Esgotamento e Alienação
O jornal Brasil de Fato publicou, há várias
semanas, uma entrevista com o advogado Ricardo Gebrim, integrante da
coordenação nacional da chamada Consulta Popular.
A entrevista,
feita por Nilton Viana e publicada sob o título "O esgotamento da luta
eleitoral", teve o claro propósito de apresentar de maneira didática o
ponto de vista da Consulta Popular sobre o processo eleitoral de 2006, que é
distinta da posição adotada por César Benjamin, um dos fundadores e maiores
propagandistas da Consulta, hoje candidato a vice-presidente da República na
chapa de Heloísa Helena.
Neste sentido, a
entrevista inteira vale por uma confissão: a luta eleitoral não se esgotou,
tanto é que segue motivando debates acalorados, inclusive entre aqueles que
aparentemente compartilham de propósitos estratégicos ou programáticos ou
teóricos comuns.
Vejamos no
detalhe as opiniões desenvolvidas por Ricardo Gebrim, apresentado por Brasil de Fato como integrante da
coordenação nacional do Movimento Consulta Popular, presidente do Sindicato dos
Advogados do Estado de São Paulo, presidente do Diretório Central dos
Estudantes (DCE Livre da PUC) em 1980, militante da Solidariedade com a
Revolução Nicaragüense e, entre 1988 e 1991, assessor jurídico da Central Única
dos Trabalhadores (CUT).
Perguntado sobre
o que é o Movimento Consulta Popular, Gebrim responde que a Consulta
"construiu um campo político unificado por um método de ação, pela
compreensão da estrutura de poder, por princípios e valores. Isso representa um
acúmulo fundamental para a construção de um novo ciclo da esquerda brasileira.
Atualmente investimos energia na formulação de um Projeto Popular para o
Brasil".
Ou seja:
perguntado sobre "o que é", Gebrim responde "o que faz".
Escapa, desta forma, de responder se estamos diante de um partido político (no
sentido clássico da palavra, ou seja, uma organização voltada para a conquista
do poder). E o que faz a Consulta? Segundo Gebrim, “construiu um campo
político, unificado por um método de ação, pela compreensão da estrutura de
poder, por princípios e valores. Atualmente investimentos energia na formulação
de um Projeto Popular para o Brasil”.
Como, desde as
Teses sobre Feuerbach, o negócio da esquerda vai além de "interpretar o
mundo", nada mais normal que a segunda pergunta feita a Gebrim pelo Brasil de Fato: "Como a Consulta
vai se posicionar nas eleições deste ano?"
A resposta de Gebrim
lança luz não só sobre o "método de ação", mas também sobre a teoria
que orienta a Consulta. Diz ele: "Nossa posição política, neste momento,
não está centrada em torno das eleições, na opção de voto, nem na indicação de
candidatos. Mas em um conjunto de propostas estratégicas que queremos debater
com a sociedade".
Segundo Gebrim,
esta posição foi aprovada numa Plenária Nacional da Consulta Popular, onde
foram avaliadas as seguintes alternativas: "não apoiar nenhuma
candidatura, uma campanha pelo voto nulo, apoio à candidatura Lula e apoio à
frente eleitoral encabeçada por Heloísa Helena (PSOL). Realizamos uma votação interna, numa plenária
nacional. Lançamos Cadernos de Debates e todos os delegados representavam
posições amplamente debatidas em suas regiões. A deliberação aprovada,
amplamente majoritária, define o nosso posicionamento. Não gera nenhuma
obrigação para os movimentos sociais".
Poderíamos
concluir que a opção por debater propostas estratégicas com a sociedade venceu
esta plenária, porque qualquer outra decisão cindiria a Consulta. Mas é
provável que a causa seja mais profunda: em certo sentido, a Consulta Popular
age frente às eleições como determinadas Igrejas, que orientam como os crentes
devem se posicionar frente ao processo, oferece princípios e questionamentos,
mas não indicam partidos nem candidatos.
Que as Igrejas
façam isso, é compreensível. Mas que uma organização política faça isto, é
difícil de entender, salvo se compreendermos e concordarmos com o conceito de
política adotado pelos companheiros da Consulta. Sem nenhum tipo de ironia,
eles atuam (ou pensam atuar) num plano mais elevado.
Vejamos, para
exemplificar, as propostas estratégicas que a Consulta quer debater com a
sociedade, durante o processo eleitoral. Segundo Gebrim, tais propostas são
"principalmente uma transformação profunda na organização do Estado
brasileiro, alterando o sistema representativo e constituindo diversos
mecanismos de democracia direta e participação popular. Também aproveitaremos o
momento eleitoral para defender um Projeto Popular para o Brasil e nossa
soberania nacional".
Duas perguntas
se impõem:
a) primeiro, quem
vai apresentar estas propostas para a sociedade, durante o processo eleitoral,
se a Consulta não é um Partido e não tem candidatos?
b) segundo, por
qual motivo é particularmente importante apresentar tais propostas estratégicas
durante o processo eleitoral?
Em relação à
primeira pergunta, é melhor deixar que a vida ou a própria Consulta responda.
Em relação à segunda pergunta, Gebrim dá uma resposta que considero no mínimo
confusa.
Perguntado por Brasil de Fato se a posição da Consulta
pode ser considerada "em cima do muro", em que cada um vota em quem
quiser, Gebrim diz o seguinte: "Estamos vivendo o esgotamento de um ciclo
da esquerda brasileira, o ciclo centrado na luta eleitoral. Evidente que a luta
eleitoral seguirá existindo e ainda representa um espaço de propaganda de
idéias e acúmulo político, mas esse não é o nosso caminho. Do ponto de vista da
Consulta, este deve ser um momento privilegiado para lançar as bases de outro
caminho, outra lógica política. Estamos entrando numa eleição em que não se
apresentam propostas que representem disputas de projetos de sociedade, de
política econômica e nem capacidade real de alterar as correlações de forças
sociais. Tampouco haverá um espaço real para a propaganda de uma alternativa
popular. Essa percepção, de que as eleições serão apenas o momento de escolher
quem vai fazer mais do mesmo, vem se generalizando e aos poucos vai se
incorporando ao senso comum. Nossa definição sobre essas eleições - mais do que
a aparente alteração conjuntural na correlação de forças - tem como objetivo e
bússola a perspectiva de elevar a consciência de ir além da lógica de
funcionamento do sistema de capital".
Vamos
destrinchar esta resposta, ponto a ponto.
Segundo Gebrim,
estamos vivendo o esgotamento de um ciclo da esquerda brasileira, o "ciclo
centrado na luta eleitoral". Mas quem define isto? A nossa vontade? As
nossas ilusões? Ou a luta de classes?
Penso que o
critério deva ser o da luta de classes. E, nesse caso, para ser mais exato, não
deveríamos falar de um "ciclo da esquerda", mas sim de um ciclo da
sociedade brasileira. Se olharmos a história do Brasil, veremos que estamos
vivendo um dos períodos mais longos de continuidade institucional. Este ano
teremos a quinta eleição presidencial direta consecutiva, superando a marca do
período 1945-1964 (quando tivemos quatro eleições presidenciais consecutivas,
em que foram eleitos Dutra, Vargas, Juscelino e Jânio).
Tanto naquele
período, quanto hoje, a predominância da disputa eleitoral não foi uma opção
unilateral ou fundamentalmente da esquerda. E o "esgotamento" deste
período, se e quando ocorrer, tampouco se deverá a uma opção unilateral da
esquerda. A não ser, é claro, que estejamos nos movimentando no terreno das
abstrações esquerdistas.
Há sinais de que
esgotamento possa vir a ocorrer? Eu diria que há sinais de que setores da
burguesia não estão dispostos a conviver pacificamente com uma sequência de
governos de esquerda ou centro-esquerda. E há sinais de que setores da classe
trabalhadora organizada estão profundamente inconformados com o sentido, o
ritmo e a profundidade daquilo que foi feito pelo governo Lula. E há sinais de
que o tecido social brasileiro está rompendo em vários locais, mostrando que a
gravidade da crise é maior do que a institucionalidade atual está sendo capaz
de tratar ou pelo menos de conter.
O problema -- e aí reside o foco
de uma grande divergência com as posições da Consulta -- é saber se devemos enfrentar estes
sinais, ampliando a força eleitoral e institucional da esquerda brasileira,
especialmente da esquerda socialista; ou sendo no fundamental indiferentes ao
que acontece neste terreno.
A maior parte da
vanguarda dos setores populares, gostando ou não do primeiro governo Lula,
tendo ou não ilusões acerca do que pode vir a ser um segundo governo Lula, está
claramente decidida a votar em Lula em outubro de 2006, exatamente porque sabe
que é preciso ampliar a força da esquerda e impedir que o PSDB e o PFL retomem o controle do governo
federal.
Não se trata
apenas de reconhecer, como faz Gebrim, que a luta eleitoral "seguirá
existindo e ainda representa um espaço de propaganda de idéias e acúmulo
político". Se trata de perceber que, nas atuais condições históricas, se
perdermos força nesse terreno, não estaremos abrindo caminho para a revolução, mas
sim para a reação política.
Deste ponto de
vista, a opção feita pela Consulta só faz sentido se compreendermos que ela
adota "outra lógica política". Segundo esta "outra lógica
política", "nossa definição sobre essas eleições -- mais do que a aparente alteração
conjuntural na correlação de forças -- tem como objetivo e bússola a perspectiva de elevar a
consciência de ir além da lógica de funcionamento do sistema de capital".
Isso não é
marxismo, é maximalismo. Ou seja: se não é possível dar um salto qualitativo
que faça as coisas ficarem como achamos que elas devem ser, todo e qualquer
passo intermediário é considerado por definição inútil. E o objetivo de elevar
a consciência política das massas é substituído pelo propósito de elevar a
consciência política de um número reduzido de pessoas, que serão atingidos pela
propaganda política da Consulta, fora do processo eleitoral.
O pior é que se
trata de um maximalismo oportunista, porque a posição da Consulta não
centraliza seus integrantes, que na maioria parecem estar envolvidos na
campanha de Lula ou de Heloísa Helena. Ou seja: a organização política Consulta
Popular tem uma orientação que a mantém "acima" da luta eleitoral,
mas os integrantes da organização tomam partido e se envolvem.
Novamente, a
semelhança de procedimentos entre a Consulta e certas Igrejas é flagrante. É
como se a Consulta se imaginasse como uma espécie de "superestrutura",
que paira acima das estruturas políticas convencionais.
Vejamos as
palavras exatas de Gebrim: "Somos um movimento político que se constrói a
partir de movimentos sociais, mas respeitamos a autonomia dos movimentos. O
Movimento Consulta Popular não manipula nem substitui os movimentos populares.
Nossa posição foi definida numa Plenária Nacional. Avaliamos as propostas de
não apoiar nenhuma candidatura, de uma campanha pelo voto nulo, de apoio à
candidatura Lula e de apoio à frente eleitoral encabeçada por Heloísa Helena
(PSol). Realizamos uma votação interna, numa plenária nacional. Lançamos
Cadernos de Debates e todos os delegados representavam posições amplamente
debatidas em suas regiões. A deliberação aprovada, amplamente majoritária,
define o nosso posicionamento. Não gera nenhuma obrigação para os movimentos
sociais".
Um movimento
político que se constrói a partir de movimentos sociais? Ou um movimento
político que se constrói a partir de militantes que atuam nos movimentos
sociais? A distância entre uma coisa e outra é, por exemplo, o que diferencia a
CUT das tendências sindicais que atuam no interior da CUT. Mas talvez a
Consulta Popular não possa responder de maneira taxativa esta questão, pois
isso colocaria em questão um de seus "mitos fundadores", que é a
suposta superioridade política, ética, moral, dos movimentos sociais frente aos
partidos políticos de esquerda.
Lembro, a esse
respeito, de um questionamento que fiz em 2002 sobre por quais motivos alguns
companheiros eram tão ácidos em relação aos problemas organizativos do PT, ao
mesmo tempo em que eram tão compreensivos em relação aos problemas institucionais
da Igreja em que atuavam. O fundo da questão é o mesmo: a existência de um
"mito fundador" (os movimentos sociais) cujo questionamento, sem
trocadilho, poderia derrubar os alicerces de certa fé.
Voltemos ao tema
eleitoral. Gebrim afirma que "do ponto de vista da Consulta Popular",
as eleições devem "ser um momento privilegiado para lançar as bases de
outro caminho, outra lógica política". Mas como fazer isso se, no momento
das eleições, em que milhões de pessoas em todo o país estão discutindo política,
a Consulta Popular decide não ter posição sobre... as alternativas eleitorais
realmente existentes?
A justificativa
de Gebrim é que "estamos entrando numa eleição em que não se apresentam
propostas que representem disputas de projetos de sociedade, de política
econômica e nem capacidade real de alterar as correlações de forças
sociais". Bem, isto seria motivo para ter candidaturas que apresentassem
tais propostas. Mas segundo Gebrim, "tampouco haverá um espaço real para a
propaganda de uma alternativa popular".
Aqui Gebrim
passeia perigosamente próximo ao terreno já trilhado pelo professor Francisco
de Oliveira, segundo o qual nos tempos atuais a política seria irrelevante. Mas
está claro que esta não é a posição de Gebrim. Sendo assim, fica faltando
explicar o seguinte: se no momento eleitoral, em que o debate político ganha as
pessoas menos politizadas, não há "espaço real para a propaganda de uma
alternativa popular", quando e como irão se criar as condições para esta
"propaganda"? E, ademais, como será possível passar da
"propaganda" para o acúmulo de forças, agitação e ação tática
imediata?
Gebrim não
responde a estas questões. Mas dá uma pista curiosa. Ele diz que "essa
percepção, de que as eleições serão apenas o momento de escolher quem vai fazer
mais do mesmo, vem se generalizando e aos poucos vai se incorporando ao senso
comum".
Esta percepção
faz parte do "senso comum" há muito tempo. E o "senso
comum", no caso a indiferença com relação à política, é estimulada pelas
classes dominantes. Confundir este senso comum com politização de classe é um
equívoco comum, mas é um equívoco.
A esse respeito,
a pergunta que Nilton Viana faz é exemplar: "Se a luta eleitoral ainda não
está esgotada, por que não participar dela?"
Gebrim responde
que "pesou, em nossa decisão, a compreensão de que o desafio principal,
neste momento, é preservar o processo de construção estratégica de uma
organização não eleitoral. O grande problema é o processo histórico dos últimos
30 anos, que converteu a luta eleitoral na única estratégia da esquerda. De
dois em dois anos há eleições e cria-se a ilusão de que se pode mudar a vida
mudando o partido que está no governo. Em maior ou menor medida, a agenda da
esquerda se limitou à preparação das eleições. Para desentortar uma vara, não
basta esticá-la até a posição correta. Neste momento, em que ainda predomina a
cultura de que não é possível atuar politicamente sem uma candidatura, se
resolvêssemos participar "só um pouquinho", em breve seríamos
absorvidos e cairíamos na mesma lógica absorvedora. Não adianta apenas declarar
que as eleições não serão a prioridade. Por mais que cada organização política
que se lance à luta eleitoral reafirme que não irá se centrar nesse objetivo,
como fazia o PT em seu surgimento, a dinâmica é arrasadora. A estratégia
política acaba se resumindo à estratégia de conquistar postos eleitorais".
Vejamos de novo,
ponto a ponto.
O desafio
principal da Consulta, neste ano da graça de 2006, não é impedir que o PSDB/PFL
recuperem o governo
federal. Seu desafio principal é "preservar o processo de construção
estratégica de uma organização não eleitoral".
Esta estratégia centrada
na auto-organização é justificada da seguinte forma: "o grande problema é
o processo histórico dos últimos 30 anos, que converteu a luta eleitoral na
única estratégia da esquerda".
Ou seja: o
grande problema é o "processo histórico". Mas se é assim, não ensina
a boa teoria que deveríamos buscar as contradições internas deste processo
histórico e ver como, apoiados nestas contradições, podemos superar e fazer
avançar o tal processo? Pelo contrário, a solução proposta por Gebrim é
caudatária de um modo de pensar tipicamente esquerdista: superar o
"processo histórico" mantendo-se à margem dele.
A justificativa
para não atuar "a partir de dentro" está na ponta da língua: "De
dois em dois anos há eleições e cria-se a ilusão de que se pode mudar a vida
mudando o partido que está no governo. Em maior ou menor medida, a agenda da
esquerda se limitou à preparação das eleições".
Isto é parcialmente
verdadeiro. Mas não é toda a verdade. Em primeiro lugar, não é correto dizer
que "a agenda da esquerda se limitou à preparação das eleições". De
toda a esquerda? Então não existe MST, Pastorais Sociais, UNE, sindicalismo
combativo, movimento de mulheres, combate ao racismo, agitação cultural, luta
parlamentar, ação de governo, luta contra homofobia? Nada existe nem existiu,
só "preparação das eleições"?
Em segundo
lugar, não é correto minimizar os efeitos práticos das vitórias eleitorais. Ou
os governos democráticos e populares e os mandatos parlamentares da esquerda
não tiveram nenhuma utilidade? Não serviram para nada? Não geraram nenhum
avanço?
Será, por
exemplo, que alguns movimentos sociais de que todos nos orgulhamos teriam a
força que têm se, durante todos estes anos, não tivessem recebido um forte
apoio institucional? Será que manteriam sua força atual, se este apoio
institucional desaparecesse?
Neste sentido, a
frase "de dois em dois anos há eleições e cria-se a ilusão de que se pode
mudar a vida mudando o partido que está no governo" pode ser confundida
com a frase "são todos iguais, não há diferença entre PSDB e PT".
A verdade é
outra: dependendo do que façam os partidos, dependendo da correlação de forças,
dependendo do nível de organização e mobilização social, a mudança do partido
que está no governo pode sim mudar a vida das pessoas, em maior ou menor
medida.
O problema é
que, segundo Gebrim, qualquer contato com as eleições contamina: "para
desentortar uma vara, não basta esticá-la até a posição correta. Neste momento,
em que ainda predomina a cultura de que não é possível atuar politicamente sem
uma candidatura, se resolvêssemos participar 'só um pouquinho', em breve
seríamos absorvidos e cairíamos na mesma lógica absorvedora. Não adianta apenas
declarar que as eleições não serão a prioridade. Por mais que cada organização
política que se lance à luta eleitoral reafirme que não irá se centrar nesse
objetivo, como fazia o PT em seu surgimento, a dinâmica é arrasadora. A
estratégia política acaba se resumindo à estratégia de conquistar postos
eleitorais".
Pelo visto, Gebrim
acha que é possível escolher não participar. Acontece que esta escolha não
existe. Até mesmo a posição da Consulta é uma forma de participação. Eles
escolheram participar, dizendo para as pessoas algo mais ou menos assim: façam
o que acham que devem fazer. De nada adiantará. O caminho é outro.
Confrontado com
as experiências de Hugo Chávez e Evo Morales, Gebrim diz que ambos os casos a
"viabilidade eleitoral, nesses dois casos, teve sua legitimidade perante
as massas construída no exemplo pedagógico de ações insurrecionais. Em nenhum
dos casos a liderança política se construiu por uma bem-sucedida carreira
parlamentar".
Será que Gebrim
acha que a liderança política de Lula, sua viabilidade eleitoral ou sua
legitimidade perante as massas foi resultado de uma "bem-sucedida carreira
parlamentar"?
A experiência da
Bolívia e da Venezuela são muito interessantes, porque mostram que mesmo onde
havia um movimento insurrecional
de massas (Bolívia) e mesmo onde havia um forte apoio militar (Venezuela), foi
necessário disputar as eleições, para constituir um outro tipo de legitimidade,
adequado ao nível de consciência majoritário nas massas populares.
Ou seja: em
ambos os casos, a disputa eleitoral não foi um capricho desnecessário, uma
cereja no bolo, mas sim o coroamento necessário, no atual momento histórico, na
correlação de forças existente naqueles países, do caminho da esquerda em
direção ao poder. Isso criou ilusões em setores das massas, acerca dos limites e
possibilidades dos processos eleitorais? Com certeza. Havia alternativa? Não
havia, porque as ilusões das massas só são superadas no próprio terreno das
ilusões e através da própria experiência das massas, não a partir de fora e de
terceiros.
Nós também
queremos "acumular forças exatamente na compreensão da superação dos
limites políticos do sistema democrático representativo e formal que
conquistamos após a ditadura militar", mas é preciso fazer isso também a partir
de dentro e não apenas a partir de fora. Senão, corremos o risco de -- por exemplo -- ver a base
de movimentos sociais, composta por gente combativa e testada nas lutas, votar
em candidatos da direita.
Claro que
devemos desmascarar o caráter de classe do Estado e do conjunto da
institucionalidade que ajuda na reprodução do capitalismo. Claro que devemos
ter consciência e tomar medidas contra o processo permanente de cooptação e
domesticação ideológica, em nome de "valores universais". Aliás, para
quem não lembra, o conceito da democracia "como valor universal" foi
introduzido entre nós por Carlos Nelson Coutinho, ex-PCB, ex-PT e hoje no
PSOL!!!
Claro que
durante o processo eleitoral, devemos continuar impulsionando outras ações:
greves, mobilizações, ocupações etc. Mas não é possível aceitar a idéia de que
as eleições não fazem parte da luta de classes. Gebrim chega a dizer que
"aproveitaremos este momento para investir nas lutas e demonstrar que a
luta de classes não precisa ser interrompida a cada dois anos", como se a
eleição em si não fosse um momento importante desta luta de classes.
Na verdade, Gebrim
parece compartilhar uma variante daquilo que o velho Lênin apelidava de
economicismo. Veja a frase: "a unidade se construirá na luta e não em campanhas
eleitorais".
Esta consigna da
"unidade na luta", que soa tão estranha para nós que militamos na
esquerda do PT, esquece que as eleições e as lutas sociais são manifestações da
luta de classes. Diferentes entre si, mas igualmente manifestações da luta de
classe.
A unidade da
esquerda e das massas populares se dará (ou não) em torno dos propósitos
perseguidos, dos programas, das táticas, das estratégias e das organizações,
não apenas ou principalmente em torno das formas de luta.
A fetichização
das formas de luta é uma praga. Atinge gente moderada (que só valoriza as
eleições) e gente combativa (que só valoriza as lutas sociais). Mas constitui
um erro, em qualquer dos casos.
O fetiche do
programa é outra praga. Segundo Gebrim, nas eleições de 2006 "não estará
em jogo uma alternativa de poder popular ou apenas uma única forma de acumular
forças. Durante os últimos 20 anos, a esquerda estava basicamente organizada
num mesmo instrumento político, o PT, mas com projetos e programas diferentes.
Agora, ainda que ingressemos numa fase de pulverização organizativa, com o
surgimento de diversos instrumentos, podemos avançar na unidade programática, o
que implicaria um importante aporte para a construção do Projeto Popular".
O raciocínio
acima me recorda um questionamento feito por um companheiro, nos anos 1980, durante um curso de
formação política: se todas as organizações da luta armada contra a ditadura
militar tinham propósitos no fundamental comuns, porque havia tantas
organizações? Uma das respostas possíveis para esta questão é: a aparente
"unidade programática" expressa na crítica ao "pacifismo"
do PCB tinha como conseqüência prática a pulverização organizativa. Falando de
outra maneira e trazendo o assunto para os dias de hoje: uma crítica errada aos
problemas reais do PT, terá como consequência organizativa a dispersão da
esquerda brasileira.
Gebrim parece
compartilhar a ilusão de que uma eventual "implosão",
"explosão" ou "esgotamento" do PT pode gerar um cenário
positivo, de "pulverização organizativa" com "unidade
programática". Esta ilusão é só isto, ilusão.
Se ocorrer um
processo de implosão do PT -- seja
como decorrência dos erros cometidos pelo antigo ex-campo majoritário, seja em
função de erros novos cometidos pelos grupos e setores mais influentes hoje no Partido --, o resultado
imediato não será um novo ciclo na história da esquerda brasileira. Será um
período de reação política. E os que imaginam colher os frutos disso, deveriam
refletir sobre por qual motivo foi o PT e não as organizações da luta armada,
quem recolheu vinte anos depois os frutos do colapso da esquerda organizada em
torno do PCB e do trabalhismo.
Encerro com
isto. A resposta final da entrevista de Gebrim diz o seguinte: "estamos
vivendo um momento de aprofundamento de uma crise das instituições
representativas burguesas que poderá transformar-se numa crise de todo o
sistema político representativo. A dominação por meio das democracias
representativas formais somente permite a alternância ‘democrática’ entre
líderes e partidos que se submetem às regras do projeto neoliberal. As margens
de decisão política são estreitas e podem ser exercidas somente se não afetarem
as bases determinantes da política e da economia. Nenhum contrato firmado nos
marcos do neoliberalismo pode ser alterado. As grandes decisões estratégicas
que envolvam investimentos não podem se efetuar, tornando a disputa ‘democrática’
apenas um espaço para resolução de contradições interburguesas. Lutar pela
superação dessa ‘democracia’ representativa formal é um componente de nossa
estratégia. A bandeira da democracia pertence aos povos e não à
burguesia".
Se é verdade que
estamos vivendo um momento de aprofundamento da crise das instituições
burguesas, aproxima-se o momento em que poderemos colocar na ordem do dia não
apenas uma democracia superior, mas uma ordem social superior. E aí, surprise, lemos e relemos o texto do Gebrim e me espanto
(sempre me espanto com isso): cadê o socialismo?
A verdade é que,
salvo engano, la maledeta palavra não é citada uma única
vez. Verdade seja dita, a Nação (termo adorado pelo Benjamin) também é citada modestamente. No
lugar das duas, abunda a problemática da democracia. Não é curioso? Afinal, foi
exatamente no tratamento prático e teórico da chamada questão democrática que
tanto o Partidão, nos anos 1960, 70 e 80, quanto o setor majoritário do PT, nos
anos 1990, caminharam da esquerda para a direita.
De toda maneira,
por qual motivo o tema da "democracia" tem tanto destaque nas
preocupações de Gebrim? Palpite: pelo mesmo motivo pelo qual a esquerda
brasileira é obrigada a disputar as eleições. Como diriam os amigos do PSTU,
estamos num período de “reação democrática”. Nele, vivemos um paradoxo: de um
lado, a burguesia é obrigada a conviver com níveis mais elevados de liberdades
democráticas; de outro lado, crescem os riscos de cooptação política e
moderação ideológica. A Consulta quer enfrentar estes riscos, praticando uma
espécie de abstencionismo virtual (pois na prática, a maioria de seus
integrantes está engajada em alguma campanha). Nós buscamos enfrentar estes
riscos, participando assumidamente da disputa eleitoral.
Há dez anos,
vivemos um debate parecido com nossos amigos da Consulta. Quando ela surgiu,
grande parte dos fundadores da Consulta era aliada nossa na luta interna do PT.
O caminho que eles escolheram não foi apenas diferente do nosso, mas também, em
certa medida, competiu com o nosso, pois um militante convencido dos
pressupostos da Consulta não dava valor para a disputa sobre os rumos do PT.
Não sei dizer
qual balanço a Consulta faz sobre sua trajetória desde 1997. Já o nosso balanço
pode ser ilustrado pelo resultado que a esquerda petista obteve no PED de 2005.
A oposição foi majoritária no primeiro turno da eleição interna do PT e perdeu
a presidência nacional no segundo turno por menos de 10 mil votos.
Não tenho dúvida
de que o resultado poderia ter sido ainda melhor, se tivéssemos contado para
mais gente uma piadinha do Mauro Iasi, que era mais ou menos assim: ele levou
um trabalho sobre alienação para análise em uma Universidade. Um luminar da
academia disse para Mauro que a "alienação" era uma questão superada
naquela Universidade. Mauro respondeu mais ou menos assim: que bom que aqui
superaram a alienação, resta agora superar a alienação no resto do mundo.
Provavelmente o
Mauro Iasi, atualmente militante do PCB e candidato a vice-governador na chapa
encabeçada por Plínio de Arruda Sampaio, não aprovaria o uso que faço desta
piada. Mas é mais ou menos assim que vejo a coisa: que bom que para a Consulta Popular
a luta eleitoral está se esgotando. Agora, enquanto não se esgota para o
restante dos brasileiros e das brasileiras, vamos ter que participar dela. No
nosso caso, votando no Lula e no PT.
21 de agosto de 2006