Jandyra Uehara e Valter Pomar
O golpe de
2016 confirmou duas hipóteses. Primeiro, que o fato de um partido de esquerda
ter conseguido conquistar o governo federal, mesmo que por quatro vezes
seguidas, não é igual ou equivalente a este mesmo partido (e muito menos a
classe trabalhadora) conquistar o poder.
Segundo,
confirmou que para defender ou para derrubar um governo eleito, é essencial
combinar luta institucional com mobilização social, uma vez que parcelas
fundamentais do aparato de Estado obedecem aos interesses da classe dominante. As
duas ideias são quase obvias e é provável que grande parte da esquerda
brasileira concorde com ambas. Entretanto, quando se trata de tirar consequências
práticas destas ideias, a esquerda brasileira se divide em diferentes posições.
Alguns
setores argumentam, por exemplo, que entre 2003 e 2014 a esquerda brasileira não
tinha correlação de forças para fazer muito além do que priorizou fazer:
disputar eleições, governar, implementar políticas públicas. Argumentam que se a
esquerda tivesse tentado fazer mudanças que ultrapassassem estes limites, teria
sido derrubada do governo!
Acontece que
a esquerda brasileira disputou eleições presidenciais em 1989, 1994 e 1998;
ganhou as eleições presidenciais de 2002, 2006, 2010 e 2014; sempre respeitou
as leis e as instituições, não fez nada além do permitido pela Constituição e,
em muitos casos, ficou aquém do que a Constituição previa. Entretanto, apesar
deste comportamento ordeiro, a esquerda foi derrubada assim mesmo.
Portanto, ou
bem a esquerda brasileira escolher mudar de lado e passar a defender o programa
da centro-direita, na esperança de agindo assim poder governar em paz com as
classes dominantes. Ou bem a esquerda brasileira discute qual a estratégia
adequada para acumular forças, conquistar governos, usar estes governos como
instrumentos de transformações mais profundas, e também como impedir que
ocorram futuros golpes vitoriosos.
Discutir a
estratégia significa, no fundamental, definir como articular a luta cultural, a
luta social, a luta eleitoral-institucional, a auto-organização da classe, as
relações internacionais, a política de alianças, o programa e a questão do
poder. Como é óbvio, há sobre cada um destes pontos uma enorme polêmica na
esquerda brasileira. Nossa posição é de que a esquerda deve:
1) estabelecer
como objetivo a conquista do poder, isto é, converter as classes trabalhadoras
em classes dominantes, não se contentando em ser governo e sem ter ilusões no
caráter supostamente neutro do aparato estatal;
2) construir
um programa de transformações para o Brasil que combine medidas
democrático-populares com medidas socialistas, isto é, que combine medidas em
favor das classes trabalhadoras com medidas que restrinjam severamente a
propriedade dos capitalistas;
3) abandonar
a ilusão em que a classe capitalista, ou qualquer uma de suas frações, é ou
pode vir a ser aliada estratégica das classes trabalhadoras. Ou, em outras
palavras, a esquerda deveria abandonar a ideia de que seria correto ter como
objetivo estratégico a construção, no Brasil, de um "capitalismo
democrático e popular". A aliança capaz de transformar o Brasil seria entre
a classe dos trabalhadores assalariados e a classe dos pequenos trabalhadores
proprietários;
4) perceber
que a política de alianças inclui, também, governos, partidos e movimentos de outros
países, especialmente da América Latina;
5) colocar
no mais alto nível de importância a) a auto-organização da classe, através de
seus diferentes instrumentos, com ênfase nos sindicatos e no partido político e
b) a luta cultural, necessária para construir uma consciência de classe
socialista-revolucionário, democrático-radical e nacional-popular;
6) entender
que a luta social (a mobilização independente das classes trabalhadoras em
torno de seus objetivos imediatos), a luta eleitoral (a disputa por espaços no
aparato estatal, pelos partidos ligados às classes trabalhadoras) e a ação
institucional (dos mandatos, governos e de outras instituições do Estado
conquistadas através da luta eleitoral) são diferentes formas que a luta de
classes assume, sendo necessário analisar concretamente a centralidade de cada
uma e a relação entre elas, a cada momento dado.
Nossa
opinião sobre a estratégia decorre de duas hipóteses, a nosso ver confirmadas
pela crise de 2008 e pelo que ocorreu depois. Primeiro, que o capitalismo em
sua forma atual é extremamente instável, propenso a crises brutais, que se
desdobram em guerras comerciais, políticas, culturais e militares. Segundo, que
o capitalismo em sua forma atual tem baixa capacidade de reformar a si mesmo.
Dito de outra forma: é cada vez menor a chance de convivência pacífica entre o
capitalismo, as políticas de bem estar social e as liberdades democráticas.
Assim como é cada vez menor a chance de convivência pacífica das grandes
potências entre si e destas frente aos países periféricos. Logo, a luta entre
as classes e a luta entre os Estados tendem ao acirramento.
Parte da
esquerda já sabia disto, antes de 2008. Mas parte da esquerda não acreditava
nisto, antes de 2008. E segue sem querer acreditar, mesmo depois de 2018. Por
isso mesmo, esta parte da esquerda continua deixando o socialismo na “fila de
espera”. Antes, fazia isso porque considerava que o socialismo não seria
necessário ou pelo menos não seria urgente. Afinal, do ponto de vista deste
setor da esquerda brasileira, o país estaria supostamente conseguindo avançar,
melhorar a vida do povo, ampliar as liberdades, afirmar a soberania, construir
a integração regional, mudar pouco a pouco o mundo, mesmo que sem tocar nas
bases estruturais do capitalismo existente no Brasil. E agora, depois do golpe
de 2016 e da eleição de Bolsonaro, aquele setor da esquerda defende continuar
mantendo o socialismo na “fila de espera”, porque pensa que a luta pelo
socialismo não seria realista, factível na conjuntura atual. Afinal, dizem, a
classe trabalhadora estaria perdendo tudo o que conquistou antes, logo a tarefa
seria resistir, impedir o desmonte, recuperar o terreno perdido. E depois, quem
sabe, quando tudo voltar ao normal, recolocar na ordem do dia bandeiras de mais
longo prazo, tais como o socialismo.
O jeito de
pensar resumido nas linhas anteriores converte o socialismo em absolutamente
nada. Pois ele não seria necessário quanto a classe trabalhadora está forte e
não seria possível quanto a classe trabalhadora está fraca.
Evidente que
é possível conquistar muitos avanços, muitas reformas sociais e políticas, sem
colocar em questão a propriedade privada sobre os meios de produção e sobre os
instrumentos de poder. Mas a experiência latino-americana (1998-2018) e, antes
disso, a experiência da social-democracia europeia (1945-1991), demonstram que
a sobrevivência das reformas e dos avanços depende não do capitalismo, mas sim da
correlação de forças entre a classe capitalista e as classes trabalhadoras. E
por mais que as classes trabalhadoras melhorem suas posições, se elas não
avançarem sobre a propriedade dos meios de produção e dos instrumentos de
poder, os capitalistas sempre terão os meios para colocar as coisas no seu
devido lugar. Por isso é que consideramos imprescindível adotar uma estratégia
socialista, ou seja, uma estratégia que visa fazer a classe
trabalhadora construir e conquistar os meios de produção e os instrumentos de
poder.