Está causando interesse, pelo menos em alguns meios petistas, a entrevista concedida ao Intercept pelo deputado federal Jilmar Tatto, secretário nacional de comunicação do PT, acerca dos resultados eleitorais de 2024.
A entrevista pode ser lida aqui: Jilmar Tatto quer PT ao centro e revela estratégia na periferia: ‘Emenda dá voto'
O Intercept deu o seguinte título para a entrevista: “Estratégia Tatto”.
Por razões óbvias, me lembrei de um texto escrito por Valério Arcary (A estratégia Boulos - Esquerda Online), texto que repliquei aqui: Valter Pomar: A estratégia Boulos: uma réplica?
Antes de comentar a entrevista de Tatto, explico que conheci o Jilmar em 1987, no Instituto Cajamar. Em 2005, se a memória não me trai, Tatto e eu apoiamos a mesma candidatura à presidência nacional do Partido. E fizemos o mesmo no segundo turno de 2007.
Naquela época, o pessoal agrupado em torno da tendência “Construindo um novo Brasil” (CNB) criticava muito Tatto. Hoje, Tatto se converteu em um dos principais dirigentes da CNB e, também, numa das pessoas mais influentes na atual executiva nacional do Partido.
Vencidas estas preliminares, vamos à entrevista.
Nela, Tatto aborda três questões: a campanha Boulos, nossa política nacional e a presença do PT na periferia. Vou começar pela primeira questão.
Não sou um entusiasta do Boulos, nunca fui, por razões que só Stanislavski explica. Tampouco sinto simpatia pelo PSOL, seja pelo velho, seja pelo atual. E, falando hipoteticamente, preferia que tivéssemos lançado uma candidatura petista à prefeitura.
Mas isso não ocorreu, antes de mais nada, porque em 2020 Fernando Haddad não quis ser candidato à prefeitura, baseado principalmente (na minha interpretação dos fatos) em um cálculo incorreto acerca das chances de Lula disputar a presidência em 2022. Sem Lula, Haddad seria novamente candidato à presidência, tornando (na opinião de quem pensa assim) a disputa de 2020 um risco desnecessário.
Sem Haddad no páreo, o PT escolheu Jilmar Tatto para disputar a prefeitura em 2020. Mas a escolha ocorreu da pior maneira possível: através de um colégio eleitoral, sem prévias. Principal responsável por isso? Jilmar Tatto.
Esse ponto de partida, mais as restrições que parte do PT da capital tinha (e segue tendo) contra Tatto, serviu de pretexto para que muitas lideranças partidárias aderissem à campanha de Boulos já no primeiro turno.
Mais detalhes sobre isto podem ser lidos aqui: Valter Pomar: O PT vai dar Boulos?
Para não falar de outras pessoas, cito aqui: Lula está muito errado. Por Válter Pomar
O resultado foi o que sabemos. Tatto teve, no primeiro turno de 2020, 8,65% dos votos válidos. Na eleição anterior, também no primeiro turno, Haddad teve 16,70% dos votos válidos. E na eleição de 2012, o mesmo Haddad teve no primeiro turno 28,98% dos votos válidos.
O que veio depois de 2020, também sabemos: em 2022 Boulos e o PSOL aderiram desde o início à candidatura Lula presidente e receberam a promessa, tanto de Lula quanto de Gleisi, de que Boulos teria o apoio do PT à sua candidatura à prefeito de São Paulo em 2024. Como método, um horror. Mas este método não caiu do céu: Tatto deu sua contribuição na criação do contexto que levou boa parte do PT paulistano a ver Boulos como a melhor alternativa disponível.
O PT era obrigado a apoiar o Boulos? Claro que não. Poderíamos ter tido outra candidatura? Claro que sim. Teríamos tido um desempenho igual ou melhor ao obtido por Boulos? Não sei, nunca saberemos.
O que tenho certeza é que a campanha Boulos, para além de seus méritos, também cometeu erros. É o que eu deduzo do seguinte: apesar de contar com o apoio do PT desde o início, apesar de ter Marta-a-ampla como vice, apesar de ter um volume de recursos maior do que o disponível há quatro anos, apesar de ser mais conhecido que antes, Boulos terminou a campanha de 2024 com o mesmo percentual de votos válidos obtido no segundo turno de 2020.
Tatto acha que a campanha de Boulos cometeu erros? Suponho que sim. Mas ao ler a entrevista, o que ele destaca não são os erros, mas a tática supostamente inadequada ao contexto. De um lado, estaria Nunes, um candidato à reeleição com muito dinheiro. De outro lado, um eleitorado que estaria “indo pro centro e pra direita”. Apesar desse contexto, reclama Tatto, “na maior cidade do Brasil, o PT apoia um candidato de esquerda do PSOL?” Segundo ele, o eleitor “não entende isso”.
Portanto, o problema principal – sempre segundo Tatto - não teria sido o que Boulos fez ou deixou de fazer. O problema principal foi ele ter sido nosso candidato, supostamente sinalizando para a esquerda num contexto adverso.
E qual seria a alternativa? Jilmar diz que “podíamos ter construído uma candidatura do PT ou talvez uma candidatura mais ao centro”.
De fato, uma candidatura petista poderia ter sido o ideal, mas para isso ser cogitado a sério, para começo de conversa nossa tática em 2020 deveria ter sido outra.
Jilmar especula, também, sobre um apoio ao Ricardo Nunes. Diz que “poderia ser difícil politicamente falando e acho que não era o caso, porque o PT fez oposição a ele durante quatro anos. Mas, pensando em 2026, o Ricardo poderia, em vez de se alinhar mais à direita, fazer um movimento em direção à esquerda. Teríamos uma situação mais confortável hoje, com um prefeito do MDB que fosse aliado do Lula. Mas, para isso, teríamos que ter feito um esforço, e não fizemos. Nem o próprio Ricardo Nunes fez essa movimentação porque não interessava a ele”.
Claro, se as coisas fossem diferentes, elas não seriam como são. Mas não é verdade que não tenha havido "esforço". É público e notório que uma parte da bancada do PT na Câmara Municipal e, inclusive, uma parte do próprio Partido na capital não se comportou como oposição. Mas este esforço não foi suficiente, entre outros motivos porque existe um personagem chamado Tarcísio, um sujeito oculto na entrevista de Tatto, sei lá por qual motivo.
Aliás, os motivos pelos quais o eleitorado de São Paulo votou como votou (inclusive uma imensa quantidade de votos brancos, nulos e abstenções), ademais dos motivos que levaram ao fenômeno Boçal (outro sujeito oculto na entrevista de Tatto, ao menos na versão publicada), merecem ser analisados detidamente. É uma simplificação atroz, além de errado em si mesmo, resumir nosso "problema" ao fato de, supostamente, o eleitorado não ter "entendido" nossa política de alianças. Ou a frase segundo a qual “teríamos que ter feito um esforço, e não fizemos”.
Digo isso, embora concorde que "teríamos que ter feito um esforço", especialmente um esforço no sentido de ampliar nossa presença militante cotidiana na cidade. Nosso principal problema não é o que fazemos nos anos pares, eleitorais, mas sim o que deixamos de fazer nos anos ímpares, no cotidiano, fora dos processos eleitorais.
Este é um dos principais equívocos, penso, da linha que Tatto defende que adotemos. Reproduzo um trecho da entrevista: “o PT quer fazer parte das alianças que o próprio Lula está montando, quer ser tratado de forma equivalente – e não ficar de fora. Não pode ser só centrão, queremos também o nosso espaço. Há ministros do MDB, por exemplo, que envolvem suas bases locais nas ações do governo. Muitas vezes, no entanto, nossos ministros deixam de fazer isso com lideranças do PT. O governo está entregando, mas a base não capitaliza politicamente. Precisamos melhorar nossa articulação e comunicação, isso é essencial. Lula sabe fazer isso, e agora é o momento de arrumar a casa e preparar os palanques para 2026. (...) É preciso pragmatismo para governar, e o Lula entende isso”.
Se entendi direito, Jilmar acha que o governo Lula está na linha justa, mas o povo não fica sabendo (comunicação) e o Partido não se beneficia (articulação). Numa frase: “não pode ser só centrão, queremos também o nosso espaço” (pragmatismo).
Este jeito de ver as coisas é, na minha opinião, parecido demais com o dos políticos tradicionais.
Questões mais amplas da luta de classes – como a política macroeconômica do governo, a guerra cultural, a organização e luta social, a ação do partido – são abstraídas. E a questão central é apresentada como sendo a de “capitalizar politicamente” as ações de governo.
O que isso significa pode ser melhor entendido pelo que Tatto fala, no início da entrevista, acerca da implantação do PT na periferia de São Paulo capital.
Jilmar Tatto começa lembrando de uma história que vem “desde os anos 1970”, que construíram a “capilaridade que tem no território”. Em seguida, ele constata, sem tirar consequências, que o PT não está organizado: “em Guaianases, Cidade Tiradentes, Itaim Paulista, Grajaú, Parelheiros, não tem sede do PT, e se tem abre só para reunião”. Apesar disso, estamos “nas organizações sociais, no movimento social (...) em associação de bairro, na igreja, em uma parte de sindicato (...) Esse enraizamento significa que tem gente militando todos os dias (...) Você tem uma militância, você faz reunião do PT, faz assembleia, vai em culto, em missa, reunião de bairro, leva reivindicação fundiária, briga para ter uma universidade lá na zona leste, briga para ter um instituto federal, asfalto, posto de saúde, transporte”. Tudo isso faz com que “o PT tenha 30%, talvez um pouco mais”.
Perguntado por qual motivo “o PT começa a perder espaço onde sempre foi forte”, ele diz que isso acontece “porque a direita, o atual prefeito e os vereadores começaram a entrar para disputar esse território”. Claro, nós temos as “emendas federais, estaduais e municipais (...) a gente manda dinheiro, manda emenda. E isso se reverte depois em voto. (...) Todo mundo faz isso. A esquerda só não faz mais porque não tem dinheiro. O valor que a direita tem é desproporcional, entendeu? O PT é o que mais tem emenda, mas na sequência tem vários outros partidos que ganham muito mais”.
Tatto descreve, do jeito dele, o beco sem saída em que estamos nos metendo. Em resumo de minha responsabilidade: a nossa organização atual não está conseguindo vencer a direita, "ser oposição não é fácil"; e a direita tem mais dinheiro-em-emendas do que nós. Qual seria a saída? Conseguir que o governo federal nos trate como, supostamente, trata os partidos do centrão.
Nesse contexto, ir para o centro não é apenas uma linha política. No passado, fazíamos política de alianças com o objetivo de ampliar nossas chances de vitória. Agora, o objetivo passa a ser ampliar nossa participação na "capitalização política".
Registro que o termo “capitalização” é, neste contexto, extremamente preciso.
E como o objetivo é “capitalizar”, desde que isso possa ser feito, que problema haveria em ampliar cada vez mais nossa política de alianças? Que problema haveria em contemporizar com os “liras” da vida?
É por isso - e não por motivos da alta política, da política com P maiúsculo - que cresce em setores da bancada federal do PT um comportamento clientelista. Não apenas naturalizando o tema das emendas, como também tentando controlar a destinação do fundo eleitoral e fazendo lobby para acabar com o número máximo de mandatos consecutivos que um petista pode exercer.
Para piorar as coisas, a busca da felicidade individual de cada parlamentar não gera a felicidade geral do PT. Acontece que o sistema político brasileiro é organizado em torno da disputa individual pelos votos; por isto, os parlamentares são estimulados a se converterem numa espécie de partido-de-uma-pessoa-só. E o resultado vem sendo o desacúmulo coletivo.
Na minha opinião, portanto, esta linha política que o Tatto propõe pode ser chamada de muita coisa, mas não de “estratégia”. Prefiro reservar o termo estratégia para designar o caminho da classe trabalhadora para o poder. O que Tatto propõe é apenas pragmatismo. Ou, se quisermos um nome mais preciso, clientelismo eleitoral de esquerda.
Adotada esta política, alguns parlamentares podem sobreviver até se aposentarem, alguns governos podem ser conquistados, algumas políticas legais podem ser implementadas. Entretanto, como o próprio Tatto reconhece ("o valor que a direita tem é desproporcional"), são remotas as chances da classe trabalhadora e da esquerda conseguirmos vencer.
Mas são enormes as chances de morrermos tentando.