sexta-feira, 29 de setembro de 2023

O discurso de Barroso

Recomendo a leitura do discurso feito pelo novo presidente do Supremo Tribunal Federal, Luís Roberto Barroso, no dia 28 de setembro.

Não me refiro à introdução, nem ao trecho que ele próprio intitulou de “gratidão”, extensiva à “Presidenta Dilma Rousseff, que me indicou para o cargo da forma mais republicana que um presidente pode agir: não pediu, não insinuou, não cobrou”. 

Como sabemos, a recíproca não foi verdadeira, mas deixo isso fica por conta das “muitas vidas em uma só” de que se gaba o ministro.

Quando digo que o discurso de posse deve ser lido, me refiro principalmente à segunda parte, dedicada ao poder judiciário. 

Começo pela frase: “Incluir uma matéria na Constituição é, em larga medida, retirá-la da política e trazê-la para o direito. Essa é a causa da judicialização ampla da vida no Brasil. Não se trata de ativismo, mas de desenho institucional”.

Ou seja, na opinião do ministro Barroso, a “judicialização” da política (e a simétrica partidarização da justiça) teria como causa a própria Constituição. 

Ir contra a judicialização seria ir contra a Constituição. 

Tese ousada, entre outros motivos porque, talvez inadvertidamente, reforça a tese dos que – pela esquerda ou pela direita – defendem a convocatória de uma Assembleia Nacional Constituinte.

Afinal, aceita a tese de Barroso, o poder judiciário seria uma mistura perfeita de moderação com tutela, Dom Pedro II e as Forças Armadas numa só instituição, instituição que não é eleita pelo povo.

Mas este parece, para Barroso, um detalhe de pouca monta, se considerarmos o cúmulo de elogios que Barroso dedica a si próprio, a seus pares e ao sistema judiciário.

Segundo o novo presidente do STF, “o Judiciário brasileiro é dos mais independentes e produtivos do mundo. Independente porque, para alguém se tornar juiz, o que se exige é haver cursado uma Faculdade de Direito e ter sido aprovado em um disputado concurso público. Não deve favor a ninguém. É certo que nos tribunais superiores há um componente político, como é em todo o mundo. Mas o DNA de independência não se perde”.

O DNA eu não sei, mas o pedigree certamente não se perde.

Barroso considera “imperativo que o Tribunal aja com autocontenção e em diálogo com os outros Poderes e a sociedade”, pois “numa democracia não há Poderes hegemônicos. Garantindo a independência de cada um, conviveremos em harmonia, parceiros institucionais pelo bem do Brasil”.

Autocontenção certamente é uma qualidade fundamental para quem se julga todo-poderoso. 

Mas como vivemos numa democracia, existe sim um “poder hegemônico”, que é a soberania popular, a quem o ministro cita como apenas um de múltiplos "valores" que compõem o que ele chama de “democracia constitucional” (de quem ele, como agora presidente do STF, é o supremo guardião).

Neste jogo de palavras cuidadosamente escolhidas, Barroso afirma que a “democracia constitucional viveu momentos de sobressalto”, mas que “as instituições venceram”. 

Vide: não foi a democracia, nem o povo, foram as “instituições”, tendo “a seu lado” a “presença indispensável da sociedade civil, da Imprensa e do Congresso Nacional. E, justiça seja feita, na hora decisiva, as Forças Armadas não sucumbiram ao golpismo”.

Justiça seja feita, sem o devido processo legal, mas com absolvição garantida.

Genial, não!?

A soberania popular é rebaixada a condição de variável, a vitória foi das instituições e – “na hora decisiva, as Forças Armadas não sucumbiram ao golpismo”.

Como se pode ver, as “instituições” se protegem.

Mas Barroso não parou por aí. 

Entre os culpados de sempre ele cita o “extremismo”, o “autoritarismo” e... o “populismo”, palavrinha que na América Latina é imputada pela direita a nove em cada dez projetos de esquerda.

Já disse alguém que a hipocrisia é a homenagem que o vício presta à virtude. 

Talvez por isso, Barroso reconheça que “as democracias contemporâneas precisam equacionar e vencer os desafios da inclusão social, da luta contra as desigualdades injustas e do aprimoramento da representação política”.

Esta última frase contém uma aula, pois por detrás dela está a ideia de que a “democracia constitucional” e a “democracia real” não andam necessariamente juntas, muito antes pelo contrário. 

Motivo pelo qual tantos neoliberais são sinceros quando enchem a boca para falar de “democracia” e “Estado de direito”, mesmo que na porta da sua casa tenha gente desempregada, passando fome e morando na rua.

Como é óbvio, Barroso não quer muito; ele se contenta com uma “reserva mínima” em termos de “liberdade, igualdade e acesso aos bens materiais e espirituais básicos para uma vida digna”. 

É nessa passagem que começa o melhor trecho do seu discurso, em favor dos direitos das mulheres, da população negra, da comunidade LGBTQIA+, dos povos indígenas, das pessoas com deficiência e, também, em favor da proteção ambiental.

Barroso reconhece que são vitórias “inacabadas, mas na vida devemos saborear os avanços e as vitórias”. 

E aproveita para dizer que não considera que estas sejam “são causas progressistas”, mas sim “causas da humanidade, da dignidade humana, do respeito e consideração por todas as pessoas”.

Graças a esta cuidadosa demarcação semântica, fica mais difícil denominar Barroso de “progressista neoliberal”.

Neoliberal?

Exagero??

Leiam o que vem a seguir: “O Judiciário deve ser técnico e imparcial, mas não isolado da sociedade. (...) O Poder Judiciário, o Direito em geral, gravita em torno de dois grandes valores: a justiça e a segurança. (...) segurança jurídica, segurança democrática e segurança humana. Segurança jurídica para que haja um bom ambiente para o desenvolvimento da economia e dos negócios no país, com incentivo ao empreendedorismo, ao investimento e à inovação. Sem surpresas. Precisamos superar a desconfiança que ainda existe no Brasil em relação à livre iniciativa e ao sucesso empresarial. É daí que vem o emprego, a ascensão social e o progresso”.

É incrível como a essa altura do campeonato haja gente disposta – contra todas as evidências – a acreditar que o “emprego”, a “ascensão social” e o “progresso” surgem da “livre iniciativa”.

Principalmente na periferia do mundo capitalista, valeria dizer: "é o Estado, estúpidos". Sem ele não tem nada, não tem emprego, nem tem ascensão, não tem progresso, não tem nem mesmo "livre iniciativa".

Detalhe: para Barroso, a segurança democrática é “não menos importante” do que a segurança jurídica em favor da livre iniciativa.

A democracia é “não menos importante” do que a empresa privada: eis aqui a palavra de ordem do humanista Barroso.

Poliana diria: mas ele também disse que, como princípio e fim, “também” está a “segurança humana”. 

Pois é. Ocorre que nesse pacote ele inclui “o combate à pobreza, às desigualdades injustas e à criminalidade, com segurança pública e valorização das polícias”.

Quer algo mais revelador que juntar, numa mesma sentença, pobreza com polícia? 

Mas, claro, polícias treinadas “numa imprescindível cultura de respeito à cidadania e aos direitos humanos”.

Coisas sérias à parte, chega a ser engraçado ler no discurso de Barroso a frase “poucas derrotas do espírito são mais tristes do que alguém se achar melhor do que os outros”, para logo depois ler também o seguinte: “meus queridos colegas deste Tribunal: o Universo nos reuniu aqui porque temos uma missão”.

O Universo, com “U” maiúsculo, reuniu Barroso e os demais ministros.

Guardiões da Galáxia na veia.

Barroso concluiu seu discurso com um capítulo sobre “o Brasil que queremos”, uma “agenda para o Brasil”, claro que com base na Constituição: “(i) combate à pobreza; (ii) desenvolvimento econômico e social sustentável; (iii) prioridade máxima para a educação básica; (iv) valorização da livre iniciativa, bem como do trabalho formal; (v) investimento em ciência e tecnologia; (vi) saneamento básico; (vii) habitação popular; e (viii) liderança global em matéria ambiental”.

“A democracia venceu e precisamos trabalhar pela pacificação do país. Acabar com os antagonismos artificialmente criados para nos dividir. (...) O sucesso do agronegócio não é incompatível com proteção ambiental. Pelo contrário. O combate eficiente à criminalidade não é incompatível com o respeito aos direitos humanos. O enfrentamento à corrupção não é incompatível com o devido processo legal. Estamos todos no mesmo barco e precisamos trabalhar para evitar tempestades e conduzi-lo a porto seguro. Se ele naufragar, o naufrágio é de todos, independentemente de preferências políticas”.

Tirante as platitudes e o pedigree, chama a atenção a ignorância náutica: há muito se sabe que, nos naufrágios, assim como nas catástrofes ditas naturais, os efeitos não se abatem igualmente sobre todas as vítimas.

Ainda neste parte final do seu discurso, Barroso reafirmou seus valores políticos fundamentais: “educação”, “igualdade”, “trabalho” e “livre iniciativa”.

E terminou dizendo que “a história é uma marcha contínua na direção do bem, da justiça e do avanço civilizatório. Basta olhar através dos tempos: viemos de épocas de sacrifícios humanos, despotismos cruéis, inquisições e holocaustos até a era dos direitos humanos. Ainda não plenamente concretizados, mas vitoriosos na maior parte dos corações e mentes”. 

Como ele mesmo reconhece, é um equilibrista, que sabe que “está se equilibrando” e que “na vida real não tem rede”.

Talvez por isso ele termine pedindo que seja “abençoado” para cumprir bem sua “missão”.

Como de benção não entendo, pulo esta parte. 

 

Revista Esquerda Petista


 Editorial

Esta edição da revista Esquerda Petista coincide com o aniversário de 30 anos da tendência petista Articulação de Esquerda. O plano original era produzir um dossiê completo sobre a trajetória da tendência, mas dificuldades as mais variadas nos levaram a produzir algo mais modesto, mas que esperamos cumpra o objetivo de marcar o aniversário de uma iniciativa que foi e segue válida.

Isso posto, nos compete em primeiro lugar informar que o companheiro Marcos Jakoby foi responsável por coordenar, de forma militante, o conjunto de atividades relativas ao aniversário de trinta anos de fundação da AE, entre as quais citamos: a criação do selo 30 Anos, para ser usado nos materiais da tendência; a Agenda 2023; a reedição dos livros Socialismo ou Barbárie, Novos Rumos para o Governo Lula e a A Esperança é Vermelha -Resoluções da Décima Conferência da AE; a edição do livro O Brasil, a Universidade e o movimento estudantil; a publicação, em formato digital, das resoluções de todas as conferências e congressos da AE; a organização de uma seção especial no site Página 13; a gravação e disponibilização de um Arquivo Digital da AE; além desta edição da revista Esquerda Petista.

Em cada uma destas atividades, bem como em várias outras que não citamos, foi fundamental a contribuição de um conjunto de companheiras e companheiros, entre os quais o Emílio Font (responsável pelo desenho gráfico da quase totalidade de nossos materiais), o Rodrigo César (organizador e editor do livro sobre movimento estudantil citado anteriormente), a Adriana Miranda e a Rita Camacho (ambas na revisão e edição de diversos textos).

No caso específico desta edição de Esquerda Petista, agradecemos especialmente a quem contribuiu na elaboração dos textos que estão nas próximas páginas. É o caso dos companheiros Leandro Eliel, Marcos Jakoby, Mateus Lazzaretti e Lício Lobo; e das companheiras Natália Sena, Iriny Lopes, Sonia Hypólito, Pamela Kenne e Elisa Guaraná. Além de Emílio Font e das já citadas Rita Camacho e Adriana Miranda, contamos com a contribuição da Lena Azevedo.

O plano original desta edição da revista Esquerda Petista previa a publicação de uma linha do tempo, de um caderno de imagens e de uma seção de homenagens a militantes da AE que partiram ao longo das três décadas passadas desde a fundação. Pela razão exposta no início deste editorial, estas intenções não chegaram ao papel, embora estejam sendo executadas em nossa página digital (www.pagina13.org.br).

Para finalizar este editorial, queremos reafirmar que não somos nem queremos ser uma tendência com um grande passado pela frente. Não somos, porque temos a exata dimensão do que fomos, desde 1993: uma pequena organização militante, que buscou resistir ao movimento de domesticação que se abateu sobre o PT desde o início dos anos 1990. Não fomos, nem somos, os únicos a fazer isso e, por óbvio, não tivemos pleno êxito em nossos objetivos. Entretanto, o que fizemos contribuiu para que, nesses trinta anos que se passaram desde 1993, o PT continuasse sendo uma solução, aos olhos de parte expressiva da classe trabalhadora brasileira; e, também, contribuímos para que o PT continuasse sendo um problema, aos olhos da maior parte da classe dominante brasileira e, também, do imperialismo.

E não queremos ser uma tendência com um grande passado pela frente, porque embora avaliemos positivamente nossa modesta contribuição, entendemos que o mais importante ainda está por vir. Mesmo reconhecendo nossa condição minoritária, seguimos lutando contra a domesticação, cuja derrota supõe que as posições que nós – e outros setores da esquerda - defendemos se tornem majoritárias na classe trabalhadora, inclusive na direção nacional do PT.

Esta atitude, ao mesmo tempo resiliente e insistente, tem seu preço. Basta dizer que, já em 1993, a decisão de converter o movimento Hora da Verdade numa tendência organizada gerou o inconformismo e depois a ruptura daqueles que, no fundo, preferiam manter vínculos orgânicos com a “direita da Articulação”.

Desde então e até hoje, sofremos inúmeras rupturas coletivas e individuais. Na maioria dos casos, estas rupturas têm duas causas. Por um lado, os que buscam uma reaproximação teórica e orgânica com o setor moderado do Partido. De outro lado, os que desistem de disputar os rumos do Partido. Evidentemente, há os que saíram da Articulação de Esquerda por outros motivos, entre os quais se incluem nossas insuficiências, nossos erros e nossa linha política e métodos de funcionamento, que obviamente não são os únicos possíveis, do ponto de vista de quem luta pelo socialismo.

Seja como for, um fato é: desde que surgimos até hoje, nunca abrimos mão de disputar os rumos do Partido. Somos uma tendência petista. E, também por isso, ao mesmo tempo em que sempre defendemos a necessidade da unidade da esquerda, dentro e fora do PT, nunca nos furtamos de criticar aquelas organizações que estruturavam sua estratégia – supostamente de esquerda - em torno do objetivo de derrotar o PT. Igualmente nunca nos furtamos de criticar as posições de conciliação estratégica com setores da classe dominante brasileira, presentes e hegemônicas em vários partidos, algumas vezes combinadas com o objetivo de derrotar o petismo.

No caso do PT, a conciliação assume diferentes formas. Exemplos disso, no terreno programático: quando a reforma agrária perde centralidade; quando o combate ao capital financeiro se limita ao tamanho da taxa de juros; quando a reversão das privatizações é substituída pela naturalização das terceirizações; quando a reindustrialização é dependente do investimento privado, mormente estrangeiro; quando o socialismo sai da agenda, dando lugar a uma política de combate à exclusão. Exemplos disso no terreno estratégico: quando não se faz nada, a sério, no sentido de derrotar o oligopólio da comunicação, de democratizar o sistema judiciário e o parlamento, de reorganizar as forças armadas e as polícias, de criar as condições para realizar uma Assembleia Nacional Constituinte. Sem falar, é claro, da hipertrofia do institucional frente ao trabalho de organização, conscientização e mobilização direta da classe trabalhadora. E da desistência não apenas da revolução, mas também das reformas estruturais.

A essas dimensões – programática e estratégica – da conciliação, cabe adicionar uma outra, muito visível a partir do nosso “lugar de fala”, na condição de tendência petista: a domesticação orgânica do Partido. Comecemos seguindo a pista do dinheiro: o Partido se tornou quase que absolutamente dependente de fundos públicos, em detrimento da contribuição militante, que desde 2015 deixou de ser uma condição universalmente necessária para participar dos processos deliberativos internos. Depois, observemos o poder interno, cada vez mais concentrado nas mãos dos que ocupam mandatos executivos ou legislativos, em detrimento das instâncias coletivas do Partido. Por estes e outros caminhos, vão tentando converter o PT em parte do aparato de Estado, fazendo-o perder a condição de rebeldia antisistêmica que foi decisiva na sua primeira década de vida.

Este fenômeno atinge o PT, mas atinge também suas tendências internas, muitas das quais se converteram em cooperativas de parlamentares, em agências para disputar empregos públicos, em instrumentos para ocupar espaços nas direções, não mais para disputar os rumos políticos do Partido. 

Todos estes fenômenos afetam a Articulação de Esquerda. “Como já dissemos e queremos repetir, temos entre nós muitos dos problemas e defeitos que existem no interior do PT e da esquerda brasileira. Em alguma medida isso é inevitável: não vivemos numa bolha, não somos uma seita. Embora, a bem da verdade, alguns dos problemas citados, embora também existam entre nós, existem em quantidade muito menor e sem afetar a conduta geral da tendência, como já se demonstrou em temas como a promiscuidade com a direita, a promiscuidade com o empresariado, o oportunismo no debate político-ideológico e a violência de gênero” (trecho da resolução do 8º Congresso da AE, realizado em julho de 2023).

Quando falamos estas coisas como elas são, há quem conclua que o jogo está jogado, que a partida está perdida, que a metamorfose se concluiu. Não é esta a nossa opinião. Seguimos no PT, seguimos disputando os rumos do PT, não por inexistir alternativa, mas por compreender que – nesta quadra histórica em que vivemos – a vitória da classe trabalhadora depende do Partido dos Trabalhadores. Não de um PT ou de uma esquerda imaginária, mas do PT e da esquerda realmente existentes, com todas as suas contradições, com seus problemas, com suas limitações. Pureza como caminho para redenção é uma máxima fascista. Ao contrário, quem tem algo de marxista sabe que a realidade é profundamente contraditória. E quem tem algo de leninista sabe que, se queremos mudar uma realidade contraditória, como é o caso do próprio PT, é preciso lutar.

Portanto, aos 30 anos de vida, o que podemos dizer é que vamos seguir lutando e fazendo de tudo para vencer, menos aquilo que o já famoso causídico atribuiu ao “pequeno príncipe”. 

Venceremos? Só o tempo e a luta dirão. Sendo importante lembrar: não há a menor chance de vitória, de nenhuma estratégia da esquerda - da mais moderada até a mais radical-, se não houver uma crescente mobilização da classe trabalhadora. Mobilização ainda mais necessária, nesses tempos de guerra que vivemos.

Encerramos este editorial reiterando algo que está na resolução de nosso 8º Congresso: “momentos de crise profunda – como o que vivemos atualmente – são terríveis e perigosos, mas também são propícios para darmos passos decisivos para a construção de um novo mundo, um mundo com bem-estar e liberdades, com soberania e integração, um mundo desenvolvido e que preserve o meio ambiente, um mundo socialista”.

Valter Pomar, editor da revista Esquerda Petista e um dos presentes ao seminário de 1993, que fundou a Articulação de Esquerda


domingo, 24 de setembro de 2023

Revolução brasileira em debate


Segue abaixo uma entrevista que integra o livro "Revolução brasileira”, de Isabel Mansur.

A entrevista foi concedida por mim antes das eleições de 2022.

1.Qual a importância do conceito de estratégia para a esquerda?

dinâmica do capitalismo contém três desdobramentos possíveisreprodução do próprio capitalismo; a destruição dnatureza, incluindo a humanidade; e a superação do capitalismo por outro modo de produção. Este terceiro desdobramento depende, no médio prazo, de condições objetivas desenvolvidas pelo próprio capitalismocomo a ampliação da produtividade do trabalho e a coletivização do processo de produção.Mas, no curto prazo, a superação do capitalismo depende da classe trabalhadora conduzir uma transição em direção ao comunismo. Neste sentido, diferente de outras transições de modo de produção ocorridas na história, a transição do capitalismo ao comunismo exige ação organizada a partir de um planoestratégia é exatamente isso: plano e ação. Na ausência deste plano e da ação correspondente, na ausência de uma estratégia, o mais provável é queprevaleçam a reprodução do capitalismo e a destruição da natureza e da própria humanidade. Portanto, para a esquerda anticapitalista, estratégia é condição sine qua non. Para a outra esquerda, estratégia é como hipocrisia: uma ilha grega.

 

2. Como definiria a estratégia democrático-nacional do PCB – hegemônica na esquerda brasileira dos anos 50 até a redemocratização?

A estratégia hegemônica no interior do Partido Comunista desde os anos 1920 até os anos 1970, mas também hegemônica no mesmo período em outras organizações comunistas e socialistas brasileiras, partia do seguinte pressuposto: antes do socialismo, o Brasil precisavadesenvolver o capitalismo. Esta estratégia partia de dois pressupostos válidos. O primeiro pressupostoa formação econômico-social brasileira continha diversos elementos pré-capitalistas. O segundo pressuposto: o desenvolvimento capitalista cria várias das condições necessárias para o socialismo. Mas destes pressupostos era possível, a luz da experiência russa e chinesa, extrair outra conclusão: no século 20 e num país periférico, a superação dos componentes pré-capitalistas e até mesmo certo nível dedesenvolvimento capitalista só poderiam ocorrer nos marcos de uma transição socialista. Mas não foi esta a conclusão adotada. Pelo contrário, a estratégia realmente implementada pela maior parte do movimento comunista no Brasil foi em favor do desenvolvimento de um capitalismo com altos níveis de soberania, liberdade e bem-estar social.

 

3. Qual é o balanço que você faz dessa estratégia?

 

É preciso diferenciar a luta travada por amplos setores da classe trabalhadora, com destaque para as diferentes organizações comunistas e socialistas, da estratégia que presidiu esta luta. A luta foi heroica e podemos nos orgulhar. A estratégia foi equivocadacontribuindo na melhor das hipóteses para reduzir os níveis de exploração dcapitalismo, mas contribuindo menos do que poderia na luta pelo socialismo.

 

4. O PT assumiu o protagonismo da esquerda brasileira nos anos 80, o partido conseguiu elaborar uma estratégia sólida?

Nos anos 1980, especialmente no seu quinto encontro nacional realizado em 1987, o PT estava implementando na prática e começava a dar forma teórica para uma estratégia democrático-popular articulada com o socialismo.Mas os acontecimentos posteriores atropelaram este processo: a ofensiva neoliberal e a crise do socialismo soviético causaram retrocessos materiais e espirituais no Brasil, na classe trabalhadora, na esquerda e no PT. Uma das consequências disso foi a adoção, por parte de setores cada vez mais amplos do petismo, de uma variante prática e teórica da estratégia democrática-nacional, mais especificamente da plasmada na Declaração de Março de 1958. Apesar disso, o PT sobreviveu com muito mais força do que a esquerda jamais teve em épocas anteriores, demonstrando que uma estratégia equivocada do ponto de vista da luta pelo socialismo pode coexistir e até pode contribuir, durante algum tempo, com êxitos parciais importantíssimos.

 

5. O que foi a estratégia democrático-popular?

 

A estratégia democrática e popularformulada pelo PT na segunda metade dos anos 1980 tinha três pressupostosfundamentais: a burguesia como inimiga estratégica, a realização das tarefas democráticas nos marcos de uma transição socialista, a disputaeleitoral por governos como parte da luta revolucionária pelo poder.Posteriormente, sem nunca abandonar formal e oficialmente a estratégia democrático-popular articulada com o socialismo, setores crescentes do PT foram aderindo a outros pressupostos: a aliança estratégica com parte da burguesia, as tarefas democráticas como uma etapa distinta da socialista, a disputa eleitoral como sendo a luta pelo poder.


6. Como e em quais condições a estratégia democrático-popular foi elaborada?

Aformulações do quinto encontronacional do PT (1987) foram elaboradas através do método confuso típico de um partido de massas e com tendências internas.Numa reunião da tendência Articulaçãouma comissão produziu um primeiro rascunho, depois submetido a crítica e reformulado, levado ao encontro nacional do PT e lárecebendo emendas, para finalmente ser interpretado e reinterpretado de diferentes maneiras. Mas a estratégia não é apenas uma formulação, é também uma conduta prática. E é nesse terreno que se deram asbatalhas mais importantesao longo dos anos 1980 e ao longo dos anos 1990: do lado do capitalismo, a vitória do neoliberalismo, do imperialismo, do agronegócio e do setor financeiro; do lado da classe trabalhadora, várias derrotas políticas e materiais,combinadas ao crescente predomínio do eleitoralismo, dsocial-liberalismo e do velho jeito de fazer sindicalismo.


7. Em qual medida a estratégia democrático-popular foi realizada nos 13 anos do PT na Presidência da República?

Em nenhuma medida. A estratégia predominante no PT, desde 1995 e principalmente a partir de 2002deixou de ser a estratégia democrático-popular articulada ao socialismo aprovada no quinto encontro nacional do PT.Embora várias resoluções continuassem falando de estratégia democrático-popular, tanto o conteúdo quanto a prática caminharam noutro sentido.


8. Nos 13 anos que o PT esteve à frente do governo, implementando o programa democrático-popular na sua prática de reformismo fraco, existiram alguns avanços? Quais foram? Quais foram os limites?

 

O programa implementado notrezeanos de governo não foi o programademocrático popular anti-latifundiário, anti-monopolista e anti-imperialistaE as reformas realizadas não foramestruturais, ou seja, não alteraram dmaneira profunda distribuição da propriedade, da riqueza e do poder. Prova disto, aliás, foi o golpe de 2016 e a rapidez com que o governo Temer e depois Bolsonaro implementaram suas políticas de ponte para o passado. Agora, apesar de não ter sidoimplementado o programa democrático-popular, houve avanços em favor da classe trabalhadora em diversos terrenos, embora limitados pelo fato de que o neoliberalismo continuava hegemônico ou, dito em outras palavras, o capital financeiro, o agronegócio, a mineração e as transnacionais continuavam determinando as variáveis fundamentais da sociedade brasileira.O principal limite, vale dizer, foi político: os governos de 2003 a 2016 nem ao menos tentaram desmontar os instrumentos de poder da classe dominante.


9. Em qual medida o PT repetiu os erros da estratégia democrático-nacional?

 

Do ponto de vista teóricopodemos dizer que a posição hegemônica no PT desde 1995 até 2022 adaptou progressivamente, aos tempos modernos, a estratégia proposta pela Declaração de Março de 1958. Mas há um limite neste tipo de comparação: são épocas históricas e organizações muito diferentes. Por exemplo: no papel a luta pelo socialismo era mais enfatizada em 1958 do que nas resoluções do PT, especialmente depois de 2002. Mas nada mais normal do que o radicalismo de uma organização minoritária. Já PT teve e segue tendo muito mais força do que o PC tevePortanto, a comparação pode ser feita, mas exige ponderação. Por outro lado, o PT teve a oportunidade de testar na prática a estragia e comprovar seus limites, coisa que o PC não teveexperiencia dos governosLula e Dilma demonstrou até onde vai disposição reformista e compromisso democrático do grandeempresariado, dos meios de comunicação, das igrejas conservadoras, dos setores médios, dos militares e do imperialismo.


10. A estratégia democrático-popular deve ser reelaborada ou superada?

 

A estratégia democrática e popular articulada ao socialismo, tal como formulada na segunda metade dos anos 1980 pelo PT, precisa ser retomada em suas premissas. O retrocesso vivido pelo Brasil nos empurrou de volta a problemas típicos dos anos 20 do século XX. Porexemplo: o Brasil precisa de reindustrialização. Isso exigirá algum tipo de capitalismo. Mas dada a posição da classe dominante brasileira e dada a posição do imperialismo, estetipo de desenvolvimento capitalista exigirá  caso se queira fazer reindustrialização junto com ampliaçãodas liberdades, do bem-estar e da soberania - um governo de orientação socialista. Esta lógica  realizar as tarefas democráticas nos marcos de uma transição socialista  é o núcleo da estratégia democrática e popular. E esta lógica segue atual.


11. Num eventual governo Lula, é possível avançar num reformismo forte? Qual será o papel dos socialistas: repetir a tática de ocupar espaços institucionais ou investir na disputa do governo nas lutas de massa, na rua?

 

Nãdevemos subestimar o cavernícola: a extrema direita pode ganhar as eleições, assim como pode tentar um golpe antes ou depois do processo. Por outro lado, está em curso uma crise mundial cujas implicações podem subverter todos os planos. E, finalmente, há uma crise profunda no capitalismo brasileiro, como havia  guardadas as proporções  nos anos 1920. Tudo issconduz àseguinte conclusão: não está dado que será o governo Lula. O que está dado é o seguinte: para um eventual governo Lula contribuir para a conquista dos objetivos imediatos e históricos da classe trabalhadora, esta classe precisa se movimentar em todos os terrenos, nas chamadas instituições, nas lutas sociais e políticas de massa, na batalha cultural. Portanto, a tática da esquerda anticapitalista deve lançar mão de todas as formas de luta, sabendo que nossa força reside na presença capilarizada junto a classe trabalhadora, nas empresas, nos locais de moradia, de estudo e de lazer. E a esquerda anticapitalista precisa compreender, ademais, que no atual período histórico o êxito da luta pelo socialismo passa pelo PT, precisa incluir o PT. Não haverá êxito sem o PT, não haverá êxito contra o PT. Se houver êxito, será com o PT.


12. O socialismo ainda é uma alternativa concreta para a humanidade?

 

O mundo atual enfrenta problemas imensos, impossíveis de serem resolvidos  ao menos, em favor das maiorias  nos marcos do capitalismo.É isso que torna a transição socialista em direção ao comunismo uma necessidade. Se essa necessidade vai ou não se materializar, se vai ou não virar uma alternativa concreta, depende da luta de classes e da luta entre os Estados. Do seu jeito e com suas contradições, os chineses estão fazendo a sua parte. Precisamos fazer a nossa.