segunda-feira, 26 de agosto de 2024

Venezuela: a declaração conjunta Brasil-Colômbia

Brasil e Colômbia divulgaram, no dia 24 de agosto, uma "Declaração conjunta".

A íntegra pode ser conferida aqui: Declaração conjunta de Brasil e Colômbia — Planalto (www.gov.br)

Segundo a Declaração, Petro e Lula "permanecem convencidos de que a credibilidade do processo eleitoral somente poderá ser restabelecida mediante a publicação transparente dos dados desagregados por seção eleitoral e verificáveis".

No plano subjetivo, não há o que dizer: os dois presidentes informam que somente ficarão convencidos acerca da vitória de Maduro se os resultados forem publicados de forma desagregada "por seção eleitoral e verificáveis".

No plano diplomático, entretanto, não é nada trivial o questionamento à credibilidade do Tribunal Supremo de Justiça da Venezuela. Afinal, uma coisa é uma pessoa ou um partido fazerem isto; mas quando um governo comete este gesto, trata-se em algum nível de ingerência, ainda que possa ser explicada pelo fato de sermos parte do Acordos de Barbados.

No plano político, contudo, é improvável (para ser otimista) que a "publicação transparente dos dados desagregados" consiga mudar a postura da oposição de extrema-direita.

Muito mais provável é o seguinte: aqueles que antes mesmo da eleição estavam seguros de que ganhariam, que no dia da votação já estimulavam um golpe militar, que no dia seguinte denunciaram fraude e seguem denunciando, vão dizer que publicar agora os "dados desagregados" se trata de uma nova etapa do que consideram ser uma fraude.

Se isso for verdade, então a solicitada "publicação transparente" pode criar as condições para que Colômbia e Brasil reconheçam o resultado, mas não vai "normalizar" a situação da Venezuela. 

Isto posto, a crítica e a solicitação feita pela Declaração não é inócua.

Ao menos no curtíssimo prazo, mesmo que não seja esse o propósito, o texto da Declaração na prática contribui para prolongar a pressão da oposição da extrema direita. Uma oposição que não está interessada no "diálogo pacífico" e na "convivência democrática na diversidade". 

Mais grave ainda, uma oposição que não respeita e quer subverter a Constituição venezuelana.

Cabe perguntar por quais motivos os governos da Colômbia e do Brasil publicam uma Declaração cujo efeito prático imediato é prolongar a pressão de uma oposição que, além de todos os outros problemas, é aliada da extrema-direita brasileira e colombiana?

Talvez um dos motivos, ao menos no caso brasileiro, seja o profundo apego à democracia, acima de tudo e de todos.

Um apego tão grande que nos leva a questionar a justiça de lá, no mesmíssimo momento em que a extrema-direita questiona a justiça daqui.

Mas se o apego à democracia for mesmo um dos motivos, vale registrar uma "curiosidade": ao fazer uma justa crítica às sanções unilaterais (embora sem citar quem as pratica), a Declaração cita que tais sanções são "contrárias ao direito internacional e prejudicam a população dos países sancionados, em especial as camadas mais vulneráveis".

Verdade.

Mas também é verdade que as sanções afetam a democracia

Aliás, este é um dos objetivos centrais das sanções: fazer "a economia gemer", prejudicar a população mais vulnerável e reduzir o apoio ao governo, com o objetivo de favorecer a oposição.

Este tipo de ingerência descarada no processo eleitoral, praticada pelos Estados Unidos e Europa, precisaria ser denunciada sempre, sob pena de reforçar uma interpretação parcial e enviesada dos problemas ocorridos no processo eleitoral. 


domingo, 25 de agosto de 2024

Venezuela: argumentos da esquerda da esquerda

Viento Sur publicou, no dia 24 de agosto, um texto útil para quem deseja entender os argumentos dos que criticam o governo Maduro, de um ponto de vista situado à esquerda da esquerda.

O referido texto pode ser lido aqui: 


https://vientosur.info/la-izquierda-pro-maduro-abandona-a-su-suerte-los-trabajadores-y-el-pueblo-venezolanos/#_ftn7


O texto acusa a “esquerda pró Maduro” de “abandonar” os trabalhadores e o povo venezuelano.


Quem seria esta “esquerda pró Maduro”?


Segundo o texto, seria um “sector cada vez más pequeño (…) según el cual, para salvar a Venezuela y a la región del imperialismo estadounidense, es necesario apoyar al gobierno de Nicolás Maduro a cualquier coste. Este coste, por supuesto, incluye la posibilidad de que, a diferencia de épocas anteriores, Maduro no haya ganado las elecciones (…)”.


Essa definição é verdadeira?


Do meu ponto de vista, não é verdadeira, essencialmente pelo seguinte: certamente existem os que apoiam Maduro a “todo custo”, assim como existe quem se considera mais chavista do que Chávez e Maduro.


Mas existem, também, aqueles que não são e nunca foram chavistas; que não defendem toda e cada uma atitude do governo Maduro; mas entendem que é preciso respeitar a soberania da Venezuela, o que inclui, no presente caso, respeitar as decisões da suprema corte e do conselho eleitoral daquele país.


Se entendi direito o argumento do texto, esta “nuance” não faria muita diferença, pois seguiria presente uma lógica “basada más en la geopolítica clásica que en el marxismo”.


Para poupar os leitores de digressões teológicas e acadêmicas acerca da geopolítica e do marxismo, faço uma pergunta: para a classe trabalhadora espalhada por todo o mundo (inclusive a que vivia nas repúblicas soviéticas), a vida piorou ou melhorou depois que a URSS desapareceu?


Quem respondeu que “piorou” não obrigatoriamente concorda com o “sistema soviético”, embora se dê conta de que, às vezes, ruim com ele, pior sem ele. E se dá conta, também, de que existe um forte vínculo entre a luta de classes e a chamada “geopolítica” (adoto o termo por comodidade). 


E “geopolítica”, ao contrário do que sugere o texto, não se resume à luta pelo petróleo. Afinal, existe uma guerra pelo controle da América Latina e Caribe, que transcende o tema petrolífero.


Alias, o texto mesmo reconhece que há um setor da esquerda que “se concentra menos en el petróleo y más en la tragedia de reconocer la derrota de Maduro, visto como un izquierdista, en un contexto de avance de la extrema derecha en el mundo y en la región”.


Registro aqui uma malandragem do texto. Óbvio que seria trágica a vitória da extrema-direita; mas derrotar os fascistas no voto e entregar o governo no berro (como em certa medida aconteceu na Bolivia, no início do golpe contra Evo) não seria trágico, seria patético. Assim, quando não “reconhecemos” a “derrota de Maduro”, é entre outras coisas porque não somos patetas.


Mas o principal para o texto não é debater se Maduro ganhou ou não; o principal é tentar provar que Maduro não seria de esquerda.


Segundo o texto, Maduro teria “una gramática discursiva con verborrea de izquierda”, mas “lo único que ha hecho es hacer retroceder los logros y el legado de los años de avance del proceso bolivariano. Más allá de las apariencias, lo cierto es que su política desde 2013 (…) En una trayectoria abiertamente autoritaria, Maduro siempre ha favorecido a los sectores empresariales”.


Nessa critica existe uma porção de verdade, a saber: depois da crise de 2008, todos (t-o-d-o-s) os governos progressistas e de esquerda na América Latina e Caribe passaram a enfrentar crescentes dificuldades para melhorar a vida do povo. Quem não foi golpeado, comeu o pão que o diabo amassou. E os que voltaram ou chegaram agora enfrentam imensos problemas (Boric, por exemplo, que o texto trata de maneira tão gentil).


Em parte isso se deve a escolhas (erradas) feitas por esses governos e pelas esquerdas que os sustentam? Seguro que sim!


Mas em grande parte se deve à força de nossos inimigos, que nos impuseram fortes constrangimentos e contradições.


Um dos problemas da esquerda da esquerda é que, no balanço das causas, pesam contra a mão esquerda. E isto está vinculado, como aponta o próprio texto, a um método de análise que eles acham ser marxismo, mas que não passa de economicismo.


O que eles chamam de marxismo é uma “análisis de la situación de la clase obrera venezolana”. Sem dúvida este é um componente fundamental de qualquer análise. Mas se a análise for apenas da “situação” da classe trabalhadora (venezuelana ou de quase todos os países, no último período), a constatação será a seguinte: a maioria da classe vive pior hoje do que em 2013. 


A partir desta constatação, basta dar um pequeno passo para “concluir” que a culpa pela piora nas condições de vida da classe é dos governos; e, onde existem, seria dos governos de esquerda e progressistas.


E se o governo progressista for sujo, feio e malvado, cortem sua cabeça, como diria a rainha do país das maravilhas.


O resultado será, como se demonstrou no Brasil e em outros lugares, uma piora nas condições de vida da classe trabalhadora. E, em alguns casos, isso provoca a domesticação de uma parte da esquerda da esquerda, que em nome do antifascismo passa a defender governos mais moderados do que aqueles que ela, antes, atacava.


Se quisermos evitar este desfecho, é preciso analisar a situação da classe, no contexto da luta de classes. Parece óbvio, mas infelizmente há quem desconsidere o obvio: as classes só existem em luta e na luta. E, portanto, se queremos extrair conclusões políticas, é preciso ir além da descrição dos sofrimentos de nossa classe. É preciso considerar a luta como um todo, que inclui não apenas o conflito de classes dentro de cada país, mas também a luta entre Estados no plano mundial.


Quando fazemos isso,  o resultado da análise tende a ser menos “binário”. E podemos perceber, por exemplo, que numa determinada correlação de forças, a derrota de um governo progressista e de esquerda pode piorar expressivamente a situação da classe trabalhadora, bem como piorar a situação dos governos e Estados que se opõem de alguma forma a quem hoje hegemoniza o mundo.


Nem toda vez é assim, vide o caso sempre citado de Kerensky em 1917. Mas na América Latina e Caribe entre 1998 e 2024 tem sido assim. Como em 1973 alguém dizia do governo Allende, mesmo quando são governos de merda, são os nossos governos e devem ser defendidos contra a oposição de direita e extrema-direita.


Não é essa, obviamente, a posição de esquerda da esquerda. Aliás, o texto não discorre sobre quais seriam as consequências de um hipotético governo de  María Corina Machado y Edmundo González.


Embora o texto afirme que a “classe obrera le interesa fundamentalmente cómo la situación tras el 28J permite o restringe, a corto plazo, las libertades que necesita para expresarse como clase”, a única “situacion” analisada é o que, supostamente, fez, faz ou deixa de fazer o governo Maduro.


Os autores do texto acusam o governo Maduro de reprimir os trabalhadores, antes e depois do 28 de julho. Vamos supor que parte do que é dito fosse verdade. Por quais razões, então, o texto afirma que uma vitória de Guaidó Segundo seria uma “tragédia”? No que esta “tragédia” diferiria da que o texto descreve, quando fala do governo Maduro??


Silêncio!


Talvez porque ninguém tenha dúvida sobre o que implicaria uma vitória da extrema direita sobre as liberdades e condições de vida da classe trabalhadora venezuelana. Mas se o texto admitisse isto, toda a sua crítica ao governo Maduro teria que mudar de tom e perspectiva.


E já que falamos em silêncio, o texto não fala em nenhum momento de Guaido Primeiro. Vá saber por qual motivo acontece este tipo de “omissiones y silencios comprometedores”.


O que parece organizar o pensamento da esquerda da esquerda é o objetivo de construir “una alternativa por la izquierda”. 


Este objetivo é, falando em tese, legítimo. Mas ele não será alcançado através de uma vitória da direita.


No caso do Brasil, uma parte da esquerda da esquerda descobriu isso do pior jeito possível. O texto foi escrito a quatro mãos, duas são brasileiras, mas pelo visto são de quem não entendeu as lições do último período.


Nem todo mundo aprendeu, é verdade. E nem todo mundo tirou as mesmas lições. Basta ver a crença que muitos seguem mantendo no efeito supostamente mágico das amplas alianças, das instituições, do ajuste fiscal e do discurso republicano. 


Neste sentido, o texto tem alguma razão quando afirma que o “êxito electoral del binomio Machado-González es en buena medida el resultado de los errores políticos del madurismo”. Sem dúvida, houve erros. Alguns vem de longe, outro de perto. Mas cabe perguntar: o texto acha que a oposição venceu? Acha que houve fraude?


Segundo o texto, seria uma tragédia “el hecho de que esta extrema derecha haya podido ganar o estar muy cerca de ganar las elecciones, no hay otra razón para la insistencia de Maduro en negar los resultados y reprimir tan duramente al pueblo.”


“Haya podido ganhar” é muito diferente de “estar cerca de ganar”. Curiosamente, o texto inteiro é escrito com base na convicção de que Maduro perdeu, mas esta certeza é apresentada quase sempre de forma indireta. E o motivo é óbvio: ao acusador cabe o ônus da prova e os que acusam não têm provas. Por isso, aliás, exigem “atas” que a oposição venezuelana sempre teve e que, quando mostrou, o fez de forma manipulada e fraudulenta.


Por isto que foi dito, não é verdade que Maduro “negue” os resultados. O que ele nega é que a oposição tenha vencido. Negativa baseada nas resoluções da justiça venezuelana. Tomar esta negativa como suposto indício de que a oposição ganhou ou está por ganhar é simplesmente surreal.


Seja como for, não há dúvida de que o texto foi escrito por quem acredita que houve fraude nas eleições de 28 de julho e que a oposição venceu. Achar isso é um direito de quem queira. O que não podem é desconsiderar que existe, na esquerda, quem tenha certeza de que Maduro venceu as eleições e, portanto, acredite que “fraude” é o que a direita tenta fazer.


É por isso, aliás, que este setor da esquerda - seguro da vitória de Maduro - não apoia a solução “negociada”. Não por apego ao poder supostamente negado pelas urnas, mas porque o único efeito prático de certas propostas de negociação é dar aparência de legitimidade para quem desconsidera totalmente a legalidade materializada na Constituição bolivariana. 


Obviamente, quem acredita que houve fraude vê o panorama de outro ponto de vista. E ao fazê-lo revela um incrível apreço não pela democracia em geral, mas por uma específica  interpretação da democracia. 


Vejamos qual.


Segundo o texto, “no podemos identificar mecánicamente a los pueblos con sus dirigentes políticos, que pueden o no representarlos, en una relación siempre dinámica. Cuando esta relación se rompe -como se ha roto o se está rompiendo en Venezuela- las libertades democráticas se convierten en un punto de apoyo fundamental para cualquier lucha por la soberanía, tanto popular como, por cierto, nacional”.  


Portanto, se as eleições deram a vitória para Guaidó Segundo, então - apesar de que os “regímenes democrático-burgueses no son el régimen al que aspiramos estratégicamente los socialistas” - devemos acatar os resultados.


Se não agirmos assim, “¿Cómo queda una izquierda que desprecia la democracia hasta el punto de avalar la manipulación de las elecciones, frente a los pueblos y trabajadores del mundo y en países (cada vez más) donde la lucha contra la extrema derecha es vital?”


Portanto, se entendi direito, deveríamos reconhecer a vitória da extrema direita na Venezuela, para demonstrar nosso compromisso com a democracia!


Obviamente, isto só tem algum sentido para quem acredita que a oposição ganhou. Mas mesmo para quem acredita nisso, uma vitória da extrema-direita deveria causar muito mais preocupação do que a expressa no texto (com o destino da PDVSA, por exemplo).


Afinal, está mais do que demonstrado que a chegada da extrema-direita ao governo não é uma “alternância” normal.


Acho que o texto não aborda isso entre outros motivos porque - embora a dupla de autores certamente vá negar isto - sua defesa das liberdades democráticas se confunde com a defesa do que eles mesmos chamam de “regime democrático burguês”.


O que os leva a, partindo da esquerda da esquerda, terminarem repetindo argumentos liberais acerca da “democracia”. 


Isto não é uma “qualidade” apenas deste texto e de seus autores, mas de muito mais gente. O liberalismo tem mesmo uma atração fatal.


ps.Maduro venceu. E não somos patetas.




 

 

sexta-feira, 23 de agosto de 2024

O que a direita pretende nas eleições?

Começando pelo óbvio: eleger o maior número de vereadores e prefeitos.

Este é o tema da live que o Manifesto Petista fará na segunda dia 26 de agosto.

Quem quiser assistir, está aqui o endereço:  https://www.youtube.com/live/3TugCu7iX0U

Como não poderei participar, escrevi o que segue.

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Começando pelo óbvio: eleger o maior número de vereadores e prefeitos.

Vale dizer que um passo fundamental foi dado: o lançamento de um maior número de candidaturas.

Vejamos os números: segundo o TSE, em 2024, foram inscritas 15.366 candidaturas a prefeito e 422.490 candidaturas a vereador. Destas, 78% foram inscritas por partidos do centro-direita, da direita gourmet e da direita cavernícola. E apenas 22% foram inscritas por partidos que compõem a centro-esquerda ou esquerda (PCB, UP, PSTU, Federação PSOL-Rede, Federação PT-PCdoB-PV, PDT e PSB).

Em números: 3.322 candidaturas a prefeito e 87.082 candidaturas a vereador foram inscritas por partidos que podem ser descritos como de centro-esquerda ou esquerda. Enquanto 12.044 candidaturas a prefeito e 335.408 candidaturas a vereador foram inscritas por partidos de centro-direita, direita e extrema-direita.

Aliás, embora não tenhamos os dados precisos, é seguro afirmar que a maioria dos atuais prefeitos e vereadores em todo o país pertence a estes partidos de centro-direita, direita e extrema-direita.

Claro que há candidaturas progressistas inscritas pelos demais partidos; e claro que há candidaturas de direita inscritas através de partidos de centro-esquerda. Mas os números dão uma ideia aproximada do óbvio: os partidos de centro-direita, direita e extrema-direita lançaram maior número de candidaturas.

Um exemplo a mais disso é o contraste entre o PT e o PL.

O PT lançou 1.380 candidaturas a prefeito. O PL lançou 1.474. O PT lançou 26.654 candidaturas a vereador, o PL lançou 32.357. Detalhe importante: quando comparamos o número de candidaturas em 2024 com o número lançado em 2020, fica ainda mais evidente a vantagem relativa do PL.

Em 2020, o PT lançou 1.209 candidaturas a prefeito, agora lançou 1.380. O PL lançou 926 em 2020 e 1.474 em 2024. Ou seja: depois de vencer a eleição presidencial, o PT aumentou em 14% sua nominata. Já o PL, depois de perder a eleição presidencial, aumentou em 59% sua nominata.

No caso de vereadores, a comparação é ainda mais preocupante. Em 2020, o PT lançou 27.484 candidaturas a vereança; em 2024, esse número caiu para 26.654. Já o PL cresceu: lançou 25.170 em 2020 e 32.357 em 2024.

Evidentemente, ter candidato não quer dizer ter voto, nem tampouco significa eleger. Teremos que aguardar o resultado eleitoral para verificar se a tática seguida pelo PL produziu mais êxito que a tática adotada pelo PT.

Mas, como está na moda dizer, há “fortes indícios” de que a direita vai conseguir mais votos e vai conquistar mais mandatos do que a esquerda. E, devemos acrescentar, vai reforçar sua influência não apenas institucional, mas também ideológica, sobre grandes setores da sociedade brasileira.

Que efeitos isto pode ter na eleição de 2026? Sobre isso, há controvérsias. Primeiro, porque em dois anos pode acontecer muita coisa, como se viu, aliás, entre 2020 e 2022. Em segundo lugar, porque os efeitos podem ser diferenciados: o crescimento da direita nas eleições municipais de 2020 facilitou a eleição da atual maioria congressual, mas não impediu a vitória de Lula nas eleições presidenciais.

De toda maneira, a direita brasileira vê as eleições de 2024 como um momento de acúmulo de forças. Neste sentido, é fundamental – para a esquerda – vencer as eleições nas grandes cidades.

Em 100 cidades, concentra-se 38% do eleitorado. Em outras 115 cidades, está cerca de 10% do eleitorado. Portanto, quase metade do eleitorado brasileiro concentra-se em 215 cidades. A outra metade está distribuída em 5.355 municípios.

Destas 215, a cidade mais populosa e com maior eleitorado é São Paulo capital. Neste caso, a direita tem um objetivo principal: impedir a vitória da esquerda. Com que cavalo, isso ainda está em disputa.

Isso nos remete para o segundo objetivo da direita nestas eleições: impedir que a esquerda obtenha resultados (votos e principalmente vitórias) que criem um ambiente favorável, seja à atuação do governo Lula, seja à mobilização da classe trabalhadora.

Parte do serviço já foi feito. As mais vistosas, dentre as 100 grandes cidades, são as capitais de estado. A esquerda tem candidatura majoritária unificada em 16 das 27 cidades (13 do PT e 3 do PSOL, neste caso, Macapá, Belém e São Paulo). Nas demais, se dividiu, com o PT apoiando candidaturas lançadas por partidos de centro-esquerda ou pior. É o caso do PSB (3, Curitiba, Recife e São Luís), PDT (Porto Velho), PSDB (1, Palmas), PV (1, Boa Vista), PSD (1, Rio), MDB (3, Acre, Maceió e Salvador).

Uma vitória de Eduardo Paes no Rio, de Geraldo Júnior em Salvador ou de Luciano Ducci em Curitiba, para ficar só nesses exemplos, não será uma vitória da esquerda. E não está certo o que significará nas eleições de 2026 (basta lembrar que Nunes, de São Paulo, é do MDB, que supostamente faz parte da base do governo, assim como Tabata).

Ainda é cedo para cravar qual será o resultado das eleições nas 16 cidades onde a esquerda disputa a prefeitura com candidatura própria. Mas não há dúvida sobre o já citado segundo objetivo da direita. Valendo observar que existem pelo menos duas direitas (a gourmet e a cavernícola), sendo que ambas têm um pé no governo e outro na oposição.

Sendo este o contexto, qual deveria ser a tática da esquerda? Simplificando ao extremo, trata-se de buscar o voto do eleitorado que nos deu a vitória em 2022. Ou seja: a classe trabalhadora, as mulheres, os negros e as negras, a juventude, os nordestinos onde quer que estejam, os mais pobres.

É este apelo de classe (pobres contra ricos) que fará a diferença. Lula, em 2022, atraía este eleitorado quase que por gravidade. Nossos candidatos em 2024 terão que se virar nos trinta para conseguir a mesma coisa.


Venezuela: e agora Celso, para onde?

Lembrando os acontecimentos da primeira temporada: aconteceu a eleição, o CNE divulgou os resultados, houve contestação, um dos candidatos foi à Justiça pedir que a controvérsia fosse dirimida.

Quem foi à Justiça foi quem afirma ter havido "fraude"? Não, pois os que reclamam “fraude” não acreditam na justiça venezuelana e só admitem uma hipótese: sua própria vitória.

Quem foi à Justiça foi o candidato proclamado vencedor pelo CNE, Nicolás Maduro, que recorreu ao Tribunal Supremo de Justicia, o equivalente ao nosso Supremo Tribunal Federal.

O Tribunal convocou, então, partidos e candidaturas a se apresentar. Dos 38 partidos concorrentes, 33 atenderam. Dos dez candidatos, nove atenderam. Edmundo González Urrutia, também conhecido como Guaidó II, preferiu desacatar a justiça.

Em seguida, o Tribunal realizou uma peritagem nos documentos e no sistema informatizado do Conselho Nacional Eleitoral.

Finalmente, no dia 22 de agosto, o Tribunal Superior de Justiça divulgou a seguinte resolução: “Con base en los resultados obtenidos en el proceso de peritaje, podemos concluir que los boletines emitidos por el CNE respecto a la Elección Presidencial 2024, están respaldados por las actas de escrutinios emitidas por cada una de las máquinas de votación desplegadas en el proceso electoral y, asimismo, estas actas mantienen plena coincidencia con los registros de las bases de datos de los centros nacionales de totalización”.

Ou seja, o Tribunal confirmou a vitória de Nicolás Maduro.

O Tribunal também decidiu que o Conselho Nacional Eleitoral deve “publicar los resultados definitivos del proceso electoral celebrado el 28 de julio de 2024, para la escogencia del Presidente de la República Bolivariana de Venezuela en la Gaceta Electoral de la República Bolivariana de Venezuela, según lo previsto en el artículo 155 de la Ley Orgánica de Procesos Electorales”.

Do ponto de vista institucional, isso encerra a novela estritamente eleitoral (e a primeira temporada). Do ponto de vista político, não.

Os defensores da legalidade, chavistas e não chavistas, dentro e fora da Venezuela, vão ter que avaliar o ocorrido, que traz muitos ensinamentos para quem quiser aprender.

A extrema-direita e seus apoiadores mundo afora vão continuar berrando fraude. Mas vão ter que decidir se escalam (por exemplo através das modalidades levante, golpe, intervenção estrangeira e desobediência civil) ou se permanecem no terreno da disputa política. à espera da próxima eleição.

Já os que tinham e seguem tendo dúvidas, vão ter que decidir se reconhecem ou não o resultado. 

No caso do cidadão sem funções oficiais, vale o livre pensar. Mas no caso do governo brasileiro, a questão é diferente. 

Não reconhecer o resultado implicaria questionar a legalidade do ordenamento jurídico da Venezuela. E, do ponto de vista prático, significaria algo cujas consequências até agora ninguém explicou direito.

Se nossa diplomacia tivesse sido mais contida, talvez o problema fosse menor. Mas como nossa diplomacia desta vez foi muito loquaz, a solução será mais difícil. Acompanharemos com atenção a segunda temporada, cujo primeiro episódio já tenha começado quando o leitor tiver terminado a leitura deste artigo.


quinta-feira, 22 de agosto de 2024

Venezuela: a complexidade de Liszt Vieira

O IHU publicou, no dia 22 de agosto, uma entrevista com Liszt Vieira acerca da Venezuela.

A entrevista publicada pode ser lida aqui: O enigma venezuelano: frente a uma democracia autoritária e uma direita com inclinações fascistas, o resultado das eleições é uma incógnita. Entrevista especial com Liszt Vieira - Instituto Humanitas Unisinos - IHU

A entrevista foi concedida e publicada antes que fosse divulgada a decisão da Sala Electoral del Tribunal Supremo de Justicia da Venezuela, confirmando a vitória de Maduro.

Mesmo assim ou por isso mesmo, vale a pena ler.

Liszt alerta que a Venezuela é um caso de” grande complexidade política”, que ele propõe abordar sobre três ângulos: o “exclusivamente eleitoral”, o “político geral interno” e o “geopolítico”. 

Do ponto de vista eleitoral, Liszt diz ter “dúvidas”: “não sei se algum dia saberemos se houve ou não fraude”. 

Detalhe curioso: Liszt afirma que "a democracia brasileira foi muito mais autoritária do que a venezuelana", afinal “prenderam o Lula sem prova nenhuma para impedir que ele fosse candidato".

Ou seja: as eleições de 2018 foram fraudadas antes mesmo de começarem. Apesar disso, quase ninguém fala disto.

Já no caso da Venezuela, parece existir uma maneira de dirimir certas “dúvidas”: se a fraude for confirmada e a oposição for declarada vencedora.

No fundo, certas pessoas têm certeza de que houve fraude. Algumas transformam acusação em prova. Outras adotam uma espécie de agnosticismo: na ausência de provas, professam a dúvida eterna.

Mesmo inadvertidamente, isso na prática ajuda a oposição de extrema-direita. 

Sigamos.

Do meu ponto de vista, a parte mais relevante da entrevista de Liszt é sua crítica ao “autoritarismo militar do Chávez”, que por outro lado ele reconhece ter atendido às necessidades materiais da maioria do povo da Venezuela. 

Outro detalhe curioso: Lizst não diz uma palavra sobre as mudanças políticas ocorridas nos governos chavistas, por exemplo a ampliação das liberdades democráticas e a reforma no sistema eleitoral.

Compreensível não falar disso: torna mais fácil introduzir a tese da "democracia autoritária".

Segundo Liszt, a Venezuela seria "um regime militar até hoje, tem uma fachada civil com o Maduro, mas é um regime militar, pois são eles que estão no poder” (…) é um regime militar porque os militares estão no poder com uma fachada civil e eles montaram um governo autoritário. Eu não chamo de ditadura porque o governo foi eleito e ninguém provou que havia fraude, mas não é uma democracia clássica. Eu chamo de democracia autoritária, que é um título que dou ao governo da Venezuela”.

Embora ache o termo bonito pacas, não sei direito o que seria uma “democracia clássica”.

E não conheço nenhuma autoproclamada democracia, em que as forças armadas não joguem papel relevante. 

Aliás, um governo de esquerda não sobreviveria muito tempo sem uma forte retaguarda militar, especialmente numa região como a América Latina e Caribe, tão perto dos EUA e tão longe do paraíso. 

Certamente há maneiras e maneiras de articular as forças armadas com o conjunto do aparelho de Estado. Na maneira chinesa, o Partido manda nas forças armadas. Na maneira gringa, governos eleitos em processos extremamente controlados - pela grana, pela mídia e por uma legislação restritiva - interagem subalternamente com o “Estado profundo”. 

Estas e todas as outras maneiras possíveis sempre serão relativamente democráticas e, claro, podem receber diversos nomes. 

Liszt, por exemplo, chama a maneira venezuelana de “democracia autoritária”.

Mesmo inadvertidamente, isso na prática reforça a “narrativa” dos gringos, segundo a qual a batalha mundial estaria se dando entre democracia e autoritarismo. 

Sigamos.

Lizst afirma que “houve também uma gestão muito incompetente e precária do governo da Venezuela. Os militares nunca foram muito competentes em matéria de administração pública e gestão econômica – essa é uma regra quase geral”. 

Esclareço que nunca fui e sigo não sendo chavista. Entre outros motivos, porque atuo no Brasil, não na Venezuela. Por óbvio, não concordo com os que tecem juras de amor ao chavismo, nem acho que eles tenham feito tudo certo no terreno econômico. 

Agora, onde é mesmo que existiu ou existe uma gestão “competente” em “matéria de administração pública e gestão econômica”? Quantos destes casos exemplares estão aqui em nosso continente? E quantos são encabeçados pela esquerda? Ademais, competente para quem mesmo?

A verdade é que é raro encontrar governos “competentes”, ao menos quando o critério é servir ao povo. E mais difícil ainda, quando se atua em condições extremamente difíceis, como é o caso da Venezuela. 

Sigamos.

Lizst desanca Guaidó e o golpismo da direita. Mas, ao mesmo tempo, afirma que “o problema é que a Venezuela ficou com fama de ser um governo de esquerda, porque os militares não abriram mão do petróleo para negociar com empresas americanas. Mas o governo da Venezuela é um governo de esquerda? Eles têm uma política econômica neoliberal e um autoritarismo bastante repressivo. É preciso levar em conta que não é um governo de esquerda, apenas os militares não quiseram entregar o petróleo para os americanos”. 

Vamos por partes: a Venezuela tem um governo de esquerda? Ou é só fama? Fama que causaria problemas para pessoas que supostamente são verdadeiramente de esquerda?

Os mais entusiasmados (contra ou a favor) não se perguntam a respeito. Mas deveriam. Afinal, vivemos em tempos em que um Trump acusa uma Kamala de ser "radical de esquerda". Mas no passado também era assim: a socialista revolucionária Fanni Kaplan, que atirou em Lênin em 1918, acusava o velho russo de ser um “traidor da revolução”. E atire a primeira pedra quem nunca foi acusado de praticar uma política econômica neoliberal, de ser autoritário ou de reprimir contrários.

Feitas estas ressalvas, nessa questão sigo o exemplo de Brizola: olho para o que fazem nossos inimigos. O imperialismo e a extrema-direita querem derrubar o governo da Venezuela. Isto não faz do governo Maduro o melhor governo do mundo, não o converte num exemplo de manual, nem faz o povo venezuelano tomar banho em leites de rio e mel.

Mas faz dele a esquerda realmente existente na Venezuela. Isto é um "problema" para outras esquerdas, em outras partes do mundo? Em alguns casos sim, noutros casos mais ou menos. Mas a não ser que alguém defenda adotar um modelo único de esquerda, é bom se acostumar com a diversidade e com a absoluta falta de perfeição. 

Mas o problema principal (para a esquerda) surgiria se Maduro fosse derrotado. Como Liszt mesmo diz, “um governo de extrema-direita na Venezuela seria um fortíssimo ponto de apoio para impulsionar o avanço da extrema-direita em todo o mundo. Além disso, em termos de soberania nacional, de segurança nacional, a Venezuela é vizinha do Brasil e um ponto de entrada para a Amazônia”. 

Termino, citando algo que Liszt diz mais para o final de sua entrevista: "não tem por que um país intervir em um país vizinho por achar que houve fraude na eleição. Não pode haver uma intervenção na Venezuela porque o Tribunal Eleitoral de lá decidiu que o fulano ganhou ou perdeu. Esse é um problema interno da Venezuela, de soberania nacional deles e que os outros têm que respeitar. Se quiser, podem romper relações diplomáticas, mas não opinar, enquanto governo oficial ou presidente da República, dizendo que a eleição foi honesta ou fraudada neste ou naquele país vizinho. Isso não tem sentido".

Em resumo: o assunto eu não sei, mas o ponto de vista de Liszt é mesmo complexo. Entretanto, não é certo que tudo seja incerto. Afinal, feitas as contas, a melhor opção - até mesmo para quem tem dúvida - é reconhecer o resultado proclamado pela justiça venezuelana. 





quarta-feira, 21 de agosto de 2024

Venezuela: os fortes indícios de Boulos

O Poder360 divulgou, no dia 20 de agosto, novas declarações de Boulos sobre a situação na Venezuela.

A fonte está aqui: 

https://www.poder360.com.br/poder-eleicoes/ha-indicios-fortes-de-fraude-na-eleicao-da-venezuela-diz-boulos/

Não é a primeira declaração de Boulos sobre a Venezuela. 

Há declarações antigas e há, também, pelo menos uma outra declaração recente, além da supracitada.

Segundo Boulos, haveria “indícios fortes de fraude na eleição da Venezuela”.

Não sei o que Boulos efetivamente sabe, nem o que realmente pensa a respeito. 

Até porque no último período ele mudou de opinião sobre diversos assuntos importantes, numa velocidade difícil de acompanhar.

A respeito de algumas de suas antigas posições, ler aqui: Valter Pomar: Comentários sobre a entrevista de Boulos ao Valor

Ademais, ao falar na condição de candidato, Boulos é obrigado a fazer mil e uma mediações.

Por tudo isso, melhor deixar para outro momento o debate de mérito sobre os tais "indícios fortes".

Entretanto, exatamente por estar falando como candidato, no meio de uma guerra eleitoral muito importante para toda a esquerda brasileira, custa entender por qual motivo afirmar que haveria “indícios fortes de fraude na eleição da Venezuela”.

Explico.

O movimento que a direita faz a respeito envolve três lances combinados: i/dar destaque ao assunto, ii/afirmar que houve fraude e iii/associar a esquerda com a fraude.

A resposta dada ("indícios fortes de fraude") contribui para a direita executar os três lances.

Se for mesmo impossível se desvencilhar da manobra diversionista feita pela direita, a melhor opção (até mesmo para quem acredita nos "indícios fortes") segue sendo defender a soberania das instituições venezuelanas (claro que não precisa ser com o mesmo entusiasmo com que alguns defendem o STF e o Xandão).

Já a opção adotada ("indícios fortes") é, na minha opinião, a pior possível.

Óbvio que, no curtíssimo prazo, parece ser um movimento esperto. Afinal, não confronta a opinião dos 79% dos eleitores paulistanos que, supostamente, acreditam ter havido fraude (ao menos segundo o Datafolha de 12 de agosto).

Mas há "indícios fortes" de que aceitar este tipo de “senso comum" forjado pela direita tem, como efeito, contribuir para o crescimento da direita.

Parafraseando algo dito por alguém, em outra época e a respeito de outro assunto: há fortes indícios de que “a partir do momento que entramos nessa lógica, passamos a aceitar muitas coisas".