabula rasa e as
generalizações abusivas típicas do anticomunismo vulgar.
Uma quarta mediação é o papel dos Estados
Unidos na região, com um histórico imperialista e liberticida, fato que
dificultava o trânsito que alguns faziam, de posições dogmáticas em favor do “socialismo
real” para posições dogmáticas em favor das “democracias” capitalistas e contra
as “ditaduras” socialistas. Grande parte da esquerda brasileira não tinha como
não perceber que o fortalecimento dos Estados Unidos e seus aliados, o
fortalecimento do capitalismo em sua versão neoliberal, pioravam as condições sociais
e políticas da classe trabalhadora em todo o mundo, Brasil inclusive.
Uma quinta mediação é dada pelo fato de, nos
anos 1980 e 1990, grande parte da esquerda brasileira não se identificar com o
socialismo soviético tout court.
Especialmente no PT, mas também noutras organizações, existia uma profusão de
correntes críticas (pela direita ou pela esquerda) ao “modelo soviético”. Não
importa aqui analisar o mérito destas críticas: o que importa é perceber que
esta “diversidade ecológica” é um dos fatores pelos quais a “queda do Muro” não
impactou a esquerda brasileira da mesma forma que impactou outras esquerdas, em
outras regiões do mundo.
Resta saber se esta e outras mediações ajudarão
neste momento, em que se faz necessário e com a mais absoluta urgência alterar
a estratégia, o programa, bem como as visões teóricas e ideológicas
predominantes na esquerda brasileira desde meados dos anos 1990 até os dias de
hoje.
Se a esquerda socialista e a classe
trabalhadora brasileira conseguirem fazer esta alteração de linha, no tempo e
na direção corretas, o Brasil poderá continuar contribuindo para que algum dia
o debate sobre a “queda do Muro” e sobre o fim do socialismo soviético sejam
apenas parte da pré-história da humanidade.
25 de maio de 2015