Balanço do governo 2001-2004
(contribuição preliminar da Articulação de Esquerda, para o debate na
reunião do dm, dia 4/12/2004)
Apresentação
O PT disputa eleições e governa cidades, desde 1982.
No caso de Campinas, nossa primeira experiência de governo ocorreu
entre 1989 e 1991, sendo encerrada de maneira traumática, com a ruptura entre o
prefeito Jacó Bittar e o Partido.
Não foi realizado um balanço completo daquela experiência. As poucas
tentativas nesse sentido --como o livro de Celso Marcondes, que presidiu o PT
Campinas naquele período-- acabaram sendo mais centradas na relação prefeito
versus partido, do que na análise do conjunto da experiência de governo.
Nossa segunda experiência de governo, entre 2001 e 2004, foi encerrada
por uma derrota eleitoral. E, apesar dos traumas ocorridos neste período
--entre os quais destaca-se o assassinato do prefeito Antonio da Costa Santos,
com todas as suas decorrências internas e externas-- desta vez o Partido está
dando sinais de que vai produzir uma reflexão mais completa desta experiência.
Achamos fundamental que esta reflexão ocorra. Afinal, é preciso
extrair destes quatro anos de governo, lições que nos permitam reconstruir o
Partido, reorganizar os movimentos sociais e preparar nosso retorno.
Este texto, de responsabilidade de militantes da tendência Articulação
de Esquerda, é uma contribuição inicial nesse sentido. Nele, fazemos críticas
que são também auto-críticas, uma vez que desde o início fizemos parte do
governo, sendo que durante a gestão Izalene fizemos parte do núcleo político
que dirigiu o Partido, o governo e a campanha eleitoral.
Claro que o balanço de nosso governo, para ser completo, deve levar em
conta o balanço estritamente eleitoral. E vice-versa. Foi isso que fizemos, no
documento apresentado ao PT no dia 6 de novembro.
Claro, também, que o balanço completo de nossa ação de governo implica
em analisar as políticas públicas setoriais desenvolvidas. Este assunto, de
importância óbvia, será tratado por nós em outro texto. Nos limitamos, aqui, a
ensaiar um balanço político-administrativo do governo democrático e popular.
Campinas: governo e partido fragilizados
É claro que a atuação do PT, de 2001 até 2004, não se resume à sua
presença no governo municipal. Devemos levar em consideração, também, o
desempenho do Partido nos parlamentos (Câmara, Assembléia e Congresso
Nacional), nos movimentos sociais, no governo federal, na relação direta do partido
com a sociedade (em escala municipal, estadual e nacional), particularmente nas
campanhas eleitorais de 2002 e 2004.
Entretanto, é óbvio que a vida do PT Campinas passou a ser organizada,
desde o final de 2000, pelo fato de termos conquistado a prefeitura; da mesma
forma como a atuação do PT nacional é incompreensível, se desconsideramos nossa
atuação à frente da presidência da República.
A forma como isso ocorreu, entretanto, é uma das causas de nossa
derrota. Sem um Partido forte, não teremos um governo forte, dizíamos em 2001.
E, de 2001 até 2004, o que tivemos em Campinas foi um partido fraco, incapaz de
exercer sua autoridade, tanto sobre a maioria que hegemonizava o governo,
quanto sobre a minoria que questionava os rumos do governo.
Como resultado do enfraquecimento do Partido, tarefas centrais foram
transferidas, parcial ou totalmente, para o governo - desde a articulação dos
movimentos sociais, até a luta político-ideológica na sociedade.
Na prática, como o governo enfrentou - do início ao fim - dificuldades
para gerenciar a si mesmo, tarefas fundamentais não foram executadas
adequadamente ou, mais simplesmente, foram deixadas de lado, o que custou caro
na campanha eleitoral de 2004. Isso custou caro para o Partido, mas também custou
muito caro para o governo, que atuou em muitas circunstâncias sem retaguarda
para os enfrentamentos que realizou.
A burguesia hegemoniza a sociedade através de
múltiplos instrumentos e meios: o controle da maioria dos meios de comunicação,
dos parlamentos, dos executivos, dos judiciários, sua força econômica e
ideológica etc.
Graças a estes múltiplos instrumentos, a perda de um governo é grave,
mas não é fatal para a hegemonia burguesa.
Os trabalhadores também dispõem de alguns instrumentos para fazer sua
disputa contra-hegemônica, como sua imprensa, os partidos e os movimentos
sociais. Graças a isso, conseguimos algumas vitórias parciais, entre elas
conquistar governos e cadeiras parlamentares, colocando-os a serviço da disputa
de hegemonia.
Mas a esquerda comete um erro fatal quando transforma os espaços
conquistados no Executivo e no Legislativo, em instrumentos únicos ou
principais de disputa de hegemonia.
Primeiro, porque há limitações estruturais que impedem que o chamado
aparelho de Estado burguês seja um instrumento hegemônico a serviço pleno da
classe trabalhadora.
Segundo, porque - ao se tornar dependente dos postos executivos e
legislativos - a esquerda corre o risco de, ao perdê-los, perder também
capacidade de disputar a hegemonia.
A redução do papel do Partido e a supervalorização do papel do
governo, erro cometido em Campinas e em outras cidades, foi particularmente
grave numa conjuntura nacional marcada por fortes ataques ao PT.
Ausência de estratégia
Uma análise completa da ação do Governo Democrático e Popular,
2001-2004 exigirá balanços setoriais e comparativos - quantitativos e
qualitativos - do que fizemos, frente ao que foi feito por outros governos, em
Campinas e em outras cidades de porte semelhante.
Este balanço, para ser de fato completo, exigirá uma consolidação de
informações e um amadurecimento de opiniões que só o tempo será capaz de
produzir.
Entretanto, desde já é possível fazer um primeiro balanço político
de nosso governo, ou seja, determinar em que medida a ação do Governo
Democrático e Popular 2001-2004 colaborou para alterar a correlação de forças
existente na cidade de Campinas e contribuiu para alterar a correlação de
forças existente na sociedade paulista e brasileira.
A classe trabalhadora saiu mais fraca ou mais forte deste processo? Os
chamados setores médios estão mais próximos da classe trabalhadora ou da
burguesia? Temos mais ou menos organização? Mais ou menos consciência de classe
e politização? Mais ou menos força econômico-social?
À primeira vista, comparando o resultado das eleições de 2000, 2002 e
2004, a resposta às duas primeiras questões deve ser negativa. Parece ter
havido uma redução de nossa força, vis a vis uma aproximação entre os
setores médios e setores da burguesia.
Ou seja: comparando 2000 a 2004, fica claro que não conseguimos
transformar nossa vitória eleitoral e nossa ação de governo, em ampliação de
nossa força econômica, social, organizativa, política e ideológica na
sociedade.
É verdade que, no que toca a força econômico-social, houve movimentos
contraditórios: num quadro geral de crise econômica, ampliação do desemprego e
redução da renda dos setores médios e trabalhadores, houve uma tendência (mesmo
que inicial) de ampliação do emprego e de crescimento da atividade dos pequenos
e médios setores.
Esta curva positiva tem relação com o fato de sermos governo, tem
relação com os investimentos feitos na cidade nesse período, diretamente por
nós ou por estímulo nosso. Mas a ampliação de nossa força econômico-social não
se traduziu em ampliação de nossa força político-organizativa e ideológica.
Por exemplo: neste período, não houve um fortalecimento dos
sindicatos, uma ampliação do número de sindicalizados, um crescimento dos
movimentos populares e estudantis.
Tampouco parece ter ocorrido uma ampliação na consciência de classe e
na politização dos trabalhadores e dos setores médios. Para ter certeza disso
precisaríamos fazer pesquisas quantitativas e qualitativas detalhadas; mas a
eleição de 2004 pode servir como um indicador.
Na média, portanto, não conseguimos deslocar - em favor dos
trabalhadores - a correlação de forças existente em Campinas. Não conseguimos
transformar o resultado eleitoral de 2000 e o governo daí resultante, num ponto
de apoio para ampliar e consolidar nossas forças.
Como já foi dito, a ação estrita do governo não é a única responsável
por isto. Afinal, num quadro nacional distinto e com uma presença mais ativa do
Partido, poderíamos ter ido para o segundo turno e provavelmente teríamos
vencido a eleição, o que nos permitiria “começar de novo" o trabalho de
deslocamento da correlação de forças.
Mesmo não sendo a única responsável por isto, está
claro que temos que determinar em que medida nossa ação de governo tem responsabilidade
em nossa derrota eleitoral, sem cometer o erro de fazer uma vinculação direta
entre desempenho de governo e resultado eleitoral.
Este erro é cometido pelos setores do Partido que defendem que
perdemos a eleição, principalmente por causa do governo. Mais exatamente,
porque o governo Izalene teria sido "excludente" e teria significado
uma ruptura com o governo Toninho.
Esta tese é tão sedutora, quanto enganadora.
Primeiro, porque há governos péssimos que vencem e governos ótimos que
perdem eleições. Há prefeitos bem avaliados que perdem e prefeitos mal
avaliados que ganham eleições. Portanto, existe um vínculo entre desempenho de
governo e processo eleitoral, mas este vínculo nem sempre é direto. Cabe a nós,
através da análise, determinar com precisão o vínculo existente em nosso caso.
Segundo, porque os primeiros nove meses não permitem avaliar qual
teria sido o desempenho de 4 anos de governo Toninho, tampouco o seu resultado
eleitoral. Vários dos problemas estruturais do governo Izalene já existiam no
governo Toninho. Teriam sido superados? Pode ser que sim, pode ser que não. Mas
qualquer que seja a resposta, isso não resolve a nossa situação hoje, pois o
fato real é que o Toninho não está entre nós e, portanto, nossa ação futura não
pode ser baseada no desempenho hipotético dele (salvo para quem pretende
construir sua força política, tentando se apresentar como seu “legítimo
sucessor”).
Terceiro, porque o governo Izalene não é muito diferente de
"n" governos petistas, em todo o país. Os problemas ocorridos aqui,
ocorreram em muitas outras cidades. Em algumas fomos derrotados, noutras fomos
vitoriosos. Querer resumir nossa derrota eleitoral aos erros cometidos pelo
governo, e querer resumir estes erros a uma suposta "exclusão", é meio
caminho andado para novas derrotas, pois nos impede de localizar todos os
problemas reais (e também de comemorar os sucessos igualmente reais que
tivemos).
Quarto, porque a tese da "exclusão" nos poupa da tarefa de
analisar o desempenho de todo o governo, situando o problema apenas em seu
núcleo dirigente. Aqui, novamente, é uma tese aparentemente cômoda para quem
pretende formar uma "nova maioria" no Partido. Mas não é uma tese
correta para quem pretende construir uma estratégia que nos conduza a vitórias,
em 2005, 2006, 2007 e 2008.
Em resumo: se quisermos responder em que medida nossa ação de governo
tem responsabilidade em nossa derrota eleitoral, é preciso ir além das
respostas fáceis e analisar, olhando o conjunto da ação de governo,
estabelecendo em que medida conseguimos colaborar para deslocar, a nosso favor,
a correlação de forças na cidade.
O que passa por localizar - na história de Campinas - a nossa
experiência de governo; analisar as relações de nosso governo com os diferentes
setores sociais e forças políticas da cidade; e debater a maneira como nosso
governo enfrentou algumas questões estratégicas.
Observada do ângulo do "poder local", a
história de Campinas não é diferente da história da maior parte das cidades
brasileiras.
Não importando o porte do município, sua importância econômica e o
nível de organização dos trabalhadores, na maior parte das cidades brasileiras
o "poder local" - e, mais especificamente, o executivo e o
legislativo municipais, sem esquecer do judiciário - seguem ainda hoje sob
controle da classe dominante local, em aliança maior ou menor com os setores
médios e com os interesses do grande capital nacional e internacional.
Essa situação começou a mudar no final dos anos 1980, quando a
esquerda - encabeçada pelo PT e expressando os interesses dos trabalhadores e
de parte dos setores médios - conquistou o governo municipal e ampliou sua
participação no legislativo de importantes cidades brasileiras.
De lá para cá, apesar de descontinuidades importantes, tem crescido o número
de cidades governadas pelo PT, geralmente em aliança com outros partidos de
esquerda (e, mais recentemente, com partidos de centro e de direita).
Nessa trajetória, há dois momentos de importância ímpar: as eleições
de 1988 e as eleições de 2000, em que uma "onda vermelha" permitiu
vitórias importantes do PT e da esquerda, em eleições municipais.
Foi exatamente nestes dois momentos que o PT venceu as eleições
municipais em Campinas, primeiro com a chapa Jacó Bittar-Toninho e depois com a
chapa Toninho-Izalene.
Não se trata de uma "coincidência", mas sim da confirmação
de que a trajetória política e eleitoral da esquerda campineira não está
dissociada da trajetória geral da esquerda brasileira, nem nas vitórias, nem
nas derrotas.
Em 1988, quando não havia segundo turno, o PT pôde vencer as eleições
sozinho. Em 2002, teve que disputar e vencer um segundo turno, quando recebeu o
apoio de vários partidos e segmentos sociais.
A trajetória do primeiro governo petista foi bastante traumática,
tendo sido interrompida pelo rompimento entre o Partido e o governo municipal,
após o que o prefeito Jacó Bittar saiu do PT, em 1991 (dois anos e alguns meses
depois da posse).
A trajetória do segundo governo petista também foi traumática, desta
vez devido ao assassinato do prefeito Antonio da Costa Santos, em 2001, nove
meses depois da posse, fato que marcou toda a história posterior da cidade, do
governo e do partido.
A trajetória de ambos os governos petistas em Campinas foi
influenciada por duas grandes variáveis: a dinâmica nacional e a dinâmica local
da luta de classes.
Por dinâmica nacional da luta de classes, compreendemos a relação do
governo municipal com as grandes polêmicas político-ideológicas, com a política
macroeconômica do governo federal, com as movimentações do governo estadual,
com as ações das classes sociais brasileiras e de suas entidades etc.
Neste sentido, é importante lembrar que o governo Jacó Bittar e o
governo Toninho tiveram início em momentos opostos da história recente do
Brasil.
Basta dizer que um ano depois da eleição de Jacó Bittar, Fernando
Collor era eleito, marcando o início oficial do ciclo neoliberal no Brasil; por
outro lado, dois anos depois da eleição de Toninho, Lula era eleito, revelando
o esgotamento (mas ainda não o fim) do ciclo neoliberal no Brasil.
Apesar desta diferença, há uma semelhança fundamental entre os dois
momentos -- semelhança relacionada com a continuidade, sob o governo Lula, da
hegemonia do capital financeiro, do agro-negócio e do capital exportador sobre
a economia e a sociedade brasileira.
Por dinâmica local da luta de classes, compreendemos a relação do
governo municipal com os diferentes interesses econômicos, políticos e sociais
existentes na cidade e na região em que ela se insere.
Neste sentido, o governo Jacó e o governo Toninho também tiveram
início em momentos opostos: o primeiro foi beneficiário do grande afluxo de
recursos, comum a todas as prefeituras imediatamente posteriores à edição da
Constituinte de 1988. Já o segundo foi vítima do brutal endividamento e do
enxugamento da máquina pública, produto do ciclo neoliberal.
Apesar desta diferença real, há uma semelhança fundamental - que tem a
ver com a hegemonia, no âmbito local, dos interesses da especulação imobiliária
e das empresas que prestam serviços ao poder público.
Na época de Jacó, isto dizia respeito basicamente à área de
transportes e as empreiteiras; hoje, inclui a luz, a coleta de lixo, a
segurança e, em certa medida, a medicina e o ensino privados.
Se observarmos a história política de Campinas, antes de 1988,
verificaremos que os diferentes governos municipais tiveram maior ou menor
sensibilidade para os interesses das camadas populares; maior ou menor
compromisso com as causas democráticas; maior ou menor compromisso com o
desenvolvimento econômico.
Mas, fosse qual fosse a diretriz de cada administração, todas foram
governos de diferentes setores da classe dominante local; e em todas
manifestou-se a hegemonia, maior ou menor, da especulação imobiliária e dos
prestadores de serviços.
Noutras palavras, a alternância política no executivo e no legislativo
da cidade não afetava o poder real, a influência, a hegemonia, dos interesses
econômicos e sociais de uma parcela determinada da classe dominante local.
Portanto, a principal tarefa do PT Campinas, em escala municipal, era
e prossegue sendo derrotar a hegemonia da especulação imobiliária, aliada aos
prestadores de serviços.
Quando falamos em "deslocar a correlação de
forças", falamos portanto em libertar a cidade da hegemonia destes
setores.
Para alcançar este objetivo, faz-se necessário não apenas força social
e legislativa, mas o controle do executivo municipal, fundamental para mudar a
legislação urbana, mudar os vetores de desenvolvimento da cidade e alterar os
contratos.
A vitória do PT, em 1988, foi um passo neste sentido, pois levou ao
governo um setor social sem compromissos com a especulação imobiliária, nem com
os prestadores de serviços, nem com os demais setores da classe dominante.
Mutatis mutandis, a ruptura de Jacó com o
PT (e vice-versa) ocorreu principalmente devido a aproximação entre o então
prefeito e os setores acima mencionados, mais exatamente com o grupo de Orestes
Quércia e com algumas empreiteiras.
A vitória de Toninho, em 2000, também foi um passo neste sentido,
pelos mesmos motivos mencionados anteriormente.
Mas havia uma diferença importante: a estratégia impulsionada pela
campanha de Toninho previa que o combate à hegemonia da especulação imobiliária
e dos prestadores de serviços seria feito por uma aliança entre os
trabalhadores, os setores médios e setores do capital.
A rigor, esta "atualização" na estratégia partidária
correspondia a posição assumida pelo PT nos anos 90, em escala nacional: o de
considerar necessária e virtuosa uma aliança com setores do capital
"produtivo", contra o capital financeiro ("especulativo").
Esta estratégia se traduziu, menos num programa detalhado de ação e
mais em algumas idéias-força: "coragem de mudar" Campinas, retomando
as esperanças de futuro da cidade, melhorando a vida dos setores populares,
recuperando as características que fazem os setores médios apreciar Campinas e,
por que não, ampliando as perspectivas de lucro de importantes setores do
capital, não comprometidos com a especulação.
Noutras palavras, essa estratégia dependia de uma aliança entre o
capital e o trabalho, em prol de um desenvolvimento que geraria lucros numa
ponta e bem-estar social noutra.
Como outros programas semelhantes, o nosso era
profundamente dependente da figura de Toninho. Por isso, seu assassinato
colocou o PT de Campinas diante de um dilema estratégico terrível.
Independente de seu posicionamento no espectro político interior ao
partido, o companheiro Toninho era do ponto de vista dos quadros existentes um
dos melhores, senão o melhor quadro para
exercer o executivo. Seu conhecimento sobre a cidade, sua história, suas
necessidades e potencialidades lhe eram absolutamente íntimas; conhecia como
poucos sua dinâmica urbana, seus atores sociais, suas virtudes e desvirtudes.
Porém, grande parte desse acúmulo de conhecimento sobre a cidade era fruto de
um esforço pessoal considerável, não que o companheiro tivesse feito uma opção
deliberada de guardar para si e/ou construir individualmente esse acúmulo, são
as circunstâncias de sua vida, o formato dos estudos acadêmicos e também sua
opção de não militar em tendências organizadas. Não temos dúvidas que, não
fosse os trágicos acontecimentos, após quatro anos de gestão muito de seu
conhecimento estaria muito mais socializado.
Isso tudo lhe permitiu imaginar uma Campinas ideal, imaginar muito
mais do que era capaz de transmitir, falava sobre idéias, planos e projetos,
aos quais quase todos se referem, principalmente, é claro, ao campo do
urbanismo e da arquitetura; tinha uma profusão de idéias, nem sempre metódicas
e organizadas, mas que marcavam e impressionavam seus interlocutores. Porém
fruto daquela construção individual a qual nos referimos acima, uma boa parte
de suas idéias, e talvez o mais importante, a forma de torná-las realidade, se
foram com ele; a interrupção abrupta de seu mandato não só deixa catatônica a
equipe de governo, como interrompe um processo ainda em gestação e embionário,
impossível de ser levado a risca nos moldes pensado pelo companheiro. E aí está
sua desvantagem, ou pelo menos a desvantagem do seu legado: seu acúmulo pessoal
extraordinário deixa a impressão, no imaginário popular, que cumprir o programa
do PT era uma tarefa exclusiva do companheiro Toninho.
Toninho assume, nesse imaginário, o posto de prefeito ideal, que iria
transformar Campinas em uma cidade quase perfeita, beirando a utopia. Cabe aqui
um paralelo com Santo André, onde apesar do assassinato do prefeito no começo
de seu terceiro mandato, houve uma certa continuidade quase que automática do
funcionamento e implementação dos projetos. Tratava-se, lá, do início da
terceira gestão. Os caminhos, a estrutura administrativa e as condições
políticas já estavam dadas e ou
determinadas, a equipe e a máquina administrativa funcionaram quase que por
inércia; em Santo André, Celso Daniel já havia mostrado à que veio e o que
faria em duas gestões anteriores, com isso, lá, diferente daqui, a presença da
imagem do prefeito assassinado no imaginário popular, na administração e no partido,
foi muito menor nos anos subseqüentes.
Em Campinas, nada do que fosse feito estaria próximo a cidade ideal
contruída no imaginário popular; ninguém, absolutamente ninguém, conseguiria
chegar próximo ou perto do ideal projetado; aqui, a cada projeto implantado,
sempre houve aqueles que afirmavam: "O Toninho faria melhor". E para
os projetos não implantados, havia sempre uma frase: "se fosse o Toninho,
ele faria" frase também utilizada para projetos jamais aventados pelo
Toninho ou pelo nosso programa de governo.
Esse paradoxo entre a "gestão ideal de um prefeito falecido"
e a "gestão real de uma vice prefeita eleita" marcaria profundamente
os três anos seguintes da administração.
O assassinato de Toninho é uma ferida aberta no
imaginário de Campinas. Lembra, nesse sentido, a morte de Tancredo Neves. Em
ambas as figuras, concentrava-se a esperança de amplos setores da sociedade. A
morte de ambos frustrou esperanças profundas.
No caso de Toninho, a frustração é agravada pela sua juventude, que
reforçava a impressão de que ele faria muito pela cidade. E pelo assassinato
não esclarecido, que deixou na maior parte da cidade a certeza de foi um crime
político.
Frente ao assassinato de Toninho, como devia se comportar o PT?
Um caminho possível era atuar como se o Toninho seguisse conosco e
tentar implementar seu programa, sem ele.
Esta alternativa enfrentava três grandes obstáculos:
a) a ausência de um plano de ação claro (pois o "Caderno
Vermelho" não continha isto);
b) a decorrente existência de vários candidatos a “explicar” o que
Toninho faria, “se estivesse vivo";
c) a existência de um equilíbrio muito instável entre as forças
internas ao PT (com a vice e depois Prefeita sendo proveniente de um
"campo" partidário distinto do Toninho).
Outro caminho possível o de reconhecer que o assassinato do Toninho
inviabilizava parte importante da estratégia anterior, impondo ao Partido a
necessidade de construir uma estratégia alternativa a que fora vitoriosa nas
eleições de 2000, além da necessidade de construirmos uma liderança coletiva e
uma forte unidade partidária.
O governo oscilou entre as duas alternativas, de setembro de 2001 até
o final.
Sinais dessa oscilação foram: as demissões a conta-gotas de
integrantes do primeiro escalão; as seguidas tentativas de definir uma
"marca" para o governo; as disputas em torno da memória do Toninho;
as tentativas de afirmar a autoridade da Prefeita; a divisão partidária entre o
"grupo do Toninho" e o setor que dirigia o governo; as prévias de
2004 e a composição da chapa majoritária.
É evidente que a minoria partidária (o auto-intitulado "grupo do
Toninho") propunha algo impossível de realizar: por mais que se prolongue
o luto, ele não substitui a ausência real. Aliás, o resultado eleitoral dos
candidatos deste "grupo" é uma confirmação indireta disto: houve uma
queda de votação, entre 2002 e 2004, mostrando que pouco a pouco o "legado
do Toninho" vai se tornando um argumento mais ideológico do que político.
O erro da minoria partidária se desdobrava, por sua vez, em três
outros.
O primeiro deles foi associar-se, consciente ou inconscientemente, à
campanha que a direita da cidade desenvolveu contra o governo, com o objetivo
de deslegitimá-lo.
O segundo foi utilizar a condição de "aliado original do
Toninho" como álibi para tudo, inclusive para ações administrativas e
políticas incorretas.
O terceiro foi imaginar que seria possível criar um "dublê"
para o Toninho, na figura de algum de seus pares.
Um balanço completo de nossa ação de governo, precisa levar em conta o
papel jogado por este auto-intitulado "grupo do Toninho".
Trata-se de analisar, em primeiro lugar, o que fizeram - efetivamente
- na primeira etapa do governo, quando não tinham a desculpa de estar sob a
direção de um "grupo excludente".
Questões como a implantação do Sim, o contrato do lixo e a planta
genérica de valores devem ser analisadas.
Trata-se de analisar, em segundo lugar, o que fizeram depois do
assassinato do Toninho, a aliança que estabeleceram com setores da direita, sua
postura nas prévias e na campanha eleitoral.
Os erros que este grupo tenha cometido, entretanto, teriam tido
importância menor, caso a maioria partidária tivesse conseguido realizar o que
era necessário: elaborar uma estratégia alternativa, construir uma liderança
coletiva, unificar o Partido.
A
“equipe do Toninho”
Toninho
foi escolhido como candidato a prefeito do PT no segundo turno das prévias
internas, que lhe deram uma vitória extremamente apertada sobre o seu adversário,
o deputado estadual Renato Simões, que contou com o apoio de um dos candidatos
derrotados no primeiro turno, companheiro Luciano Zica, sendo que a outra
candidatura derrotada, a do companheiro _______ apoiou a candidatura do
Toninho. Coube ao grupo do deputado Renato Simões indicar, em comum acordo com
o companheiro Toninho, a candidata a vice, companheira Izalene Tiene.
É
óbvio que por ocasião da formação do governo, Toninho opta por nomear, nos
principais postos da administração, figuras e pessoas que com ele estiveram e
faziam parte de seu coletivo político; e nisso não há nada de estranho,
estranho seria se assim não o fizesse.
Esse
foi o núcleo dirigente nos nove meses de governo Toninho, e grande parte dele
até a metade do governo do PT. Era natural que ao assumir o cargo de prefeita,
a vice Izalene Tiene, opta-se em nomear nomes mais próximos ao seu coletivo
político e seus aliados. Seria legitimo que o fizesse inclusive nos mesmos
moldes do que fez o companheiro Toninho quando assumiu, o que não aconteceu,
muito pelo contrário, matevesse em um primeiro momento uma boa parte dos cargos
chaves indicados pelo Toninho. Mas é claro que os caminhos para implementar o
mesmo programa são distintos, é claro que a orientação política para
implementação desse programa ganha outros contornos, mesmo assim, optou-se por
manter uma boa parte da equipe anterior, o que com o tempo revelaria-se um
equivoco.
Curiosamente
esse grupo comportou-se quase como um outro governo dentro do governo, sob o
argumento de que eles, e somente eles, eram herdeiros dos projetos do
companheiro Toninho; arvoravam-se, de uma forma quase mística, interlocutores
exclusivos dos ideais do Toninho e do projeto partidário.
Essa
parcela da equipe anterior começa de, um lado, a trilhar um outro caminho e de
outro a boicotar de forma deliberada ou por inépcia – situação impossível de
determinar – as ações de governo; recusam-se a manter a unidade do governo,
sentem-se no direito de questionar e falar mal, publicamente, do governo, da
prefeita e de suas ações, e ao mesmo tempo se consideram no direito de
permanecer nesse mesmo governo, sempre sobre o manto de serem a “equipe do
Toninho”; como se isso lhes conferisse uma aura de legitimidade e
intocabilidade, desconhecendo que àquela altura a maior legitimidade cabia a
vice prefeita eleita pelas urnas e prefeita em exercício.
Manter
essa equipe mostrou-se um enorme equivoco, basicamente por dois motivos
interligados: o primeiro diz respeito ao momento e condições em que assume a
vice prefeita, assume um governo ainda embrionário, sem consolidação da nova
estrutura, com projetos em fase de preparação, some-se a isso ao estado de
choque do conjunto dos companheiros; pois bem não há quadro pior do que além da
situação em que se encontrava a administração deparar-se com uma oposição
interna questionando o que deve ser feito e quem deve fazer, se há momentos
onde a disputa é um elemento saudável, há momentos onde a disputa é
extremamente prejudicial; estávamos no final do primeiro ano de mandato, não
podíamos dar-nos ao luxo de estender essa disputa por mais tempo, como de fato
ocorreu, levando-nos a manter uma situação de dispersão de governo até o fim do
segundo ano e parte até o terceiro ano de mandato, o que correspondeu dois
terços do nosso governo.
O
segundo motivo diz respeito a própria equipe em si, ou seja, a chamada “equipe
do Toninho”, muito pouco ou quase nada havia realizado ou consolidado nos nove
meses de governo. Projetos importantes sequer tinham chegado no papel, o que
dirá saído do papel; a estrutura administrativa herdada do governo anterior
permanecia intocável, portanto anacrônica e emperrada; as grandes dificuldades
e obstáculos não haviam sequer sido detectados o que dirá enfrentados; enfim
era um momento onde havia muito ainda o que se fazer para sair do zero, ou do
quase zero, o que gerou uma falsa impressão de imobilidade no segundo ano de
governo, é necessário que se diga que muito do que se fez no segundo ano devia
ter sido feito no primeiro ano justamente pela autodenominada “equipe do
Toninho”.
O erro da maioria partidária também se desdobrou em três outros.
O primeiro foi não aplicar de maneira consistente alguma
estratégia, o que ficou claro nas demissões a conta-gotas, na relação com o Correio
Popular, na relação com o campo majoritário nacional do PT e na relação com
o "legado" do Toninho. Predominou, na maior parte do tempo, um
zigue-zague estratégico.
O segundo foi o de dar continuidade aos principais problemas
verificados no período em que o Toninho foi prefeito, o que será abordado mais
adiante.
O terceiro foi o de demorar demais para construir uma alternativa
eleitoral viável.
Ao contrário do que dizem setores do PT, portanto, não havia uma
"estratégia da exclusão". Quem possui estratégia, não exclui: hegemoniza.
A "exclusão", se e quando houve, foi produto da falta de estratégia,
foi produto da incapacidade de hegemonizar.
Visto o problema de conjunto, ambos os setores do Partido falharam em
dotar o partido de uma estratégia e de um plano de ação capazes de enfrentar a
situação dada: o desaparecimento da peça central da estratégia vitoriosa em
2000. Isso teve impacto sobre a ação do Partido e, também, sobre a ação do
governo.
O resultado desta incapacidade coletiva - mas de responsabilidade
principal da maioria do PT Campinas, que tinha os meios e a obrigação de
construir uma estratégia alternativa e não o fez - foi nossa derrota em 2004 e
a devolução do controle da cidade para forças políticas comprometidas com a
especulação imobiliária e com as empresas prestadoras de serviços (forças que
se fizeram presentes nas duas candidaturas que disputaram o segundo turno).
Importante dizer que a estratégia para nos derrotar em 2004 foi
construída, pela direita da cidade, desde 11 de setembro de 2001.
Com as mudanças
na equipe do governo após a posse de Izalene Tiene e ao longo de 2002, o
governo procura ganhar maior coesão política. No entanto essas mudanças não
foram suficientes para garantir um enfrentamento suficientemente forte contra a
direita e garantir uma coesão administrativa.
Do ponto de vista do enfrentamento com a direita,
cabe ressaltar sua tática extremamente nefasta de combater a cidade, e não só o
projeto do PT para a cidade. Tirante seu reacionarismo inerente, a oposição
raivosa da direita através de seu maior porta voz, o Correio Popular, bem como
de outros políticos e meios de comunicação, pautou-se por alguns pontos
significativos: a deslegitimação do mandato da prefeita; o oportunismo no uso
da imagem do Toninho; o combate a qualquer ponto positivo da cidade de
Campinas; o incentivo e a reprodução de opiniões racistas, machistas,
preconceituosas e anti populares; a desinformação deliberada, seja através da
manipulação de fatos e/ou insinuações caluniosas ou mesmo através da mentira
pura e simples.
A deslegitimação do mandato da prefeita: desde os primeiros dias após a posse da companheira Izalene Tiene a
direita da cidade buscou deslegitimar a prefeita enquanto chefe do executivo,
questionando desde a legalidade de sua posse, até as condições de caráter
subjetivo de sua personalidade. Como é claro, isto gerou um clima de ausência
de autoridade da prefeita e de seu governo, clima esse incentivado ora por
notícias plantadas sobre disputas internas, ora por notícias fundadas calcadas
em problemas ocorridos ainda na gestão Toninho. Seja como for, as inverdades e
a amplificação de fatos menores colaboraram em muito para esse sentimento de
“falta de autoridade”.
O oportunismo no uso da imagem do Toninho: o mesmo jornal que às vésperas do 2º turno das eleições de 2000 foi
obrigado, por decisão judicial, a publicar um direito de resposta do
companheiro Toninho, passa cinicamente --após a sua morte-- a utilizar seu nome
como bandeira no combate a administração e seu projeto. Utilizando-se de sua
imagem, a usam contra nós, acusa-nos sem menor fundamento de "traição ao
projeto do Toninho". Desta forma, a direita parece sair em defesa dos
ideais do Toninho, mas sem jamais explicitá-los, de forma a criar na opinião
pública a imagem de que nós estávamos traindo a memória do companheiro, bem
como seus ideais; ideais esse em sua maioria explicitados no Programa de
Governo do PT 2001-2004, que procuramos implementar até o final e, diga-se de
passagem, com enorme sucesso.
O combate a qualquer ponto positivo da cidade de
Campinas: jornais de direita de oposição à administrações
do PT não são novidade nem exceções, aliás são a regra. Em Campinas porém a
imprensa não limitou-se a combater a administração e o partido. Numa estratégia
quase suicida, a imprensa adotou a linha de combater a cidade como um todo,
indistintamente, adotando claramente a linha do quanto pior melhor.
Nada, absolutamente nada, era considerado
positivo na cidade de Campinas. Todas e quaisquer ações, por mais positivas que
fossem e mesmo que pontualmente na direção dos interesses defendidos pelo
jornal, eram combatidas de forma virulenta, vez ou outra merecendo um elogio em
editoriais repletos de senões com relação a administração, para em ato contínuo
fustigar a realização/ação do governo, seja através de insinuações caluniosas,
seja através do destaque dado a questões absolutamente desprezíveis frente ao
tamanho da realização, ambos em manchetes colossais, é claro, em contraposição
aos tímidos e dúbios editoriais. Ocultavam-se realizações positivas que não
fossem visíveis ao grande público e hiper-valorizavam-se aspectos negativos,
sendo eles, curiosamente, responsabilidade do governo municipal, estadual ou
federal, ou de quem que seja, mas sempre destacando a culpabilidade da
administração municipal, por mais estapafúrdia que fosse a relação entre o fato
negativo e a administração municipal.
Assim, tentou-se criar um clima de baixíssima
auto-estima nos moradores e na cidade, contraposto sempre a um passado mítico,
onde somente habitantes aqui nascidos aqui habitavam e que, portanto, por isso
a cidade era melhor, construindo uma falsa história da cidade, ignorando os
escravos, imigrantes e outros que a construiram, bem como as pestes e epidemias
- fruto muitas vezes da ausência de políticas públicas adequadas, não
implantadas por parte dos campineiros nativos - que a assolaram nesse passado
puro e glorioso. Este tipo de estratégia, de combater a cidade, vai na
contra-mão inclusive de interesses da própria burguesia, que costuma fazer um
discurso de valorização do seu locus, vendendo uma imagem positiva de sua
cidade para o mundo dos negócios, de forma a atrair maiores investimentos,
gerando maiores oportunidades de negócios etc. Esta contradição somente reforça
o conteúdo desqualificado da oposição e dos meios de comunicação com relação ao
nosso governo.
Este talvez tenha sido um dos aspectos mais
importantes, apesar de subliminar, na oposição à administração: frente a uma
campanha sistemática de desvalorização da cidade, é extremamente complicado
tornar qualquer ação positiva forte o suficiente para reverter esta imagem,
criando-se a sensação de como a cidade está mal, nenhuma ação é suficiente para
reverter isso, “foi feito isto mas...a cidade está uma droga”, “foi feito
aquilo, mas...a cidade é uma porcaria”. Criou-se, desta forma, um círculo
vicioso auto-depreciativo e mau-humorado, onde todas as mazelas e problemas
eram atribuídos, maliciosamente, à administração democrática e popular.
Cabe destacar que apesar de toda esta campanha,
Campinas, cresceu além da média nacional, melhorou todos seus indicadores
sociais, reduziu a criminalidade e conquistou outros avanços.
O incentivo e a reprodução de opiniões racistas,
machistas, preconceituosas e anti populares: aliado
a essa desvalorização da cidade, perpassava-se nas entrelinhas que a
responsabilidade por esse “estado” em que chegou a cidade seria dos migrantes,
dos despossuídos, dos trabalhadores, dos maltrapilhos, da prefeita mulher, dos
favelados, das minorias raciais, dos gays e lésbicas, enfim, de todos àqueles
que não fossem de "sangue campineiro" ou que não fossem abastados o
suficiente para manter-se sem as benesses do Estado, mas sempre à busca dessas
benesses, seja através da adoção de políticas elitistas, seja através do
favorecimento puro e simples deste ou àquele que preenchesse um dos dois
requisitos.
Uma das faces do inconformismo da direita com a
administração democrática e popular e seu preconceito ficava claro quando de
suas críticas ao Orçamento Participativo: eram críticas absolutamente superficiais
no seu conteúdo, mas que deixavam transparecer a irritação e o ódio com relação
a um processo que permitia aos migrantes, aos despossuídos, aos trabalhadores,
aos maltrapilhos, aos favelados, as minorias raciais, aos gays e lésbicas e
também aos campineiros "nativos", influir sobre o orçamento e os
rumos da cidade. Para eles, é como se fosse inconcebível permitir que
"semi- analfabetos" palpitassem sobre qualquer coisa, o que dirá do
orçamento municipal.
A desinformação deliberada, seja através da
manipulação de fatos e/ou insinuações caluniosas ou mesmo através da mentira
pura e simples: coerente com
os tópicos anteriores, não podia-se esperar outra coisa, senão um cobertura
jornalística de difícil credibilidade. Não se trata aqui de desenvolver uma
tese de comunicação, ou defender normas e comportamentos jornalísticos, mas de
constatar algumas pequenas artimanhas tais como: distorção grosseira das
declarações e entrevistas, com frases truncadas, afirmações fora do contexto ou
mesmo colocação de palavras não ditas; cobertura parcial e unilateral de fatos
e coletas de opiniões; insinuações do tipo “estão dizendo que o governo não
irá....” ou pior “o que será que fulano ganhou com isso?”; ocultação
sistemática da administração quando da publicação da cobertura sobre ações e
realizações da administração, como se fossem obra do acaso ou de entes divinos
ou a ignorancia pura e simples sobre a ação, evento ou realização, por mais
importante que fosse; a imputação a administração de qualquer fato negativo independente
da responsabilidade desta para com o fato; a utilização da seção de cartas ao
leitor como tribuna de calúnias e mentiras contra a administração.
Comunicação e disputa de projetos
A fase petista do governo Bittar e o governo Toninho foram
experiências curtas e inconclusas. Já o governo Izalene foi uma experiência
longa, completa, que possibilita uma análise de conjunto.
Este governo passou por várias etapas: da posse de Izalene (11 de
setembro de 2001) até a substituição do secretário de Governo; de novembro de
2001 até a greve de abril/maio de 2002; da greve até a vitória e posse de Lula;
de janeiro de 2003 até maio-junho de 2003, marcado pelas chuvas e por uma greve
prolongada; do segundo semestre de 2003 até o afastamento dos remanescentes do
chamado "grupo do Toninho" e a recomposição do governo; da
recomposição do governo até a vitória na prévia e a composição da chapa
majoritária; do início da campanha eleitoral até a derrota; e os últimos 90
dias de governo, fase final que ainda está em curso.
Como já vimos, não conseguimos construir uma nova hegemonia na cidade,
pois as eleições de 2004 trouxeram de volta ao comando da cidade os setores que
sempre a hegemonizaram.
Cabe investigar, agora, em que medida a ação concreta da administração
Izalene colaborou (ou não) para transformar o governo municipal em ponto de
apoio para a construção de outra hegemonia na cidade, mesmo que essa hegemonia
não tenha sido, ao final, construída.
Não parece haver dúvida, nos diferentes setores do PT, de que nosso
governo buscou ampliar o acesso às políticas públicas, democratizar a cidade e
contribuir para a existência de outro modelo econômico.
Mas este esforço - avaliado positivamente por parcela expressiva da
população, quando se perguntava acerca de cada setor da administração- não se
traduziu numa avaliação positiva do conjunto do governo, nem em handicap
positivo para nossas candidaturas a prefeito, vice e vereadores.
O principal motivo disto foi a ausência de uma política de
comunicação, o que deixou o caminho aberto para que veículos como o Correio
Popular, a Rede Bandeirantes e a EPTV --entre outros-- formassem, com
pouquíssima oposição nossa, a opinião pública a nosso respeito (e, geralmente,
contra nós).
O governo, tanto sob Toninho quanto sob Izalene, tendia a tratar a
comunicação como "atividade-meio", dedicada à "informação",
e não como uma política pública tão essencial para a população quanto saúde e
educação.
Isto explica porque demoramos a lançar instrumentos próprios de
comunicação (como o Diário Oficial). Explica, também, porque fizemos uso
extremamente precário e contraditório da publicidade: basta lembrar que o
investimento publicitário da Sanasa no Correio Popular ajudava, indiretamente,
a financiar os ataques contra o Governo Democrático e Popular.
Pelo mesmo motivo, mantivemos o contrato - herdado do
governo Chico Amaral- com uma agência de publicidade, mas não soubemos utilizar
adequadamente este instrumento. Como também não utilizamos adequadamente o
contrato com o Idort.
Quanto ao Partido dos Trabalhadores, este não
manteve, de 2001 até 2004, uma política de comunicação à altura da disputa de
hegemonia numa cidade do porte de Campinas.
Tirante a campanha eleitoral - quando tivemos a chance de utilizar de
maneira regular a TV, o Rádio e tiragens mais amplas de material impresso -, o
Partido limitou-se a lançar, de maneira mais ou menos regular, um jornal com
alguns milhares de exemplares.
Além disso, o PT e o governo não aplicaram uma política uniforme
frente aos grandes meios de comunicação. Oscilamos, por exemplo, de uma postura
de colaboração disfarçada com o Correio Popular, até uma postura de
enfrentamento total.
A ausência de uma política de comunicação reflete e agrava os efeitos
da ausência de uma estratégia coletiva. Como resultado, o governo parecia ser
composto por partes maiores que o todo: a saúde podia ir bem (ou mal), a
educação podia ir bem (ou mal), a cultura podia ir bem (ou mal), mas o governo
como um todo ia sempre mal.
Enfrentamento à hegemonia dominante
Na base de nossas dificuldades, estava e segue estando a ausência de
uma análise de classes da sociedade campineira, que servisse de norte para as
políticas do partido e do governo.
Por exemplo: se é verdade que nossos inimigos principais, em escala
nacional, são a especulação financeira, o agro-negócio e o capital exportador,
não seria o caso de identificar quais seus representantes na região de
Campinas?
Também por exemplo: se é verdade que nossos inimigos principais, em
escala local, são a especulação imobiliária e a rede de prestadores de
serviços, não seria o caso de identificar quais seus representantes na região
de Campinas?
Ou ainda: as políticas de partido, de governo e nossas alianças não
deveriam estar explicitamente organizadas pelo objetivo de combater e derrotar
estes setores sociais?
Teoricamente, devia ser assim. Mas, na prática, não foi isso que
ocorreu.
Um exemplo disso foi a incapacidade de operar uma política sistemática
no caso da dívida pública e da Lei de Responsabilidade Fiscal, o que poderia
ter sinalizado para um enfrentamento claro contra o sistema financeiro.
Outro exemplo foi a incapacidade de cobrar a dívida ativa e de gerar
uma nova planta genérica de valores, o que poderia ter sinalizado para um
enfrentamento claro com a especulação imobiliária.
Um terceiro exemplo disso foram os sinais contraditórios da política
urbana do governo, na maioria contrários à especulação imobiliária, mas alguns
favoráveis a ela (como se viu nas votações da Câmara).
Um quarto exemplo foi nossa incapacidade de elaborar e implementar uma
política de enfrentamento com o crime organizado.
Esses sinais contraditórios são fáceis de explicar: o governo, ao
invés de operar o isolamento dos inimigos principais, foi "operado"
por eles.
Setores da especulação financeira e da especulação imobiliária, bem
como setores dos prestadores de serviços, se aproximaram do governo; enquanto
outros setores financiaram o combate ao governo. As vezes, os que se
aproximavam, também financiavam a oposição.
Neste sentido, a estratégia real de nosso governo foi a de buscar uma
aliança com um setor da verdadeira "classe dominante local", contra
outro setor. Nesse sentido, agimos como tantos outros governos de Campinas,
antes de nós; quando o correto teria sido compormos uma aliança de classes
alternativa e, a partir desta aliança, ter trabalhado para dividir as
elites locais.
Não admira, pois, que tanto no primeiro quanto no segundo turno, os
partidos que compuseram a base do governo tenham se dispersado em diferentes
sentidos, inclusive em direção ao PSDB, como fez o PPS, ainda no primeiro turno
e o PV, no segundo turno.
A grosso modo, existem na região de Campinas as
seguintes classes e frações de classe:
O grande capital internacional e nacional (empresas como a Lucent e a
Mercedes, grandes bancos como Itaú e Bradesco, as empresas que controlam a CPFL
etc.);
O médio capital nacional (empresas industriais, comerciais e de serviços,
entre elas as que atuam nacionalmente na área do lixo, da segurança,
empreiteiras, educação etc.);
O médio capital local (empresas que atuam no mercado local ou
regional, especialmente na área de comércio e prestação de serviços, escolas,
médias empresas industriais etc.);
Os proprietários de terras no município de Campinas, geralmente
setores do capital que fazem da terra uma reserva de valor;
Os proprietários dos grandes meios de comunicação;
Grandes empresas estatais ou assemelhados (como a Infraero, a
Petrobras, o CPqD, a Unicamp, a Sanasa, a própria prefeitura);
O pequeno capital de natureza familiar ou quase-familiar (pequenas
empresas formais ou informais, pequenos proprietários rurais etc), que integram
junto com parcela dos assalariados os chamados setores médios;
Os trabalhadores que ocupam postos de gerência nas grandes e médias
empresas, cujos interesses contraditórios - assalariados profundamente
identificados com os objetivos das empresas que ajudam a dirigir - os
transformam em "setores médios", sempre em disputa;
Os trabalhadores autônomos de renda elevada, que também integram os
chamados setores médios;
Os trabalhadores assalariados com emprego formal, em empresas
privadas;
Os trabalhadores do setor público, municipal, estadual e federal;
Os trabalhadores em situação de acentuada informalidade, bem como
aqueles em situação de desemprego.
Nem o PT, nem o Governo Democrático e Popular se detiveram em analisar
com profundidade esta estrutura de classes, determinar o tamanho de cada setor
social, localizar quais seus instrumentos organizativos e políticos. De certa
maneira, fizemos passeio cego em terreno minado.
Um exemplo disto foi a postura do governo frente aos responsáveis pela
dívida ativa da Prefeitura. Um pequeno número de devedores (cerca de 100) é
responsável pela maior parte desta dívida. Apesar disso, o governo não tornou
pública a lista de devedores, perdendo a oportunidade de mostrar quem são os
vilões sociais que não pagam os impostos e dão calote no poder público,
misturando alhos (os pequenos devedores) com bugalhos (os grandes devedores).
Outro exemplo foi a postura do governo frente aos credores da dívida
pública. Não bastava - como fizemos em 2001 e, tardiamente, em 2004 - falar da
imensidão da dívida e da responsabilidade dos governos que a contraíram. Era
necessário vincular isso a política de altos juros, aos interesses do setor
financeiro e, também, aos interesses dos setores sociais que beneficiaram-se
diretamente com esse endividamento, constituindo ou reforçando empreendimentos
graças a estes recursos.
O mesmo ocorreu no combate à especulação imobiliária. O governo
trabalhou o tema como assunto de princípios e de legislação urbana. Ou seja,
buscou estabelecer regras e limites para a especulação. Ao fazê-lo, da forma
como o fez, também praticou importantes concessões pontuais para esta mesma
especulação.
Estabelecer limites e fazer concessões era algo inevitável e
determinado pela correlação de forças. Mas o governo tentou ir além disso e
buscou estabelecer laços orgânicos de confiança com as entidades que organizam
este setor na sociedade de Campinas. O mesmo ocorreu no caso dos
concessionários de serviços públicos, do comércio formal e informal, o que –na
ausência de uma política geral—muitas vezes gerou conflitos entre os interesses
imediatos do governo e os interesses estratégicos do Partido.
Outro tema em que operamos em vôo cego, movidos por princípios
genéricos e concessões tópicas, foi a nossa relação com os projetos de
interesse do grande capital. Exemplos disso foram a política de tarifas da
Sanasa; nossas relações geralmente subalternas com a CPFL; nossa relação com as
empresas de telefonia; e, paradoxalmente, as poucas relações mantidas com o
grande capital industrial instalado na cidade.
Em decorrência da ausência de uma análise de classes,
"sub-politizamos" a disputa existente na sociedade de Campinas.
Noutras palavras: a ação do Partido e do governo se transformou, não
numa batalha contra a hegemonia de um determinado setor social, mas sim uma
batalha contra um determinado partido político ou candidato.
Nossa disputa não se travou contra os interesses da
especulação imobiliária e financeira, mas sim contra o PSDB, mais exatamente
contra o grupo de Carlos Sampaio, apontado como representante do projeto
nacional antagônico ao nosso, da especulação imobiliária e do crime organizado.
Como este era o nosso alvo, para atingi-lo parecia valer inclusive uma
aliança nossa - na Câmara Municipal, por exemplo - com políticos e partidos
também representantes de projetos antagônicos ao nosso (como o PFL) e da
especulação imobiliária (como o vereador Sebastião dos Santos).
Agindo assim, não colaboramos para criar outra hegemonia na sociedade
de Campinas; agíamos como se fosse suficiente derrotar uma parcela do setor
hegemônico.
O quadro nacional em que se deu a eleição de 2004,
o enfraquecimento do partido, a ausência de estratégia coletiva e de política
de comunicação, associados as alianças "horizontais" que praticamos,
explicam a maneira pontual e desorganizada com que o Partido e o governo se
colocaram frente as diversas organizações políticas existentes na sociedade de
Campinas.
Para ser mais exato, o governo se concentrou em "organizar o
terreno da disputa", convidando todos os setores sociais a se organizar em
conselhos, a apresentar suas demandas, especialmente no Orçamento
Participativo; sem que tivéssemos, o próprio Partido e/ou o Governo, propostas
articuladas sobre o que fazer nestes conselhos e quais demandas defendíamos.
Ninguém duvida, por exemplo, da importância de controlarmos a
presidência da Câmara Municipal. Mas quais concessões foram feitas para
garantir a presidência e a maioria na Câmara, tanto na eleição de Romeu
Santinni, quanto na eleição de Carlos Signorelli?
Qual foi a política de conjunto que propusemos aos movimentos
populares, aos sindicatos e as entidades da juventude?
Como nos relacionamos com as igrejas, os partidos, os meios de
comunicação e as entidades da chamada "sociedade civil"?
Qual foi nossa tática frente ao judiciário, ao governo estadual e ao
governo federal (tanto sob FHC, quanto sob Lula)?
Olhando de conjunto, o governo não conseguiu impor sua pauta frente a
estas organizações; geralmente, ocorria o contrário: corríamos atrás da pauta
destes setores. O mais grave, entretanto, é que em geral não tivemos a
capacidade de tentar impor nossa pauta.
Vários governos, várias prioridades
Isto, é claro, está relacionado aos erros estratégicos que citamos
acima, ao qual acrescentamos o seguinte: o governo implementou muitas políticas
públicas, mas fez isso sem planejamento e sem subordinar isto a uma estratégia
política geral.
A ausência de planejamento talvez pudesse ser parcialmente contornada,
se Toninho estivesse presente. Mas com a Prefeita tendo sua legitimidade
questionada de maneira permanente, o planejamento estratégico tornou-se algo
essencial.
Mas, apesar disso, não conseguimos estabelecer um planejamento
estratégico para o governo. Isto está ligado a incapacidade coletiva do
Partido, à incapacidade coletiva do conjunto do governo e, nesse contexto, à
incapacidade da Secretaria de Governo.
É bom que se diga que esta incapacidade não decorre das
características pessoais de cada um dos dirigentes envolvidos, mas sim da
ausência de um núcleo dirigente, com uma estratégia clara e com capacidade
hegemônica.
Evidente, teve um peso particular nisto a resistência oferecida, pela
Prefeita, à criação e ao funcionamento adequados destas instâncias de governo,
em particular sua resistência --por longo tempo-- à criação de um núcleo
político, que fosse do conhecimento do governo e do Partido.
Portanto, quando falamos da falta de "planejamento", nos referimos
a uma decorrência administrativa da falta de estratégia política.
A inexistência de planejamento fez o governo ser
tensionado, de maneira permanente, por três lógicas:
a) a lógica do OP, que pretendia que o governo fosse organizado por
uma meta central: cumprir as demandas das assembléias do orçamento
participativo.
b) a lógica das secretarias, que pressionava o conjunto do governo
para que transformasse em suas, as metas particulares de cada secretaria (o que
foi mais forte no caso das secretarias com mais recursos, como a Saúde e a
Educação);
c) a lógica do funcionalismo, que reduzia o ato de governar a ampliar
salários e melhorar as condições de trabalho do corpo de servidores.
O peso que esta terceira “lógica” assumiu pode ser medido pelo peso da
folha de pagamentos, pela quantidade de admissões realizadas, pelo plano de
cargos e salários, pelas recomposições salariais e pelo impacto político das
campanhas salariais (inclusive pelo slogan "Izalene é zero").
Um balanço completo do governo exigirá, por isso, debater em
profundidade as posições explícitas e implíticas destes três
"partidos" que --por cima dos partidos e das tendências partidárias--
disputaram diariamente os rumos do governo: o partido do OP, o partido do SUS e
o partido do RH.
Reforma administrativa e a burocracia estatal
Há uma máxima repetida pela esquerda, segundo a qual o Estado burguês
não foi feito para atender as demandas da classe trabalhadora.
É claro que esta assertiva diz respeito a estrutura central de Estado,
muito mais complexa, e não somente a máquina administrativa e sua burocracia, muito menos tão somente uma
pequena parcela desse Estado.
Frente, porém, a uma pequena parcela desse Estado, sua máquina e
burocracia, temos a obrigação de recorrer àquela máxima tantas vezes repetida,
sob pena de assistirmos nossos projetos sendo dirigidos e administrados por
esse mesmo Estado burguês.
Via de regra, a esquerda comete um equivoco fenomenal ao ignorar a
relevância e importância das áreas consideradas "meios" na atual
estrutura jurídica, legal e burocrática existente e implantada no Brasil.
Acredita que somente a nossa vontade e a relevância social e política
de nossos projetos são suficientes para sua efetivação e implementação. Ledo,
dramático e perigoso engano, aliás não subestimados pelos teóricos do
socialismo, que alertam freqüentemente sobre os "perigos da
burocracia", seja em um estado capitalista, seja em um estado socialista.
Em Campinas, ao assumirmos o governo, a situação da máquina
administrativa era duplamente dramática, fruto de oito anos de governos
anteriores, marcados pela absoluta inoperância e descaso com a coisa pública.
Apesar de seu 1 milhão de habitantes, Campinas possuía uma máquina
pública anacrônica e incrivelmente desestruturada, seja do ponto de vista dos
recursos --caracterizados pelas péssimas condições de trabalho, com pessoal
insuficiente, via de regra mal treinados, despreparados e desmotivados,
ausência de equipamentos de informática ou quando existiam, extremamente
obsoletos, ausência de dados e informações sistematizadas, chegando até a
ausência de móveis e cadeiras; seja do ponto de vista de sua estrutura
administrativa -- inadequada e obsoleta, com procedimentos arcaicos,
insuficientes e desconectada das necessidades para implementação de nosso
programa.
Após quatro anos muito se fez, do ponto de vista dos recursos. Em
termos de informática e mobiliário, atendemos uma boa parte das necessidades.
Do ponto de vista do funcionalismo implantamos, ainda que tardiamente, um Plano
de Carreiras, Cargos e Salários; reconstruímos o Instituto de Previdência do
Servidor; iniciamos uma política de qualificação e treinamento de pessoal. Com
relação à base de dados, sistematizamos uma parcela, ainda que pequena, das
informações, porém deixamos de transformar e modificar o essencial: a estrutura
administrativa e os procedimentos.
Se é verdade que o Estado existente não foi feito
para atender aos interesses da classe trabalhadora, também é verdade que a
engrenagem que o move também não foi feita para tanto.
Alterar esta engrenagem, mesmo que dentro dos estreitos limites jurídicos
e institucionais existentes, é uma necessidade vital para a plena implementação
de nosso projeto.
E neste ponto ficamos muito aquém do necessário. Com relação à
estrutura administrativa, pouquíssimas alterações foram realizadas.
Trabalhou-se quatro anos com praticamente a mesma estrutura dos governos
anteriores, como se nossas metas, objetivos e políticas fossem as mesmas. O
mesmo aconteceu com os procedimentos anacrônicos que, ou foram mantidos, ou
substituídos por outros absolutamente descartáveis, desnecessários e
burocráticos.
Fez-se, por exemplo, uma tentativa extremamente ineficaz de adoção de
um sistema informatizado de gestão, que para diversos procedimentos mostrou-se
um obstáculo maior que o sistema existente, seja
pelas panes constantes, seja por sua concepção --baseada nos
procedimentos anacrônicos anteriores, seja pela forma de sua implantação,
abrupta e sem qualquer treinamento eficaz para seus usuários, o que gerou
inúmeros travamentos da máquina administrativa, bem como um stress considerável
aos funcionários.
Some-se a isso a péssima comunicação entre as secretarias-meio e os
respectivos departamentos administrativos das outras secretarias (cuja
dependência em relação às secretarias-meio é absolutamente vital, devido a
estrutura existente na Prefeitura de Campinas); e mesmo entre as próprias
secretarias-meio.
Na prática, a ausência de reformas profundas na estrutura e nos
procedimentos gerou enormes atrasos em processos licitatórios ou até mesmo sua
inviabilização; dificuldades de cobranças de dívidas; a impossibilidade do
estabelecimento de prioridades, que acabavam sendo determinadas pela burocracia
e/ou boa vontade dos funcionários de carreira, o que chegou a gerar uma espécie
de rede de favores interna, onde sobressaiam-se as secretarias com funcionários
melhor relacionados; a impossibilidade de resolver a bom termo o atendimento
adequado à população, que foi obrigada a conviver –durante uma boa parte de
nossa gestão-- com filas e desencontros de informações.
Some-se a tudo isto a postura de alguns secretários, que não tiveram a
vontade política necessária à adoção de uma postura ofensivamente mais liberal
com relação a legislação, permanecendo reféns das dificuldades impostas por
procuradores inexperientes e/ou excessivamente conservadores, que
freqüentemente impunham impedimentos e/ou enormes obstáculos, desde o
encaminhamento de atos e procedimentos simples e corriqueiros a qualquer
administração, até a implementação e consecução de medidas de maior relevância.
Devemos entender que o Estado como um todo e o Judiciário em
particular, não são imparciais; a exigência da observância à legislação, feita
a governos como o nosso, é consideravelmente superior em relação aos governos
da burguesia; por outro lado a observância da legislação por parte de outros
com relação a nós é sempre recheada de nuances.
Enquanto servidores públicos - dirigentes ou não - só podemos fazer o
que a lei permite, diferente do restante da sociedade onde tudo é permitido
desde que a lei não proíba. Considerando o volume de leis existentes, seu
caráter burocrático, elitista e a dificuldade de sua aplicabilidade quando em
benefício dos trabalhadores, há de se concluir que esses não são pontos menores
ou irrelevantes quando da administração de um pedaço do Estado extremamente
limitado na sua capacidade de alterar a legislação.
Longe de uma postura recuada perante esse quadro, devemos adotar uma
postura de cautela ofensiva: cautela na capacidade de interpretação
correta da legislação, ofensiva no tensionamento e interpretação limite dessa
mesma legislação.
Tentativa de síntese
O governo democrático popular, gestão 2001-2004,
foi o melhor governo que Campinas já teve e continuará sendo por um bom
período. Foi um governo perfeito? Não, assim como nenhum foi ou será. Cometemos
erros? Sim, inúmeros, mesmo assim fizemos o melhor governo que Campinas já
teve.
Essa insistência não é apenas retórica. Mesmo
considerando o patamar de abandono em que encontramos a cidade, mesmo
considerando as dificuldades orçamentárias, a enorme dívida herdada, as
dificuldades administrativas, nossos erros políticos e administrativos, nenhuma
análise programática ou numérica em comparação com governos passados ou dos que
virão é capaz de desmentir essa assertiva.
Os porquês desse sucesso são dificeis de avaliar.
Um dos fatores é a consciência do grau de abandono em que se encontrava a
cidade e o grau de desmonte da máquina pública, que de alguma forma nos
convenceu de que estávamos obrigados a um esforço hérculo capaz de, em apenas
quatro anos, superar as carências do passado e do presente, buscando zerar
demandas o máximo possível.
É claro que não zeramos todas as demandas, mas
trabalhou-se como se esse fosse o objetivo; por outro lado, há o efeito inverso
dos ataques da direita sobre nós, ou seja, por mais que soubessemos que se
tratavam de críticas infundadas, de desqualificações ordinárias, havia um
sentimento de que nunca estava bom, sendo sempre necessário superar-nos a nós
mesmos.
Quando da elaboração de planos e planejamentos,
estabeleciam-se metas astronômicas, que ao serem confrontadas com a capacidade
administrativa e financeira existente, mostravam-se inatingíveis, mas
mantínhamos aquelas metas. Pode parecer pouco razoável em uma avaliação de
governo, de conteúdo político-administrativo, debitar a fatores tão subjetivos
o sucesso de uma administração, mas há momentos em que os acontecimentos
ocorrem não por um planejamento perfeitamente elaborado e obedecido, também
ocorrem a despeito de táticas e estratégias políticas definidas ou não, ocorrem
quiçá pela vontade coletiva de um conjunto de companheiros cujo norte é uma
sociedade mais justa, humana e igualitária, sem meias-palavras, uma sociedade
socialista.
Há que se destacar que uma boa parte deste
governo foi dirigido e conduzido por companheiros que não renegaram o
socialismo enquanto objetivo estratégico; e isso não é um dado menor, ao termos
esse objetivo estratégico comum e mais ousado do que outros, até mesmo dentro
do partido, todos os objetivos a serem cumpridos na administração pareciam e
estavam sempre aquém das tarefas necessárias, nem que fossem locais e
restritas, mas capazes de gerar um acúmulo de forças na nossa luta pelo
socialismo; daí que nossas metas eram astronômicas; daí que a despeito de nossa
derrota eleitoral fomos vitoriosos na administração; daí que, mesmo golpeados
por desqualificações ordinárias, continuávamos a fazer mais e mais; daí que não
nos entregamos, nem a nós, nem o nosso programa, à direita reacionária da
cidade; daí que nos recusamos a acordos espúrios com essa direita, daí que até
o fim à enfrentamos; daí talvez também, por isso, tenhamos perdido a eleição;
mas daí também que esse foi o melhor governo que Campinas já teve.
BALANÇO GERAL
O Partido dos Trabalhadores
deve fazer um balanço profundo das eleições municipais de 2004. Cada direção
municipal, cada diretório estadual, deve analisar os resultados obtidos,
confrontando-os com a história e com os objetivos que o PT havia se proposto a
alcançar, nessas eleições.
Neste balanço,
devemos precisar qual a influência dos fatores estritamente municipais, locais,
regionais; e qual a influência dos fatores nacionais, gerais.
O Partido dos Trabalhadores
disputa eleições municipais desde 1982. Naquele ano, elegemos 2 prefeitos. Em
1985, elegemos a prefeita de Fortaleza. Em 1987, o prefeito de Vila Velha. Em
1988, vencemos em 36 importantes cidades, entre elas São Paulo, Vitória e Porto
Alegre. Em 1996, elegemos 54 prefeitos/as. Em 1996, mais que dobramos, elegendo
115 prefeitos/as. Em 2000, elegemos 187 prefeitos/as. Em 2004, finalmente,
elegemos 411 prefeitos e prefeitas.
O crescimento numérico foi
acompanhado por uma expansão geográfica. Mesmo assim, está claro que – de 1988
até 2000 – a maior parte das prefeituras governadas pelo PT se concentrava na
região sudeste e sul do país. Em 2000, por exemplo, esta região concentrava 131
prefeituras governadas pelo PT; enquanto o Norte, o Nordeste e o Centro-Oeste
reuniam 56 prefeituras.
Quanto ao número de
habitantes, a trajetória do PT mostra um crescimento constante nas cidades com
até 50 mil habitantes (21 em 1988, 35 em 1992, 87 em 1996, 127 cidades em
2000). Mostra um crescimento mais modesto nas cidades acima de 50 mil e abaixo
de 200 mil habitantes (6, 9, 19, 31 cidades, respectivamente).
O dado politicamente mais
revelador, entretanto, é o relativo as cidades com mais de 200 mil habitantes.
Em 1988 o PT elegeu 9 destas cidades; em 1992, elegeu 10; e, em 1996, elegeu
novamente 9 com mais de 200 mil habitantes. Já em 2000, houve um salto: elegemos
29 cidades com mais de 200 mil habitantes, sinalizando a ascensão que levaria o
PT a conquistar, em 2002, a presidência da República.
O quadro fica ainda mais
claro se considerarmos a população total residente nas cidades governadas pelo
PT:
1988: 14,9 milhões
1992: 8,3 milhões
1996: 7,9 milhões
2000: 28,8 milhões
A curva é clara: ascendente
em 1988, inicia um descenso em 1992 e 1996 (anos de hegemonia neoliberal) e
torna-se fortemente ascendente em 2000.
Portanto, a trajetória do PT
em eleições municipais combina dois movimentos distintos, um constante, outro
variável:
a)um deles, constante, é o
do crescimento em número de prefeituras, vereadores, vices e eleitorado,
mostrando que o Partido vai se capilarizando e se nacionalizando;
b)outro deles, variável,
oscilando ao sabor da conjuntura nacional, é expresso no porte das cidades que
governamos, no número de habitantes ou de eleitores que ali residem.
As eleições de 2004
apresentam, de maneira combinada, os dois movimentos: a continuidade do
crescimento; e, ao mesmo tempo, uma oscilação negativa nas grandes cidades.
O crescimento fica claro
quando olhamos os resultados quantitativos em geral, sem distinguir o porte das
cidades: os números absolutos de 2004 mostram que o Partido ampliou o seu
número de eleitores, o número de prefeitos/as e vereadores.
O PT foi o partido mais
votado, tanto no primeiro (16,3 milhões de votos) quanto no segundo turno (6,9
milhões de votos).
Em 2000, o PT ficou em
quarto lugar, entre os votos válidos, atrás do PSDB, PMDB e PFL. Já em 2004, o
PT ficou em primeiro lugar entre os votos válidos (17,2%), superando o PSDB
(16,5%), o PMDB (15%) e o PFL (11,8%).
Elegemos 411 prefeitos/as,
contra 187 eleitos em 2000 (um crescimento relativo de 120%, superado apenas
pelo PCdoB e pelo PV, que entretanto elegeram 10 e 56 prefeituras,
respectivamente).
Crescemos, também, em número
de vereadores: 118 em 1982; 900 em 1988; 1.100 em 1992; 1.895 em 1996; 2.485 em
2000; 3.679 vereadores eleitos em 2004, num total de 10.431.085 votos ou 10,7%
do total de votos válidos para vereador em todo o país, o que nos permitiu
eleger 7,1% do total de vereadores existentes no Brasil.
Somos, portanto, o terceiro
partido mais votado para vereador (atrás do PMDB e do PSDB), quando em 2000
éramos o quinto partido mais votado.
Os 3.679 vereadores eleitos
pelo PT estão presentes em 2345 municípios (42% do território brasileiro), um
número bastante superior ao de 2000 (quando elegemos vereadores em 1482
municípios).
Para produzir este resultado
eleitoral, o PT lançou candidatos em cerca de 5 mil municípios, elegendo 411
prefeitos, 312 vice-prefeitos e apoiando 937 chapas majoritárias vencedoras. Ao
todo, o PT participará de 1.660 governos municipais ou 30% dos municípios
brasileiros.
Em resumo: quando olhamos os
resultados quantitativos em geral, sem distinguir o porte das cidades,
constatamos que o PT obteve em 2004 mais uma vitória eleitoral: ampliamos o
número de eleitores, o número de prefeitos/as, o número de vices-prefeitos/as e
de vereadores.
Mas quando olhamos o
resultado do ponto de vista qualitativo, ou seja, quando observamos não apenas
os números gerais da eleição, mas também o resultado alcançado nas cidades mais
importantes, constatamos que o PT sofreu um revés nas eleições de 2004.
Se considerarmos, por
exemplo, o número de eleitores residentes nas cidades governadas pelo PT, em
2000 e 2004, vemos o seguinte:
2000: 21,5 milhões
2004: 17 milhões
Se analisarmos estes números,
mais aqueles citados anteriormente, temos uma curva bastante clara: ascendente
até 1988, inicia um descenso em 1992 e 1996 (anos de hegemonia neoliberal),
torna-se fortemente ascendente em 2000 e inflete para baixo em 2004.
Alguns setores do Partido
buscam relativizar esta inflexão. Lembram que o PT elegeu 23 das 96 maiores
cidades brasileiras (12 no primeiro turno, 11 no segundo turno), governando 9
capitais.
Outro argumento utilizado
para dizer que não sofremos uma inflexão em 2004 é o número de capitais em que
fomos vitoriosos: 6 em 2000 e 9 em 2004.
Acontece que o peso político
das capitais em que o PT foi vitorioso em 2000 era maior do que o peso político
das capitais em que vencemos no ano de 2004. As derrotas em Porto Alegre, São
Paulo, Belém e Goiânia não são compensadas pelas novas vitórias em Fortaleza,
Vitória, Porto Velho, Palmas etc.
É claro, entretanto, que
temos o que comemorar nas eleições de 2004. Além do que foi dito anteriormente,
citamos ainda: a reeleição de 44% de nossas prefeituras, inclusive nas capitais
de Recife, Aracaju e Belo Horizonte; o crescimento de nossa votação popular, em
cidades como São Paulo; a ampliação da presença partidária, no norte, nordeste
e centro-oeste; os resultados em Fortaleza e em Vitória (bem como em
Cariacica).
Mas não há como desconhecer
o seguinte: o PT não atingiu seu objetivo central nas eleições de 2004 –
objetivo estabelecido em seguidas reuniões do Diretório e da Executiva Nacional
–, que era o de deslocar para a esquerda a correlação de forças do país.
Noutras palavras, tratava-se
de dar continuidade ao que se viu nas eleições de 2000 e 2002, preparando o
terreno para uma nova vitória em 2006.
Esse objetivo não foi
atingido. Pelo contrário, foi a direita que teve sucesso, bloqueando e revertendo
aquela tendência que vinha de 2000/2002, enfraquecendo nossas chances de
vitória em 2006.
Esta derrota é mais evidente
em dois estados.
É evidente no estado de São
Paulo, onde perdemos cidades estratégicas, como São Paulo, Ribeirão Preto,
Piracicaba, Campinas e Santos; onde tivemos desempenhos ruins em cidades como
São Bernardo do Campo; e onde ganhamos por pouco, como em Diadema.
E é evidente, também, no
estado do Rio Grande do Sul, onde perdemos cidades igualmente estratégicas,
como Porto Alegre, Pelotas e Caxias do Sul.
As eleições de 2004,
portanto, acenderam um sinal amarelo para a esquerda e um sinal verde para a
direita, que já fala abertamente em abandonar a estratégia de “contenção”
(conviver e cooptar o governo Lula) e passar para a estratégia de “aniquilação”
(derrotar o PT e o governo Lula).
É por isso que achamos
necessário reconhecer que o PT sofreu uma derrota política em 2004. Derrota que
nós, da Articulação de Esquerda, já havíamos percebido estar em curso (ver a
esse respeito a avaliação feita pela direção nacional da tendência, no dia 15
de outubro).
Fomos derrotados, o PT foi
derrotado nas eleições de 2004, porque as eleições mostraram existir uma
reversão na tendência popular que nos levou à vitórias importantes em 2000 e à
presidência da República, em 2002.
Se esta reversão não for
detida, podemos colher uma derrota política e eleitoral em 2006.
Portanto, determinar as
causas da derrota política que sofremos em 2004 é algo essencial.
Alguns setores do Partido
acham que não houve uma derrota política. Pelo contrário, falam em vitória
eleitoral. Outros reconhecem que tenha havido derrota, mas argumentam que não
há uma única explicação, mas sim um conjunto de explicações, particulares e não
generalizáveis.
Evidente que – numa eleição
municipal – há causas locais e regionais que devem ser consideradas. Por outro
lado, as causas nacionais influenciam diferentemente cada situação específica.
É isto que explica o fato de termos obtido, ao mesmo tempo, numa mesma
conjuntura nacional, vitórias e derrotas importantes.
É compreensível que vários
setores do Partido resistam a debater em profundidade as causas de nossa
derrota. Por isso mesmo, talvez seja útil inverter a questão e responder ao
seguinte: porque a direita conseguiu uma vitória política nas eleições de 2004,
criando um cenário mais favorável para ela disputar as eleições gerais de 2006?
Em nosso entender, há três
razões fundamentais que explicam a vitória obtida pela direita.
A primeira dessas razões foi
a unidade da burguesia, já no primeiro turno, mas principalmente no segundo
turno.
É evidente que há setores do
empresariado e das instituições que expressam seus interesses (os meios de
comunicação, a justiça eleitoral, os governos estaduais etc) que apoiaram
candidaturas de esquerda ou que se dispersaram em várias candidaturas de
centro-direita no primeiro turno.
Esta dispersão e o apoio à
candidaturas de esquerda, entretanto, não constituem novidade. Em 2002, por
exemplo, parcelas expressivas do empresariado apoiaram ou ficaram neutras
frente a candidatura Lula.
A novidade, em 2004, é uma
reaglutinação do conservadorismo e do empresariado, em torno de uma tática
anti-petista, que teve no PSDB o seu “comitê central”, principal beneficiário,
político e eleitoral.
Importante
lembrar que, ao mesmo tempo em que o PSDB era o núcleo da campanha
anti-petista, setores importantes do PT defendiam uma aproximação estratégica
com os tucanos. O presidente da República chegou a falar de fusão entre os dois
partidos; já o prefeito reeleito de Belo Horizonte e o ministro Tarso Genro, de
ângulos diferentes, enalteceram – mesmo depois do segundo turno – uma suposta
“modernidade” tucana.
A
participação do empresariado nas campanhas petistas, embora relevante, se deu
em escala menor do que o divulgado, compatível com o peso do Partido, sem o
caráter orgânico que teve no caso da direita e com uma relativamente pequena
participação do capital financeiro (pequena, se considerarmos que é o setor
econômico mais beneficiado pela política do governo federal).
Abre
parênteses: É importante dizer que o Partido precisa rever radicalmente suas
políticas de financiamento. Não é possível esconder as repercussões ideológicas
e políticas negativas do financiamento privado de campanhas. Casos como o de
Waldomiro Diniz e Rogério Buratti precisam ser debatidos de maneira franca
dentro do PT, que precisa tomar medidas duras contra as tentativas de
transformar o partido e governos que ocupamos em “escada” para práticas
corruptas. Fecha parênteses.
Retornando
ao comportamento da burguesia no processo eleitoral: as figuras mais notórias
da direita brasileira (ACM, Sarney), mesmo quando aparentemente
"apoiadas" pelo Planalto, se enfrentaram com candidaturas petistas
(como ocorreu em Salvador e Imperatriz).
É
importante ressaltar estes fatos, pois eles demonstram que – ao contrário do
que sugere a ultra-esquerda e apesar da política implementada pelo governo
federal (ou, quem sabe, para garantir a sua continuidade) – o grande capital
opera consciente e deliberadamente para derrotar o PT.
Paradoxalmente,
portanto, apesar da política econômica adotada pelo governo federal, a
burguesia não teve dúvidas em concentrar suas energias contra o PT, seja para
evitar que um fortalecimento do Partido gerasse ânimo para uma “esquerdização”
do governo; seja porque a burguesia não pretende terceirizar a aplicação de
suas políticas.
Como reconheceu,
recentemente, um dirigente da ala moderada do PT: “a elite que elogia a
política econômica é a mesma que operou para derrotar o Partido nas eleições”.
A segunda razão que explica
a vitória política da direita nas eleições de 2004 é a redução no ânimo da
classe trabalhadora, mais exatamente dos seus setores organizados.
Esta redução no ânimo, no
entusiasmo, reduziu o caráter militante das campanhas eleitorais, especialmente
no primeiro turno. Nosso desempenho nas regiões de concentração operária,
especialmente no ABC, deve ser visto como um sinal de alerta nesse sentido.
No caso de algumas
categorias – como bancários, servidores públicos, professores universitários –
houve mais do que uma redução no ânimo: houve hostilidade aberta, que pode ter
se transformado inclusive em abstenção, voto nulo, branco ou até mesmo voto em
candidaturas de centro-direita.
É provável que a atitude do
governo federal frente a greve dos bancários, por exemplo, tenha tido fortes
repercussões eleitorais ali onde a disputa foi apertada.
Apesar
disso, de maneira geral não houve deslocamentos em direção ao PCdoB ou ao PSTU,
nem tampouco em direção às candidaturas apoiadas pelo PSOL. Fracassou a
tentativa de construir uma alternativa eleitoral à esquerda do PT. O que
confirma uma opinião que temos defendido, desde o final de 2002: nas atuais
condições históricas, não existe alternativa (eleitoral ou não) à esquerda ao
governo Lula e ao PT. Ou o próprio governo Lula e o PT giram para a esquerda,
ou será a direita quem colherá os frutos da decepção popular.
A falta de ânimo dos setores
organizados ajudou a gerar aquilo que os analistas têm denominado de
“deslocamento da classe média para a direita”.
O
que são as “classes médias”? De maneira geral, o que chamamos de classes ou
setores médios compõem um setor social integrado pelo estrato inferior da
burguesia e pelo estrato superior da classe trabalhadora.
Noutras
palavras: pequenos proprietários urbanos, trabalhadores com salários superiores
à média e/ou ocupando funções de gerência etc.
Esses
setores constituem uma importante força política e eleitoral, cujo
comportamento sempre foi historicamente flutuante.
Estes
setores médios apoiaram FHC e o Real em 1994, começaram a se decepcionar em
1998, se deslocaram para o PT e Lula em 2000 e 2002 e, agora, começam a voltar
em direção ao PSDB e à oposição anti-petista.
Há
vários motivos que explicam esse deslocamento para a direita, por exemplo, a
unidade da burguesia e o desânimo dos setores organizados da classe
trabalhadora.
Mas
o principal motivo – que explica inclusive os dois outros, já citados – é a
decepção com as políticas implementadas pelo governo federal.
Num
resumo grosseiro, os setores médios percebem a política do governo federal da
seguinte forma: tirar dos remediados, para distribuir aos pobres, sem tocar nos
ricos.
Esta
percepção gera uma forte crítica ao governo federal, em alguns casos “de
esquerda”, mas geralmente de direita.
(Importante
dizer que, caso nosso governo federal estivesse com uma política claramente
voltada a derrotar o setor financeiro, isso não garantiria o apoio dos setores
médios. O exemplo do Chile, no governo da Unidade Popular; e o exemplo da
Venezuela, no governo Chavez, mostram que a direita e o grande capital têm
forte influência sobre os setores médios. Mas, nesse caso, como também mostra a
Venezuela, seria possível ter um apoio mais sólido junto aos setores populares
e a militância de esquerda.)
Evidente que nossa presença no governo federal também repercutiu
positivamente na campanha eleitoral, ajudando a explicar nosso crescimento em
algumas regiões e camadas sociais. Mas o efeito sobre os trabalhadores
organizados e os chamados “setores médios” foi principalmente negativo.
Esta
é a terceira razão, portanto, da vitória política da direita nas eleições de
2004: o deslocamento, para a direita, dos chamados setores médios.
É
importante dizer que a direita organizou, preparou, planejou esta vitória.
Contrariando
os setores moderados do PT, que pensavam que uma política econômica moderada
neutralizaria a direita; e ao contrário do que pensa a ultra-esquerda, para
quem o governo Lula é “o governo do capital”, a direita brasileira organizou,
desde o início de 2003, a vitória que obteve agora.
Vale
a pena analisar os principais aspectos deste processo.
No
início de 2003 e até agora, o governo Lula deu continuidade a aspectos
essenciais da política econômica do governo tucano.
Alguns
setores do PT pensaram que isto teria “tirado o discurso” da direita. Na
verdade, isto parece ter “tirado o discurso” da esquerda, ao menos no que toca
ao debate programático.
Ao
retirar de cena o debate sobre o neoliberalismo, o debate sobre o projeto
nacional, o confronto político-ideológico entre petismo e tucanato, o governo
Lula preparou um terreno favorável à vitória da centro-direita.
Primeiro,
livrando-os do debate sobre a “herança maldita”.
Segundo,
gerando contradições entre nosso governo e nossa base social.
Terceiro,
tirando do PT e da esquerda a condição de “portadores da mudança”.
Quarto,
pasteurizando o debate político, que foi remetido a temas “municipais”,
“locais”, “gerenciais” (quando todos sabemos que estas questões são fortemente
limitadas pelas macro-políticas nacionais).
Os
partidos de direita não tinham interesse em contestar a política econômica
implementada pelo governo federal, seja porque concordam com ela, seja porque
estamos num daqueles momentos em que uma política econômica globalmente
negativa gera alguns efeitos positivos de curto prazo.
Algo
que ocorreu sob o governo FHC e que pode voltar a ocorrer sob o governo Lula,
hipótese que leva setores do PSDB a tratar com cautela suas perspectivas
eleitorais em 2006, apesar das vitórias obtidas em 2004.
Os
partidos de esquerda que apóiam o governo Lula, por sua vez, também não tinham
interesse em contestar a política econômica do governo federal, seja pelos
mesmos motivos da direita; seja porque se avaliou que isto seria eleitoralmente
contraproducente; seja para não ter que “justificar” (ou questionar) a postura
do governo em temas como a taxa de juros, o pequeno reajuste do salário mínimo
e a reforma da previdência.
O
fato do debate macro-econômico ter perdido peso na campanha eleitoral de 2004,
impediu que o trabalho realizado em 2000 e 2002, de contestação ao
neoliberalismo, tivesse continuidade.
Isso
prejudicou o PT e fortaleceu principalmente o PSDB. E fez com que, em muitas
cidades, o debate fosse concentrado nas políticas locais, como se não houvesse
conexão entre a ampliação dos serviços públicos, a segurança e o desemprego,
com o predomínio dos interesses do capital financeiro na economia nacional.
Sem
ter a necessidade de enfrentar o PT no debate grande programático, a
centro-direita deslocou sua crítica para outro terreno: o da política.
Nesse
terreno, concentrou seu ataque em três críticas principais: o da democracia, o
da ética e o da eficiência gerencial.
Já
tratamos, na resolução aprovada pela direção nacional da AE em março de 2004,
da questão ética.
Sobre
isso, portanto, só queremos acrescentar que algumas das alianças praticadas na
eleição de 2004, por exemplo, com Paulo Maluf, forneceram excelentes argumentos
adicionais para os ataques hipócritas que a centro-direita faz contra nós –
ataques feitos muitas vezes por gente que, em pleno século XXI, mantém de
maneira generalizada a compra de votos; ou que ressuscitou, durante a campanha,
um padrão anti-comunista que só encontra paralelo próximo no “nível” da
campanha collorida de 1989.
De maneira geral, a
transposição – para o Partido dos Trabalhadores — da política de alianças
adotada na base de sustentação do federal, criou mais problemas políticos do
que benefícios eleitorais.
A diretriz partidária para
as eleições de 2004 estabelecia que nosso objetivo principal era deslocar a
correlação de forças do país para a esquerda, o que deveria se traduzir em vitórias
do PT e de seus aliados do campo democrático e popular.
Mas a diretriz realmente
implementada pelo setor moderado do PT foi bem mais “ampla”. Na política de
alianças, tentou transpor, para o PT, a política de alianças adotada no governo
federal; estimulou, consciente ou inconscientemente, a ilusão de que haveria
recursos abundantes, vindos do empresariado, para financiar nossas campanhas;
adotou uma postura politicamente dúbia do governo federal; e aprofundou, em
algumas regiões, uma forma empresarial de fazer campanha.
Em Fortaleza, o PT tinha
candidatura própria, mas uma parte de nossos ministros, parlamentares e
dirigentes nacionais apoiaram a candidatura de um aliado de esquerda.
Em Porto Alegre, o principal
oponente de nossa candidatura era integrante de um partido da base de apoio do
governo Lula.
Em Salvador, o candidato do
PT não conseguia gravar uma declaração de apoio do presidente da República, mas
o candidato do PFL carlista conseguiu uma “cena” (no sentido português e
espanhol da palavra) com o presidente.
Em São Paulo, nossa
candidatura tropeçou na relação com os partidos da base aliada, no primeiro
turno e no segundo turno, com destaque para o desastrado “apoio” de Paulo
Maluf.
No Rio de Janeiro, nossa
candidatura tentava competir com o favoritismo de César Maia, que por sua vez
era tratado como aliado prioritário em Niterói e Nova Iguaçú.
Esta confusão prejudicou
principalmente o PT, primeiro porque em vários locais nos jogou na vala comum
dos partidos tradicionais, com suas alianças movidas por interesses locais e
regionais, em detrimento de projetos nacionais; segundo, porque facilitou a
operação de nivelamento programático levada a cabo por vários de nossos
opositores (em Campinas, como em Porto Alegre, por exemplo, os partidos
antagônicos ao PT mimetizavam muitas das propostas apresentadas pelo Partido).
O caso do Rio de Janeiro é o
mais ilustrativo dos efeitos de uma política de alianças sem princípio: depois
de traumatizar o PT carioca, obrigando-o a fazer uma aliança com o PDT de
Garotinho, chega-se ao extremo oposto, construindo uma política de alianças com
todos os setores, tendo como único objetivo derrotar o PMDB... de Garotinho.
Neste contexto, não admira
que o desempenho do PT tenha sido pífio na capital do Rio, tendo a comemorar a
derrota de Garotinho (junto com a vitória de César Maia), assim como antes se
tinha a comemorar a vitória de Garotinho (junto com a derrota da direita
tradicional).
Os efeitos negativos da
política econômica e a política de alianças adotada pelo Partido contribuíram,
ademais, para fazer recuar a militância partidária. Em algumas cidades, esse
recuo não foi visto, pelo menos de início, como um enorme problema estratégico;
e, no lugar da campanha militante, adotaram-se métodos empresariais de disputar
eleição, o que também foi apontado pela direita como “desvio ético” do PT: o
uso de “militância paga”.
Quanto
a questão da eficiência gerencial, trataremos mais adiante, quando falarmos do
balanço setorial da atuação do governo Lula. Mas é evidente que os problemas
administrativos e gerenciais do governo federal tem ligação direta com
problemas políticos e estratégicos.
Sobre a questão da democracia, a pauta da centro-direita foi resumida
por Fernando Henrique Cardoso e por José Artur Giannotti. Em artigo e
entrevista para a Folha de S.Paulo, ambos sustentaram que a vitória do
PT seria uma ameaça à democracia.
A
tese implícita é a seguinte: o PT já tem “poder demais”, como se a verdade não
fosse outra, como se a verdade não fosse que a imensa maioria do poder, no
Brasil, segue nas mãos de quem sempre o teve.
O
desdobramento da lógica de FHC/Giannotti é a seguinte: o PT pode ganhar as
eleições, mas não pode indicar seus quadros para compor o governo; pode indicar
os Ministros da Cultura e da Comunicação, mas não pode impor limites ao
monopólio da mídia e à indústria cultural; pode indicar o ministro da Defesa,
mas não pode demitir os gorilas da direita; pode indicar a ministra do
Meio-Ambiente, mas não pode bloquear os transgênicos; pode ter o ministro da
Fazenda, desde que a política ali implementada seja tucana; pode ter o
presidente da República, mas não pode governar o país.
O
ataque da direita contra o PT repercutiu fortemente nos setores médios,
lembrando muito a tática adotada pela direita contra o governo Chavez.
Aqui
como lá, a crítica da direita contra o PT tem um forte conteúdo “anti-pobre”.
E, como nos Estados Unidos, parte dos pobres e dos setores médios acaba
apoiando a centro-direita, a mesmo centro-direita que foi responsável pelas
políticas neoliberais que prejudicaram socialmente a classe média e os pobres.
A
centro-direita teve sucesso nas eleições de 2004. Construiu uma tática política
e um discurso ideológico, reaglutinou suas forças sociais, recuperou
importantes setores médios e populares, conquistou aparatos políticos
importantes (como as prefeituras de São Paulo, Rio de Janeiro e Porto Alegre,
combinadas com o controle dos respectivos governos estaduais). E pode vir a
contar, em 2006, com dois outros suportes: o governo norte-americano, reeleito;
e a possível existência do PSOL, como desaguadouro eleitoral da insatisfação
com o PT.
Se o
resultado eleitoral confirmou o PT e o PSDB como pólos da política brasileira
(algo que não é novidade, pois já se havia verificado em 1994, 1998 e 2002),
manteve também um “centro” muito forte, que não acompanhou o PT na maioria das
disputas municipais e, portanto, pode ser o fiel da balança nas eleições de
2006.
Boa
parte deste “centro” integra a base de apoio do governo federal. Entretanto,
convém não se iludir com os resultados obtidos pelos partidos da “base de
apoio”. Pois, dependendo da evolução política do país, estes partidos podem
constituir uma terceira via ou apoiar uma candidatura tucana em 2006. Neste
sentido, a derrota política do PT, em 2004, pode se transformar em derrota
eleitoral (e política) do governo federal em 2006.
Nesse
contexto, como impedir que a vitória (tucana) em 2004 se transforme na
ante-sala da derrota (petista) em 2006? Essa é a principal questão que deve ser
debatida pelo PT, nos próximos meses.
A
principal resposta para esta questão está, em nossa opinião, numa mudança na
política econômica do governo federal.
Articulação de Esquerda
4 de dezembro de 2004