Segundo Celso Amorim explicou, em entrevista ao Globo, o veto à entrada da Venezuela “não se trata de democracia, mas de confiança que foi quebrada”.
sexta-feira, 25 de outubro de 2024
Celso Amorim e a “confiança quebrada”
Reginaldo Lopes e Venezuela: subindo de classe
Que a grande imprensa fale besteira, faz parte.
quinta-feira, 24 de outubro de 2024
Venezuela: luva de pelica
Uma nota escrita sob medida para oferecer ao governo brasileiro a possibilidade de mudar de postura.
Vetaram a Venezuela?
Acabo de receber a notícia de que Mauro Vieira vetou a inclusão da Venezuela na lista de países que pretendem ingressar no BRICS.
O veto teria sido verbalizado por Mauro Vieira.
Vale ressaltar que não se trata de uma lista de países que ingressaram no BRICS. Se trata de uma lista de pretendentes.
Abaixo a relação dos países que o Brasil não teria vetado. Copiei e colei de uma mensagem que recebi.
JUST IN: BRICS officially adds 13 new nations to the alliance as partner countries (not full members). 🇩🇿 Algeria 🇧🇾 Belarus 🇧🇴 Bolivia 🇨🇺 Cuba 🇮🇩 Indonesia 🇰🇿 Kazakhstan 🇲🇾 Malaysia 🇳🇬 Nigeria 🇹🇭 Thailand 🇹🇷 Turkey 🇺🇬 Uganda 🇺🇿 Uzbekistan 🇻🇳 Vietnam @BRICSNews
Foi realmente isto que ocorreu?
Se foi, quais os argumentos?
O que diferenciaria a Venezuela de alguns países acima? Ou dos que já integram o BRICS?
Salvo informação nova, a impressão que fica é que o Brasil cruzou uma linha vermelha.
No plano da grande política, é o Brasil que perde pontos no seu papel de liderança regional.
No plano da pequena política, deixo para comentar outra hora.
Mas no plano pessoal, só me vem à mente a variante de um famoso ditado romano: a política ama a ingratidão, mas odeia os ingratos.
Para os que acreditam, que Deus proteja suas almas.
quarta-feira, 23 de outubro de 2024
Brasil e Venezuela: tic-tac em Kazan
terça-feira, 22 de outubro de 2024
Perguntas sobre a posição de Celso Amorim acerca da Venezuela
No dia 21 de outubro, teve início na Universidade Federal do ABC a IX Semana de Relações Internacionais.
Numa das atividades, houve um debate sobre a conjuntura internacional.
Neste debate, uma aluna perguntou sobre a entrada da Venezuela nos BRICS.
Antes e depois do debate, outras pessoas têm perguntado o mesmo, mais especificamente sobre qual seria a posição do Brasil.
Uma resposta apareceu em uma entrevista de Celso Amorim ao jornal O Globo (ver ao final o endereço e a íntegra do que foi disponibilizado).
Segundo o que foi publicado, Amorim teria dito que "talvez ainda não seja possível chegar a uma conclusão. Não estou preocupado com a entrada ou não da Venezuela, não estamos fazendo julgamento moral e nem político sobre o país em si. O BRICS tem países que praticam certos tipos de regime, e outros tipos de regime, a questão é saber se eles têm capacidade pelo seu peso político e pela capacidade de relacionamento, de contribuírem para um mundo mais pacífico".
Amorim também teria afirmado que "o Brasil quer fortalecer os BRICS, tivemos um aumento recente, estamos nos adaptando a esse aumento. A própria Arábia Saudita, disse que ia entrar, foi em algumas reuniões, não foi a outras. Queremos que haja BRICS fortalecido, países que possam realmente contribuir para paz pelo equilíbrio".
Finalmente, Amorim teria explicado que "não acho que deve ser restritivo, mas tem países que pela sua capacidade de relacionamento, compensam tamanho pequeno e a partir dessa ideia podem ter um peso nas relações internacionais, influenciar na paz mundial, no desenvolvimento e na mudança da governança global".
Pouco depois da divulgação da entrevista ao Globo, a CNN divulgou que Celso Amorim teria dito que "eu não defendo a entrada da Venezuela. Acho que tem que ir devagar. Não adianta encher [o BRICS] de países, senão daqui a pouco cria-se um novo G77".
Sempre pode ter havido má interpretação ou má edição do que foi dito. Assim, por enquanto me limito a três comentários e algumas perguntas.
Primeiro.
Em 24 de agosto de 2023, foi anunciado que seis novos países ingressariam no BRICS. Aqui a lista dos seis: Argentina, Arábia Saudita, Emirados Árabes Unidos, Egito, Etiópia e Irã. Naquela ocasião, o presidente Lula saudou a entrada dos seis. Ao que consta, o Brasil se empenhou pela entrada da Argentina. Posteriormente, já no governo Milei, a Argentina desistiu de participar. Entendo que Celso Amorim diga que não está fazendo juízo sobre nenhum país, mas sim sobre os critérios. Mas, olhando quem já teve o ingresso aprovado, qual seria o critério para não aceitar o ingresso da Venezuela?
Segundo
Consta que dezenas de países teriam pedido ingresso no BRICS. Caso nenhum ingresso seja aprovado em Kazan, não haverá discriminação. Mas caso se aprove o ingresso de alguns e o de outros não, qual seria o critério para o Brasil se opor, especificamente, ao ingresso da Venezuela?
Terceiro
Olhando a composição atual do BRICS, é mais do que razoável ampliar a presença latinoamericana e caribenha no grupo. Consta que alguns países da nossa região pediram ingresso. Caso ninguém da região seja admitido, qual seria o motivo? Caso algum país da região seja admitido e a Venezuela não, qual seria o motivo?
Quarto
Se chegarmos a uma situação limite, do Brasil ser o único a se opor a entrada da Venezuela, estaremos na prática fazendo um "julgamento" sobre o país "em si". Neste contexto, o Brasil irá assumir o ônus de, na prática, vetar o ingresso da Venezuela? E, caso cheguemos a este ponto, como lidar com as repercussões disso no processo de integração regional?
Segue o endereço do texto comentado
Segue o texto comentado
Discussão sobre entrada de Venezuela nos Brics não é 'julgamento moral e nem político', diz Celso Amorim
Assessor defende que a cúpula esteja aberta a países que tenham capacidade de relacionamento
A discussão sobre o Brasil se posicionar contrário a entrada da Venezuela nos Brics (grupo que originalmente reunia Brasil, Rússia, Índia e China) não se trata de "julgamento moral e nem político", afirmou Celso Amorim, principal conselheiro para assuntos internacionais do presidente Luiz Inácio Lula da Silva.
O assessor esteve com Lula nesta segunda-feira no Palácio da Alvorada, enquanto o presidente se recupera de um acidente doméstico no sábado, e disse que é possível que "não se chegue a uma conclusão" sobre a posição do Brasil neste momento.
— Talvez ainda não seja possível chegar a uma conclusão. Não estou preocupado com a entrada ou não da Venezuela, não estamos fazendo julgamento moral e nem político sobre o país em si. O Brics tem países que praticam certos tipos de regime, e outros tipos de regime, a questão é saber se eles têm capacidade pelo seu peso político e pela capacidade de relacionamento, de contribuírem para um mundo mais pacífico — disse Amorim ao GLOBO.
A Venezuela se candidatou para ingressar no colegiado e a primeira cúpula do colegiado ampliado deverá debater a entrada do país comandado por Nicolás Maduro. O encontro ocorre em Kazan, na Rússia, de 22 a 24 de outubro. O grupo reúne, além do Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul, e desde o ano passado, Egito, Irã, Emirados Árabes Unidos, Arábia Saudita e Etiópia.
— O Brasil quer fortalecer os Brics, tivemos um aumento recente, estamos nos adaptando a esse aumento. A própria Arábia Saudita, disse que ia entrar, foi em algumas reuniões, não foi a outras. Queremos que haja Brics fortalecido, países que possam realmente contribuir para paz pelo equilíbrio — argumenta o assessor.
Amorim defende que não haja uma regra rígida, mas que a cúpula esteja aberta a países que tenham clara capacidade de relacionamento, o que compensaria nações de menor tamanho. O assessor cita o exemplo da Turquia, que não integra o grupo e faz contribuições efetivas.
— Não acho que deve ser restritivo, mas tem países que pela sua capacidade de relacionamento, compensam tamanho pequeno e a partir dessa ideia podem ter um peso nas relações internacionais, influenciar na paz mundial, no desenvolvimento e na mudança da governança global.
Devido ao acidente doméstico do último sábado, Lula cancelou a ida à Rússia e enviou o chanceler Mauro Vieira como chefe da delegação brasileira. O ministro representará Lula em todos os encontros da cúpula.
Ao falar em nome do presidente, o chanceler deverá fazer a defesa de dois pontos considerados prioritários na política externa de Lula. São eles a reforma da governança global, com destaque para o Conselho de Segurança da ONU, e a busca de formas de os países do bloco dependerem menos do dólar nas transações comerciais e de organismos multilaterais de crédito, como o Fundo Monetário Internacional e o Banco Mundial.
BRICS: seria cômico, se não fosse trágico
Que os BRICS têm importância, todos sabemos.
Que a ausência de Lula na reunião de Kazan é prejudicial, todos sabemos.
Que o Itamaraty é capaz de dar conta do recado, seja lá qual for, também sabemos.
O que eu não sabia é o nome do nosso "sherpa" em Kazan.
Acabo de ler a respeito, na matéria cujo endereço está a seguir: https://noticiabrasil.net.br/20241022/as-negociacoes-foram-concluidas-com-exito-diz-sherpa-brasileiro-do-brics-sobre-novos-membros-37027124.html
Se for verdade o que está nesta matéria, o nome do "sherpa" é Sabóia.
Eduardo Sabóia.
Para quem não lembra do personagem, é o pivô da demissão do chanceler Patriota.
Mais detalhes aqui: https://exame.com/brasil/senador-boliviano-veio-ao-brasil-com-eduardo-saboia/
Que este cidadão continue no serviço público, posso compreender.
Mas que este cidadão esteja nesse lugar e momento estratégico, chega a ser cômico, se não fosse trágico.
Definitivamente, nem todo poço tem fundo.
Salvo que tudo seja uma mentira de certa imprensa. Ou, quem sabe, uma invenção do sensacionalista.
Obrigado, Reginaldo Lopes!
Faltam poucos dias para o segundo turno das eleições municipais de 2024.
Um dos principais quadros do PT no Congresso, o deputado Reginaldo Lopes defende que o partido passe por uma reformulação programática em 2025, quando será eleita a nova direção partidária. No momento que o Centrão e a direita avançam nas eleições municipais, o petista cobra mais engajamento dos ministros e avalia que o governo é muito dependente da figura do presidente.
“O governo está muito preso em sua grande estrela, que é o próprio Lula, e seus ministros estão deixando a desejar”, disse Lopes à CNN. “Os governos do Lula 1 e 2 mudaram a base social do Brasil, mas o PT não mudou. O PT não deu conta de entender o papel dos evangélicos, o novo mundo do trabalho e que o agro avançou muito. O PT faz uma disputa ideológica [com o agro] sem sentido”, disse Reginaldo Lopes.
Ainda segundo o deputado, o “governo precisa de foco”. Lopes afirmou que apoia o prefeito Edinho Silva para a presidência do PT.
Reginaldo Lopes diz que PT deveria liderar criação de nova entidade latino-americana no lugar do Foro de SP – Folha (Painel)
Ex-líder do PT na Câmara, o deputado Reginaldo Lopes (MG) defende que o partido lidere a criação de uma nova entidade latino-americana no lugar do Foro de SP, que reúne legendas de esquerda. “Deveríamos constituir um foro democrático de centro para pensar o desenvolvimento social e econômico da América Latina, as conexões entre os diversos países e projetos conjuntos nas áreas social e de infraestrutura. O Foro de São Paulo não foi pensado para isso e não cumpre esse papel”, diz Lopes.
Lopes afirma que vai propor a ideia no ano que vem. O Foro abriga o PT e partidos que comandam as ditaduras na Venezuela e na Nicarágua. “São regimes que representam atualmente o maior constrangimento para um projeto democrático de esquerda na América Latina”, diz.
domingo, 20 de outubro de 2024
Sobre a proposta de antecipação da eleição da presidência nacional do PT
Quando uma mesma notícia sai em vários jornais, das três uma: ou é mentira de certa mídia, ou tem alguém plantando balões de ensaio, ou é verdade.
No caso, refiro-me a proposta de antecipar a eleição da nova presidência do PT para dezembro de 2024.
Um exemplo do que vem sendo divulgado: Lula quer adiantar eleições da direção do PT para dezembro - Cn7 - Sem medo da notícia
Na dúvida, vamos por partes.
A atual direção do PT foi eleita em 2019.
Em 2023, deveria ter ocorrido a eleição de uma nova direção.
O Diretório Nacional do PT decidiu, por maioria, prorrogar o mandato da direção eleita em 2019.
A direção é eleita no chamado PED: processo de eleição direta das direções partidárias.
Para que o PED ocorra, é necessário um conjunto de procedimentos previstos no estatuto.
É impossível realizar estes procedimentos estatutários entre 28 de outubro e 31 de dezembro.
Portanto, o único jeito de antecipar para dezembro as eleições da direção seria alterando o estatuto.
Para alterar o estatuto, seria necessário reunir o Diretório Nacional e este aprovar, por maioria qualificada, as alterações.
Obviamente, se tem alguém pensando em fazer algo assim, deve estar supondo que estas coisas são simples e fáceis de fazer.
Levando em conta a correlação de forças no atual Diretório Nacional, as divisões existentes no grupo atualmente majoritário e, também, levando em conta o reclamo geral por um balanço do processo eleitoral, o mínimo que se pode dizer é que não seria nada fácil fazer uma operação de alteração do estatuto, com o objetivo de eleger uma nova direção ainda em dezembro de 2024.
Seria impossível? Não, não seria. Mas o efeito prático de uma manobra deste tipo seria tão imponderável, que é difícil acreditar que exista mesmo alguém defendendo isso.
Até porque tudo de que não necessitamos é de novas direções eleitas no afogadilho, sem debate qualificado, sem ampla participação do conjunto dos filiados.
Lembrando, aliás, que não se trata apenas de eleger uma nova direção nacional, mas também de eleger direções estaduais e municipais em todo o Brasil.
Isto posto, será que tem alguém falando uma coisa e pensando noutra?
A saber, será que tem alguém pensando em antecipar a substituição da presidenta nacional do PT?
O estatuto do Partido diz que a presidência nacional é eleita diretamente pela base do Partido, ao mesmo tempo e no mesmo processo que se elege o conjunto do diretório nacional.
Mas, se no meio do mandato a pessoa que ocupa a presidência nacional tem que se afastar do cargo, cabe ao Diretório Nacional fazer a substituição.
É o que ocorreu, por exemplo, quando Lula foi candidato à presidência da República em 1994. Ele se licenciou e, no lugar de Lula, Rui Falcão assumiu interinamente a presidência do Partido.
É o que ocorreu, também, quando Zé Dirceu assumiu um ministério no Governo Lula 1, em 2003. Ele se licenciou e, no lugar de Dirceu, José Genoíno assumiu interinamente a presidência do Partido.
É o que ocorreu, ainda, quando Genoíno se afastou da presidência, em 2005. No lugar de Genoíno, Tarso Genro assumiu interinamente a presidência do Partido. Supostamente Genro seria candidato à presidência nacional do Partido, mas ele acabou desistindo.
Mais detalhes sobre este episódio estão aqui: Valter Pomar: Argumentos para quem quer votar no PT
Outra substituição ocorreu quando Ricardo Berzoini, em 2006, se afastou da presidência do Partido e, no seu lugar, assumiu Marco Aurélio Garcia.
Nova substituição ocorreu quando José Eduardo Dutra, por razões de saúde, se afastou da presidência nacional do PT, sendo substituído no dia 29 de abril de 2011 por Rui Falcão. Posteriormente, Rui seria candidato e eleito presidente nacional do Partido, no PED de novembro de 2013.
Desde então não houve mais nenhuma substituição: Gleisi Hoffmann foi eleita em 2016 e reeleita em 2019.
Moral da história: o estatuto prevê a possibilidade de uma substituição interina. Nesse caso, qualquer membro (titular ou suplente) do Diretório Nacional pode assumir interinamente a presidência, até que se realize o processo normal de eleição.
Será que tem alguém pensando nisso? Espero sinceramente que não. Pois nosso problema, a essa altura do campeonato, é ganhar o segundo turno. E, depois disso, fazer um debate profundo, sobre o resultado eleitoral, sobre a situação política em geral e sobre nossas tarefas. É com base neste debate que deve ocorrer a eleição da nova direção partidária, inclusive da pessoa que presidirá o Partido.
Escolher interinamente um presidente, para depois fazer o debate e em seguida a eleição das direções e presidência definitiva, causaria muita confusão e nenhuma solução.
Isto posto, espero que tudo não passe de mentira ou balão de ensaio.
A votação das esquerdas e do PT
O PT não pretende ser, nunca foi e nunca será o "partido único" da esquerda brasileira.
Há uma grande quantidade de pessoas que são de esquerda, mas não se consideram integrantes de nenhuma organização.
Há organizações de esquerda que agem quase como partidos, embora não se chamem nem se considerem assim.
Há partidos que não conseguiram ou decidiram não ter registro legal.
E há 11 partidos que possuem registro legal e que podem ser localizados no espectro que vai da centro-esquerda até a extrema-esquerda.
São eles: o PCO, o PCB, o PSTU, a UP, a Rede, o PCdoB, o PV, o PSOL, o PDT, o PSB e o próprio PT.
Segundo o Grupo de Trabalho Eleitoral do PT, na eleição de 2024 para vereadores, estes partidos de centro-esquerda, esquerda e extrema-esquerda tiveram - somados - cerca de 23 milhões 808 mil e 619 votos.
Dizendo de outra forma: a maior parte da classe trabalhadora ou não vota em ninguém, ou vota em candidaturas a vereador lançadas por partidos de direita.
Para registro: MDB teve 11,2 milhões de votos, PSD teve 10,3 milhões, PP teve 10,1 milhões de votos, PL teve 9,7 milhões de votos, União teve 9,2 milhões de votos e Republicanos teve 8,1 milhões de votos. Todos estes, mais os demais partidos da centro-direita, direita e extrema-direita, alcançaram mais de 90 milhões de votos.
Evidentemente, nem todos os votos recebidos pelas direitas, assim como nem todos os votos obtidos por partidos de centro-esquerda, esquerda e extrema-esquerda são oriundos da classe trabalhadora.
Feita esta ressalva, os números abaixo permitem ter uma ideia aproximada da influência relativa que cada setor das esquerdas conseguiu no primeiro turno das eleições municipais de 2024, no eleitorado em geral e na classe trabalhadora com consciência de classe, respectivamente.
O Partido da Causa Operária teve 3.363 votos.
O Partido Comunista Brasileiro teve 4.811 votos.
O Partido Socialista dos Trabalhadores Unificado teve 19.426 votos.
A Unidade Popular teve 41.707 votos.
A Rede teve 721.005 votos.
O Partido Comunista do Brasil teve 912.001 votos.
O Partido Verde teve 1.268.321 votos.
O Partido do Socialismo e Liberdade teve 1.794.321 votos.
O PDT teve 4.967.364 votos.
O PSB teve 6.710.578 votos.
O Partido dos Trabalhadores teve 7.365.428 votos.
Em relação às eleições municipais de 2020, só o PT e o PSB tiveram crescimento expressivo em número absoluto de votos. Rede e PSOL ficaram mais ou menos do mesmo tamanho. PCdoB, PV e PDT caíram.
UP, PSTU, PCO cresceram e PCB caiu, mas nesses quatro casos as votações são muito pequenas e a variação estatística não tem o mesmo significado dos demais casos.
Se colocarmos na balança a votação obtida noutro tipo de processos eleitorais (para prefeitos, governadores, deputados, senadores, presidente), o peso relativo do PT frente aos demais partidos das esquerdas cresce significativamente.
Essa relação de forças dentro da esquerda pode mudar? Pode, quase tudo pode. Aliás, em algumas cidades importantes o PT já foi superado por outros partidos que integram este campo que vai da centro-esquerda até a extrema-esquerda.
Mas acontece o seguinte: até agora, os partidos deste campo que estão mais próximos do PT em termos de votação e que algumas vezes o superam, são exatamente aqueles "parentes politicamente mais distantes", onde a influência da direita é maior, caso do PDT e do PSB.
Já a superação do PT por "parentes mais próximos", como o PSOL e o PCdoB, é algo muito raro.
Ademais, parte da votação obtida por estes "primos" se dá no ambiente criado pela atuação do próprio PT. Quando o PT perde força, estes partidos também tendem a diminuir.
Quantos aos que criticam o PT pela esquerda, sua presença eleitoral é muito reduzida. E sua influência social, ao menos neste momento, não corresponde a seu ânimo militante, nem a sua aparente nitidez teórica.
Destes dados e tendências é possível extrair várias e diferentes conclusões.
Uma é a de que, até agora, embora o petismo tenha perdido força na classe trabalhadora, apesar dos esforços das direitas, da torcida de alguns primos e da imensa "contribuição" de certos próceres do próprio Partido, a verdade é que o PT continua sendo o partido mais forte da esquerda, tanto eleitoral quanto socialmente.
Aliás, as pessoas que têm como objetivo construir algo melhor do que o PT enfrentam um dilema cruel. Para terem êxito, é preciso que confluam três variáveis: primeiro, que a direita tenha muito êxito na luta contra o petismo; segundo, que o PT cometa muitos erros; terceiro, que os candidatos a substituir o PT façam muito trabalho de base junto à classe trabalhadora.
Acontece que tanto o êxito da direita quanto os erros do PT causam enormes danos para a classe trabalhadora, tornando tudo ainda mais difícil para todas as esquerdas. Sem falar que ganhar influência junto à classe exige muito esforço e tempo.
É também por isso que o enfraquecimento relativo do PT não resultou, até agora pelo menos, no surgimento de uma alternativa à esquerda.
Isso apesar de que, desde 1989 até hoje, muitos militantes de esquerda tenham desistido de disputar o PT. Alguns abandonaram a militância, outros continuaram militantes sem partido, outros estão contribuindo em outras organizações, outros seguem no PT como eleitores.
Mas todos e todas, de uma forma ou de outra, às vezes contra sua própria vontade, continuam gravitando ao redor do petismo, entre outros motivos porque, sem o PT e contra o PT, não está nada fácil derrotar o lado de lá.
Como nem todo mundo é de ferro, acontece também de militantes da esquerda crítica ao PT acabarem priorizando objetivos eleitorais mais ou menos pessoais, para os quais vislumbram maiores chances em outras legendas. O engraçado é que, nestes casos, é comum desejarem ter o PT como aliado, para ajudar no famoso quociente eleitoral.
E como por enquanto não há um ambiente de fortes lutas sociais espontâneas, nem a esquerda realmente existente faz o devido empenho para tentar organizar e mobilizar a classe, o resultado final é que boa parte dos discursos críticos ao PT não se converte em alternativa real, apesar do generoso espaço que algumas destas críticas recebem na grande mídia e até em certos meios populares.
Aliás, muitos dos que tentaram construir uma alternativa conseguiram, muitas vezes, mimetizar mais nossos defeitos que nossas qualidades.
Uma segunda conclusão que é possível extrair dos dados e tendências anteriormente expostos, é que seguem existindo ótimos motivos para continuar disputando os rumos do PT.
É seguro que as contradições e perigos serão cada vez maiores, exatamente porque o PT expressa no seu interior todas as tensões e divisões existentes na classe trabalhadora brasileira, nessa quadra histórica cada vez mais polarizada em que vivemos.
Por isso mesmo, como em quase tudo na vida, não há garantia nenhuma de que teremos êxito. Mas basta olhar o que ocorreu nestas eleições municipais, inclusive no segundo turno, para perceber como seriam as coisas se o PT não existisse.
Uma terceira conclusão é a de que o tempo corre contra nós. O futuro será cada vez mais difícil, se a esquerda como um todo, especialmente o PT, não tomar medidas urgentes para recuperar influência junto à classe trabalhadora, não apenas política e organizativa, mas também ideológica. Plano no qual só o socialismo salva.
sábado, 19 de outubro de 2024
O PT, o joio e o trigo
"(...) um partido eleitoral, um partido à moda 'americana', isto é, um partido que pensaria só em ganhar votos, que desvalorizaria o trabalho de direto contato com a gente para lhes ajudar a pensar, a organizar-se, e a lutar, que esvaziaria de todo o conteúdo a militância política, que pensaria apenas em ter deputados, mais senadores, mais vereadores, mais assessores, mais postos de poder.... Mas um partido 'renovado' deste modo seria ainda o Partido dos Trabalhadores? (...)"
A alteração que fiz na citação original foi apenas no final.
A citação original fala do Partido Comunista Italiano, não do PT brasileiro.
Trata-se, segundo me disse o amigo citado, de uma pergunta retórica de Berlinguer, secretário geral do PCI, em um texto publicado em 1981, na revista Rinascita.
Em 1981, o Partido Comunista Italiano era chamado, por alguns, de o maior partido comunista do Ocidente.
Berlinguer morreu em 1984.
O Partido Comunista Italiano suicidou-se em 1991.
Uma das versões acerca do suicídio pode ser lida na obra resenhada aqui: Valter Pomar: Sobre "O alfaiate de Ulm"
Pano rápido.
De aqui até 27 de outubro, devemos fazer de tudo para ganhar o segundo turno das eleições municipais, especialmente em São Paulo, Fortaleza, Cuiabá, Porto Alegre e Natal.
Passada a eleição, se possível em um ambiente de vitória, teremos que enfrentar o debate sobre nosso presente e nosso futuro.
E nesse momento vamos separar o joio do trigo.
De um lado quem defende seguir trilhando o caminho gringo.
De outro lado quem defende reafirmar o PT como partido militante e socialista.
*
Transcrevo a mensagem do meu amigo: Pergunta retórica de Berlinguer em um texto para a revista "Rinascita" de dez. de 1981: "um partido eleitoral, um partido à moda 'americana', isto é, um partido que pensaria só em ganhar votos, que desvalorizaria o trabalho de direto contato com a gente para lhes ajudar a pensar, a organizar-se, e a lutar, que esvaziaria de todo o conteúdo a militância política, que pensaria apenas em ter deputados, mais senadores, mais conselheiros (vereadores), mais assessores, mais postos de poder.... Mas um partido 'renovado' deste modo seria ainda o Partido Comunista Italiano?" (Citado em Guido Liguori, Berlinguer Rivoluzionario. Il pensiero politico di un comunista democratico, Carocci, 2014)
sexta-feira, 18 de outubro de 2024
Sobre mais um erro de Israel
Segundo consta, alguém uma vez criticou uma atitude de Napoleão, afirmando o seguinte: "é pior que um crime, é um erro".
Que Israel comete crimes, pouca gente duvida, embora sigam existindo contemporizadores e cínicos.
Mas, além de crimes, Israel também comete erros. Um dos erros mais recentes foi divulgar imagens dos momentos finais de um dos líderes do Hamas, Yahya Sinwar. Uma das versões está aqui:
https://m.youtube.com/watch?v=EAHAwzk0krU
Só vejo um "atenuante" para o erro: tentar influir no estado de ânimo da população de Israel, parte da qual tem profundas e crescentes divergências com Bibi.
Acontece que, para parte importante dos palestinos, especialmente para os que vivem em Gaza, a imagem não constitui novidade.
Afinal, mais de quarenta mil habitantes de Gaza já morreram em circunstâncias semelhantes.
Entretanto, não é trivial ver um líder do Hamas compartilhando a mesma situação dos demais habitantes de Gaza e, estando na beira da morte, ainda ter energia para lançar um pedaço de madeira no drone israelense.
Não faço ideia dos efeitos práticos e imediatos que a morte de Sinwar causará sobre o funcionamento do Hamas. Mas, no médio e longo prazo, duvido que cause os efeitos pretendidos por Israel.
Aliás, chega a ser paradoxal que a elite dirigente de Israel não compreenda o efeito deste tipo de imagem na psicologia do povo palestino.
Afinal, a narrativa que a elite de Israel construiu e divulga é a de uma história de séculos de perseguição, derrotas e martírios, de resiliência e de resistência, de Davis contra Golias, que teria culminado em 1947 com a decisão da ONU criando o Estado de Israel.
Se foi assim com Israel, porque não poderia ser assim com a Palestina?
A elite de Israel não acredita nisso porque se deixou contaminar pelo mais profundo racismo. Se enxerga como parte de um povo eleito e enxerga os palestinos como sub-humanos, portanto incapazes de proezas heroicas.
Neste contexto, divulgar os momentos finais de Sinwar - madeira contra drone - só reforça a ideia de que a luta pela libertação é assimétrica e, também por isso, pode durar muito tempo. Mas ao final triunfará.
Sobre as "pessoas" de Haddad
Em entrevista concedida recentemente à jornalista Monica Bergamo, o ministro da Fazenda Fernando Haddad referiu-se várias vezes aos "faria lima people" como "pessoas".
A citada entrevista e meus comentários a respeito estão aqui: Valter Pomar: Haddad, um ministro 100% sem tabus. Ou quase..
Não por coincidência, hoje um amigo me enviou uma entrevista muito ilustrativa acerca do que pensam tais "pessoas" ou, pelo menos, seus equivalentes gringos.
Refiro-me a Robert Citrone. A entrevista dele pode ser lida aqui: Exclusiva: Para Rob Citrone, Argentina liderará una década dorada para América Latina (bloomberglinea.com)
Embora grande parte da entrevista trate da Argentina e seja vertida no jargão esotérico da especulação financeira, existe um trecho onde ele fala, de forma bem direta, acerca do Brasil.
Traduzo abaixo o trecho, que pode ser conferido no endereço já disponibilizado. Os negritos são meus.
" (...) não nos sentimos cômodos com as políticas de Lula. Acreditamos que o ministro da Fazenda e, certamente, o presidente do Banco Central têm sido fantásticos. Estão tratando de fazer o correto, especialmente o presidente do Banco Central. Porém Lula, em nossa opinião, tem ideias equivocadas, com uma forte inclinação socialista e desejos populistas. Ademais, somos muito pessimistas sobre China e o Brasil tem várias exportações de matérias primas para China que são muito importantes. Acreditamos que estas exportações serão débeis. Porém, em resumo, o que nos preocupa são os ricos e as políticas no Brasil. Existem empresas extraordinárias no Brasil, é um país incrível e acreditamos que com uma nova liderança em dois anos, Brasil poderia ser um excelente investimento de longo prazo. (...) acreditamos que virá uma liderança mais centrista (...)".
Será que esta "pessoa" é representativa do seu meio?
Será que esta avaliação é o que eles realmente pensam ou o que dizem de público?
Seja como for, duas coisas podem ser dadas como certas.
Primeiro: uma parte expressiva do grande capital trabalha para recuperar o governo brasileiro em 2026. E, para isso, as tais "pessoas" apostam na construção de "uma liderança mais centrista".
O que constitui motivo suficiente para que nossa avaliação das eleições municipais não caia na ingenuidade de transformar em vitórias "nossas", vitórias de quem na verdade pode compor uma "frente ampla" sem o PT e contra o PT.
Segundo: não adianta falar em amor, aceitar o arcabouço ou escolher ministros "fantásticos". Faça o que fizer, Lula segue incomodando tais "pessoas".
Há petistas que acham que isso seria motivo para ampliar a moderação, com o objetivo de conquistar o coração peludo das tais "pessoas".
E há petistas que pensam exatamente o contrário: é preciso enfrentar e reduzir ao máximo o poder econômico e político das tais "pessoas".
Este é um dos principais temas em debate no PT, hoje, nos próximos dias, semanas e meses. A depender da resposta que prevaleça, teremos maiores ou menores dificuldades para reconquistar o apoio dos setores da classe trabalhadora que se distanciaram de nós no último período.
quarta-feira, 16 de outubro de 2024
Haddad, um ministro 100% sem tabus. Ou quase..
Fernando Haddad, ministro da Fazenda, concedeu uma entrevista à jornalista Monica Bergamo.
A entrevista
pode ser lida aqui:
Há, também, trechos da entrevista em em vídeo.
Aqui:
https://youtu.be/hvu2mKPsVEg?si=r826DQ9iD_xVWYhj
E aqui:
https://youtu.be/aLn1IrBUH_g?si=g4ZNhBHuTpUjJOI8
Lendo a
entrevista, uma dúvida nova somou-se à uma dúvida velha.
A dúvida velha
é: por qual motivo atribuir, a um nosso potencial candidato à presidência, a tarefa de
fazer cortes e ajustes?
A dúvida
nova é: por qual motivo dar notícias ruins bem na véspera do segundo turno das eleições
municipais?
Alguma razão
deve existir, afinal de contas tanto Lula quanto Haddad não são propriamente inexperientes.
Mas como mesmo os mais tarimbados cometem seus erros, sigo em dúvida.
Além das
dúvidas citadas, fiquei com duas certezas.
Primeiro: Haddad é mesmo o mais tucano dos petistas. É
isso que explica não apenas o diagnóstico que ele faz da situação, como também seu
sincericídio quanto a Faria Lima.
Segundo: se
depender da política atualmente adotada pela Fazenda, o Brasil passará bem
longe de qualquer coisa que se possa chamar de desenvolvimento. Aliás, a palavra
“desenvolvimento” nem ao menos comparece na versão editada da entrevista.
Isto posto,
alguns comentários sobre a entrevista, que reproduzo na íntegra ao final.
A entrevista
abre como de costume: ...as receitas cresceram, mas os gastos estruturais
também. Em consequência, a dívida pública aumentou, bem como as dúvidas sobre
sua sustentabilidade...
Ao responder, Haddad simplesmente desconsidera que nosso maior “gasto estrutural” - e descontrolado - está relacionado com os juros, com o serviço da dívida, com a Faria Lima.
Esta
omissão é fatal e contamina tudo o que vem a seguir.
Para além disso, Haddad parte do pressuposto de que o diagnóstico implícito na pergunta é verdadeiro, ou seja, de que há mesmo um descontrole nas despesas, um “desequilíbrio fiscal”.
Aliás, foi desse pressuposto que nasceram os números mágicos de 70% e
2,5%.
A soma do Tico com o Teco– aceitar como inevitável a sangria financeira e admitir a
existência de um desequilíbrio – produz o resultado óbvio: a saída estaria em cortar.
Nós já sabemos o que acontece quando um governo de esquerda tenta fazer isso, como aconteceu na época de Palocci e na época de Levy. Acho que Haddad também sabe, mas ele parece estar mais preocupado com o Estado do que com o governo...
Aliás, quando aconteceu o debate sobre o Novo “Calabouço” Fiscal, um setor do PT alertou os problemas que decorreriam da opção pela contenção de gastos.
Um dos alertas foi: no médio prazo isso vai reduzir a presença do setor público. E isso seria um
desastre, pois o país precisa exatamente do contrário: aumentar o investimento
público.
Em resposta a esta e a outras críticas, a equipe do Ministério da Fazenda, ou tergiversou, ou apostou que as receitas cresceriam o suficiente para evitar tal cenário.
Na entrevista, Haddad reconhece parte da verdade: “Até aqui, deu certo”, mas a partir de agora precisa cortar na carne.
Um “detalhe” revelador, antes de seguir para a próxima pergunta.
Haddad diz que o “déficit
veio para alguma coisa em torno de 1% do PIB, excetuada a despesa
extraordinária com queimadas, que é pequena em relação ao orçamento, e com o
Rio Grande do Sul [por causa das enchentes]. Despesa da qual me orgulho: a
economia gaúcha está em franca recuperação”.
Situações
como a das queimadas, das enchentes e, acrescento, dos apagões, não são “extraordinárias”. Em
diversas áreas da economia e da sociedade brasileiras, estamos em situação
limite. A política de “apagar incêndio” através de recursos que não contam para
os limites pode fazer a alegria de algum cabeça de planilha desavisado, mas não resolve de maneira estrutural
os problemas do país.
Voltemos à
entrevista.
A segunda
pergunta foi uma afirmativa: “Mas há apreensão pois a dívida pública cresce”.
A
resposta dada por Haddad foi a seguinte: “A Faria Lima está, com razão,
preocupada com a dinâmica do gasto daqui para a frente. E é legítimo considerar
isso com seriedade. A soma das partes, das rubricas orçamentárias, pode fazer
com que o arcabouço fiscal aprovado por este governo não se sustente. O que a
Faria Lima está apontando —na minha opinião, com algum exagero em relação ao
preço dos ativos brasileiros — é que a dinâmica [dos gastos] para a frente é
preocupante. Pode ter impacto na dívida [que a União tem que fazer para
financiar seus gastos]. E o governo tem que tomar providências. A Fazenda está
com isso na mesa, 100%.”
Talvez
por não acreditar no que ouviu, a jornalista insiste: “Com a mesma preocupação?”
Haddad
não se faz de rogado e responde: “A mesma preocupação. Desde fevereiro estamos
tomando algumas medidas —que não são suficientes para endereçar esse problema
para o futuro próximo. E eu tenho conversado com o presidente Lula sobre esse
tema específico”.
Tudo bem que
o ministro da Fazenda tenha que dialogar com a Faria Lima. Mas o que Haddad comete nessa entrevista me
lembra algo que me contaram, certa vez, acerca de uma reunião de Palocci
com o setor financeiro: ele foi negociar e voltou vendido. E rendido.
Simplesmente
não é verdade que Faria Lima tenha razão para estar preocupada com
absolutamente nada. A Faria Lima não está exagerando. Ela está falsificando os
fatos. A dinâmica fiscal não é preocupante. A Faria Lima está fazendo terrorismo. Estão no papel
deles. O papel do ministro da Fazenda deveria ser o de enfrentar o terrorismo.
Mas não. O que Haddad diz, textualmente, é que está 100% com a mesma
preocupação da Faria Lima.
Ao responder
a pergunta seguinte, Haddad fala da “dinâmica dos gastos e do impacto disso
sobre a dívida. O impacto é o efeito monetário da política fiscal. Quando as
pessoas perdem a certeza de que o governo está endereçando esses temas, elas
começam a cobrar um prêmio de risco em juros”.
Para muita gente, o que foi transcrito anteriormente pode soar meio esotérico. Seja como for, Haddad sempre disse que o Arcabouço Fiscal era essencial, entre outros motivos, porque supostamente ele permitiria baixar os juros. E, com juros baixos, a economia poderia crescer. Ou seja, a política fiscal incidiria positivamente na política monetária.
O que ele está dizendo agora, quase dois
anos depois, é a mesma coisa que antes. E vai continuar dizendo a mesmíssima coisa enquanto
for ministro, porque pelo visto ele realmente acredita que “as pessoas” cobram
juros altos porque “perdem a certeza” de que o governo está mantendo os “gastos”
sob controle.
A realidade é outra. O mercado financeiro sempre vai dizer que os gastos estão descontrolados e, enquanto eles tiverem poder, vão cobrar o “prêmio” que puderem arrancar, doa a quem doer.
O papel do ministro da Fazenda deveria ser, na melhor das
hipóteses, o de mediar. Mas o que Haddad faz, nesta entrevista, é capitular 100%.
Mesmo quando a entrevistadora levanta a bola, ele não aproveita. Pergunta a entrevistadora: “... hoje os juros da dívida pública pagos pelo governo estão em torno de 7%, o dobro do PIB....”.
Responde Haddad:
“É esse o problema. Você tem que endereçar corretamente. Tem que dar
credibilidade para a dinâmica futura [de gastos e da dívida feita para
financiá-los] para trazer esses juros ao patamar adequado. Caso contrário, o
teu problema não vai ser de déficit primário [diferença entre arrecadação e
gastos do governo], mas de déficit nominal, que inclui o pagamento de juros. Eu
sempre disse, e repito: a política monetária e a fiscal têm que estar
harmonizadas. Ou você produz um ciclo vicioso do qual é difícil de sair. Onde
está a virtude? Em continuar fazendo o que é o mantra da Fazenda: as receitas
têm que voltar ao patamar adequado para financiar [os gastos], combatendo
jabutis que favorecem grupos específicos, por exemplo”.
Leiam
novamente o que está respondido acima e procurem alguma reclamação contra os
juros artificialmente altos. Não acharão. O “mantra” trata os juros, a dívida e o setor financeiro como variável intocável.
O resultado deste combo é a volta da lógica Palocci: a despesa tem que ser menor do que a receita, assim geramos
superávit, desta forma a taxa de juros vai cair e, feito o dever de casa, o setor privado vai comandar o crescimento.
Chega
a ser engraçado ver Haddad dizendo que a taxa de juros “vinha caindo até o
final de 2023”. Sim, vinha caindo... de um ponto da estratosfera para outro
ponto da estratosfera.
Perguntado
sobre o que fala com Lula, Haddad dá uma resposta também muito didática: “Falo
o seguinte: o mercado está entendendo que a soma das partes —a soma do salário
mínimo, saúde, educação, BPC— é maior do que o todo. Ou seja, vai chegar uma
hora em que esse limite de 2,5% [de crescimento da despesa em relação ao da
receita] não vai ser respeitado. Ainda que a receita responda, o arcabouço
fiscal não vai funcionar se a despesa não estiver limitada. Eu falo para o
presidente exatamente o que estou falando para você. Que precisa ajustar a
despesa. Nós precisamos enfrentar essa questão para as pessoas enxergarem que
as somas das partes vai caber no todo”.
Ou seja: o ministro da Fazenda fala para o presidente aquilo que “o mercado” está entendendo. E propõe “ajustar a despesa” para “as pessoas” enxergarem que “a soma das partes vai caber no todo”.
As “pessoas”, como já foi explicado anteriormente,
são os grandes detentores da dívida pública.
O problema é
que estas “pessoas” sempre entenderam assim; elas sempre quiseram, defenderam e lutaram por um Estado
menor.
Aliás, é revelador que Hadad tenha enumerado como “partes” cuja soma é maior do que o todo exatamente o salário mínimo, a saúde, a educação e o BPC.
É aí que o mercado quer cortar.
Haddad, como
se sabe, é um estadista. Por isso ele
explicita que sua preocupação não é com o governo Lula, mas com o Estado brasileiro. Palavras dele: “O que eu estou dizendo agora para ele [Lula] é: 'Olha, o senhor é um
presidente de quatro, oito anos, não importa. Mas nós estamos cuidando do
Estado brasileiro, para além do seu mandato. As pessoas não estão olhando só
para 2026. O mercado financeiro olha para 2027, para 2028, para 2029, para 2030.
Vê a trajetória da dívida [em alta] e muitas vezes cobra à vista [exigindo
juros maiores] o problema [que vai estourar mais à frente e] que ela está
antecipando'. É natural. Estou mostrando ao Executivo, ao Legislativo e ao
Judiciário que nós temos que equacionar estruturalmente as finanças do país.
Caso contrário, o mercado, que não está pensando em governo, está pensando na
rentabilidade dos seus ativos, antecipa decisões e prejudica o presente. Então,
não há como contornar o problema. Você pode fazer isso por um, dois, seis
meses. Mas não vai conseguir equacionar”.
Quatro ou oito anos, não importa???!!!
Volto a dizer: qualquer ministro da Fazenda é obrigado a ter alguma empatia com os interesses do grande capital, assim como o diretor de um presídio de alta segurança precisa ter alguma empatia com os que estão sob sua guarda. Mas Haddad exagera na empatia.
Não falo apenas de sua insistência em falar de “pessoas”, para se referir ao mercado financeiro, ao mesmo tempo em que não fala nada, absolutamente nada, acerca das pessoas que serão prejudicadas pelos ajustes nos gastos.
Quando falo do exagero na empatia, refiro-me a tratar como “natural” a
chantagem dos interesses de curto prazo do mercado financeiro.
Releiam: “(...)
nós estamos cuidando do Estado brasileiro, para além do seu mandato (...) o
mercado financeiro (...) Vê a trajetória da dívida [em alta] e muitas vezes
cobra à vista [exigindo juros maiores] o problema [que vai estourar mais à
frente e] que ela está antecipando'. É natural. (...) temos que equacionar
estruturalmente as finanças do país. Caso contrário, o mercado, que não está
pensando em governo, está pensando na rentabilidade dos seus ativos, antecipa
decisões e prejudica o presente (...)”.
Vou dizer de
outra forma: há diferentes formas de “equacionar estruturalmente as finanças do
Brasil”. A forma que considera “natural” a lógica da “rentabilidade dos ativos” tem
como efeito desestruturar ainda mais a pequena parte do Estado que pode servir
ao povo.
Não sei se
Haddad vai convencer Lula.
Espero que não.
Mas acho revelador que Haddad apresente Lula como “o campeão do superávit primário em seus oito anos de governo”.
A questão é: há maneiras e maneiras de produzir superávit primário e reduzir a dívida. É possível, por exemplo, combinar superávit com recessão, ou com crescimento baixo ou com crescimento alto.
Haddad parece ter escolhido a mediocridade e vende isso como se fosse um grande sucesso. O Brasil precisa de crescimento muito alto, por décadas, combinado com ampliação do bem-estar. Precisamos de desenvolvimento. Tema que, como já foi dito, não comparece, ao menos na versão editada da entrevista.
Ademais, vamos combinar, o que
interessa para a imensa maioria da população não é o superávit primário, mas
sim o desenvolvimento, a ampliação do bem-estar social. Uma célebre economista
talvez lembrasse que povo não come superávit primário.
Na entrevista, Haddad chega ao ponto de defender Fernando Henrique, negando a existência de uma "herança maldita" e se atrapalhando quando lembrado, pela jornalista, que o próprio Lula usava a expressão "herança maldita".
A entrevista de Haddad é particularmente importante, também, porque mais uma vez alguém da Fazenda diz de público o que tergiversa ou nega nas conversas privadas.
Perguntado explicitamente
sobre vinculação dos gastos de educação e saúde ao aumento da receita, indexação
do salário mínimo, BPC e seguro desemprego Haddad diz o seguinte: "O
governo, e eu não me excluo, demorou a perceber o grau de disfuncionalidade
causado pela alteração de alguns programas. Desde 2021 houve a PEC do Calote
[que adiou o pagamento de precatórios], a retirada de filtros do BPC e do Bolsa
Família [para a concessão dos benefícios], a ampliação do Fundeb [fundo da
educação básica] de R$ 22 bilhões para quase R$ 70 bilhões em 2026 sem fonte de
financiamento. Ou seja, muitas das despesas que se pretende cortar foram
contratadas antes de o Lula tomar posse. Quando vê isso, o presidente fala
assim: 'Pô, mas eu vou cortar dos pobres?'. Percebe a situação?” [Eu digo a
Lula] 'Ninguém está dizendo que é fácil. O senhor colocou o pobre no
orçamento, ninguém está pedindo para tirar. Mas há questões estruturais que
precisam ser resolvidas. Porque são distorções muitas vezes criadas com
finalidades eleitorais, particularmente pelo governo anterior. Elas estão
no nosso colo. Não tem pra quem dar a batata quente. Então temos que
resolver".
Repito aqui o trecho mais mágico: "O senhor colocou o pobre no orçamento, ninguém está
pedindo para tirar. Mas...".
Na
narrativa que Haddad vai alinhavando, vinculação dos gastos de educação e
saúde ao aumento da receita, indexação do salário mínimo, BPC e seguro
desemprego entram no mesmo combo das distorções com finalidades
eleitorais.
O nome disto é influência do pensamento hegemônico. O mais tucano dos petistas está demonstrando merecer o apelido carinhoso.
Definitivamente,
a vida do presidente Lula é difícil. Seu ministro diz publicamente que, “na condição de ministro da Fazenda", "tem a obrigação de informar ao público as preocupações da área econômica.
Mas não posso antecipar decisões que vão ser tomadas pelo chefe do executivo”.
Ou seja: o
ministro tem a "obrigação" de se reportar “ao público” através da Folha. Leia-se, fazer pressão pública. E o presidente que decida como lidar com a “batata
quente”.
Bom, se o ministro considera ter essa obrigação, considero como obrigação dos que discordam disso é vir à público e se manifestar.
Haddad é um
cara muito inteligente, sem dúvida. Talvez por isso, ele confie que seria possível cortar, sem mexer com os mais
pobres: “Há uma forma inteligente de endereçar o problema. Do mesmo jeito que a
gente fez o país crescer 3%, e ninguém acreditava [que isso seria possível]”.
Sem querer empanar seu (dele) otimismo, um dos problemas é que Haddad não percebe que o crescimento obtido veio, em parte, da mesma fonte que
ele agora quer cortar. Leiam a sequência abaixo.
Pergunta:
Mas cresce justamente pela expansão do gasto público...
Resposta: "[interrompendo]
Não, não é verdade. O impulso fiscal desse ano é menor do que o do ano passado.
Como é que então vai explicar o crescimento pelo gasto? As pessoas estão
desconsiderando que nós estamos fazendo a maior reforma tributária da história
desse país. A maior reforma de crédito da história desse país. Que nós estamos
reformulando o setor de seguros. Que o crédito vai expandir mais de 10%, acima das
receitas. Por que setor após setor tem encontros com o presidente da República
no Palácio do Planalto pra anunciar investimentos da ordem de R$ 90 bilhões, R$
120 bilhões, se a incerteza é tão grande? Será que é?"
Por qual motivo negar ou minimizar a influência do investimento público nas taxas de crescimento? Aliás, porque aceitar, sem mediações, o termo "gasto"?
A resposta é: para melhor justificar os cortes, é preciso apresentar como “gasto” inclusive aquilo que na verdade é investimento. Do contrário, ficaria evidente que o corte nos investimentos vai prejudicar o crescimento (sem discutir a qualidade deste investimento).
Como reconhece Haddad, o “papel do ministro da Fazenda não é só (sic) apresentar uma planilha para o presidente”: é preciso “convencer a opinião pública”.
Haddad tem perfeito noção dos efeitos que podem decorrer de cortes nos "gastos". Vejamos o que ele diz, na entrevista, a respeito disso: “o que mais protege os mais pobres é crescimento com baixa inflação. Sem crescimento, não tem como fazer ajuste nenhum em um país como o Brasil. É inviável politicamente. Temos então que combinar tudo isso. Às vezes o caminho é um pouquinho mais longo do que um economista ortodoxo gostaria. Mas ele é mais saudável do ponto de vista político, econômico e social. Olha o que está acontecendo na Argentina: 60% das pessoas [vivem hoje] abaixo da linha da pobreza. Não sei quantas passam fome. Uma coisa é o [presidente da Argentina, Javier] Milei fazer isso. Outra coisa é o Lula fazer isso”.
A primeira coisa a destacar no raciocínio acima é a frase "sem crescimento não tem como fazer ajuste". Do jeito que está dito, é como se o objetivo fosse o ajuste; e não o crescimento, o desenvolvimento, o bem estar, o que quer que seja.
A segunda coisa a destacar é a comparação com a Argentina.
O raciocínio segundo o qual "uma coisa é o [presidente da Argentina, Javier] Milei fazer isso. Outra coisa é o Lula fazer isso”, do jeito que foi apresentado, pode levar a concluir que a diferença estaria na brutalidade do ajuste, não na sua natureza. E o que diferencia Milei de Lula não é apenas o como, mas também e principalmente o quê se está fazendo.
Provavelmente Haddad (e seus apoiadores) vão concordar com isso que acabei de dizer e debitar minha crítica à má interpretação. Mas, lendo e relendo a entrevista, encontro inúmeros trechos que confirmam que o uso do cachimbo está deixando a boca torta.
Para terminar esta glosa, cito a seguinte pergunta feita por Monica Bergamo: “que gastos são "imexíveis" para o presidente Lula?”
Haddad responde que “não existe tabu para a área técnica”.
(como foi
feita na base do copia e cola, pode ter algum erro)
Há quase
dois anos o senhor parece exclusivamente correr atrás de receitas. Elas
cresceram, mas os gastos estruturais também. Em consequência, a dívida pública
aumentou, bem como as dúvidas sobre sua sustentabilidade. Há limites técnicos e
políticos tanto para novo aumento de receitas quanto para a reestruturação dos
gastos. Que cartas o senhor ainda tem na manga para enfrentar o problema?
Vamos
lembrar alguns indicadores importantes. A deterioração da base fiscal do Estado
começou lá atrás, em 2015. Perdurou e piorou até 2023. Recebi um orçamento do
governo anterior com previsão de receitas na casa de 17% do PIB, o pior da
série histórica. A despesa estava na casa de 19,5% do PIB. A maquiagem de 2022
passou a impressão para a sociedade de que tínhamos um equilíbrio fiscal. Mas
ele foi construído com base no calote de precatórios e em privatizações
açodadas que geraram receitas que não se repetiriam nos anos seguintes. O que
fizemos? Nós estabelecemos um teto de gastos determinando que a despesa não
pode crescer acima de 70% da receita. E dentro do limite de 2,5%. A diferença
vai recompor as contas públicas deterioradas. Até aqui, deu certo. O déficit
veio para alguma coisa em torno de 1% do PIB, excetuada a despesa
extraordinária com queimadas, que é pequena em relação ao orçamento, e com o
Rio Grande do Sul [por causa das enchentes]. Despesa da qual me orgulho: a
economia gaúcha está em franca recuperação. Então a meta deste ano está sendo
mantida. E se não fossem dois episódios da política —como você coloca bem em
sua pergunta— , que foi [o Congresso] estender a desoneração da folha [de
pagamentos de salários] aos municípios de até 156 mil habitantes e o Perse
[programa de retomada do setor de eventos que previa isenções], nós estaríamos
hoje em equilíbrio fiscal.
Mas há
apreensão pois a dívida pública cresce.
A Faria Lima
[avenida de SP onde se concentram agentes do mercado financeiro] está, com
razão, preocupada com a dinâmica do gasto daqui para a frente. E é legítimo
considerar isso com seriedade. A soma das partes, das rubricas orçamentárias,
pode fazer com que o arcabouço fiscal aprovado por este governo não se
sustente. O que a Faria Lima está apontando —na minha opinião, com algum
exagero em relação ao preço dos ativos brasileiros — é que a dinâmica [dos
gastos] para a frente é preocupante. Pode ter impacto na dívida [que a União
tem que fazer para financiar seus gastos]. E o governo tem que tomar
providências. A Fazenda está com isso na mesa, 100%.
Com a
mesma preocupação?
A mesma
preocupação. Desde fevereiro estamos tomando algumas medidas —que não são
suficientes para endereçar esse problema para o futuro próximo. E eu tenho
conversado com o presidente Lula sobre esse tema específico.
Da dívida
pública?
Da questão
da dinâmica dos gastos e do impacto disso sobre a dívida. O impacto é o efeito
monetário da política fiscal. Quando as pessoas perdem a certeza de que o
governo está endereçando esses temas, elas começam a cobrar um prêmio de risco
em juros.
E alto:
hoje os juros da dívida pública pagos pelo governo estão em torno de 7%, o
dobro do PIB.
É esse o
problema. Você tem que endereçar corretamente. Tem que dar credibilidade para a
dinâmica futura [de gastos e da dívida feita para financiá-los] para trazer
esses juros ao patamar adequado. Caso contrário, o teu problema não vai ser de
déficit primário [diferença entre arrecadação e gastos do governo], mas de
déficit nominal, que inclui o pagamento de juros. Eu sempre disse, e repito: a
política monetária e a fiscal têm que estar harmonizadas. Ou você produz um
ciclo vicioso do qual é difícil de sair. Onde está a virtude? Em continuar
fazendo o que é o mantra da Fazenda: as receitas têm que voltar ao patamar
adequado para financiar [os gastos], combatendo jabutis que favorecem grupos
específicos, por exemplo.
Em que
patamar do PIB o senhor acha que a receita deve ser estabelecida?
Na casa de
19% do PIB. E a despesa, obviamente, tem que ser menor do que 19% do PIB, para
gerarmos superávit. Se conseguirmos fazer isso, a taxa de juros vai voltar a
cair, como vinha caindo até o final de 2023.
E o que o
senhor está falando com o Lula?
Falo o
seguinte: o mercado está entendendo que a soma das partes —a soma do salário
mínimo, saúde, educação, BPC— é maior do que o todo. Ou seja, vai chegar uma
hora em que esse limite de 2,5% [de crescimento da despesa em relação ao da
receita] não vai ser respeitado. Ainda que a receita responda, o arcabouço
fiscal não vai funcionar se a despesa não estiver limitada. Eu falo para o
presidente exatamente o que estou falando para você. Que precisa ajustar a
despesa. Nós precisamos enfrentar essa questão para as pessoas enxergarem que
as somas das partes vai caber no todo.
E que
despesas ele então concorda em ajustar?
Ele tomou
providências em relação ao orçamento do ano que vem. O que eu estou dizendo
agora para ele é: 'Olha, o senhor é um presidente de quatro, oito anos, não
importa. Mas nós estamos cuidando do Estado brasileiro, para além do seu
mandato. As pessoas não estão olhando só para 2026. O mercado financeiro olha
para 2027, para 2028, para 2029, para 2030. Vê a trajetória da dívida [em alta]
e muitas vezes cobra à vista [exigindo juros maiores] o problema [que vai
estourar mais à frente e] que ela está antecipando'. É natural. Estou mostrando
ao Executivo, ao Legislativo e ao Judiciário que nós temos que equacionar
estruturalmente as finanças do país. Caso contrário, o mercado, que não está
pensando em governo, está pensando na rentabilidade dos seus ativos, antecipa
decisões e prejudica o presente. Então, não há como contornar o problema. Você
pode fazer isso por um, dois, seis meses. Mas não vai conseguir equacionar.
E o
presidente se convenceu?
Nós estamos
conversando. Estamos tendo mais tempo para isso, até em função do recesso do
Legislativo por causa das eleições. O presidente foi o campeão do superávit
primário em seus oito anos de governo [anteriores, de 2002 a 2010]. Foi a
pessoa que mais reduziu a dívida pública, e tem orgulho disso. Agora, é óbvio
que o que ele herdou do governo Bolsonaro é completamente diferente do que o
que ele herdou do [governo] Fernando Henrique Cardoso.
Aquela
herança maldita do governo FHC, portanto, não era assim tão maldita?
Eu nunca
usei essa expressão. Tem que cobrar de quem usou.
O Lula
usou.
Eu realmente
não sei. Mas nada é comparável ao que aconteceu de 2015 para cá.
O
presidente Lula não parece disposto a mexer na vinculação dos gastos de
educação e saúde ao aumento da receita, na indexação do salário mínimo, no BPC,
no seguro desemprego. Ou seja, em um conjunto de gastos que só cresce e que é
apontado como causador do problema estrutural da dívida.
O governo, e
eu não me excluo, demorou a perceber o grau de disfuncionalidade causado pela
alteração de alguns programas. Desde 2021 houve a PEC do Calote [que adiou o
pagamento de precatórios], a retirada de filtros do BPC e do Bolsa Família
[para a concessão dos benefícios], a ampliação do Fundeb [fundo da educação
básica] de R$ 22 bilhões para quase R$ 70 bilhões em 2026 sem fonte de
financiamento. Ou seja, muitas das despesas que se pretende cortar foram
contratadas antes de o Lula tomar posse. Quando vê isso, o presidente fala
assim: 'Pô, mas eu vou cortar dos pobres?'. Percebe a situação?
E então?
[Eu digo a
Lula] 'Ninguém está dizendo que é fácil. O senhor colocou o pobre no orçamento,
ninguém está pedindo para tirar. Mas há questões estruturais que precisam ser
resolvidas. Porque são distorções muitas vezes criadas com finalidades
eleitorais, particularmente pelo governo anterior. Elas estão no nosso colo.
Não tem pra quem dar a batata quente. Então temos que resolver".
Mas o que
será feito, afinal?
Eu estou
aqui na condição de ministro da Fazenda que tem a obrigação de informar ao
público as preocupações da área econômica. Mas não posso antecipar decisões que
vão ser tomadas pelo chefe do executivo.
E como
fazer isso sem mexer com os mais pobres?
Dá para
fazer. Há uma forma inteligente de endereçar o problema. Do mesmo jeito que a
gente fez o país crescer 3%, e ninguém acreditava [que isso seria possível].
Mas
cresce justamente pela expansão do gasto público...
[interrompendo]
Não, não é verdade. O impulso fiscal desse ano é menor do que o do ano passado.
Como é que então vai explicar o crescimento pelo gasto?
As pessoas
estão desconsiderando que nós estamos fazendo a maior reforma tributária da
história desse país. A maior reforma de crédito da história desse país. Que nós
estamos reformulando o setor de seguros. Que o crédito vai expandir mais de
10%, acima das receitas.
Por que
setor após setor tem encontros com o presidente da República no Palácio do
Planalto pra anunciar investimentos da ordem de R$ 90 bilhões, R$ 120 bilhões,
se a incerteza é tão grande? Será que é?
O senhor
mesmo manifesta preocupação.
Uma coisa é
manifestar preocupação. A outra é dizer que nada está sendo feito. Eu gostaria
que a velocidade fosse maior? O ministro da Fazenda, se pudesse, fazia um
ajuste no primeiro mês do governo para ficar sossegado nos outros três anos e
onze meses. Mas as coisas não funcionam assim. Elas têm que ser construídas
politicamente. O papel do ministro da Fazenda não é só apresentar uma planilha
para o presidente. Isso é o mais fácil. Você chama qualquer economista da Liga
das Senhoras Católicas que ele te apresenta uma planilha. Corta aqui, corta
ali. Mas vai convencer a opinião pública. Vai aprovar no Congresso. O outro
ponto é o seguinte: o que mais protege os mais pobres é crescimento com baixa
inflação. Sem crescimento, não tem como fazer ajuste nenhum em um país como o
Brasil. É inviável politicamente. Temos então que combinar tudo isso. Às vezes
o caminho é um pouquinho mais longo do que um economista ortodoxo gostaria. Mas
ele é mais saudável do ponto de vista político, econômico e social. Olha o que
está acontecendo na Argentina: 60% das pessoas [vivem hoje] abaixo da linha da
pobreza. Não sei quantas passam fome. Uma coisa é o [presidente da Argentina,
Javier] Milei fazer isso. Outra coisa é o Lula fazer isso.
Que
gastos são "imexíveis" para o presidente Lula?
Não existe
tabu para a área técnica. Mas não posso antecipar a avaliação que ele está
fazendo. Ele conhece o contexto e está atento. Está com isso na cabeça. Lula
tem um plano de governo, tem um plano para o Brasil. Ele é comprometido com
esse país.
Todos dão
como certo que não existirá nenhum tipo de ajuste no Brasil em 2026 por ser um
ano eleitoral. Daí a expectativa de que ele seja feito agora.
Pois é.
Daí a
nossa pergunta.
E eu estou
respondendo. O que eu não posso é antecipar uma decisão que não me cabe.
O
presidente se comprometeu com algumas propostas que aumentam gastos, como a
isenção de imposto de renda para a faixa de até R$ 5.000. Ela será dada
inclusive para quem ganha mais do que isso, até este valor? Ou será dada apenas
a quem recebe exatamente isso?
Não, porque
aí quem ganha R$ 5.001,00 paga quanto? Entende? Não dá para funcionar assim.
São vários cenários. Estamos levando ao presidente todos os exercícios que ele
pede.
Aprovada
essa isenção, será necessário buscar uma receita para cobrir os custos. De onde
ela virá? Taxando lucros e dividendos, o que pode atingir empresas do Simples e
PJs?
A reforma da
renda será feita com neutralidade, como aconteceu com a reforma do consumo.
Se dá
para um, tem que tirar do outro?
É isso. De
onde sai, para onde vai. Com que escadinha, com que prazo.
De novo: não
posso antecipar decisões. O papel da Fazenda é levar cenários e prós e contras
para o presidente. "Esse cenário tem esse custo político". Vamos
fazer a reforma da renda. Mas o modelo ainda não está definido.
A
primeira etapa da reforma da renda será mesmo enviada ao Congresso depois das
eleições municipais?
Eu penso que
temos agora que resolver antes a questão da reestruturação da despesa. Isso vem
na frente de qualquer outra coisa.
Já
conseguimos recompor uma boa parte da base fiscal com o que tinha sido perdido
[em isenções]. A desoneração da folha [de pagamento de salário das empresas]
está com prazo para acabar. O Perse está com prazo para acabar. A isenção de
fundos fechados e offshore acabou. São coisas contratadas para sempre. É
receita ordinária, e não extraordinária. Nós não estamos vendendo estatal a
preço de banana para fazer caixa.
E a próxima
etapa, que estou discutindo com Lula, é a da reestruturação [dos gastos]. É a
questão mais premente, que está na ordem do dia. E nós temos que dar resposta a
isso.