quarta-feira, 9 de maio de 2018

Marx e Zizek


Lavra Palavra publicou, no dia 2 de maio de 2018, um interessante texto de Slavoj Zizek sobre Marx.

Intitulado “Marx hoje: o fim está próximo… apenas não da forma que imaginávamos”, o texto foi publicado originalmente por Philosophical Salon e traduzido para o português por Daniel Alves Teixeira.

Segue o endereço onde o texto pode ser lido:

Comecemos pelo final, quando Zizek fala da “relevância da crítica de Marx à economia política em nossa era do capitalismo global”.

Segundo Zizek, a “crítica de Marx à economia política” e “seus contornos da dinâmica capitalista” são “totalmente atuais”.

Mais ainda: “é apenas hoje, com o capitalismo global, que, em termos hegelianos, a realidade chegou ao seu conceito”.

Entretanto, “neste exato momento de plena atualidade a limitação tem que aparecer, o momento do triunfo é o da derrota. Depois de superar os obstáculos externos, a nova ameaça vem de dentro, sinalizando inconsistências imanentes. Quando a realidade alcança plenamente seu conceito, esse conceito em si precisa ser transformado”.

Como literatura é ótimo, mas a conclusão é a seguinte: “a solução marxista clássica fracassou, mas o problema permanece”.

E segue: “o comunismo não é hoje o nome de uma solução, mas o nome de um problema, o problema dos comuns em todas as suas dimensões – os comuns da natureza como a substância de nossa vida, o problema de nossos comuns biogenéticos, o problema de nossos bens culturais ("propriedade intelectual") e, por último mas não menos importante, os comuns como o espaço universal da humanidade do qual ninguém deve ser excluído. Qualquer que seja a solução, ela terá que lidar com esses problemas”.

Até aí, já chegaram as Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia, que agora se chama Força Alternativa Revolucionária do Comum.

A questão, portanto, é entender o que ele quer dizer com a frase: “a solução marxista clássica fracassou, mas o problema permanece”. A resposta está no início do artigo.

Zizek, baseado em Cohen, enumera as seguintes “características da noção marxista clássica da classe trabalhadora”:

1) ela constitui a maioria da sociedade;
2) ela produz a riqueza da sociedade;
3) ela consiste nos membros explorados da sociedade;
4) seus membros são as pessoas necessitadas na sociedade.

Combinadas, estas características resultariam (diz ele) em duas outras afirmativas:

5) a classe trabalhadora não tem nada a perder com uma revolução;
6) ela pode e vai se envolver em uma transformação revolucionária da sociedade.

Mas, segundo Zizek, “nenhuma das quatro primeiras se aplica à classe trabalhadora de hoje”; por isso, as duas últimas características não poderiam ser geradas.

Feita a ressalva de algum erro de tradução, Zizek está errado. Aliás, ele intui isto, pois logo em seguida afirma que “mesmo que algumas das características continuem a se aplicar a partes da sociedade de hoje, elas não estão mais unidas em um único agente: as pessoas necessitadas na sociedade não são mais os trabalhadores, etc.”.

Para economizar, vamos admitir que os seis itens acima sejam mesmo a enumeração das “características da noção marxista clássica da classe trabalhadora”.

A classe trabalhadora constitui a maioria da sociedade?
De que sociedade estamos falando? Vamos pressupor que estamos falando da humanidade como um todo, neste ano santo de 2018.

De que maioria estamos falando? Relativa ou absoluta? Se estamos discutindo se é válido hoje o que Marx dizia em 1848 ou em 1883, então a lógica indica que estamos falando de maioria relativa.

E do que estamos falando, quando falamos de classe trabalhadora
Seguro que estamos falando daquelas pessoas que vendem a sua força de trabalho em troca de um salário. Mas não apenas dos que estão na ativa, mas também dos aposentados que vivem de suas pensões ou do salário de seus familiares. E também dos filhos e filhas que vivem do salário de seus parentes.

Pois bem: quem é a maioria relativa da humanidade, hoje? Certamente não é composta por capitalistas, por pessoas que vivem da riqueza extraída dos produtores. Será então que a maioria é composta por pequenos proprietários? É muito provável que fosse, antes do crescimento explosivo da China. Mas hoje, de quem é a maioria relativa?

Vamos supor, novamente para economizar, que houvesse no mundo um número igual de trabalhadores pequenos proprietários e de trabalhadores assalariados. Pergunto: observado historicamente, tomando como ponto de partida 1818 e como ponto de chegada 2018: quem cresceu?

A classe trabalhadora produz a riqueza da sociedade?
Já definimos antes “classe trabalhadora” e “sociedade”. E “riqueza”? Como estamos falando, ao menos supostamente, do “pensamento marxista clássico”, então por riqueza devemos entender a totalidade das mercadorias cujos valores de uso atendem ao estômago e/ou a fantasia.

No tempo de Marx, parte muito importante da riqueza da scociedade humana não era produzida por trabalhadores assalariados, mas sim por camponeses, artesãos pequeno proprietários e pelo trabalho comunitário.

Portanto, novamente por razões de simetria lógica, a definição só pode ser a seguinte: “a classe trabalhadora assalariada produz a maior parte e/ou a parte mais importante da riqueza da sociedade”?

E a resposta é ainda mais clara do que a anterior: a maior parte da riqueza da sociedade humana atual é produto do trabalho de assalariados.

A classe trabalhadora consiste nos membros explorados da sociedade?
Já definimos classe trabalhadora e sociedade. Qual a definição de “explorados”? Novamente, se estamos falando de algo que corresponda à definição clássica do marxismo, então estamos falando de uma relação social entre os que trabalham/produzem e os que vivem do trabalho/produção dos outros.

Não estamos falando de opressão. E também não estamos falando que a exploração do trabalho assalariado seja a única forma de exploração. Nos tempos de Marx, o trabalho pequeno proprietário e o escravo e o servo eram igualmente explorados. Portanto, por analogia lógica, a afirmação segue válida se ainda hoje os trabalhadores sejam explorados, ainda que não sejam os únicos explorados.

Novamente a resposta é: a classe trabalhadora faz parte dos membros explorados da sociedade.

Os membros da classe trabalhadora são as pessoas necessitadas na sociedade?
O que são “as pessoas necessitadas”? Necessitadas do quê?

Novamente, nosso ponto de partida é aceitar sem discutir que esta definição corresponda ao que Marx dizia em sua época. Pois bem, já naquela época a classe trabalhadora não era homogênea, nem permaneceu imutável, inclusive porque os socialistas e comunistas não se limitaram a interpretar, mas lutaram por mudar o mundo.

Noutras palavras: a classe trabalhadora realmente existente incluiu, em percentuais diferenciados em cada época ou região, do pauperismo lumpen até a “aristrocracia proletária”. E ainda hoje é assim. Com um detalhe fundamental: o característico, o mais frequente, o mais universal ao longo da história do capitalismo não é a aristocracia operária. E, nos tempos que vivemos, certamente não é.

A classe trabalhadora não tem nada a perder com uma revolução?

Lembremos: esta afirmação seria parte do pensamento marxista clássico. Portanto, ela não pode ser tomada ao pé da letra. A classe trabalhadora, numa revolução, perde parte de seus filhos e filhas, mortos em combate. Portanto, quando se fala em “nada a perder”, o que se quer dizer é que a classe (não cada indíviduo singular que a compõe) não tem nada a perder, ou seja, não vai perder a sua posição social. Pois não tem como “cair mais”, uma vez que já é a classe explorada.

Neste sentido, há alguma dúvida que a afirmação segue válida? Aliás, se observarmos tudo o que ocorreu de 1818 até hoje, a conclusão é: onde houve revolução, por mais tragédias que tenha havido, a classe trabalhadora manteve ou ampliou suas posição social.

A classe trabalhadora pode e vai se envolver em uma transformação revolucionária da sociedade?
Nos tempos de Marx, isto certamente foi verdade. Mas também naqueles tempos, não era verdade para todos e cada um dos integrantes singulares da classe trabalhadora, nem em cada país, nem em escala mundial. E, se de novo observarmos o que se passou entre 1818 e 2018, não houve uma única transformação revolucionária que não tenha “envolvido” a classe trabalhadora.

Portanto, Zizek não está correto quando diz que “nenhuma das quatro primeiras se aplica à classe trabalhadora de hoje”; também não está correto quando diz que as “duas últimas características não poderiam ser geradas”.

Qual a origem do erro? Uma interpretação equivocada acerca da relação entre a capacidade de sobrevivência do capitalismo e a capacidade de luta da classe trabalhadora. Que o capitalismo tenha conseguido sobreviver, que a classe trabalhadora não tenha conseguido triunfar, não decorre que a classe trabalhadora não seja capaz disso por razões estruturais, genéticas.

O capitalismo
Zizek diz que “o impasse histórico do marxismo reside não apenas no fato de que ele contava com a perspectiva da crise final do capitalismo, e portanto não conseguiu compreender como o capitalismo saiu de cada crise fortalecido”.

O debate sobre o capitalismo, sua crise e sua “crise final” é para lá de complexo, existindo tantas posições diferentes defendidas por pessoas que se reclamavam do marxismo, que é um abuso falar de “marxismo” no singular.

Ademais, se pesquisarmos a literatura sobre a história do capitalismo e de suas crises, vamos encontrar diversas explicações  feitas por marxistas, que buscaram compreender porque o capitalismo segue existindo, neste ano santo de 2018. Zizek pode não concordar com nenhuma destas explicações, é direito dele, mas é outro abuso dizer que nenhum dos “marxismos realmente existentes” foi capaz de “compreender” por quais motivos o capitalismo segue existindo. E fortalecido!

Mas o maior abuso está na afirmação inicial, acerca do “impasse histórico” do marxismo. Explico: se compreendermos por marxismo a tradição inaugurada por Marx e Engels, então temos que lembrar que esta tradição não se propunha apenas a interpretar, mas também a transformar o mundo, especificamente no sentido de acabar com capitalismo e construir o comunismo.

Assim, se as palavras fazem algum sentido, e se a tradução é fiel ao autor, só faria sentido falar de“impasse histórico” se as afirmações fundamentais feitas por Marx, Engels e seguidores acerca do capitalismo estivessem globalmente equivocadas.

E quais são estas afirmações fundamentais? O “segredo” do capitalismo, sua dinâmica da acumulação, sua tendência à superação por outro modo de produção.

Nenhuma destas afirmações está equivocada. Aliás, é o próprio Zizek, citando Streeck, quem confirma indiretamente isto. E, se quisermos ir mais longe, já em 1848 a famosa nota de rodapé do Manifesto Comunista admitia a possibilidade de destruição das classes em luta, possibilidade que deu no famoso slogan difundido por  Rosa Luxemburgo: “socialismo ou barbárie”.

Assim, a questão é, novamente citando Streeck: estamos em meio a um “processo prolongado de decadência e desintegração”. Existirá ou não um “agente para dar a esta decadência uma reviravolta positiva e transformá-la em uma passagem para algum nível superior de organização social”?

Esta questão não deve ser descrita como um impasse histórico, mas sim como a missão histórica daqueles que se pretendem orientados pelo marxismo. E, vale repetir, a possibilidade de que ao final dê tudo errado não é alheia ao marxismo.

Uma crítica vintage
Zizek diz que “a visão de Marx era a de uma sociedade gradualmente se aproximando de sua crise final, uma situação na qual a complexidade da vida social é simplificada em um grande antagonismo entre capitalistas e a maioria proletária. No entanto, mesmo uma rápida olhada nas revoluções comunistas do século XX deixa claro que essa simplificação nunca ocorreu”.

Vamos admitir, novamente por economia, que Marx fosse mesmo autor e tomasse ao pé da letra, como fenômeno histórico e político, não como descrição genérica de uma tendência de longo prazo, a ideia da “simplificação”.

Pergunto: quem melhor demonstrou que esta simplificação “nunca ocorreu” foram as “revoluções comunistas do século XX”?

A resposta é: não. Zizek confunde aqui dois processos diferentes.

A expansão capitalista sempre gera polarização. Esta polarização tende a ser mais aguda na periferia do que no centro. Quanto mais próximo da periferia, maior a possibilidade da polarização se converter numa ruptura, por dois motivos: classe dominante com maiores dificuldades para dominar, classes dominadas com mais motivos para lutar. Quando mais próximo do centro, menor a possibilidade da polarização se converter numa ruptura. Neste caso, também por dois motivos: classe dominante com maiores meios para dominar, classes dominadas com menos motivos para lutar.

Portanto, o “grande antagonismo entre capitalistas e a maioria proletária” é uma simplificação de uma tendência realmente existente. Com um detalhe interessante: em alguns momentos da história, este antagonismo se torna grande inclusive no centro.

Vejamos agora o segundo assunto: as “revoluções comunistas do século XX”. 

Vou dar de barato que por “revoluções comunistas” se pretende designar revoluções dirigidas por comunistas. Estas revoluções foram um combinado de pelo menos duas do que segue: revoluções dos trabalhadores assalariados contra a dominação do capital, revoluções camponesas ou burguesas tardias contra o feudalismo, revoluções nacionais contra o imperialismo.

Por exemplo: a Revolução de Outubro. Zizek erra quando fala que ela "explicitamente tratou os camponeses como aliados secundários”. Pelo contrário: a tradição bolchevique é toda construída a partir do debate contra os populistas, e este debate girava ao redor da questão agrária e do papel do campesinato. Nesta questão, mencheviques e bolcheviques tinham opiniões muito diferentes. Exemplo disso é que na discussão sobre a revolução de 1905, Lenin defendia uma ditadura democrático revolucionária do campesinato e do operariado. Depois, a aliança operário-camponesa seria uma das grandes novidades de 1917, contrastando com a tradição obreirista da social-democracia alemã. Aqui Zizek talvez quisesse criticar o que ocorreu no final dos anos 1920, não da Revolução de Outubro de 1917.

Mas nem toda revolução do século XX foi dirigida por comunistas. Cito, por exemplo, a mexicana e a iraniana. Mas as que mudaram mais profundamente o século XX foram dirigidas por comunistas. Dizer que estes foram “parasitas” é, para além de uma besteira retórica, uma incompreensão profunda.

Pois a questão é: o fato de que uma minoria tenha conseguido se converter em vanguarda de amplas maiorias revela não que este minoria foi oportunista; mas sim que a “pauta” desta minoria tinha aderência real. Dito de duas outras formas: a) as revoluções burguesas tardias empurram o campesinato e as massas pobres urbanas para um radicalismo igualitarismo que transborda inclusive seus interesses de pequenos proprietários; b) em certas circunstâncias históricas, para derrotar o feudalismo e o imperialismo, é preciso derrotar também o capital.

Claro, a tese de que os comunistas foram parasitas que se aproveitaram de circunstâncias excepcionais ajuda a fortalecer uma certa narrativa. Mas ela é duplamente equivocada, pois as guerras nunca foram “excepcionais” no capitalismo do século XX.

Portanto, não é apenas o "problema" do comum que permanece. 

(sem revisão)

Mangabeira Unger, o PT e as eleições 2018


Às vezes acho que o Partido dos Trabalhadores está atravessando um “corredor polonês”.

De um lado, berram: “quadrilha, quadrilha, quadrilha”!!!

Do outro lado, berram: “desiste, desiste, desiste”!!!

Um dos que assumiu essa função é Mangabeira Unger, em entrevista concedida no dia 7 e publicada no dia 9 de maio jornal Folha de S. Paulo.


Um alerta: comentar entrevistas é sempre um risco. Afinal, nem sempre os editores são fiéis ao dito. E há que considerar a possibilidade de desmentidos e correções posteriores. Assim, fica aqui o alerta: o que vou dizer a seguir baseia-se no que foi publicado e pressupõe que a edição da entrevista tenha sido fiel ao entrevistado.

Mangabeira neste momento está apoiando a candidatura de Ciro Gomes. E vai direto ao ponto: “há um problema concreto: um partido dentro da chamada esquerda ou centro-esquerda se acostumou a uma condição hegemônica e a tratar os outros como satélites. Seria o cúmulo da irresponsabilidade política que esse partido não apoiasse alternativa com maior potencial de chegar ao poder”.

Neste raciocínio há três frases muito curiosas: “o PT se acostumou”, “maior potencial de chegar ao poder” e “um problema concreto”.

Não há espaço aqui para falar da história do PT. Assim, passo direto ao resumo: o PT não se “acostumou”, o PT conquistou com muita luta a condição de principal partido de esquerda do Brasil, em termos de votos, presença institucional e principalmente apoio social.

Claro: isto não dá ao Partido dos Trabalhadores monopólio de absolutamente nada. E, sem dúvida, a relação do PT com seus aliados nunca foi uma maravilha. Mas atenção: onde, em que época, em que lugar do mundo, a relação entre partidos aliados foi ou é tranquila, harmônica, sem conflitos? Por exemplo, como são as coisas naqueles estados e naquelas cidades onde os “outros” – para usar o termo de Mangabeira -- mantém a mesma “condição hegemônica” que o PT conquistou em âmbito nacional??

Na verdade, a atitude do PT frente a seus aliados pode ser melhor ou pior, mas não é um ponto fora da curva.

Portanto, a crítica de Mangabeira é na verdade pura retórica: cobra do PT virtudes muito elevadas, não as encontra, então aponta o dedo acusador e lança suas “críticas de efeito moral”.

A expectativa é que, submetidos ao bombardeio, tomados de sentimento de culpa e atordoamento, alguns petistas aceitem como se fossem verdadeiras frases do tipo: “seria o cúmulo da irresponsabilidade política que esse partido não apoiasse alternativa com maior potencial de chegar ao poder”.

Passemos então à segunda frase: Ciro tem mesmo “maior potencial de chegar ao poder”?

(Registro: neste país onde a classe dominante nunca teve seu poder ameaçado, há quem fale de governo como se fosse igual a poder.)

A pergunta óbvia é: maior potencial em relação a quem?

Até o momento, Lula lidera todas as pesquisas. Por sua vez, a preferência popular pelo Partido dos Trabalhadores é algumas vezes superior a dos demais partidos.

Não é obviamente o que eu defendo, mas apenas para facilitar a discussão, vamos supor que o PT cometesse a, digamos, estultice de desistir de Lula.

Vamos imaginar, também, que o PT resolvesse não tirar todas as decorrências da afirmação “eleição sem Lula é fraude”.

Consideradas todas estas hipóteses, ainda assim caberia perguntar: por qual motivo a única, a principal ou a melhor alternativa do PT seria apoiar Ciro?

A Folha perguntou isto a Mangabeira: “O PT tem chance de chegar ao poder se não fizer uma aliança com Ciro?”

A resposta publicada foi: “Não vejo no quadro atual”.

Claro, nem a força de Lula, nem a força do PT, garantem vitória, nem mesmo asseguram um bom desempenho, especialmente numa “eleição” em tempos de golpe.

Mas para usar as palavras de Mangabeira, levando em conta as pesquisas atuais e a trajetória histórica, seria “o cúmulo da irresponsabilidade política” que o PT não considerasse outras alternativas.

Isto nos remete a terceira frase muito curiosa de Mangabeira: “um problema concreto”.

Os apoiadores de Ciro acham que seu “problema concreto” são os outros. Se ele não superou até agora determinado patamar de votos, seu “problema concreto”, segundo Mangabeira, seria o PT, incapaz de perceber que estamos diante do último biscoito do pacote.

Antes que reclamem, a frase é de Mangabeira: “a candidatura do Ciro é de longe a nossa melhor, senão a nossa única opção”.

Com o perdão da brincadeira: “nossa” quem, cara pálida?

Mangabeira quer “realismo político” e cobra que “nossos aliados compreendam a sua responsabilidade histórica”.

Perfeito: sejamos realistas.

O quadro das eleições 2018 ainda está embaralhado. Até agora os golpistas não se puseram de acordo, e não se puseram de acordo entre outros motivos porque nenhuma de suas candidaturas emplacou. Do outro lado, Lula lidera todas as pesquisas.

Para resolver isso, não basta unificar a direita. Não basta nem mesmo prender Lula. É preciso também “convencer” o povo de que Lula não será candidato. E este “convencimento” precisa ser feito já, não em agosto-setembro. Pois os golpistas sabem que tirar Lula da disputa presidencial neste momento pode ser tarde demais para eles. Entre outros motivos porque, na reta final, a chance de transferência de votos seria maior do que hoje.

Sendo assim, como não desejam cancelar as eleições e como não admitem a hipótese de perder, a alternativa dos golpistas é fraudar desde já, com muita antecedência: por isso é preciso, por exemplo, tirar Lula das pesquisas, é preciso tirar Lula das sabatinas, é preciso tirar da mídia o movimento pela liberdade de Lula e pelo direito dele ser candidato.

É nesse contexto que deve ser vista a “responsabilidade histórica” de declarações como as de Mangabeira, bem como de algumas lideranças e governadores que se opuseram e lutam contra o golpe.

Falar em desistir de Lula, objetivamente, apenas ajuda na movimentação da direita.

Além disso, mesmo do ponto de vista dos que defendem um plano B, é um erro imenso apostar as fichas numa operação precoce de “transferência de votos”.

Como já disse antes, não é minha posição, mas imaginemos, só por hipótese, que Lula ou o PT indicassem neste momento um “plano B”, meses antes daquele momento em que a maior parte da população analisa as alternativas e decide seu voto.

O resultado prático seria duplo: por um lado, reduziria as chances de uma transferência de apoio no momento mais adequado; por outro lado, transformaria o tal nome alternativo em alvo de todas as baterias da direita.

Ciro (e Mangabeira) sabem disso? Suponho que sim.

Mas então por qual motivo tanta pressão sobre o PT, para que desista de Lula e apoie Ciro neste momento?

Medo de que o PT vá com Lula até o final?

Medo de que o PT aposte num “plano B” petista?

Medo de que a transferência de votos exija muito tempo?

Nenhuma das alternativas anteriores. O problema, na minha opinião, é que Ciro acredita que a solução para a crise política passa pela eleição de um presidente de centro. Tipo: nem Lula, nem Bolsonaro, nem radicalismo de esquerda nem de direita.

Por isto ele precisa deixar muito claro que não será candidato de Lula, nem do PT, nem da esquerda.

Acontece que, para ser eleito, Ciro precisa chegar ao segundo turno. E para isto precisa de um pouco mais de votos. Ele poderia buscar estes votos no eleitorado de direita e/ou de centro, mas o mercado ali está muito competitivo.

Ele poderia, também, buscar votos de pessoas que hoje continuam apoiando Lula e o PT. Mas para conseguir estes votos, ele precisa dizer que Lula e o PT não tem outra alternativa. Esta argumentação gera antipatias dentro do eleitorado petista e lulista. Mas neste momento ele não precisa de todos os votos, só do suficiente para ir ao segundo turno. Pois acredita que, no segundo turno, contra uma candidatura vinda do campo golpista, ele seria escolhido por exclusão.

Para usar uma expressão antiga, Ciro acredita que no segundo turno o PT faria como Brizola em 1989: engoliria o sapo barbudo.

Não é uma tática eleitoral absurda. Afinal, se a eleição for muito pulverizada, uma candidatura com poucos votos no primeiro turno pode mesmo ir ao segundo turno.

Mas é uma tática eleitoral no mínimo arriscada. Afinal, outras candidaturas farão movimento similar. Inclusive candidaturas golpistas tentarão vestir a mesma fantasia de equilíbrio. É por isso que, paradoxalmente, apesar do meio-ambiente político estar radicalizado e polarizado, tudo indica que vai ocorrer um congestionamento de candidaturas que se apresentam como de centro. Aliás, mais uma de várias semelhanças desta eleição de 2018 com a de 1989.

Portanto, a opção de Ciro por bater no PT e demarcar com Lula não é um erro. É uma aposta. Erram os petistas que não percebem isto. E erram mais ainda os que esquecem que o principal problema da candidatura de Ciro não é tático ou eleitoral, é estratégico e programático.

Mangabeira, do jeito que lhe é típico, diz que “as particularidades do Ciro podem ser agora úteis ao país” e que “a elite jurídica (...) tem um papel que é desestabilizar os acertos oligárquicos e abrir espaço para a energia cívica”.

E a serviço do que essa “energia cívica” seria utilizada? Não será, como a entrevista de Mangabeira deixa claro, em favor da revogação das medidas golpistas, nem de um programa democrático popular, não será nem mesmo em favor de uma “pacificação” em favor do “andar de baixo”.

Por isto tudo, Lula faz muito bem em continuar candidatíssimo.  E o PT faz muito bem em deixar claro que não existe nenhuma outra alternativa real para a crise política nacional, uma alternativa que beneficie a maioria do povo, que não passe por eleições livres, Lula candidato e Lula presidente. O resto é fake news.

Segue a entrevista, transcrita pela análise de mídia da Fundação Perseu Abramo:
”Conselheiro de Ciro, Mangabeira Unger cobra apoio da esquerda” - Considerado o guru de Ciro Gomes, o filósofo Roberto Mangabeira Unger não vislumbra no cenário atual a chance de o PT participar da coalizão vencedora caso não apoie o PDT. Em entrevista na segunda (7), ele afirmou que o pré-candidato não servirá de "instrumento do PT" e disse acreditar que, mesmo com a atual resistência dos petistas, a sigla deve chegar a um momento de "realismo político".
·  Folha - A esquerda passa por um forte desgaste de imagem. Por que ela seria eleita neste ano?
·  Roberto Mangabeira  Unger -  A candidatura de Ciro não deve ser apenas projeto de centro-esquerda. Deve ser um projeto que se ofereça como veículo político ao agente social mais importante do país, que chamamos de emergentes.
·  Mas a fragmentação da esquerda não inviabiliza seu retorno ao poder?
·  Há um problema concreto: um partido dentro da chamada esquerda ou centro-esquerda se acostumou a uma condição hegemônica e a tratar os outros como satélites. Seria o cúmulo da irresponsabilidade política que esse partido não apoiasse alternativa com maior potencial de chegar ao poder.
·  O PT tem chance de chegar ao poder se não fizer uma aliança com Ciro?
·  Não vejo no quadro atual. Agora, a candidatura do Ciro é de longe a nossa melhor, senão a nossa única opção. Ciro jamais será instrumento do PT. É agente de um projeto transformador que as forças comprometidas com um produtivismo inclusivo têm a responsabilidade histórica de apoiar.
·  Mas o próprio Ciro afirmou que as chances de o PT ser vice dele são próximas a zero. Ele não tem contribuído com a desagregação?
·  Eu não sou tão pessimista quanto o Ciro a esse respeito. Eu acho que não só deve, mas pode chegar o momento do realismo político, em que nossos aliados compreendam a sua responsabilidade histórica.
·  O senhor disse no passado que considera Ciro uma espécie de "outsider". Como ele pode sê-lo se tem origem em uma das principais oligarquias do Ceará?
·  Eu não usaria "outsider". Não tem essa de se fantasiar de "outsider" ou "insider". As particularidades do Ciro podem ser agora úteis ao país.
·  A defesa de Lula diz que o petista é vítima de "lawfare", ou seja, uso ilegítimo de recursos jurídicos. O conceito se aplica a ele?
·  A condenação me parece injusta, baseada em um conjunto frágil de provas indiciárias. A elite jurídica não pode assumir a condução do país. Ela tem um papel que é desestabilizar os acertos oligárquicos e abrir espaço para a energia cívica.
·  O teto dos gastos aprovado pelo Congresso Nacional precisa ser alterado?
·  O teto como construído é uma camisa de força para substituir a base real do realismo fiscal. Quiseram impor o sacrifício sem as oportunidades. Devemos ter regras de contenção fiscal, mas não devem ser genéricas que não distingam entre o que é estratégico e o que não é e o que é custeio e o que é investimento.
·  Ciro deve manter ou revogar a reforma trabalhista?
·  A reforma nos moldes em que foi adotada é um exemplo clássico da erosão dos direitos do trabalho. É inaceitável defender os interesses da minoria organizada contra os interesses da maioria desorganizada e usar o imperativo da flexibilidade como pretexto para jogar a maioria na precarização.
·  Há no PDT a defesa que Ciro seja domesticado para o mercado financeiro. Ele é domesticável?
·  Jamais, a meu ver, será.
·  A carga tributária deve ser elevada?
·  Com completa honestidade intelectual, entendo que o Brasil terá de manter alta carga tributária, combinando tributos progressivos, como a tributação de lucros e dividendos, com tributação neutra e indireta do consumo. Quem diz que nós podemos reduzir a carga tributária de forma compatível com o realismo fiscal está mentindo.