O texto abaixo é a primeira versão de uma entrevista concedida a revista alemã Welttrends.
- Os movimentos sociais eram um fator
político importante na luta para que o PT e Lula ganhassem as eleições no ano
2002. Eles foram a base social para começar projetos de mudança no Brasil. Como
foram justificadas as esperanças e lutas dos movimentos durante o governo de
Lula?
Para responder a esta pergunta, é necessário lembrar que um movimento social é sempre um movimento político. Quando um setor social se movimenta em luta por suas reivindicações, ele provoca reações políticas nos demais setores sociais. Mesmo que as reivindicações não incluam nenhuma demanda política, a mobilização em si é um ato político, mesmo que seus atores não tenham consciência disto.
Também para responder a esta pergunta,
é preciso distinguir dois períodos. Um período começa no final dos anos 70 e
vai até o final dos anos 80: é um período de fortes lutas sociais. Um segundo
período começa no início dos anos 90 e de certa forma vem até hoje. É um
período de descenso, de refluxos, de perda de intensidade das lutas sociais.
No primeiro período (anos 80), a luta
político-eleitoral capitaneada pelo Partido dos Trabalhadores capitalizou
grande parte das lutas sociais das classes trabalhadoras e de outros setores
(tais como jovens, mulheres e negros, que são majoritariamente trabalhadores).
Mesmo quando não havia esta intenção, mesmo quando esta conexão era indireta,
as lutas sociais alimentaram, convergiram, se conectaram com as lutas
político-eleitorais protagonizadas pelo PT.
No segundo período (anos 90), as lutas
sociais foram reduzindo de intensidade. Mas isto não interrompeu o processo de
formação de consciência. O que antes seguia um percurso (muita luta social e
depois voto no PT), passou a seguir outro percurso (menos luta social e mesmo
assim voto no PT), mas com o mesmo destino.
A questão é que este percurso era o de
grande parte da classe trabalhadora, mas certamente não envolvia toda a classe
trabalhadora. O que significa dizer que não é ele que explica a vitória
eleitoral da candidatura presidencial de Lula em 2002. Para que aquela vitória
tenha sido possível, foi necessário um outro processo de consciência, este
causado não pela luta social, mas sim pela decepção com o neoliberalismo.
Este segundo processo fez com que
setores importantes da classe dos pequenos proprietários urbanos, uma fração
importante da classe trabalhadora (composta por assalariados de alta renda e
mesmo setores minoritários da burguesia) votassem em Lula. Somados aos setores
da classe trabalhadora descritos nos parágrafos anteriores, constituiu-se uma
maioria em favor de Lula.
Portanto, os setores da classe
trabalhadora mobilizados, organizados em entidades de massa como a CUT e o MST,
foram parte do processo que elegeu Lula em 2002, mas não foram a única parte.
Aqui é necessário deixar claro o que
entendemos por “movimentos sociais”. Existem algum que confundem movimentos
sociais com as organizações de massa. Os que pensam assim confundem o movimento
dos sem-terra brasileiros com a organização MST; confundem o movimento dos
estudantes universitários brasileiros com a organização UNE; confundem o
movimento dos trabalhadores brasileiros com a CUT.
Esta confusão gera dois equívocos. O
primeiro equívoco é confundir o ponto de vista da maioria dos integrantes de um
setor social, com o ponto de vista da base de uma organização que tenta dirigir
aquele setor social ou com o ponto de vista dos dirigentes daquela organização.
O segundo equívoco é não perceber que os movimentos são maiores e mais diversos
que as organizações. Por exemplo: há várias centrais sindicais e vários
movimentos camponeses no Brasil. A CUT e o MST não são os únicos e nem sempre
são hegemônicos. Além disso, há uma grande parte, geralmente majoritária, da
base social que não se organiza e muitas vezes não se reconhece nas organizações,
nem participa dos movimentos de luta.
Podemos dizer, por exemplo, que em
2002 uma parte significativa da classe trabalhadora brasileira não estava em
movimento (em luta), nem estava organizada. Parte importante destas pessoas não
votou em Lula em 2002. Mas votou em Lula em 2006, compensando a perda de votos
que tivemos no primeiro turno das eleições presidenciais daquele ano, quando
parte dos setores médios e parte dos trabalhadores organizados se decepcionaram
conosco.
Feitas estas considerações todas,
posso responder assim a pergunta feita: a base social das organizações de massa
melhorou de vida durante os dez anos em que um petista ocupa a presidência da
República. Ao mesmo tempo, a maioria dos dirigentes das organizações de massa
têm uma posição crítica sobre estes dez anos.
- Qual foi a participação dos movimentos durante a reeleição de
Lula no ano 2006?
O primeiro governo Lula foi um choque
para muitos dirigentes de organizações de massa, assim como para muitos
dirigentes do PT. Apesar de todos os sinais em contrário, havia gente que
imaginava que Lula iria dar um “cavalo de pau em transatlântico”. Esta gente
não percebia, inclusive, a composição do voto que elegeu Lula em 2003, oriundo
em boa parte de setores decepcionados com o governo neoliberal; setores que não
eram os mesmos que haviam votado em Lula em 1989, 1994 e 1998. Ao não perceber
a composição da votação de Lula, não percebiam adequadamente a correlação de
forças existente no país em 2003 e 2004. Por outro lado, os que estavam
dirigindo o governo percebiam esta correlação de forças, mas exageravam nas
concessões aos novos aliados e nos agrados aos inimigos. O resultado final foi
um governo muito mais moderado do que o necessário e uma decepção muito maior
do que a inevitável naquelas circunstâncias.
Em decorrência disto, o que predominou
num primeiro momento foi a expectativa. Depois, a decepção de alguns setores
(minoritários no conjunto da classe trabalhadora e, também, minoritários nas
organizações de massa) gerou mobilizações contra o governo Lula, especialmente
por parte dos sindicados de trabalhadores nos serviços públicos.
Estávamos nisto quando o PT foi mal
nas eleições municipais de 2004, perdeu a presidência da Câmara dos Deputados
no início de 2005, a partir do que teve início uma campanha de desestabilização
por parte da oposição, com o claro objetivo de derrubar o governo Lula.
Neste momento, a maioria dos
dirigentes e militantes dos movimentos sociais se mobilizaram fortemente em
favor do governo. Que, por sua vez, iniciou uma inflexão em direção a uma
política mais progressista, menos neoliberal, com menos concessões do que a
predominante em 2003 e 2004.
Nas eleições presidenciais de 2006,
finalmente, ocorre um fenômeno curioso. No primeiro turno, Lula perde os votos
de parte dos setores médios e de parte dos trabalhadores que o haviam apoiado
em 2002. Em compensação, recebe o voto de parte dos trabalhadores mais pobres
que não o haviam apoiado em 2002 e que agora, depois de quatro anos de governo,
votam nele maciçamente. No segundo turno das eleições presidenciais,
diretamente contra o candidato da direita, Lula recupera grande parte dos votos
que perdera e obtém uma vitória estrondosa.
Quem são os trabalhadores mais pobres?
Em parte eram aqueles que não faziam parte das organizações de massa, que não
participavam dos chamados movimentos sociais. Não foram organizados e
politizados pela luta, mas sim nos processos eleitorais. Podemos dizer que o
movimento social e político deles seguiu um caminho diferente.
- Ocorreram mudanças nas
relações dos movimentos no governo de Dilma?
Sim. Lula foi dirigente do Sindicato
dos Metalúrgicos do ABC no final dos anos 70 e início dos 80, fundador e
dirigente do Partido dos Trabalhadores, foi candidato nas eleições de 1982 (governador),
1986 (deputado), 1989, 1994, 1998, 2002 e 2006 (em todos estes anos, à
presidência da República). O grau de conhecimento, confiança, entrosamento
entre Lula e amplos setores da classe trabalhadora é muito maior do que o de
Dilma.
Isto impacta de diversas formas na
relação entre o governo Dilma e os movimentos. Na minha opinião, o impacto é
estrategicamente positivo, pois reforça a idéia de que governo é governo,
partido é partido, movimento é movimento, e que deve haver autonomia entre
estas diferenças instituições.
- Um papel importante jogou o Movimento dos Sem Terra. Foram
realizadas as exigências deste movimento para uma reforma agrária?
Claro que não. O Brasil nunca viveu
uma reforma agrária que mereça este nome, ou seja, na qual os latifúndios são
expropriados e a terra entregue aos camponeses. O que existe no Brasil é um
processo de compra de terras: o Estado paga aos latifundários e entrega terra
aos camponeses. Este processo pode ser mais ou menos rápido, mais ou menos
intenso, mas não é reforma agrária, pois ao pagar aos latifundários você está
mantendo a correlação de forças em termos de riqueza e poder, apenas trocando
terra por dinheiro.
Além de não ser reforma agrário, em
termos quantitativos o processo de distribuição de terras durante o governo
Lula não experimentou um salto de qualidade em relação ao que ocorria nos
governos neoliberais. Há uma polêmica sobre a quantidade de terra distribuída,
mas mesmo se tomarmos os números fornecidos pelo próprio governo, maiores do
que os números aceitos pelo MST, ainda assim não se trata de um salto de
qualidade. No final das contas, como devido ao boom internacional de
comodities, o agronegócio viveu um período de vacas gordas durante 2003-2007, o
fato é que a concentração de terras aumentou.
Mas atenção: se este fato irritou, com
razão, a direção dos movimentos sem-terra, isto não quer dizer que a base dos
sem-terra e outros movimentos camponeses tenha se decepcionado com o governo
Lula. Pelo contrário. O conjunto das políticas econômicas e sociais do governo,
mais o apoio creditício aos pequenos proprietários com-terra, mais as políticas
sociais direcionadas aos sem-terra assentados, geraram um apoio muito forte ao
governo Lula na base camponesa. Noutras palavras: a crítica existente nas
direções das organizações não tinha grande respaldo na base social das
organizações.
- Quais consequências tiveram os programas sociais realizados
durante o governo de Dilma nos movimentos sociais? Como se refletem as
políticas assistencialistas na situação social e política das camadas mais
pobres do povo brasileiro?
Para responder a esta pergunta, é
preciso primeiro considerar o conjunto dos 10 anos de presidência petista
(Lula+Dilma). Nestes dez anos, a vida do povo trabalhador melhorou. Mas isto
não foi produto de políticas assistencialistas. A vida do povo melhorou porque
houve crescimento econômico, mais empregos, aumento do salário mínimo e das aposentadorias,
mais crédito bancário para o consumo. Feitas as contas, as políticas
assistencialistas contribuíram, mas contribuíram percentualmente menos, para a
melhoria da vida do povo.
O efeito prático disto é que a pressão
por lutas sociais diminuiu. Claro: se a vida está melhorando, diminui a
necessidade de mobilizações e greves. Isto tem impacto sobre o funcionamento, a
motivação e a orientação política das organizações sociais de massa.
No governo Dilma, começa a ocorrer uma
mudança. A vida continua melhorando, mas a ritmos mais lentos. Esta redução no
ritmo tem relação com a crise internacional, com o esgotamento dos recursos
estatais (sem reforma nos impostos e sem reduzir o serviço da dívida pública,
os recursos estatais não são suficientes para os investimentos necessários) e
também com a reação dos setores conservadores (que mantiveram no geral intacto
seu controle dos meios de comunicação, da Justiça, maioria no parlamento, nos
governos estaduais e municipais).
Esta nova situação começa a se refletir
num crescimento da mobilização social e numa atitude mais crítica e ativa por
parte das organizações de massa.
- Ao lado dos Sem-Terra existem outros movimentos, como o movimento dos quilombolas, dos indígenas e outros. Qual é a situação destes movimentos na fase atual?
É bom lembrar que mais de 80% da
população brasileira mora nas cidades. O Brasil é um país capitalista, urbano,
industrializado. Logo, para que haja mudanças profundas, é preciso que haja
movimento por parte da classe trabalhadora assalariada urbana. Os movimentos
camponeses, os movimentos indígenas e outros movimentos de base rural têm
importância, mas relativa.
No caso dos indígenas e dos
quilombolas, ambos experimentaram ganhos durante o governo Lula, especialmente
sob a forma de demarcação de reservas e titulação de terras. Hoje está em curso
uma contra-ofensiva da direita. No caso dos quilombolas, por exemplo, o
parlamento quer chamar para si responsabilidades que eram do governo; e como o
setor ruralista é poderoso no parlamento, isto significa uma ameaça.
- Qual é a perspectiva de uma relação progressista, nos próximos anos, entre movimentos e o governo?
Depende. Como disse antes, há movimentos e movimentos. E o governo, por sua vez, é uma coligação entre forças de esquerda, centro e até direita. Não há nada garantido. Nós do Partido dos Trabalhadores trabalhamos para que o governo atenda as reivindicações dos movimentos sociais vinculados a classe trabalhadora e aos pequenos proprietários camponeses, com e sem terra, bem como as reivindicações do movimento de mulheres, jovens, negros e LGBT, entre outros.