quinta-feira, 31 de outubro de 2024

Venezuela: o provocador Reginaldo Lopes attacks again

Quando eu comecei a militar, no final dos anos 1970, o termo "provocador" era uma acusação pesada.

Provocador era, por exemplo, aquele cara aparentemente radical, cujos atos criavam o pretexto para a repressão atacar uma manifestação.

Os tempos mudaram e há quem use a palavra com outro sentido. É o caso do deputado federal Reginaldo Lopes, conforme pode ser lido aqui: Reginaldo Lopes sobre mudanças no PT: 'Quero ser o provocador' - Estado de Minas

Um dos alvos preferidos das "provocações" de Reginaldo é a Venezuela, como se pode ler aqui: Reginaldo Lopes no X: "Maduro se torna cada vez mais autoritário, adotando uma postura de ditador. É hora do Brasil rever sua relação com esse governo, mostrar nossas diferenças e reafirmar nossos compromissos com um projeto de esquerda democrática." / X

Não sei se Reginaldo propõe adotar este critério apenas contra a Venezuela; ou se ele defende que toda a política externa do Brasil passe a ser baseada em critérios políticos e ideológicos, como queria o Ernesto Araújo.

O que sei é que esta não é a primeira vez que Reginaldo assume posições extremistas, digamos assim.

Em 2016, por exemplo, ele propôs - numa reunião da executiva nacional - que o PT abandonasse seus símbolos. Mais detalhes, aqui: Petista propõe discutir mudanças no partido, incluindo a estrela vermelha - ÉPOCA | Expresso

Como se pode ver, tem muito caroço nesse angu. 

Venezuela e os agentes do imperialismo

Primeiro, uma preliminar: devemos trabalhar para que os governos do Brasil e da Venezuela voltem a ter boas relações.

Boas relações não é concordar em tudo. Nunca foi e nunca será isso.

Boas relações é, por exemplo, não trocar ataques pelos meios de comunicação, não aprovar resoluções mutuamente condenatórias, não convocar os respectivos embaixadores para esclarecimentos, não questionar o funcionamento das respectivas instituições, não vetar a participação em organismos internacionais etc.

Trabalhar por boas relações é essencial, ao menos para quem defende a integração regional latinoamericana e caribenha.

Hoje, a integração passa por dificuldades. E um dos motivos disto é que a esquerda regional também passa por dificuldades e, além disso, está atravessada por crescentes conflitos entre suas lideranças e seus partidos.

No passado, a sinergia entre os governos de esquerda e progressistas foi fundamental para o sucesso da integração regional. Assim como foi fundamental a sinergia entre os partidos governantes, especialmente no terreno do Foro de São Paulo. 

Hoje, esta sinergia é menor que antes.

Há muitas ações que podem ser feitas para mudar esta situação. Uma delas é melhorar as relações entre Brasil e Venezuela. E para que isso seja possível, um bom ponto de partida é parar de achar que só uma das partes comete erros. 

Nesse sentido, não concordo com a embocadura de Marcelo Zero no artigo Alguns esclarecimentos sobre a Venezuela | Brasil 247

Assim como não fiquei satisfeito com o depoimento de Celso Amorim na Câmara do Deputados (embora nesse caso se deva dar os descontos devidos ao ambiente onde o depoimento foi feito).

Sobre Celso, ler aqui:

https://www.camara.leg.br/noticias/1106455-eleicao-na-venezuela-deve-ser-resolvida-pelos-venezuelanos-diz-celso-amorim

Seja como for, a postura correta, na minha opinião, é tomar nota que erros foram cometidos por todas as partes envolvidas. E concentrar nossas energias, não sobre esses erros, mas sobre como fazer para recompor.

Se estou falando em erros, por óbvio estou tratando de relações entre “países amigos”. Como deve ter dito o analista de Bagé, “amigos também fazem merda”.

Este é um dos motivos pelos quais considero ser pior que um crime, ser um erro adotar teorias conspiratórias. Foi isso que disse no artigo Venezuela: tirem as crianças e a política da sala | Brasil 247

Este artigo foi criticado - surprise!!! - pelo Diário da Causa Operária aqui: Não é 'teoria', imperialismo está conspirando contra a Venezuela - Diário Causa Operária

Segundo está escrito neste artigo do PCO, "o problema não é a colocação do procurador, ainda que ela possa ser exagerada ou errada", "a discussão mais importante não é se o acidente foi ou não real", pois " seja lá qual foi o acidente de Lula", "objetivamente a ausência de Lula nos BRICS revela a política covarde do governo".

Pergunto: se no passado alguém foi acusado de ser agente da Gestapo, não importava saber se isto era verdade ou não??

Óbvio que algumas aparências ganham vida própria, assim como é óbvio que conspirações existem, o imperialismo e a CIA operam pesadamente, atacar a Venezuela objetivamente ajuda os Estados Unidos etc. 

Mas nada disto torna irrelevante saber se algo é ou não real, se alguma coisa aconteceu ou não, sob pena de fazermos raciocínios absurdos tais como o da frase "objetivamente a ausência de Lula nos BRICS revela a política covarde do governo". 

"Objetivamente" a ausência de Lula "revela" que ele sofreu um acidente e não pode viajar. 

A ausência teve efeitos ruins? Sim! Como disse no artigo citado acima, a ausência de Lula "causou prejuízos para o Brasil, que teria podido ter maior protagonismo na reunião de Kazan. Além disso, a ausência de Lula pode ter contribuído para o incorreto tratamento dado à Venezuela".

A política do governo brasileiro frente a Venezuela, na reunião de Kazan, foi na minha opinião errada. Isso na prática ajudou os EUA? Sim. 

Mas nem todo mundo que objetivamente, por ação ou omissão, ajuda os EUA é agente da CIA. 

Por exemplo: neste momento o discurso conspiratório contribui para escalar um conflito que precisamos superar. Se deixar arrastar por teorias conspiratórias ajuda, objetivamente, os EUA. Mas, como já disse, as vezes até os amigos fazem merda. Nem por isso deixam de ser amigos. Até porque, quando se está falando de política externa, o conceito de “amigo” não tem o mesmo significado de “amigo” nas relações pessoais.

Se queremos retomar a integração regional, devemos trabalhar para que os governos do Brasil e da Venezuela voltem a ter boas relações.

O resto é o resto.





quarta-feira, 30 de outubro de 2024

Comentários sobre a "estratégia Tatto"

Está causando interesse, pelo menos em alguns meios petistas, a entrevista concedida ao Intercept pelo deputado federal Jilmar Tatto, secretário nacional de comunicação do PT, acerca dos resultados eleitorais de 2024.

A entrevista pode ser lida aqui: Jilmar Tatto quer PT ao centro e revela estratégia na periferia: ‘Emenda dá voto'

O Intercept deu o seguinte título para a entrevista: “Estratégia Tatto”. 

Por razões óbvias, me lembrei de um texto escrito por Valério Arcary (A estratégia Boulos - Esquerda Online), texto que repliquei aqui: Valter Pomar: A estratégia Boulos: uma réplica?

Antes de comentar a entrevista de Tatto, explico que conheci o Jilmar em 1987, no Instituto Cajamar. Em 2005, se a memória não me trai, Tatto e eu apoiamos a mesma candidatura à presidência nacional do Partido. E fizemos o mesmo no segundo turno de 2007. 

Naquela época, o pessoal agrupado em torno da tendência “Construindo um novo Brasil” (CNB) criticava muito Tatto. Hoje, Tatto se converteu em um dos principais dirigentes da CNB e, também, numa das pessoas mais influentes na atual executiva nacional do Partido. 

Vencidas estas preliminares, vamos à entrevista.

Nela, Tatto aborda três questões: a campanha Boulos, nossa política nacional e a presença do PT na periferia. Vou começar pela primeira questão. 

Não sou um entusiasta do Boulos, nunca fui, por razões que só Stanislavski explica. Tampouco sinto simpatia pelo PSOL, seja pelo velho, seja pelo atual. E, falando hipoteticamente, preferia que tivéssemos lançado uma candidatura petista à prefeitura. 

Mas isso não ocorreu, antes de mais nada, porque em 2020 Fernando Haddad não quis ser candidato à prefeitura, baseado principalmente (na minha interpretação dos fatos) em um cálculo incorreto acerca das chances de Lula disputar a presidência em 2022. Sem Lula, Haddad seria novamente candidato à presidência, tornando (na opinião de quem pensa assim) a disputa de 2020 um risco desnecessário.

Sem Haddad no páreo, o PT escolheu Jilmar Tatto para disputar a prefeitura em 2020. Mas a escolha ocorreu da pior maneira possível: através de um colégio eleitoral, sem prévias. Principal responsável por isso? Jilmar Tatto.

Esse ponto de partida, mais as restrições que parte do PT da capital tinha (e segue tendo) contra Tatto, serviu de pretexto para que muitas lideranças partidárias aderissem à campanha de Boulos já no primeiro turno.

 Mais detalhes sobre isto podem ser lidos aqui: Valter Pomar: O PT vai dar Boulos?

Para não falar de outras pessoas, cito aqui: Lula está muito errado. Por Válter Pomar

O resultado foi o que sabemos. Tatto teve, no primeiro turno de 2020, 8,65% dos votos válidos. Na eleição anterior, também no primeiro turno, Haddad teve 16,70% dos votos válidos. E na eleição de 2012, o mesmo Haddad teve no primeiro turno 28,98% dos votos válidos.

O que veio depois de 2020, também sabemos: em 2022 Boulos e o PSOL aderiram desde o início à candidatura Lula presidente e receberam a promessa, tanto de Lula quanto de Gleisi, de que Boulos teria o apoio do PT à sua candidatura à prefeito de São Paulo em 2024. Como método, um horror. Mas este método não caiu do céu: Tatto deu sua contribuição na criação do contexto que levou boa parte do PT paulistano a ver Boulos como a melhor alternativa disponível.

O PT era obrigado a apoiar o Boulos? Claro que não. Poderíamos ter tido outra candidatura? Claro que sim. Teríamos tido um desempenho igual ou melhor ao obtido por Boulos? Não sei, nunca saberemos. 

O que tenho certeza é que a campanha Boulos, para além de seus méritos, também cometeu erros. É o que eu deduzo do seguinte: apesar de contar com o apoio do PT desde o início, apesar de ter Marta-a-ampla como vice, apesar de ter um volume de recursos maior do que o disponível há quatro anos, apesar de ser mais conhecido que antes, Boulos terminou a campanha de 2024 com o mesmo percentual de votos válidos obtido no segundo turno de 2020. 

Tatto acha que a campanha de Boulos cometeu erros? Suponho que sim. Mas ao ler a entrevista, o que ele destaca não são os erros, mas a tática supostamente inadequada ao contexto. De um lado, estaria Nunes, um candidato à reeleição com muito dinheiro. De outro lado, um eleitorado que estaria “indo pro centro e pra direita”. Apesar desse contexto, reclama Tatto, “na maior cidade do Brasil, o PT apoia um candidato de esquerda do PSOL?” Segundo ele, o eleitor “não entende isso”. 

Portanto, o problema principal – sempre segundo Tatto - não teria sido o que Boulos fez ou deixou de fazer. O problema principal foi ele ter sido nosso candidato, supostamente sinalizando para a esquerda num contexto adverso. 

E qual seria a alternativa? Jilmar diz que “podíamos ter construído uma candidatura do PT ou talvez uma candidatura mais ao centro”. 

De fato, uma candidatura petista poderia ter sido o ideal, mas para isso ser cogitado a sério, para começo de conversa nossa tática em 2020 deveria ter sido outra.

Jilmar especula, também, sobre um apoio ao Ricardo Nunes. Diz que “poderia ser difícil politicamente falando e acho que não era o caso, porque o PT fez oposição a ele durante quatro anos. Mas, pensando em 2026, o Ricardo poderia, em vez de se alinhar mais à direita, fazer um movimento em direção à esquerda. Teríamos uma situação mais confortável hoje, com um prefeito do MDB que fosse aliado do Lula. Mas, para isso, teríamos que ter feito um esforço, e não fizemos. Nem o próprio Ricardo Nunes fez essa movimentação porque não interessava a ele”.

Claro, se as coisas fossem diferentes, elas não seriam como são. Mas não é verdade que não tenha havido "esforço". É público e notório que uma parte da bancada do PT na Câmara Municipal e, inclusive, uma parte do próprio Partido na capital não se comportou como oposição. Mas este esforço não foi suficiente, entre outros motivos porque existe um personagem chamado Tarcísio, um sujeito oculto na entrevista de Tatto, sei lá por qual motivo.

Aliás, os motivos pelos quais o eleitorado de São Paulo votou como votou (inclusive uma imensa quantidade de votos brancos, nulos e abstenções), ademais dos motivos que levaram ao fenômeno Boçal (outro sujeito oculto na entrevista de Tatto, ao menos na versão publicada), merecem ser analisados detidamente. É uma simplificação atroz, além de errado em si mesmo, resumir nosso "problema" ao fato de, supostamente, o eleitorado não ter "entendido" nossa política de alianças. Ou a frase segundo a qual “teríamos que ter feito um esforço, e não fizemos”.  

Digo isso, embora concorde que "teríamos que ter feito um esforço", especialmente um esforço no sentido de ampliar nossa presença militante cotidiana na cidade. Nosso principal problema não é o que fazemos nos anos pares, eleitorais, mas sim o que deixamos de fazer nos anos ímpares, no cotidiano, fora dos processos eleitorais.

Este é um dos principais equívocos, penso, da linha que Tatto defende que adotemos. Reproduzo um trecho da entrevista: “o PT quer fazer parte das alianças que o próprio Lula está montando, quer ser tratado de forma equivalente – e não ficar de fora. Não pode ser só centrão, queremos também o nosso espaço. Há ministros do MDB, por exemplo, que envolvem suas bases locais nas ações do governo. Muitas vezes, no entanto, nossos ministros deixam de fazer isso com lideranças do PT. O governo está entregando, mas a base não capitaliza politicamente. Precisamos melhorar nossa articulação e comunicação, isso é essencial. Lula sabe fazer isso, e agora é o momento de arrumar a casa e preparar os palanques para 2026. (...) É preciso pragmatismo para governar, e o Lula entende isso”.

Se entendi direito, Jilmar acha que o governo Lula está na linha justa, mas o povo não fica sabendo (comunicação) e o Partido não se beneficia (articulação). Numa frase: “não pode ser só centrão, queremos também o nosso espaço” (pragmatismo).

Este jeito de ver as coisas é, na minha opinião, parecido demais com o dos políticos tradicionais. 

Questões mais amplas da luta de classes – como a política macroeconômica do governo, a guerra cultural, a organização e luta social, a ação do partido – são abstraídas. E a questão central é apresentada como sendo a de “capitalizar politicamente” as ações de governo. 

O que isso significa pode ser melhor entendido pelo que Tatto fala, no início da entrevista, acerca da implantação do PT na periferia de São Paulo capital.

Jilmar Tatto começa lembrando de uma história que vem “desde os anos 1970”, que construíram a “capilaridade que tem no território”. Em seguida, ele constata, sem tirar consequências, que o PT não está organizado: “em Guaianases, Cidade Tiradentes, Itaim Paulista, Grajaú, Parelheiros, não tem sede do PT, e se tem abre só para reunião”. Apesar disso, estamos “nas organizações sociais, no movimento social (...) em associação de bairro, na igreja, em uma parte de sindicato (...) Esse enraizamento significa que tem gente militando todos os dias (...) Você tem uma militância, você faz reunião do PT, faz assembleia, vai em culto, em missa, reunião de bairro, leva reivindicação fundiária, briga para ter uma universidade lá na zona leste, briga para ter um instituto federal, asfalto, posto de saúde, transporte”. Tudo isso faz com que “o PT tenha 30%, talvez um pouco mais”.

Perguntado por qual motivo “o PT começa a perder espaço onde sempre foi forte”, ele diz que isso acontece “porque a direita, o atual prefeito e os vereadores começaram a entrar para disputar esse território”. Claro, nós temos as “emendas federais, estaduais e municipais (...) a gente manda dinheiro, manda emenda. E isso se reverte depois em voto. (...) Todo mundo faz isso. A esquerda só não faz mais porque não tem dinheiro. O valor que a direita tem é desproporcional, entendeu? O PT é o que mais tem emenda, mas na sequência tem vários outros partidos que ganham muito mais”.

Tatto descreve, do jeito dele, o beco sem saída em que estamos nos metendo. Em resumo de minha responsabilidade: a nossa organização atual não está conseguindo vencer a direita, "ser oposição não é fácil"; e a direita tem mais dinheiro-em-emendas do que nós. Qual seria a saída? Conseguir que o governo federal nos trate como, supostamente, trata os partidos do centrão. 

Nesse contexto, ir para o centro não é apenas uma linha política. No passado, fazíamos política de alianças com o objetivo de ampliar nossas chances de vitória. Agora, o objetivo passa a ser ampliar nossa participação na "capitalização política".

Registro que o termo “capitalização” é, neste contexto, extremamente preciso.

E como o objetivo é “capitalizar”, desde que isso possa ser feito, que problema haveria em ampliar cada vez mais nossa política de alianças? Que problema haveria em contemporizar com os “liras” da vida?

É por isso - e não por motivos da alta política, da política com P maiúsculo - que cresce em setores da bancada federal do PT um comportamento clientelista. Não apenas naturalizando o tema das emendas, como também tentando controlar a destinação do fundo eleitoral e fazendo lobby para acabar com o número máximo de mandatos consecutivos que um petista pode exercer.

Para piorar as coisas, a busca da felicidade individual de cada parlamentar não gera a felicidade geral do PT. Acontece que o sistema político brasileiro é organizado em torno da disputa individual pelos votos; por isto, os parlamentares são estimulados a se converterem numa espécie de partido-de-uma-pessoa-só. E o resultado vem sendo o desacúmulo coletivo.

Na minha opinião, portanto, esta linha política que o Tatto propõe pode ser chamada de muita coisa, mas não de “estratégia”. Prefiro reservar o termo estratégia para designar o caminho da classe trabalhadora para o poder. O que Tatto propõe é apenas pragmatismo. Ou, se quisermos um nome mais preciso, clientelismo eleitoral de esquerda

Adotada esta política, alguns parlamentares podem sobreviver até se aposentarem, alguns governos podem ser conquistados, algumas políticas legais podem ser implementadas. Entretanto, como o próprio Tatto reconhece ("o valor que a direita tem é desproporcional"), são remotas as chances da classe trabalhadora e da esquerda conseguirmos vencer. 

Mas são enormes as chances de morrermos tentando.





terça-feira, 29 de outubro de 2024

Eleições 2024: Mercadante doura a pílula



Se a imprensa não registrou errado, é do companheiro Aloizio Mercadante, presidente do BNDES, a declaração mais curiosa que li, até agora, acerca das eleições municipais de 2024.

Segundo Mercadante, “cerca de 80% dos prefeitos foram reeleitos, o que mostra satisfação do povo com as prefeituras, com a vida”.

Mais detalhes, aqui: 

https://www.brasil247.com/brasil/reeleicao-em-massa-sinaliza-aprovacao-popular-diz-mercadante

Será verdade?

Vejamos o caso de São Paulo capital. 

Na cidade moram 11.451.245 habitantes, dos quais mais ou menos 9,3 milhões são eleitores. Vamos supor que o eleitorado, neste caso, é igual ao "povo".

Deste povo eleitor, 2,9 milhões não compareceram para votar. 

Restam 6,4 milhões, dos quais 234 mil votaram em branco, 430 mil votaram nulo e 2.323.901 votaram em Boulos.

Como Ricardo Nunes teve 3,3 milhões de votos, sua reeleição não indica "satisfação do povo com as prefeituras”. 

A reeleição significa apenas que ele teve maioria dos votos válidos.

Por quais motivos Nunes teve a maioria dos votos válidos, cabe analisar. 

Mas mesmo que todos que votaram nele estivessem satisfeitos "com as prefeituras, com a vida", ainda assim não daria para atribuir tal estado de ânimo ao "povo".

A não ser, é claro, que aceitemos que o cidadão que não vota no vencedor, perde a cidadania.

Situações como a de São Paulo se repetiram por todo o país, ou seja, a soma de abstenções, votos brancos, votos nulos e votos na oposição superou o número de votos no candidato à reeleição, que mesmo tendo maioria dos votos válidos, não tem ao seu lado a maioria do povo.

Não nego que exista uma conexão entre satisfação e reeleição. 

Mas é um erro isolar esta variável e deixar de lado ou minimizar outras variáveis, tais como a compra de votos, o uso das máquinas, a manipulação da mídia, a violência política, o financiamento empresarial legal e ilegal, sem falar no uso e abuso eleitoral das emendas parlamentares.

Seja como for, é óbvio o parentesco entre a opinião de Mercadante e a de Padilha.

A respeito de Padilha, ler aqui:

https://revistaforum.com.br/politica/2024/10/28/padilha-diz-que-pt-no-saiu-da-zona-de-rebaixamento-gleisi-parte-para-cima-dele-168313.html

Mercadante dourou e Padilha receitou a pílula.

Do meu ponto de vista, a afirmação de ambos é uma tentativa de amenizar um fato óbvio: o governo federal contribuiu para o desempenho de várias candidaturas da direita.

Não me refiro ao ambiente nacional, nem me refiro às obrigações legais. 

Me refiro à transferências voluntárias, à presença (ou omissão) política, entre outras atitudes. 

Já conhecemos esta atitude de outros carnavais: é o suposto republicanismo, suposto porque geralmente beneficia quem de republicano nada tem.

Curiosamente, o "efeito satisfação", que hoje favoreceria o desempenho das direitas nas eleições de 2024, ainda não está favorecendo o governo Lula. 

Todas as pesquisas divulgadas desde o início de 2023 até hoje mostram a satisfação com nosso governo marcando o passo. 

Mais ou menos como ocorreu na campanha de Boulos em São Paulo capital: mantivemos o mesmo patamar já obtido nas eleições de 2020.

Será diferente nas eleições de 2026? Esperamos que sim. 

Mas as eleições municipais afetam a composição do Congresso. E um Congresso mais à direita afeta o desempenho do governo.

Por tudo isso, havia quem esperasse que o governo tivesse agido diferente. Não agiu A pergunta é se, diante de mais esta, o Partido vai agir diferente. Ou se apenas tuitará o descontentamento.

A mensagem de Boulos

Não participei da reunião ampliada da executiva nacional do PT, realizada dia 28 de outubro de 2024, para iniciar o balanço das eleições.

Mas li na imprensa diversas declarações, dadas durante e após a reunião, com destaque para a polêmica entre o ministro Padilha e a presidenta Gleisi.

Vide aqui:

https://www.instagram.com/p/DBr4UjYJisC/?igsh=MTM2Yml1Y2RzZG1lMg==

Li também declarações criticando e outras defendendo o apoio do PT a Boulos em São Paulo. 

Apesar do tom às vezes ácido, tratam-se de “contradições no seio do mesmo povo”, ou seja, nuances de opinião entre os que defendem a chamada frente ampla e uma estratégia focada nas eleições.

Prova disto é a declaração segundo a qual “o foco agora são as eleições de 2026”, sem falar das defesas de ir mais ao “centro” e do apoio à política de ajuste fiscal.

Vide aqui:

https://pt.org.br/pt-reune-executiva-nacional-e-parlamentares-e-faz-balanco-das-eleicoes/

E aqui:

https://noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/agencia-estado/2024/10/28/gleisi-temos-que-fazer-uma-alianca-muito-mais-ao-centro-para-reeleger-lula.htm

Ou seja: depois de uma eleição que confirmou mais uma vez a necessidade de recuperarmos presença organizada junto à classe trabalhadora, a principal orientação que alguns pretendem dar sobre o que fazer é seguir gastando os anos ímpares na preparação dos anos pares, num círculo vicioso do qual já estamos saindo menores do que precisamos.

Uma parte da esquerda não consegue pensar de outro jeito. Tudo gira ao redor das urnas. A organização e a ação coletiva autônoma da classe trabalhadora é enquadrada na institucionalidade. E um dos resultados é… o encolhimento de nossa presença nas urnas! E como quase nada se faz para derrotar os poderes fáticos, mesmo quando ganhamos não conseguimos levar a contento.

Prova adicional da influência desta postura na esquerda é a mensagem divulgada por Boulos através das redes sociais. Procurem palavras como Partido, movimento e luta social. Não encontrarão. Detalhe, dirão alguns. Quem dera fosse.



segunda-feira, 28 de outubro de 2024

Boulos e a dignidade da esquerda brasileira

A eleição em São Paulo foi muito dura.

E a pessoa que mais pode falar a respeito é, sem dúvida, nosso candidato, o companheiro Boulos.

Dada a importância da cidade na política brasileira, será preciso fazer um balanço muito profundo acerca do que ocorreu.

Entre outras questões, cabe responder se é verdade; e, sendo, quais os motivos do que segue abaixo:

-votação de Bruno Covas em 2020: 59,38% dos votos válidos

-votação de Ricardo Nunes em 2024: 59,35% dos votos válidos

-votação de Boulos em 2020: 40,62 % dos votos válidos

-votação de Boulos em 2024: 40,65% dos votos válidos

Com o PT na campanha desde o início, com uma quantia expressiva de recursos financeiros, com Marta na vice e Lula presidente, por quais motivos os resultados foram esses, estatisticamente parecidos com os de 2020?

Posteriormente voltaremos a essas e a outras questões (inclusive a entrevista de emprego com Marçal).

Mas há algo que deve ser dito hoje, referente a um trecho do discurso feito por Boulos na noite de ontem, após o anúncio dos resultados.

Sei que no calor da hora se fala muita besteira retórica.

Mas dizer que "essa campanha recuperou a dignidade da esquerda brasileira" não é qualquer besteira.

Não sei o quê ou em quem Boulos pensou, ao falar isso.

Mas só se recupera o que foi perdido. 

Se alguém perdeu e agora achou, fale por si. 

Não fale pela esquerda brasileira, que é muito grande, tem muitos defeitos e problemas, mas não merece ouvir isso de ninguém.

Nem fale pelo PT.

Teria outras coisas para falar a respeito, mas como esse texto é público, só peço ao Boulos o seguinte: nos inclua fora dessa.



Dois turnos de 2024: pontos para um balanço

A eleição no primeiro turno ocorreu em 5569 municípios.

Portanto, há 5.569 balanços municipais a serem feitos.

Ou, no caso do PT, 3.550 balanços, que é o número total de municípios onde (segundo o Grupo de Trabalho Eleitoral do partido) lançamos candidaturas.

Também é necessário fazer 26 balanços estaduais (no Distrito Federal não acontecem eleições municipais).

Mas, para além dos balanços municipais e estaduais, há um balanço nacional a ser feito.

Sobre este, algumas opiniões preliminares.

Primeiro: as direitas

Os partidos que vão do centro à direita receberam mais votos, conquistaram maior número de prefeituras e maior número de vereanças. Isso aconteceu no primeiro turno e se repetiu no segundo turno.

Os números (aproximados) no primeiro turno foram os seguintes:  

*91 milhões de votos em candidaturas do centro à direita, 22 milhões de votos para candidaturas do centro à esquerda;

*4726 prefeituras conquistadas por candidaturas do centro à direita, 740 prefeituras conquistadas por candidaturas do centro à esquerda;

*48.106 mandatos de vereança conquistados por candidaturas do centro à direita, 10.308 mandatos conquistados por candidaturas do centro à esquerda.

No segundo turno, os números (aproximados) foram os seguintes:

*17 milhões de votos em candidaturas do centro à direita, quase 5 milhões de votos em candidaturas do centro à esquerda;

*45 prefeituras conquistadas por candidaturas do centro à direita, 6 prefeituras conquistadas por candidaturas do centro à esquerda.

Por quais motivos os partidos do centro à direita venceram? 

Entre estes motivos, há que considerar a força acumulada, dinheiro, mídia, crime, influência dos aparatos, legislação eleitoral que os favorece, emendas parlamentares, uso da máquina, linha política etc. 

Mas há, também, o que nós da esquerda fizemos ou deixamos de fazer.

Segundo: os nem nem

Tanto no primeiro quanto no segundo turno, houve um imenso número de pessoas que não compareceram para votar; ou compareceram, mas votaram branco ou nulo. 

Estamos falando de mais de 40 milhões de brasileiros e brasileiras.

Há quem compreenda este fenômeno como uma demonstração do “fracasso” da democracia, outros como uma manifestação antisistêmica de parte da população, outros ainda como uma confirmação da natureza burguesa do nosso sistema política. 

Qualquer que seja a avaliação, trata-se de um fenômeno que merece ser analisado em detalhe, para informar medidas que precisam ser tomadas com urgência.

Terceiro: o desempenho das esquerdas

Desde 1982 até 2024, já tivemos 12 processos eleitorais municipais. 

Em todos estes processos, os partidos do centro à direita tiveram mais votos, conquistaram mais prefeituras e vereanças. Portanto, o que ocorreu em 2024 não foi um ponto fora da curva.

Entretanto, em eleições anteriores, o desempenho das esquerdas em geral e do PT em particular foi relativamente melhor do que o de 2024. 

Melhor significa: tivemos um percentual maior de votos válidos, conquistamos um número maior de prefeituras e vereanças, conseguimos uma distribuição mais equilibrada dessas prefeituras pelo território nacional, alcançamos vitórias em maior número de cidades estratégicas.

Tudo relativamente, ou seja, relativamente aos nossos inimigos e relativamente ao nosso próprio desempenho.

Vejamos o caso específico do PT, que é o Partido que possui o melhor desempenho nas esquerdas.

Se compararmos o desempenho de 2024 (metade do governo Lula 3) com o desempenho de 2004 (metade do governo Lula 1), 2008 (metade do governo Lula 2), 2012 (metade do governo Dilma 1) e 2016 (depois do golpe), o resultado para prefeituras é o seguinte:

2004 409

2008 558

2012 635

2016 256

2020 183

2024 252

Portanto, observando a curva, voltamos agora a números absolutos parecidos com os que tivemos em 2016. E superiores aos de 2020. Mas inferiores aos dos anos anteriores.

Se compararmos 2024 com 2020 (metade do governo Lula 3 com metade do governo cavernícola), o desempenho foi melhor: de 183 para 252, 69 cidades a mais.

Mas quando levamos em consideração o porte das cidades, a coisa muda de figura.

Nas cidades com mais de 100 mil eleitores, caímos de 9 para 8 prefeitos/as. A grande novidade é que agora temos uma capital.

Nas cidades com 50 a 100 mil eleitores, crescemos de 7 para 15 prefeitos/as.

Nas cidades que tem entre 20 à 50 mil eleitores, crescemos de 20 para 41 prefeitos/as.

E nas cidades com menos de 20 mil eleitores, crescemos de 147 para 188 prefeitos/as.

Ou seja, este ano elegemos 69 cidades a mais, mas a maior parte disto (41) foi em cidades de pequeno porte.

Além disso, é bom lembrar que - quando a eleição começou - o PT governava não 183 cidades, mas sim 265 cidades. Isto porque prefeitos eleitos por outros partidos, resolveram filiar-se ao PT depois da vitória de Lula. 

Portanto, a rigor, caímos de 265 para 252. 

Além disso, a distribuição das prefeituras eleitas por estado revela uma concentração brutal: 202 das 252 estão concentradas em cinco estados. Bahia e Piauí com 50 cada, Ceará com 47, Minas Gerais com 35 e Rio Grande do Sul com 20. 

Vale destacar que apenas em dois estados (Bahia e Piauí), o número atual de prefeituras é o maior já obtido. Nos outros três (Minas, Rio Grande e Ceará), o PT já governou, no passado, um número maior de cidades.

Vale destacar que houve um crescimento importante foi o número de pessoas governados por administradores petistas.  Em 2020 governávamos 4,4 milhões de pessoas, agora vamos passar a governar 7,6 milhões de pessoas (lembrando que Fortaleza sozinha tem 2,4 milhões). Um crescimento de 73% em termos da população governada. 

Mas este crescimento precisa ser considerado relativamente: o PL governava 6,6 milhões em 2020 e agora passou a governar 19 milhões, um crescimento de 189%. O PSD e o Republicanos também tiveram um crescimento expressivo em termos proporcionais.

Ademais, quando comparamos o PT consigo mesmo, o resultado é o seguinte: o PT governava 19,9 milhões em 2008, 27 milhões em 2012, 4,3 milhões em 2016, 4,4 milhões em 2020 e agora vamos governar 7,6 milhões.

Por esses e por outros motivos, quando analisamos do ponto de vista nacional, o resultado para as esquerdas em geral e para o PT em particular não deve ser apresentado como uma vitória eleitoral. 

Claro que há derrotas eleitorais que são vitórias políticas. Aliás, o fato de termos obtido alguns resultados mais positivos do que os de 2020, o fato de termos vencido ou de termos tido grande crescimento em algumas cidades, tudo isto demonstra que o resultado nacional poderia ter sido outro. 

Mas, quando olhamos o resultado nacional de conjunto, não é correto falar nem de vitória eleitoral, nem de vitória política. Vitórias políticas, com ou sem vitória eleitoral, foram obtidas em um número importante de cidades. Mas no conjunto do país, o resultado foi outro.

Quarto: o impacto no governo

Tendo em vista que o governo Lula inclui partidos do centro à direita e do centro à esquerda, há quem diga que a oposição cavernícola ao governo Lula foi derrotada. 

E há quem vá além disso.

É o caso de Paulo Teixeira, titular do Desenvolvimento Agrário e Agricultura Familiar. Segundo Teixeira, “quem ganhou as eleições no Brasil foi a base do presidente Lula”.

A frase é meio capciosa: não foi Lula quem ganhou, nem foi o partido de Lula quem ganhou, foi “a base”. E como a “base” é composta por vários partidos do centro à direita, como o MDB e o PSD, é possível dizer que a “base” ganhou.

Mas há três problemas nessa análise.

Primeiro, minimizar a força da extrema-direita. O PL, por exemplo, foi o partido mais votado e com melhor desempenho nas cidades com mais de 200 mil eleitores.

Segundo, desconsiderar que muitas vitórias da base foram obtidas contra a esquerda, sem defender o governo e muitas vezes em aliança com a extrema-direita.

Terceiro e principalmente, esquecer que não foi toda a base do governo que cresceu. Quem cresceu foi a parte da base que vai do centro para a direita. 

O que isto vai significar, na condução do governo e nas eleições de 2026, ainda está por ser definido. Mas há crescentes motivos de preocupação para quem é de esquerda.

Quinto: para além das eleições

Para além das questões citadas anteriormente, há inúmeras que merecem análise detalhada.  A respeito, cito a seguir trechos de um texto divulgado no dia 9 de outubro de 2024.

A eleição demonstrou, mais uma vez, que temos três graves problemas: em primeiro lugar, um déficit de compreensão acerca da realidade brasileira, das classes e da luta de classes neste momento da história do Brasil, em particular a análise sobre a influência da extrema-direita sobre os setores populares; em segundo lugar, uma reduzida presença cotidiana junto à classe trabalhadora, o que explica parte da dificuldade que enfrentamos nas campanhas eleitorais; em terceiro lugar, uma orientação estratégica equivocada, que não dá conta dos tempos de guerra em que vivemos. O PED de 2025 será útil se, além de substituir quem precisa ser substituído, também ajudar o Partido a perceber e começar a corrigir estes problemas.



Tem gente (no PT e no governo) que vive no metaverso

Domingo 27/10 de noite, repostaram no grupo de zap do Diretório Nacional do PT o seguinte texto:


Imediatamente enviei, no mesmo grupo de zap, a seguinte mensagem:

“Pessoal Teremos tempo para fazer um balanço. Mas este tipo de título não corresponde à realidade: “PT consolida crescimento com vitórias em Fortaleza, Camaçari, Mauá e Pelotas”.
O segundo turno não alterou o resultado político global do primeiro turno. Tivemos uma vitória das direitas. Cabe analisar qual a força de cada setor da direita, mas de conjunto as direitas tiveram uma vitória. Podemos ponderar o efeito disto sobre o governo. Mas não vejo como falar em “consolida crescimento” no caso do PT. Tivemos uma derrota eleitoral das esquerdas em geral e do PT em particular. Por exemplo: das 15 cidades em que PT e PSOL estavam no 2° turno, ganhamos em quatro, a saber, Fortaleza (única capital que teremos), Camaçari, Mauá e Pelotas. Óbvio que tivemos vitórias eleitorais e políticas, inclusive onde não ganhamos a eleição. Mas falar em “consolida o crescimento” não corresponde aos fatos”. 

Segunda, 28/10, a matéria continua lá.

Donde concluo que existe gente - na direção do Partdo e na cúpula do governo - que vive num metaverso. É o caso de quem escreveu este balanço.

O sentimento na maior parte da base do Partido não é de vitória.  Precisamos de um balanço de verdade, não de discursos de autocongratulação sem base na realidade. 

Esse é o mínimo que a direção deve  à militância que, no primeiro e no segundo turno, fez de tudo para que o resultado fosse melhor.

sábado, 26 de outubro de 2024

Papo com um conhecido

Natal, Rio Grande do Norte, segundo turno de 2024, noite de sábado, restaurante de um hotel, local e horário improvável para encontrar um cidadão que não via desde o final dos anos 1970.

A conversa foi rápida, mas merece registro. Depois das preliminares e das eleicionices, perguntei se a bucket list dele continuava a mesma.

Ele respondeu que sim. Desde a última vez que nos vimos, sua lista de desejos seguia a mesma, modestíssima, com apenas três itens: "o partido", "a revolução" e "o socialismo".

Trata-se de uma "piada interna" de alguns dos que fizemos movimento secundarista no final dos anos 1970, início dos anos 1980: a lista de coisas para as quais queríamos contribuir, antes de partir.

No caso dele, ajudar a organizar o partido, participar da revolução e contribuir na construção do socialismo.

Só isso, simples assim.

Pode soar meio estranho, mas ao menos para parte dos que vivemos naquela época, o socialismo não era visto apenas como um horizonte que nos ajudava a caminhar, mas que se distanciava de nós na mesma medida em que caminhávamos na direção a ele.

Para nós, naquela década de imensa mobilização social, o socialismo era algo bem palpável, que muitos de nós acreditávamos que poderia ser alcançado no tempo de nossas vidas. E como acreditávamos nisso, agíamos em conformidade.

O mesmo vale para a revolução. O Vietnã tinha triunfado há pouco tempo. Havia guerrilhas em vários países da região. Nicarágua e Irã, tão diferentes, viraram seus mundos de ponta cabeça em 1979. As lutas sociais eram crescentes. Embora todo mundo percebesse que estavam se abrindo espaços crescentes na chamada institucionalidade, para alguns de nós isso não tirava a revolução do horizonte. Pelo contrário, nesse caso falávamos de trilhar um caminho chileno com final feliz.

Hoje isso mudou tanto, que se alguém da esquerda brasileira colocar a "revolução" e o "socialismo" na sua bucket list, corre o risco de ser tratado como candidato à Academia de Letras.

Sendo assim as coisas, achei melhor desviar a conversa para algo mais palpável: o partido.

Mesmo me sentindo um pouco como quem pergunta "como vai a esposa", correndo o risco de ouvir "qual delas", perguntei ao cidadão como ia "seu partido". Ele respondeu que depois de uma breve militância numa organização da qual fora expulso, entrou num partido no qual seguia militando até hoje.

Não sei o que mais me surpreendeu: se a monogamia ou se o partido citado. Afinal, até onde eu sabia, não se tratava do partido mais socialista e mais revolucionário existente na praça.

Para minha surpresa, ele concordou com minhas ressalvas. E contou rapidamente três ou quatro histórias, daquelas de deixar careca de cabelo em pé, acerca das internas do partido onde ele era não apenas militante, mas inclusive dirigente.

Como não uso hábito para ouvir tanta confissão e ser compreensivo, tasquei a pergunta: mas que merda você está fazendo neste lugar? 

Ele adotou uma expressão facial que me recordou nossos tempos de movimento secundarista e disse que, primeiro, deixar de militar não era uma opção, pois isso seria militar para o inimigo; e que dentre as opções disponíveis, apesar de tudo, a dele tinha mais qualidades e menos defeitos do que as alternativas disponíveis.

Conheço de cor e salteado estes argumentos; assim, mesmo sem ter a certeza do cidadão, comecei a mudar de assunto, quando ele me interrompeu e adicionou algo que é o motivo pelo qual achei que valia a pena registrar esta conversa.

O aditivo foi mais ou menos o seguinte: somos de um tempo em que a gente entrava ou saia de um partido por razões muito nobres. Podia ser a concepção de socialismo, podia ser o programa, podia ser a estratégia, podia ser a concepção organizativa, podia ser a linha de massas, podiam ser até os pressupostos teóricos. Mas nunca, nunca, era o coeficiente eleitoral ou qualquer coisa parecida com isto.

Trocamos mais algumas palavras, mas de despedida. Ele tinha vindo a trabalho, estava indo embora, queria chegar a tempo de votar na sua cidade. Me pareceu fisicamente meio acabado, roupa amarfanhada, meio triste. Mas quando ele entrou no táxi, se despediu sorrindo e mostrando a mão com o punho cerrado. Foi quase um déjà vu: tive a impressão de estar vendo o mesmo cara com quem convivi no movimento secundarista.

É pouco provável que ele viva o suficiente para ver todos seus desejos serem atendidos. Mas sem a persistência e resiliência de centenas de milhares de pessoas como ele, aqueles e outros objetivos nunca virarão realidade. No futuro alguém poderá dizer se isto foi ou não verdade.

 


 




Venezuela: tirem as crianças e a política da sala

Não bastasse a realidade, que já é dura...

Não bastassem as divergências, que já são enormes...

Ainda temos que lidar com os adeptos da teoria da conspiração.

Estes tipos abundam na direita.

Mas há exemplares também na esquerda.

Um deles é o procurador-geral do Ministério Público da Venezuela.

A mais recente deste cidadão viralizou nos meios brasileiros, como se pode ver aqui: CNN Política | ACUSAÇÃO SEM EVIDÊNCIAS Neste sábado (26), o procurador-geral do Ministério Público da Venezuela acusou - sem apresentar evidências - o... | Instagram

Sabendo que contra certos argumentos não há fatos, me limito a dizer o seguinte: Lula se feriu, o ferimento foi grave e ele não pode viajar para participar da cúpula dos BRICS.

A ausência de Lula causou prejuízos para o Brasil, que teria podido ter maior protagonismo na reunião de Kazan. 

Além disso, a ausência de Lula pode ter contribuído para o incorreto tratamento dado à Venezuela.

Afinal, mesmo sabendo que em última instância foi dele a orientação de vetar a presença da Venezuela, acho possível que - tendo em vista o que sei acerca do motivo do veto -, se Lula estivesse fisicamente presente, poderia ter dado outro encaminhamento para a questão.

Neste sentido, é duplamente lamentável que Lula não tenha podido estar na cúpula dos BRICS.

E é totalmente errada - do ponto de vista de quem defende a integração regional - a posição adotada pelo Brasil sobre a Venezuela. Adotada não apenas por Sabóia-o-sherpa, não apenas por Celso Amorim, não apenas pelo Itamaraty, mas pelo governo brasileiro.

Isto posto, acreditar que Lula forjaria um acidente para faltar em Kazan, mesmo tendo como efeito colateral sua ausência na reta final das campanhas eleitorais no Brasil, é transferir o debate da política para o plano do teatro bizarro.

Entendo que alguns setores da Venezuela, ao analisar o ocorrido, apelem para o alívio cômico. A situação está tão ruim, que é necessário fazer piada com a própria desgraça (tipo o cara estar caindo de um prédio e dizendo, ao passar voando pelo sexto andar, "até aqui, tudo bem").

Mas difundir teorias conspiratórias nos conduz a abandonar o debate político, com suas pressões, opções e inflexões.

O problema real é o seguinte: na maioria dos países latinoamericanos e caribenhos onde a esquerda governa, estamos passando por grandes problemas. 

No Brasil, a situação é conhecida. 

Na Venezuela, além das sanções do império, a oposição chegou bem perto de ganhar. 

Em Cuba, o cerco do império, somado à outras variáveis, está criando situações cada vez mais terríveis. 

O cerco também está presente na Nicarágua, servindo de argumento para uma situação em que o "extraordinário se torna cotidiano", mas não no sentido utilizado por Che. 

Na Bolívia, aprofunda-se o conflito entre os diferentes setores da esquerda. 

Na Colômbia, o presidente tem falado publicamente que há um golpe em marcha. 

No Chile, apesar de todas as ginuflexões do atual presidente, tudo indica que a direita vai ganhar as próximas eleições.

Em Honduras, a pressão é crescente.

À exceção do México (e, esperamos, de outros países que venhamos a conquistar, como o Uruguai, onde teremos eleições neste domingo 27 de outubro), o quadro onde somos governo na América Latina e Caribe é muito difícil.

E, para complicar o que já é difícil, as relações entre os governos de esquerda e progressistas da região não estão, ao menos até aqui, contribuindo para melhorar a situação.

Sendo assim as coisas, quem quiser ajudar a resolver o problema, tem que começar enfrentando a questão com a seriedade que merece. 

O estilo Tarek William Saab é, deste ponto de vista, um completo desserviço. Adotado, melhor tirar as crianças da sala. E pedir que elas levem junto a política.






 

sexta-feira, 25 de outubro de 2024

Celso Amorim e a “confiança quebrada”

Segundo Celso Amorim explicou, em entrevista ao Globo, o veto à entrada da Venezuela “não se trata de democracia, mas de confiança que foi quebrada”.


“Confiança quebrada”!

Semprei achei o oficio diplomático algo muito difícil. Mas para quem adota a “confiança” como critério, deve ser duríssimo. 

Uma verdadeira montanha russa emocional.

Afinal, a esmagadora maioria dos Estados tem o hábito de colocar seus interesses acima de quaisquer outras considerações, inclusive das solenes declarações feitas na noite anterior.

Os Estados Unidos, por exemplo, vivem decepcionando quem tem “confiança” nas promessas deles. Vide o caso das negociações do Brasil com o Irã, a pedido de Obama.

Aliás, pergunta: o Brasil “confia” em cada um dos integrantes do BRICS? A Venezuela seria mesmo um ponto fora da curva?

Seja como for, o que um Estado deve fazer quando há uma “confiança que foi quebrada”?

Fazer uma “DR” e recomeçar outra vez?

“Dar um gelo”? Retaliar? Mostrar quem manda? Romper relações? 

Mudar de continente (e de vizinhos)?

Ao colocar o problema nesses termos - “confiança quebrada” - somos levados a abordar uma questão de Estado de um ponto de vista muito louvável nas relações pessoais, mas pouco apropriado, digamos assim, à selva da política, especialmente, mas não só, da politica internacional.

Reconheço, entretanto, que a teoria da “confiança quebrada” ajuda a entender os acontecimentos dos últimos dias. Pois o fato de uma teoria ser errada, não impede que as pessoas acreditem e se orientem por elas.

Entretanto, mesmo deste ponto de vista, nossas relações com a Venezuela não começaram ontem. Assim, se é para falar de “confiança”, é bom lembrar de tudo que aconteceu em nossas relações bilaterais, especialmente desde 2016.

Quando se faz isso, é impossível desconhecer que, se existiu “quebra de confiança”, não foi unilateral.



Reginaldo Lopes e Venezuela: subindo de classe

Que a grande imprensa fale besteira, faz parte.

Que alguns petistas repitam estas besteiras, também faz parte.

Exemplo: a opinião do deputado Reginaldo Lopes sobre a posição do governo brasileiro em Kazan.

Tal opinião pode ser lida aqui:


Segundo o deputado, o Brasil seria uma espécie de professor que dá notas para os países da região. “Não fez o dever de casa, não sobe de classe”.

O Brasil, nos governos Lula e Dilma, sempre recusou tal postura de “agência certificadora”. Entre outros motivos porque seria impossível competir com os EUA no quesito arrogância & prepotência.

Além de querer copiar a sutileza dos gringos, o deputado parece querer copiar também a ignorância.

Afinal, qualquer pessoa bem informada sabe que vários integrantes dos BRICS não correspondem (ainda bem!)  ao “standard USA de democracia”. 

É o caso, entre outros, de Cuba, cuja inclusão na “lista de pretendentes a participar dos BRICS” foi corretamente apoiada pelo Brasil. 

Portanto, qualquer que tenha sido o critério do governo brasileiro para vetar a inclusão da Venezuela, falar que o “recado” teria relação com a “democracia” é, na melhor das hipóteses, lacração demagógica.

Sobre o papel da “democracia” nas razões do veto brasileiro, recomendo ler o que diz Celso Amorim na entrevista abaixo:

Segundo Amorim, “a questão com a Venezuela [no Brics] não tem a ver com democracia”.

Moral da história: Reginaldo não sabe do que está falando. Mas sabe muito bem porque está falando. 

Seu objetivo é “subir de classe”. 

Nesse quesito, reconheço que ele está indo muito bem.





quinta-feira, 24 de outubro de 2024

Venezuela: luva de pelica

 Uma nota escrita sob medida para oferecer ao governo brasileiro a possibilidade de mudar de postura.




Vetaram a Venezuela?

Acabo de receber a notícia de que Mauro Vieira vetou a inclusão da Venezuela na lista de países que pretendem ingressar no BRICS.

O veto teria sido verbalizado por Mauro Vieira.

Vale ressaltar que não se trata de uma lista de países que ingressaram no BRICS. Se trata de uma lista de pretendentes.

Abaixo a relação dos países que o Brasil não teria vetado. Copiei e colei de uma mensagem que recebi.

JUST IN: BRICS officially adds 13 new nations to the alliance as partner countries (not full members). 🇩🇿 Algeria 🇧🇾 Belarus 🇧🇴 Bolivia 🇨🇺 Cuba 🇮🇩 Indonesia 🇰🇿 Kazakhstan 🇲🇾 Malaysia 🇳🇬 Nigeria 🇹🇭 Thailand 🇹🇷 Turkey 🇺🇬 Uganda 🇺🇿 Uzbekistan 🇻🇳 Vietnam @BRICSNews

Foi realmente isto que ocorreu?

Se foi, quais os argumentos?

O que diferenciaria a Venezuela de alguns países acima? Ou dos que já integram o BRICS?

Salvo informação nova, a impressão que fica é que o Brasil cruzou uma linha vermelha.

No plano da grande política, é o Brasil que perde pontos no seu papel de liderança regional.

No plano da pequena política, deixo para comentar outra hora.

Mas no plano pessoal, só me vem à mente a variante de um famoso ditado romano: a política ama a ingratidão, mas odeia os ingratos.


Para os que acreditam, que Deus proteja suas almas.

quarta-feira, 23 de outubro de 2024

Brasil e Venezuela: tic-tac em Kazan

A Globo et caterva estão transpirando felicidade com o que denominam “exclusão” da Venezuela.

Exclusão do quê?

Da lista de ingresso nos BRICS.

A “exclusão” teria ocorrido, diz a Globo, graças à movimentação do Brasil nos “bastidores”.

Mais detalhes acerca desta versão, aqui: 

Não faço ideia do que realmente está ocorrendo nos bastidores.

Mas tenho certeza acerca do que está ocorrendo no palco principal, a saber: a consagração dos BRICS, da China e da Rússia como pólo incontornável da política mundial.

Nesse sentido, é hilário ver a Globo et caterva fazendo diversionismo e especulando sobre a Venezuela estar sendo “excluída”, supostamente, por não atender ao “padrão USA de democracia”, num bloco integrado por Arábia Saudita, Rússia e China.

Mas não tem nada de hilário constatar a quem se está atribuindo a felicidade da mídia empresarial: exatamente a quem precisa se preocupar, em primeiro lugar, com a integração regional.

Se prevalecer esta versão da mídia, o prejuízo não será da Venezuela, mas sim da integração regional e de nossa política externa altiva e ativa.

Por isso, espero que ocorra, em Kazan, uma mudança na postura frente a Venezuela. Afinal, ampliar nossas diferenças com os vizinhos só interessa aos gringos. 

E o que é bom para os gringos, não é bom para o Brasil.