sábado, 29 de agosto de 2015

Roberto Amaral e a Frente

Um dos pontos fortes da Frente Brasil Popular é a diversidade. Por um lado, ao reunir movimentos, sindicatos, partidos, entidades de diferentes tipos e indivíduos. Por outro lado, ao existir no seu interior uma diversidade de opiniões acerca do passado, do presente e do futuro.

Por exemplo: Roberto Amaral (ver texto abaixo) acha que a "defesa do mandato legal e legítimo da presidente Dilma Rousseff é prioridade que se impõe à luta dos liberais e progressistas de um modo geral, e, de forma muito particular, à ação das forças de esquerda e suas organizações. Defender a Constituição, afinal, é o dever de todos os democratas".

Eu tenho um ponto de vista, digamos, "ligeiramente distinto". 

Acho mais adequado falar em defender as liberdades democráticas, não a "Constituição". E considero que defender as liberdades democrática é mudar a política econômica. 

Portanto, vejo duas prioridades, não apenas uma. Ou então uma prioridade que possui duas dimensões interligadas.

Não separo em nenhum momento a defesa do mandato da presidenta Dilma da exigência de que ela cumpra o mandato que recebeu do povo em outubro de 2014. 

Aliás, não acredito ser possível nem convincente um discurso que convoque os setores populares a defender o mandato da presidenta, sem ao mesmo tempo criticar e combater a política simbolizada pelo ministro Levy.

É também por isto, aliás, que acho acertado o nome Frente Brasil Popular. Não se trata de uma frente somente "de esquerda", mas tampouco é uma genérica "frente democrática e progressista". 

Sem um núcleo claramente popular de esquerda, não conseguiremos dar conta das três grandes tarefas: defender as liberdades democráticas, mudar a política econômica e construir as reformas estruturais.

Estes são alguns dos debates que nos aguardam na Conferência Nacional Popular, dia 5 de setembro, em Belo Horizonte.

Abaixo um texto de Amaral.






ROBERTO AMARAL
Cientista político e ex-ministro da Ciência e Tecnologia entre 2003 e 2004

Da crise à Frente Brasil

28 de Agosto de 2015
A defesa do mandato legal e legítimo da presidente Dilma Rousseff é prioridade que se impõe à luta dos liberais e progressistas de um modo geral, e, de forma muito particular, à ação das forças de esquerda e suas organizações. Defender a Constituição, afinal, é o dever de todos os democratas.
Mas essa defesa não encerra a história toda, nem os desafios todos, pois a tentativa de depor a presidente Dilma, via impeachment ou isso ou aquilo não é o objetivo final da onda conservadora, mas, tão-só o meio de que se vale a direita brasileira em seu projeto de reconquista do poder, a qualquer custo, para nele, desta feita, instalar uma república conservadora, ainda mais intolerante do que aquela que foi a base e a obra do golpe militar de 1964.
Não se trata, apenas, de golpear uma mandatária legitimada pela voz soberana dos votos; trata-se, mais, de abrir caminho para a instauração de um regime autoritário de raízes protofascistas, antecipado nas palavras de ordem que ecoam nas ruas e nos meios de comunicação de massa. A direita mira um horizonte para além de 2016 e 2018. Iludem-se os liberais de hoje como se iludiram os que em 1964 diziam que estávamos apenas em face de ‘mais uma quartelada’, que logo tudo voltaria ao melhor dos mundos.
A direita, no Brasil e no mundo, não guarda qualquer apreço seja pela democracia, seja pela ética, seja pela moralidade. Esses valores não passam de meio subordinado ao projeto final, perseguido e muitas vezes alcançado a qualquer custo, o que compreende mesmo, em nome da moralidade de fancaria, associar-se a figuras públicas e reputação duvidosa – como o deputado Eduardo Cunha (e o inefável ‘Paulinho da Força’) – para derrubar uma presidente consabidamente honrada.
Mas, repitamos, a questão não se encerra no mandato da presidente.
O projeto da direita brasileira não é mesmo, tão-só, a desmoralização política da esquerda com vistas a eventual retomada do poder em 2018; seu objetivo de médio e longo prazos mira uma sociedade autoritária.
O moloch reacionário, em sua fome insaciável de poder, pretende consumir as conquistas sociais, políticas e econômicas das últimas décadas. É um projeto que opõe classe contra classe; é o almejado império da Casa Grande em face de uma senzala que, no que cresce em reivindicações, precisa ser contida. O capitalismo reage assim, com violência, em todos os momentos de crise.
Essa é, por exemplo, a história do século XX, com suas crises, suas convulsões, suas guerras e suas ditaduras. Essa é a história do autoritarismo, da xenofobia, dos fundamentalismos e, em alguns momentos, a história do antissemitismo. Quando a crise econômica ameaça a acumulação capitalista, a alternativa é conter o andar de baixo para preservar os interesses do andar de cima. E eis a que serve o Estado autoritário.
Os liberais de 1954 acreditaram no cantochão moralista do udeno-lacerdismo e se associaram aos golpistas que levaram Getúlio Vargas ao suicídio. Só muito mais tarde, na autocrítica de Afonso Arinos, é que se deram conta de que simplesmente haviam servido de instrumento de uma maquinação contra os interesses nacionais e populares.
A campanha contra o ‘mar de lama’, de resto inexistente, tinha como alvo verdadeiro a política social de Vargas e as empresas estatais por ele criadas para assegurar o desenvolvimento econômico nacional. Deixaram-se iludir de novo os liberais em 1964 supondo que pedindo a queda de Jango estavam defendendo a Constituição, e assim alimentaram com seu decisivo apoio uma cujo ponto de partida foi exatamente a destruição da ordem constitucional.
Foram anos de ditadura, com seu inventário de torturados, mortos e desaparecidos, 21 anos de exílio da política e de supressão das liberdades, é preciso repetir mil vezes chamar a atenção dos surdos e cegos e desmemoriados de hoje.
Os que hoje juntam suas vozes ingênuas aos que arquitetam o golpe, estão, na verdade, associando-se a uma aventura reacionária de ranço fascista, cujos desdobramentos ainda não podem ser mensurados. Assim como os militares golpistas, derrubando Jango, assumiram o governo civil em vez de retornarem à caserna, a onda reacionária de hoje – que em meio à punição de corruptos pede a volta dos militares, aplaude Eduardo Cunha e os Bolsonaros da vida, pede a eliminação física de adversários e agride seus oponentes – não saciará a fome de poder nem com a deposição de Dilma, nem com aniquilamento político e eleitoral de Lula, nem com a liquidação do PT e, com ela, a liquidação dos partidos e das organizações de esquerda. Iluda-se a extrema-esquerda se quiser.
O primeiro quartel do terceiro milênio lembra os anos 20/30 do século passado, quando, em nome disso e daquilo foram derrubadas as democracias, abrindo caminho para as ditaduras, o fascismo e o nazismo. Assim na Europa (por exemplo: Alemanha, Itália, Espanha, Portugal), assim na Ásia ( Japão), assim no Brasil com o Estado Novo. Onda similar se reproduz globalmente com o avanço da direita no Velho Continente, a ascensão do Tea Party nos USA e as convulsões, muitas estimuladas de fora para dentro, que ameaçam os governos progressistas na América Latina e particularmente na América do Sul.
Crise do capitalismo, crise das democracias. Em todo o mundo e em todos os tempos a crise econômica se divorcia da ascensão das massas.
O Brasil não é uma ilha.
Quando nossos liberais e democratas dar-se-ão conta desse histórico papel de marionetas a serviço de frações perversas e corrompidas da classe dominante, subordinadas a interesses externos?
A propósito, a direita não tem apego a princípios morais ou democráticos, simplesmente deles lança mão como aríete de seus objetivos. E, alcançados esses e realizados seus interesses, daqueles princípios se descarta. A legalidade democrática interessa-lhe quando na oposição, tanto quanto a pregação moralista, pois, no poder, logo se desfaz desses valores como penduricalhos incômodos, e sem qualquer cerimônia se vale da opressão, do autoritarismo, do estado policial para realizar seus projetos.
De igual modo não preserva princípios éticos na condução da coisa pública, pois a corrupção é sua essência. Haja vista o que ocorreu com o modelo social democrata europeu, que vigeu no pós Segunda Guerra. Concebido para enfrentar o fantasma do comunismo, tão logo a União Soviética foi derrotada, passou a ser sistematicamente demolido.
A organização popular é, dessa forma, o ponto de partida não apenas para a defesa do mandato presidencial, mas, igualmente, para assegurar a preservação de seus compromissos populares e fazer face à onda conservadora. Em síntese: é preciso preservar o mandato da presidente em sua plenitude, isto é, livre para governar consoante os compromissos assumidos com as forças que a elegeram, e é preciso, ainda, enfrentar e barrar a onda fascistóide.
Tudo isso reclama organização popular. Pois a ofensiva conservadora constrói diversos cenários, seja a ostensiva e grosseira tentativa de sabotar para finalmente derrubar o governo – nas ruas, no Congresso, nos Tribunais partidarizados ou mediante o discurso monopolizado dos meios de comunicação de massa –, seja impondo aos eleitos o programa dos derrotados nas eleições presidenciais de 2014, promovendo um ajuste que gera desemprego e recessão, cuja execução já traz como consequência afastar o governo da sua base popular, única que lhe pode oferecer sustentação.
O cenário de hoje nos antecipa o fim de promissor ciclo de avanço da esquerda brasileira, prenunciando para os anos próximos um ciclo direitista em termos que, há pouco, pareciam inimagináveis. Isso, a menos que as forças populares se deem conta do perigo que correm presentemente as conquistas sociais das últimas décadas, e proponham à sociedade uma ampla aliança com o fito de barrar o retrocesso.
O modo dessa resistência é a política de Frente, de frentes democráticas e progressistas unificando a reflexão e a luta, a resistência dos mais diversos setores e agrupamentos sociais e políticos. É este o pressuposto da iniciativa que reúne militantes, políticos, partidos, intelectuais, representações do movimento social em geral e dos movimentos sindicais urbanos e rurais com destaque para o MST, a CUT e a CTB, a UNE, pastorais sociais presentemente reunidos em torno do projeto da Frente Brasil. Trata-se de frente politicamente ampla, unificada na luta objetiva pela democracia, pela preservação e avanço dos direitos dos trabalhadores, pela defesa da soberania nacional e o desenvolvimento com distribuição de renda.
Na luta pelas reformas estruturais (e são apenas exemplares a reforma política, a reforma urbana, a reforma agrária, a reforma tributaria/fiscal, a reforma da educação) e pela reforma e democratização do Estado, bem como a defesa e aprofundamento dos processos de integração latino-americana em curso como o Mercosul, a Unasul, o Celac. Por fim, a defesa da produção e do trabalho sobre o rentismo. Uma frente ampla e forte o suficiente para alteraratual correlação de forças, que inibe e coarta o governo. Uma correlação de forças que, finalmente, possa democratizar os meios de comunicação de massa.
Essa Frente Brasil-Popular, que será lançada no próximo dia 5 de setembro em Belo Horizonte, não é partidária, mas não prescinde dos partidos nem os substitui; é política mas não se unifica em torno de calendários ou projetos eleitorais. Gestada a partir de um núcleo popular de esquerda, ela se lança à ampliação, aberta a todos os democratas. É popular porque enraizada no movimento social. É estratégica, posto que não se mobiliza, apenas, em torno da defesa do mandato da Presidente Dilma. Defende-o, e de igual modo defende o processo democrático, mas defende a preservação, no governo, das teses do campo popular, e se propõe, ao lado de todas as forças progressistas, a enfrentar o rolo compressor da direita, no governo Dilma e para além dele.
É uma Frente nacional que se reproduzirá em todo o País, nos Estados, nos municípios, procurando tecer a mais extensa rede de atuação.
Essa Frente, porém, não conterá todas as formas de luta, nem anulará outras iniciativas. Ela não substitui as frentes de partidos, nem eventual frente eleitoral progressista organizada para fazer face à frente conservadora, nem outras formas de frente e de lutas que a realidade objetiva exigir. Ela, enfim, se completará em uma série de outras iniciativas, e uma delas é, com os mesmos objetivos, uma Frente Parlamentar, reunindo todas aquelas forças democráticas comprometidas com a questão social e o enfrentamento da onda conservadora.

terça-feira, 25 de agosto de 2015

O que não fazer?

Roteiro sobre o tema “Experiências Internacionais de Organização Partidária”, elaborado para o Seminário sobre Organização Partidária, promovido pelo Diretório Nacional do Partido dos Trabalhadores

27 e 28 de agosto de 2015, em São Paulo, no Hotel San Raphael 

1.Agradeço à direção do PT o convite para contribuir neste seminário.

2.Faço parte dos que foram derrotados nas principais votações do recente quinto congresso, tanto nas questões políticas quanto nas questões organizativas.

3.Votei contra a continuidade do PED e a favor do sistema de eleição em congressos. E sou autor, junto com a companheira Iole Ilíada, de um recurso ao Diretório Nacional do PT, questionando a legalidade da decisão adotada quanto a contribuição militante.

4.No mérito, considero um despautério que um Partido como o PT, num momento como este, desvincule o direito de votar da obrigação de contribuir financeiramente. O momento é de construir o autofinanciamento militante!!! 

5.Dito isto, passo a tratar do tema para o qual fui convidado: “Experiências Internacionais de Organização Partidária”. Para tal, a organização me concedeu 10 minutos para uma fala inicial e 5 minutos para comentar após as intervenções dos participantes, mais o direito a distribuir um texto de 5 mil caracteres, o que equivale a 1 página do jornal Página 13.

6.Como o assunto não cabe neste tempo nem neste espaço, optei por preparar esta exposição por escrito, que a Sorg se dispôs a imprimir e distribuir aos presentes ao seminário. Além de estar disponível no valterpomar.blogspot.com.br

O que as experiências internacionais têm a nos dizer?

7.Começo afirmando a seguinte ideia: não existem modelos na luta  da classe trabalhadora pelo socialismo. A tentativa de copiar as opções (ou o que achamos que foram as opções) adotadas pela classe trabalhadora em outros países e épocas não deu e nunca dará certo.

8.Ou seja: em cada país, em cada época, cada classe trabalhadora terá que construir seu programa, sua estratégia, seus instrumentos organizativos, suas táticas e formas de luta. Portanto, a forma de organizar a luta da classe trabalhadora e as ideias correspondentes são marcadamente históricas, correspondem a um determinado momento da luta de classes em um determinado país.

9.Embora isto seja verdade, a tendência a copiar modelos é fortíssima. Por que isto acontece?

10.Em primeiro lugar, porque o capitalismo, a classe trabalhadora e a luta pelo socialismo são fenômenos internacionais.

11.Em segundo lugar, porque o maior êxito da classe trabalhadora num determinado país ou época estimula seus contemporâneos a “seguir os passos do caminho”. 

12.Assim é que houve uma tendência a copiar os franceses (até a derrota da Comuna de Paris), depois uma tendência a copiar os alemães (até a I Guerra Mundial), depois uma tendência a copiar os russos, os chineses, os cubanos etc. Vale destacar que esta tendência é estimulada em certa medida pela classe dominante, através da propaganda negativa que faz acerca de determinadas experiências.

13.Em terceiro lugar, porque é realmente útil estudar as experiências internacionais, desde que fique claro o que buscamos neste estudo. E o que buscamos não são as respostas certas, mas sim as perguntas certas.

14.Dito de outra forma, a experiência internacional não nos responde como organizar a classe trabalhadora brasileira na luta pelo socialismo.

15.Não existe um “supermercado de experiências”, onde a gente possa adquirir a "melhor forma de organização de base", a "melhor forma de mobilização", o "melhor tipo de comunicação", o "melhor tipo de direção" e assim por diante.

16.O que a experiência internacional pode nos ajudar é a elaborar uma lista de “perguntas” que devemos tentar responder, ao analisar a realidade brasileira.

17.Dito de outra forma, o estudo da experiência internacional (que em grande medida consiste no estudo de várias outras experiências nacionais ao longo da história) pode nos ajudar a produzir uma síntese dos grandes temas, das grandes questões, das grandes perguntas. Mas a resposta adequada aos nossos problemas, isto tem que ser produto da análise concreta da situação concreta, para usar uma frase conhecida.

18.O que foi dito até agora poderia ser formulado de outra forma, mais digamos "humorística", a saber: a experiência internacional pode nos indicar o que fazer para que as coisas terminem mal. Pode nos indicar, dito de outra forma, o que não fazer. Por razões meramente didáticas, é desta forma “humorística”, que eu vou organizar o restante da minha exposição.

O que não fazer?

I.Abrir mão da independência de classe

19.A experiência histórica demonstra: a classe trabalhadora deve construir organizações próprias, para travar a luta econômica, política e ideológica. Sindicatos e outras formas de organização, partidos, escolas e meios de comunicação: ou se constrói, ou se perde a luta.

20.No caso do petismo o déficit mais evidente ao longo destes 35 anos está no terreno da comunicação. Não apenas falta uma política e uma ação de comunicação à altura das necessidades (não temos um jornal diário, por exemplo). Mas também o conteúdo de nossa comunicação é pífio e muitas vezes errado, como eu percebo toda vez que vejo o Kassab, o Levy, o FMI e o Setúbal ganharem destaque positivo na página eletrônica do PT nacional.

21.A ausência de uma política de comunicação afeta a independência de classe, pois ajuda (por omissão) a manter uma grande parte da classe trabalhadora sob domínio da visão de mundo dos capitalistas e dos setores médios.

22.Depois de tantos anos, não se pode atribuir o problema a falta de recursos humanos ou materiais. E depois da exitosa e logo desdenhada experiência do Muda Mais, ficou claro que não se trata tampouco da rejeição aos impressos em favor das novas mídias. Há uma divergência de fundo, acerca da necessidade ou não de uma verdadeira rede de comunicação partidária.

23.E esta divergência, é bom que se diga, se estende ao conjunto da obra: desde 2003, muito pouco foi feito para quebrar o oligopólio da mídia e democratizar a comunicação de massa. Ao revés, a Globo continua tendo tratamento vip.

II.Deixar de construir uma interpretação própria acerca da realidade

24.A experiência histórica também demonstra: a classe trabalhadora precisa construir (e reconstruir, atualizando-a o tempo todo) uma interpretação própria acerca da luta de classes no terreno internacional e nacional, portanto acerca do desenvolvimento capitalista em geral e de cada formação social nacional. 

25.É bom dizer que nunca houve nem nunca haverá uma única interpretação, nem haverá “a” interpretação. Mas a busca por construir uma interpretação própria, do ponto de vista da classe trabalhadora, é essencial para o êxito da luta de nossa classe. Trata-se de uma tradução -- no plano das ideias -- da seguinte noção básica: a classe trabalhadora que produz a riqueza deve, através da sua organização e ação coletiva, tomar em suas mãos a definição de como produzir, como distribuir e como organizar a sociedade.

26.Um dos piores efeitos colaterais da ação combinada da ofensiva neoliberal e da crise do socialismo, nos anos 1980 e 1990, foi  exatamente o retrocesso no terreno das ideias.

27.O retrocesso ocorreu antes de mais nada no plano material, com o fechamento de editoras, escolas, jornais, provocando a redução nos recursos humanos e materiais dedicados à luta de ideias. Mas também ocorreu um retrocesso no terreno das ideias propriamente ditas: no mundo inteiro, caiu a influência do marxismo (ou, melhor seria dizer, dos marxismos) e cresceu a influência das correntes ideológicas burguesas, inclusive no interior dos partidos de esquerda.

28.Em alguma medida isto era inevitável. A derrota do socialismo de tipo soviético, da social-democracia europeia e do nacional-desenvolvimentismo, acompanhadas de uma nova fase no desenvolvimento capitalista, obrigaram a classe trabalhadora a tentar construir interpretações novas para os problemas antigos e a buscar construir soluções novas para os problemas novos. E enquanto isto não acontecia, é evidente que as ideias burguesas ocupariam mais espaço do que antes.

29.Um problema adicional, no caso do Brasil e do PT, é que não fizemos este “dever de casa”. Embora haja no Partido muita gente que gosta de citar o Gramsci, a verdade é que não se leva muito à sério a ideia de que o Partido deva ser um intelectual coletivo. Isto pode ser confirmado, analisando-se por exemplo as experiências & vicissitudes do Instituto Cajamar e da Fundação Perseu Abramo.

30.Importante lembrar que não há nenhuma experiência exitosa de luta pelo socialismo, que não tenha envolvido a construção de uma intelectualidade orgânica. Não estamos falando, como é comum na esquerda brasileira hoje, de buscar a “assessoria” de intelectuais tradicionais (estejam eles aonde estiverem e sejam quem forem). Estamos falando, isto sim, de construir uma “contra-elite intelectual”, vinculada organicamente à classe trabalhadora, capaz tanto de enfrentar o pensamento dominante quanto de construir uma visão de mundo adequada aos interesses da nossa classe.

31.A debilidade da nossa intelectualidade orgânica fica clara no caso do debate econômico: parte dos petistas incorporou o credo neoliberal (exemplo disto é a submissão mental ao dogma do superávit primário); outra parte combate o neoliberalismo a partir do credo keynesiano (o que implica, como estamos vendo neste segundo governo Dilma, num alto risco de capitulação). Aliás, a própria ilusão de que os "economistas profissionais" são os mais habilitados para discutir e elaborar nossas alternativas é por si mesmo reveladora.

32.Outro exemplo de debilidade da nossa intelectualidade orgânica está na maneira como interpretamos a estrutura de classes da sociedade brasileira. Há entre nós desde aqueles que abandonaram a luta de classes como vertebradora, tanto da ação quanto da compreensão da realidade; passando por aqueles que acreditam na luta, mas não acreditam no caráter central do conflito entre a classe trabalhadora e os capitalistas; até aqueles que corretamente reconhecem o papel central da luta de classes e do conflito capital versus trabalho, mas não atualizaram seu conhecimento da realidade, muito embora a composição de cada classe e do conjunto da estrutura social brasileira tenha sofrido mudanças importantes desde os anos 1980.

33.Podemos dizer, portanto, que a esquerda brasileira como um todo e o PT em especial ampliaram sua influência política, mas carregando uma bagagem teórica e ideológica debilitada e as vezes parcialmente emprestada dos seus adversários. O que ajuda a explicar a perplexidade de alguns, frente ao que está ocorrendo agora. 

34.Esta contradição entre influência política e influência ideológica -- que também ocorre no plano nacional, em que ganhamos 4 eleições presidenciais mas sem consolidar uma maioria político-cultural a favor de mudanças estruturais -- tem relação direta com determinadas opções políticas que fizemos desde 1995. Resumidamente, certos "atalhos" podem custar muito caro no médio prazo.

35.É bom que se diga, entretanto, que não somos os únicos. Por exemplo, parte da esquerda latino-americana vive a mesma situação: mesmo em países onde a situação política é mais avançada, a compreensão teórica dos processos está extremamente defasada e muitas vezes atrapalhada pela predominância de paradigmas enferrujados e as vezes totalmente incorretos quando se trata da interpretação do capitalismo do século XXI, do balanço das tentativas de construção do socialismo no século XX e das formulações estratégicas. Claro, dizem que a coruja de Minerva alça voo ao anoitecer. Mas nossa coruja às vezes parece empalhada.

III.Desistir da luta pelo poder

36. Pode parecer estranho, mas há várias correntes – como os zapatistas, por exemplo -- que acreditam ser possível “mudar o mundo sem tomar o poder”.

37.Aqui no Brasil temos algo análogo, por exemplo o Frei Betto, que volta e meia critica o PT por ter --na opinião dele-- cometido o erro de trocar um projeto de nação por um projeto de poder, quando a verdade é o oposto: o PT foi abrindo mão da luta pelo poder e se contentando em lutar pelo governo. Para depois de quatro eleições presidenciais, descobrir o óbvio: enquanto a classe dominante controlar os fatores fundamentais de poder, ela continuará dispondo dos meios seja para virar o jogo a seu favor, seja para limitar de modo estrutural nossos avanços.

38.O caso do Frei Betto, deixando de lado alguns aspectos da digamos personalidade política dele, revela um aspecto do problema que vale a pena comentar: a influência do pensamento cristão no petismo fez e faz com que sejamos muito suscetíveis ao senso comum segundo o qual “todo poder corrompe”, “política é coisa suja” etc. Senso comum muito útil aos que já detêm o poder, para convencer os que não detém o poder a manterem-se no seu lugar, para “não se sujar”.

39.Este senso comum acerca do poder afetou negativamente o nosso pensamento e nossa ação estratégica. E -- ao não entendermos nem tratarmos corretamente o tema do poder --, acabamos na teoria fazendo um discurso liberal sobre ética & cidadania, ao mesmo tempo em que na prática baixamos a guarda inclusive no tema da corrupção.

40.A este respeito, é bom dizer que nosso partido foi vítima precoce do mesmo mal que atingiu tantos partidos socialistas, especialmente daqueles que detinham o poder de Estado. Claro que a oposição de direita é hipócrita, claro que a justiça é seletiva, claro que a mídia deforma, claro que nossos governos tomaram medidas importantes no combate à corrupção. Mas também é verdade que baixamos a guarda, nos acomodamos ao modo tradicional de fazer política e – além disso—introduzimos em nosso Partido métodos degenerados de luta interna, baseados na mesma mercantilização eleitoral que condenamos na sociedade. Sem falar no olhar de paisagem com que vários de nós passaram a encarar os famosos “sinais exteriores” ostentados por alguns filiados.

41.Vale lembrar que a burocratização e a corrupção em larga escala atingiram vários partidos no Leste Europeu. E que na China, o PCCh transformou o combate à corrupção em questão de vida ou morte. O tema da corrupção, portanto, pode ser “ético” no plano individual, mas no plano da luta de classes é parte da disputa pelo poder. E quem não quer disputar/conquistar/tomar o poder, é disputado/conquistado/tomado por quem controla o poder.

42.Aceita a tese de que não podemos desistir da luta pelo poder, é preciso enfrentar três temas vinculados: o que é o poder, quem deve conquistar o poder, como conquistar o poder. Sobre isto há um debate internacional que podemos rastrear pelo menos desde os tempos da criação da Associação Internacional dos Trabalhadores, em 1864, até os tempos atuais. Este debate é tão atual que, por exemplo, leva alguns de nós a “defender a democracia” e outros a “defender as liberdades democráticas”. Como não há tempo nem espaço, sejamos telegráficos: quem deve conquistar o poder é a classe trabalhadora; como conquistar o poder é “o” debate estratégico; e o poder é uma relação social, que se cristaliza periodicamente em determinadas instituições (a propriedade das empresas, as forças armadas, os meios de comunicação, as instituições estatais, as organizações populares etc.).

43.Se queremos aprender algo das experiências internacionais, especialmente das fracassadas, que são as mais interessantes, devemos retomar o debate estratégico e dar conta das questões expostas no item acima. Digo que as fracassadas são as mais interessantes, no espírito da frase famosa: “todas as famílias felizes são parecidas; as infelizes são infelizes cada uma a sua maneira”.

IV.Romper a relação entre reformas e revolução

44.Na virada do século XIX para o século XX, houve um grande debate entre os principais dirigentes da socialdemocracia – pessoas como Rosa Luxemburgo, Bernstein, Kautsky e Lenin – acerca da relação entre a luta pelo socialismo e a luta cotidiana da classe trabalhadora, por melhorar suas condições de vida no capitalismo.

45.Este debate continuou por todo o século XX e reaparece, sob diferentes formas, no dia-a-dia de todo militante de esquerda. Na prática somos estimulados a dar conta do imediato, do urgente, do que está ao nível de consciência das pessoas. Mas se nos limitarmos a isto, que tipo de mudança produziremos ao final?

46.Dito de outra maneira e dando um exemplo: devemos lutar por aumentar nossos salários, mas o aumento dos salários não vai modificar o sistema social em que alguns são proprietários e outros vendem sua força de trabalho. E se o que queremos é mudar este sistema, então é preciso combinar a luta por “reformas” com a luta por “revolução”.

47.No caso do Brasil, fazer esta discussão exige remover várias camadas de confusão. De cara, vivemos num país onde nunca houve uma revolução social, pelo menos não algo similar às várias revoluções ocorridas na França entre 1789 e 1870, nem similar a guerra de independência dos EUA e a posterior guerra civil que acabou com a escravidão, nem similar ao que ocorreu na Rússia, ou na China, ou em Cuba.

48.Ao mesmo tempo, vivemos num país onde a classe dominante chama episódios como 1930, 1932 e 1964 de “revolução”. 

49.Simultaneamente, aqui no Brasil o termo reformas possui vários significados. Exemplo: as “reformas de base” defendidas pela esquerda em 1964 versus as “reformas neoliberais” aplicadas pelo PSDB nos anos 1990.

50.Esta confusão digamos linguística não é apenas linguística. Corresponde a um contexto extremamente resistente ao radicalismo político e social.

51.Quando o PT surgiu, ele enfrentou esta tradição de conciliação e pacto; mas ao longo do tempo, fomos nos habituando, nos conformando, nos adaptando, nos domesticando – para usar uma expressão que, por essas ironias da vida, foi notabilizada noutros tempos pelo atual presidente do PT, Rui Falcão.

52.Hoje o PT precisa recuperar sua “indignação com tudo isto que está aí”, recuperar sua capacidade de expressar a insatisfação popular, a rebeldia plebeia, o protesto proletário. Pois se não fizermos isto, se não formos também expressão da insatisfação e rebeldia social, nos converteremos num “partido da ordem”, no sentido estrutural da palavra. É o que trataremos no próximo ponto.

V.Subordinar o Partido ao Estado e/ou ao governo

53.Nos anos 1990, quando a União Soviética veio abaixo, importantes intelectuais petistas diziam que um dos maiores ensinamentos daquela experiência foi a de que não se deve confundir nem subordinar Partido e Estado. Este é um tema muito complexo, pois a experiência histórica mostra que quando há uma revolução, o Partido que dirige esta revolução torna-se ele mesmo o núcleo do poder de Estado. E que, portanto, nestes casos, embora Estado e Partido sejam instituições diferentes, o vínculo entre elas é muito forte. 

54.Reconhecendo esta realidade, tanto Lenin quanto Gramsci defendiam que o Partido assumisse conscientemente o papel de construtor do novo Estado. Sendo que a partir da experiência prática entre 1917 e 1924, Lenin enfatizava muito a distinção entre as tarefas de “administração” e “direção” (ou seja, entre governo e Estado).

55.No debate dos anos 1990, alguns intelectuais do PT entraram na onda de estigmatizar Lenin e desidratar Gramsci, ao ponto de converterem a noção de disputa de hegemonia em “interlocução” institucional. E no lugar da visão clássica da esquerda sobre o Estado, grande parte do PT foi adotando o famoso “republicanismo”, que tem seu melhor exemplo no comportamento passivo do governo, especialmente do atual ministro da Justiça, frente à atitude de setores do judiciário, do Ministério Público Federal e da Polícia Federal: “aos inimigos, nem mesmo a lei”. 

56.Num resumo: da crítica parcialmente justa à confusão entre Partido e Estado, alguns avançaram para a crítica ao papel dirigente do Partido frente ao Estado e terminaram subordinando o Partido ao Estado.

57.Esta discussão sobre a “separação entre Partido e Estado” estava em curso, no Brasil dos anos 1990, no mesmo momento em que a esquerda brasileira tinha como um de seus objetivos conquistar governos. E quando chegávamos a uma prefeitura, a um governo estadual e mesmo ao governo nacional, ganhavam destaque os problemas na relação entre partido e governo. Problemas para os quais a “definição teórica” segundo a qual partido é partido, governo é governo, Estado é Estado, demonstrou-se absolutamente insuficiente. E, na prática, parcelas crescentes do PT vem se subordinando aos seus governos e através deles, ao Estado.

58.Evidente que os problemas citados ocorreram e ocorrem em diversas experiências internacionais, especialmente desde 1998 na América Latina. Ou seja: onde a esquerda chegou ao governo através de eleições, experimenta problemas similares. O que nos remete ao debate sobre a relação entre partido, governo e Estado, em condições normais de temperatura e pressão.

59.As condições anormais de temperatura e pressão são aquelas em que, no curso de uma revolução, a esquerda tenta construir ou reconstruir à sua imagem e semelhança o Estado. Temos outras situações em que, quando vence uma eleição em condições de grande crise, a esquerda tenta reformar o Estado através de um processo constituinte.

60.O Brasil não viveu nenhuma destas situações. Aqui a esquerda foi chegando ao governo e foi deixando de lado as tentativas de transformar a estrutura do Estado (leia-se: aquelas estruturas e regras de funcionamento que definem a quem o Estado realmente serve). Basta ver o que aconteceu com o orçamento participativo e mesmo as limitações de nossas conferências nacionais e conselhos, para perceber do que estou falando.

61.Como resultado disto, o governo é por definição refém do Estado. E quando um partido tem como única orientação estratégica disputar e vencer eleições, ele torna-se refém do governo, que é refém do Estado. Dito de outro jeito: o Partido tende a deixar de ser uma instituição cujo objetivo é subverter a ordem, e tende a converter-se numa instituição paraestatal. 

62.Um dado irônico é que esta mutação na natureza do Partido é justificada por discursos os mais variados. Desde 2003 ouvimos de tudo, desde argumentos supostamente "leninistas" em favor da centralização e subordinação do partido ao governo, até argumentos liberais e "republicanos". Mas uma coisa é a aparência e outra coisa é a essência do fenômeno. E a essência é a conversão de parcelas crescentes do partido em organismo paraestatal, de um Estado construído por e a serviço de nossos inimigos de classe. 

63.Grande parte das discussões sobre a “burocratização” do Partido, sobre sua desimportância, sobre sua subordinação ao governo, assim como sobre a relação entre movimentos, partido e governo. estão relacionados a este processo de fundo, de “estatização” do Partido. Não deixa de ser curioso que à frente deste processo estejam, muitas vezes, os que mais alto gritaram contra a "confusão" entre Partido e Estado no socialismo real...

64.Em reação a este processo de estatização da vida partidária, há os que dizem que o problema está em disputar eleições e/ou que o antídoto estaria nos movimentos sociais. Em relação ao primeiro argumento, podemos dizer que – enquanto estivermos na atual situação histórica -- ele equivale a pedir para parar o mundo, para que possamos descer. Afinal, não existe possibilidade – ao menos nas atuais condições históricas – de “escolher” não disputar eleições ou de “escolher” não dar importância para a luta de classes que se trava no terreno das instituições de Estado. Aliás, alguns dos que menosprezam a importância estratégica das disputas eleitorais acabam, na vida real, participando delas da pior maneira possível. A questão, óbvio, está em como participar ou, de maneira mais geral, no "lugar" que a disputa eleitoral ocupa no conjunto da estratégia. O que nos conduz ao tema das lutas e movimentos sociais.

VI.Achar que a salvação está nos movimentos sociais

65. Quando o PT surgiu, dava-se uma ênfase enorme ao papel dos movimentos sociais e ao mesmo tempo havia uma subestimação do papel da luta institucional. Hoje, muitos dos personagens que nos anos 1980 encabeçaram a construção do PT, voltam a fazer um discurso enfático sobre o papel estratégico dos movimentos sociais, como um antídoto à “institucionalização”.

66.Esta defesa da retomada de um certo discurso e prática, defesa que alguns chamam de “volta às origens”, esconde uma armadilha lógica. A saber: se nós defendíamos aquilo e deu nisto, por qual razão defender de novo aquilo agora vai dar noutro resultado, agora vai resolver o problema? Dito de outro jeito, temos que responder porque “aquilo” deu “nisto”?

67.Não temos tempo nem espaço para apresentar aqui uma resposta adequada à tal questão, mas é possível indicar onde está um dos núcleos “teóricos” do problema. Trata-se da confusão que se faz entre três níveis diferentes de questões: 1) o movimento social enquanto movimento real de setores ou do conjunto da classe trabalhadora; 2) o movimento social enquanto organizações que expressam de maneira permanente determinados setores da classe trabalhadora; 3) o movimento social enquanto militantes políticos (integrantes ou não de partidos formais) que atuam e dirigem o movimento real e/ou as organizações permanentes.

68.Evidente que não há caminho para o êxito da classe trabalhadora sem o concurso articulado destes três níveis. Mas, atenção, a cada tarefa seu instrumento. Olhando para a experiência histórica, não há absolutamente nenhum caso em que os “movimentos sociais” tenham resolvido o problema do “poder de Estado”, nem mesmo conquistado governos. Quem faz isto são os partidos. O exemplo da Bolívia, para tristeza de quem tem uma visão ingênua sobre o papel dos movimentos sociais, talvez seja um dos melhores exemplos disto.

69.Parte da confusão pode ser desfeita quando percebemos a relação que existe entre o "partido" no sentido amplo e o partido no sentido estrito da palavra. Apenas uma minoria da "militância dos movimentos sociais", ou seja, apenas uma minoria daquelas pessoas que dirigem as organizações e os movimentos sociais, são filiadas a partidos políticos no sentido estrito da palavra. Mas todos e todas que são "militantes sociais" integram o partido no sentido amplo da palavra, ou seja, compõem o setor de vanguarda da classe trabalhadora. 
Em determinados momentos da história de um país, um "partido no sentido estrito" hegemoniza o "partido no sentido amplo". Em certa medida isto aconteceu com o PCB no período 1945/1964 e com o PT no período 1989/2003. Noutros momentos, não há (ou está em crise) um partido hegemônico e a militância social vive em estado de crescente dispersão. Nestes momentos surge a tendência a tratar como absolutamente distintas e até antagônicas a "militância partidária" e a "militância social". Surge também uma tendência a atribuir aos "militantes sociais" e/ou aos "movimentos sociais" tarefas de partido.

70.O fato é que, quando os partidos falham, apelar aos “movimentos” pode ser apenas uma maneira de não responder por qual motivo os partidos falham. Vide as expectativas ontem depositadas no Syriza e hoje depositadas no Podemos. Assim, há um conjunto de questões a responder de forma articulada: qual o lugar que os movimentos sociais (enquanto luta real e concreta), e qual o lugar que os movimentos sociais (enquanto organizações permanentes) e qual o lugar que os militantes dos movimentos sociais têm na estratégia global de transformação do Brasil?

71.No fundo, só consideramos acertado falar que a “salvação está nos movimentos sociais” no sentido de que nossa estratégia só terá êxito se tiver apoio no movimento real da classe trabalhadora, se soubermos combinar formas de luta, se por exemplo estimularmos a construção de um poder alternativo e paralelo, que possibilite termos um governo que não seja refém do Estado, que permita termos um partido que não seja refém do governo. Ou seja, a “salvação” está também nos movimentos sociais, a depender de como se articule --no contexto de uma estratégia geral-- a ação do movimento real da classe, a ação das organizações da classe, a ação dos militantes que atuam nos movimentos sociais (partido amplo), a ação dos militantes partidários (partidos no sentido estrito). 

72.O que foi dito antes tem relação direta com a discussão que está em curso, hoje, sobre a necessidade de construir uma frente popular (para alguns) ou uma frente de esquerda (para outros). As diferentes visões programáticas, estratégicas e táticas se traduzem em pelo menos três posições organizativas: há os que pretendem construir uma frente ampla de partidos, movimentos e "personalidades", há os que pretendem construir uma frente de movimentos e há os que pretendem construir um novo partido chamado de "frente". Evidentemente, se prevalecesse a posição destes últimos, não haveria frente alguma. Já os que defendem uma frente apenas de movimentos estão querendo utilizar um instrumento (a Frente) para tentar resolver um problema de outra natureza (o Partido).


VII.O culto à personalidade

73.Na ausência de uma visão ou resposta estratégica, muita gente deposita suas esperanças em soluções mágicas. Voltando ao debate dos anos 1990: fazia parte do pacote ideológico "comprado" por algumas pessoas criticar o socialismo soviético, a revolução, o partido de vanguarda e o culto à personalidade

74.A crítica foi tão malfeita que, quando o problema surgiu entre nós, tivemos dificuldades para reconhecer e tentar corrigir o problema. O resultado é que em vários países latino-americanos, inclusive no Brasil, pratica-se um culto à personalidade de baixa intensidade.

75.No nosso caso, na atual conjuntura, trata-se do último refúgio dos desesperados: “tá tudo muito complicado, mas o Lula vai ganhar as eleições em 2018 e tudo vai se resolver”.

76.Quem diz isto geralmente não explica por quais motivos ele vai ganhar as eleições e por quais motivos seu governo vai corrigir os rumos. Trata-se no fundo de uma crença, não de análise. Uma crença que tem uma larga tradição na história do Brasil e também uma larga presença no movimento socialista internacional.

77.Não é preciso gastar muito argumento: os indivíduos, especialmente as lideranças, têm um papel na história, maior ou menor. A questão é saber que tipo de relação se estabelece entre o indivíduo e o coletivo, entre as lideranças, o partido, a classe e a maioria do povo. Como tantas outras questões que tratamos aqui, não há uma resposta única, nem que seja válida para todos os tempos e situações. E, para falar a verdade, embora haja acertos, os erros cometidos a respeito disto são monstruosos.

78.No caso do Brasil, temos uma peculiaridade: o processo eleitoral e o exercício de mandatos eletivos estimulam um determinado tipo de relação entre o indivíduo e o coletivo.

79.Se o coletivo (seja a sociedade, seja o Partido) não criar antídotos, o que vai prevalecer será o poder unipessoal no executivo e o cretinismo no parlamento (para citar um cidadão conhecido, o cretinismo parlamentar consistia “numa espécie de delírio que acometia as suas vítimas, as quais acreditavam que todo o mundo, o seu passado e o seu futuro se governavam por uma maioria de votos ditada por aquela assembleia (…) e tudo o que se passava fora daquelas quatro paredes muito pouco ou nada significavam ao lado dos debates importantes").

80.Uma das curiosidades é que os executivos autoritários e os parlamentares cretinos muitas vezes usam como desculpa o fato de terem sido eleitos pelo povo. O que confirma que a demagogia basista pode ser, as vezes, a melhor desculpa para o autoritarismo.

81.Isto nos remete a duas discussões que estão relacionadas, mas são distintas: como ampliar as liberdades democráticas na sociedade e como garantir a democracia no interior do Partido. O primeiro tema está relacionado com a discussão da Constituinte, da reforma política e do Estado, da democracia na comunicação etc. Já o segundo tema diz respeito diretamente ao que estamos discutindo neste texto: o controle da direção pelas bases, o controle dos mandatários pela direção, as estruturas, o funcionamento e o financiamento do Partido, sua relação com a militância social, com a classe e com a maioria do povo.

82.Há um imenso debate a respeito de como fazer isto, envolvendo questões como partido de massas e de quadros, partido de vanguarda e “centralismo democrático”, papel das direções e direito de tendências, existência e papel de funcionários e profissionalizados (o que no caso da atual esquerda brasileira envolve não apenas a burocracia partidária, mas também a sindical, parlamentar e governamental), funções e poderes dos organismos de base (núcleos, setoriais, células), formação e comunicação partidárias etc. Trata-se de um debate tão apaixonante, pelo menos para os que somos dirigentes na ativa ou na reserva, que é comum perdermos de vista a natureza essencialmente política do problema. 

VIII.Abrir as portas do partido

83.Certas pessoas gostam quando aparece uma solução fácil para um problema difícil. Infelizmente, muitas vezes trata-se apenas de prestidigitação. Ou seja: se nosso problema é de linha política, olhemos para o outro lado e vamos discutir o estatuto. Se nosso problema é que a direção não está à altura das tarefas, olhemos para o outro lado e vamos discutir como “organizar o partido a partir da base”. Se nosso problema é estar perdendo apoio na classe trabalhadora, olhemos para o outro lado e vamos nos transformar em um “partido de portas abertas”, o que pode significar várias coisas diferentes, não necessariamente aquilo de que realmente precisamos: reatar os laços com a “velha” classe trabalhadora e construir laços com a “nova” classe trabalhadora. Se nosso partido está vivendo uma crise tremenda, que lembra perigosamente o estágio fatal de outros grandes partidos de esquerda no mundo e no Brasil, vamos fingir que somos uma jabuticaba e que nada disso vai acontecer conosco.

84.Um dos partidos mais interessantes do século XX foi o Partido Comunista Italiano. Viveu experiências tremendas (revolução, ascensão do fascismo, guerra de guerrilhas, lutas sociais e parlamentares), construiu uma interpretação acerca da Itália e do mundo (vide Gramsci), possuía uma vida interna pujante, base de massas, força na classe trabalhadora... e desapareceu, suicidou-se. A tragédia é detalhadamente descrita no livro O alfaiate de Ulm, de Lucio Magri. Livro que este seminário deveria sugerir como leitura obrigatória para todo petista. Até porque nos permite perceber algo muito interessante: a crise de um partido que tem enorme importância não é um fenômeno singular, faz parte da crise mais geral de todo um sistema político.

85.Nosso PT tem infinitos problemas organizativos, alguns muito superiores aos de outros partidos que desapareceram na poeira da história. Dou como exemplo a situação de colapso em nossa comunicação, o déficit de formação política, o esfacelamento dos núcleos de base, o enfraquecimento da ligação de parcelas de nosso partido com a vida e a luta cotidiana dos trabalhadores, a dependência frente aos recursos financeiros públicos e empresariais etc. Esta situação nos empurra, como é óbvio, a dar aos problemas organizativos um papel destacado; não digo que isto seja totalmente errado, mas acho que é essencialmente errado, se por "problemas organizativos" entendermos técnica, administração, regras e estatuto.

86.Para explicar o que quero dizer, termino com uma “anedota”. Deixei de ser dirigente profissionalizado em dezembro de 2013. E depois de 16 anos resolvi tirar um ano sabático, que no meu caso foi dedicado entre outras coisas a algo meio vintage: ler os 50 volumes das Obras Completas do Lenin. 

87.Lenin é conhecido, dentre os dirigentes da esquerda, pelo alto valor que deu ao tema do Partido. Cinquenta volumes depois, obviamente constatei que isto é verdade. Mas muito mais verdade é que, para Lenin, a questão organizativa é uma questão política. Como ele dizia, a organização é política concentrada. Noutros termos, os problemas organizativos do PT não serão resolvidos, se não resolvermos nossos problemas políticos.

88.Adendo por fim outro comentário, sugerido por um companheiro e também baseado no Lenin: o russo dizia que não existe situação sem saída para a burguesia. Agrega o citado companheiro: a burguesia aprende com nossos erros e acertos. Nós precisamos fazer o mesmo.

Valter Pomar
26 de agosto de 2013

ps. Agradeço a quem opinou sobre este texto, em especial ao Rodrigo César, ao Diego Pitirini, ao Wladimir Pomar, ao Breno Altman, a Rachel Moreno, ao Lincoln Secco, ao Carlos Virtude e demais participantes da lista Marxorg : Marxismo e Organização Política. Por óbvio, nenhum dos que ajudaram tem qualquer responsabilidade pelo que foi dito neste texto. 



terça-feira, 18 de agosto de 2015

Nassif sonha

O texto reproduzido ao final, de Luís Nassif, é ótima expressão de um certo jeito de pensar muito comum em certas áreas do pensamento progressista brasileiro.

Um jeito de pensar que enumera profecias, para conclui entretanto que tudo se trata de um "romance", escrito "em cima dos personagens atuais. Há muita água e lama a rolar até 2018. Tentar adivinhar é um desafio que nenhuma ficção ousará enfrentar".

Ou seja: se não for assim, tudo bem, vai ser diferente.

Que este jeito de raciocinar seja levado a sério -- por alguns -- resulta da mesma sociedade capaz de gerar aquilo que vimos e ouvimos nas manifestações da direita.

Claro, nem tudo que Nassif diz é errado, mas o conjunto é. Porque, como ele mesmo diz, este conjunto baseia-se em "personagens". Em seu roteiro, não há classes, não há grandes processos sociais e econômicos, não há as viras e voltas da cena internacional.

É isto que o faz "concluir" que a passeata de 16 de agosto marca o "fim de um ciclo político no país: o da intolerância". 

Raciocínio típico de quem não tira as devidas implicações políticas das chacinas, do violência endêmica, do agravamento das condições de vida e trabalho.

Não tenho dúvida de que 16 de agosto parece encerrar um micro-ciclo político. 

Como disse o tucano Luis Carlos Mendonça de Barros, há três grupos na oposição de direita: "um grupo defende dar o mínimo de governabilidade para a presidente continuar o ajuste por mais um ano e meio. Outro acha que a estabilização da governabilidade deve ir um pouco mais longe, chegando às eleições de 2018. E um terceiro avalia que já existem motivos para interromper o governo e gerar, ninguém sabe direito como, uma nova governabilidade". 

O 16 de agosto mostra que o primeiro e o segundo grupos estão neste momento predominando. 

Mas mesmo para estes que defendem um acordo com o governo, a "governabilidade fica na dependência de não aparecer algum crime envolvendo a presidente". 

Falando noutros termos: chantagem movida a delação premiada.

Mas o que decorre daí? 

Se o ajuste prosseguir por mais um ano e meio, isto vai agravar e muito as condições sociais no país, com consequências que vão ser enfrentadas com a "intolerância" que vemos ser praticada pelas polícias militares, como vimos por exemplo no Paraná e São Paulo (a PM de Minas Gerais, como explicou o governador Pimentel, respeita o "protocolo").

Dito de outra forma: se o governo Dilma aceitar um pacto de governabilidade com a direita, reduzindo a pressão explicitamente golpista. a esquerda política e social se sentirá mais confortável para acentuar a luta por outra política econômica. Tipo de "detalhe" que o texto de Nassif não considera.

Por outro lado, será mesmo verdade o que ele diz, que o "bipartidarismo (...) se esgotou"?

Aliás, será mesmo que existiu? 

Pois de cara parece estranho falar em bipartidarismo, num país em que um terceiro partido joga papel fundamental. 

Agora, se por bipartidarismo queremos nos referir apenas às disputas presidenciais, algo me diz que Nassif está meio apressado.

Pois cá entre nós, Aécio estar com dificuldades agora não retira do PSDB as chances de ter um candidato no segundo turno de 2018. Onde o próprio Nassif insinua que Lula pode estar, também.

Na verdade, o texto inteiro de Nassif é uma especulação, quando não uma torcida. 

Diz ele: "o PT tornou-se uma militância sem partido, atrás de uma nova utopia". 

Diz também: "haverá enorme dificuldade em se criar uma nova utopia, em superar os paradoxos e as hipocrisias reveladas pela Lava Jato - pelo que ela mostrou, pelo que vazou e pelo que até agora escondeu".

Incrível, não? 

Vira e volta, estes porta-vozes da "classe-média-que-se-acha-esclarecida" não conseguem escapar deste viés de interpretação. 

Realmente, a classe dominante brasileira é genial: sabe desviar a atenção. Não corrompe apenas pessoas e partidos, corrompe também pensamentos. Ou, melhor dizendo, a corrupção organiza seu pensamento.

Um exemplo disto é a abusrda conta de chegar que Nassif faz, aproximando FHC e Lula. 

Segundo Nassif, "FHC tornou-se o queridinho dos mercados; Lula, o campeão do Terceiro Mundo. Ambos transformaram essa influência em negócios lucrativos legais, tornando-se milionários".

E não se pense que Nassif está indignado. Para ele, isto apenas mostaria "o jogo político em um país de economia de mercado, o paradoxo do representante dos pobres e desassistidos comportando-se como um  empreendedor capitalista". Notem um detalhe essencial: neste ponto do texto e do raciocínio de Nassif, FHC já desapareceu do raciocínio, agora só ficou Lula na mira. 

Cada qual julgue o indivíduo Lula como quiser e puder. Mas o que impressiona é o seguinte: mesmo reconhecendo que isto, "perto do feito político de tirar 50 milhões de brasileiros da linha da miséria, é picuinha", ao mesmo tempo que omite quão poucos FHC tornou bilionários e a quantos ajudou a empurrar para a miséria, o conjunto da interpretação apresentada por Nassif reforça uma narrativa que, vamos falar claro, não tem nada de inocente.

Ou alguém acha que a direita, esta mesma que aceita Dilma desde que seja para aplicar o ajuste, pretende deixar Lula livre, leve e solto? 

Sobre esta "hipótese" Nassif não diz uma linha. Claro, para ele acabaram os tempos da intolerância (afinal, um boneco de Lula vestido como presidiário é apenas carnaval, não tem nada de intolerância, certo???).

Nassif acredita no lulismo pós-PT. Para ele, "o PT - e Lula - terão o enorme desafio de se reinventar, mais facilmente Lula, mais dificilmente o PT". 

E aí fica claro o sonho de consumo do escriba. No fundo, ele quer uma frente ampla, social-democrata, sem os socialistas, sem a esquerda petista. Esses, ele quer em partidos menores, ou seja, sem influência de massa. 

Nassif tem todo o direito de querer isto. A questão é saber se a conta fecha, ou seja, se é possível uma esquerda de massas no Brasil que não seja, ao mesmo tempo, ampla e radical.






A passeata de 16 de agosto é o fim de um ciclo político

Hoje encerra-se oficialmente um ciclo político no país: o da intolerância. Multidões ainda sairão às ruas como renas amestradas. Baterão panelas atrás do impeachment e cabeças atrás de ideias. E não terão nem uma, nem outra.
Gradativamente a grande besta será recolhida de volta à jaula pela ação combinada de lideranças políticas efetivas de ambos os lados, grupos econômicos e grupos de mídia.
Em parte, devido à conclusão de que o petismo foi definitivamente derrotado. Se acabou ou não, o futuro dirá. Mas, neste momento, jogar mais lenha na fogueira seria passar o bastão para os piromaníacos e não se ter mais o controle da turba. O atentado contra o Instituto Lula é a prova definitiva da marcha da insensatez.
O comentário é de Luis Nassif, jornalista, publicado por GGN, 16-08-2015.
Em parte, devido ao fato de que o PSDB se derrotou, morreu enforcado nas tripas do PT.
Nesta data magna de 16 de agosto de 2015, o bipartidarismo que, desde a Constituição de 1988, dominou a vida pública do país, definitivamente se esgotou.
PT tornou-se uma militância sem partido, atrás de uma nova utopia. O PSDB, o estuário de uma turba vociferante e anacrônica, deixando órfã a classe média esclarecida que um dia nele acreditou.
A dificuldade com a nova utopia
O que virá daqui para frente é uma incógnita.
Haverá enorme dificuldade em se criar uma nova utopia, em superar os paradoxos e as hipocrisias reveladas pelaLava Jato - pelo que ela mostrou, pelo que vazou e pelo que até agora escondeu.
A primeira hipocrisia é da suposta diferenciação entre os políticos.
São iguais, embora com agendas distintas.
FHC e Lula construíram uma imagem em cima de um projeto de país amparados, de lado a lado, por forças sociais ou econômicas expressivas. Essa imagem, os relacionamentos construídos no exercício do poder, no entanto, passaram a ser tratados como ativos individuais. FHC tornou-se o queridinho dos mercados; Lula, o campeão do Terceiro Mundo. Ambos transformaram essa influência em negócios lucrativos legais, tornando-se milionários.
Não se está aqui condenando-os ou pressupondo qualquer ilegalidade. Portaram-se como ex-presidentes dos EUA, ex-primeiros ministros do Reino Unido e da França. Está-se apenas mostrando o jogo político em um país de economia de mercado, o paradoxo do representante dos pobres e desassistidos comportando-se como um  empreendedor capitalista; e as publicações que mais enaltecem o mercado condenando-os, como se fossem defensoras do que elas chamam de pobrismo.
Perto do feito político de tirar 50 milhões de brasileiros da linha da miséria, é picuinha.
Mas qual o pedaço de Lula que mais encantou presidentes norte-americanos, de George Bush Jr. a Barack Obama? O mito do sujeito que saiu da extrema pobreza e venceu, a mítica do herói norte-americano, em contraposição à elite decadente europeia.
Lula é a encarnação do sonho norte-americano, como um Abraham Lincoln, não a utopia bolivariana, como José Mujica. Por motivos opostos, Bush Jr não escondia a antipatia por FHC, visto como o intelectual pedante que nunca teve que lutar pela sobrevivência pessoal ou política.
O balanço do estrago
No final da tarde, quando a passeata terminar e a besta, as panelas e o ódio forem recolhidos, começará o duro reencontro do país consigo mesmo.
Jornais e TVs deixarão de recriar o clima de fim de mundo. Ontem, aliás, após ajudar a desmontar setores com centenas de milhares de empregos, o Jornal Nacional resolveu recriar a esperança, em cima do micro-exemplo de uma micro-empreendedora que criou um negócio com um funcionário e agora já tem três.
É o milagre da hipocrisia de massa.
Com o ódio refluindo, a Lava Jato ainda terá tempo de provar se é um poder autônomo ou um poder autorizado pela mídia. A prova do pudim será José Serra.
A esquerda terá que se reinventar. Os que ainda alimentam a utopia de que a economia de mercado não é irreversível se abrigarão em partidos menores. O PT - e Lula - terão o enorme desafio de se reinventar, mais facilmente Lula, mais dificilmente o PT.
Em 2018 é mais provável ter-se um Lulismo - na forma de frente ampla - substituindo o PT, cuja expressão final é a cara insípida, inodora e sem emoção de seu presidente Rui Falcão. Os movimentos sociais, que amam e continuarão amando Lula, encontrarão abrigo nessa frente ampla, social-democrata. Os que ainda acreditam na utopia socialista, irão para partidos menores.
No outro extremo, o ódio da direita será a última herança de Aécio NevesAécio é tão tolo e despreparado que ainda não entendeu que o que acreditava ser a tomada da Bastilha era apenas a última passeata da Ilha Fiscal. Terminará recluso em algum castelo encantado de Linchenstein, cercado por um convescote de sábios, dentre os quais se destacarão Ronaldo CaiadoAloyzio NunesCarlos Sampaio, e no qual as ideias serão proibidas de entrar (coloqueiNunes de sacanagem: ele, como um pitbull esperto, está tão louco para pular do barco que até conseguiu conter a fala raivosa).
Daqui até 2018 Dilma Rousseff terá tempo para governar.
Obviamente, esse romance foi escrito em cima dos personagens atuais. Há muita água e lama a rolar até 2018. Tentar adivinhar é um desafio que nenhuma ficção ousará enfrentar.