domingo, 30 de janeiro de 2022

Roteiro para resolução sobre conjuntura

O texto a seguir é a primeira versão (sujeita a alterações) da resolução aprovada pela Direção nacional da tendência petista Articulação de Esquerda no dia 30 de janeiro de 2022.


1.Os acontecimentos de janeiro confirmam que o ano de 2022 será marcado pela instabilidade no plano mundial, continental e nacional.

2.Um dos múltiplos sinais disto é o fato de 2022 ter começado com mais uma onda da pandemia de covid-19, agora agravada pela variante Ômicron e a circulação do vírus da influenza. 

3.No caso do Brasil, o sistema público de saúde tem sido ainda mais pressionado e a média de mortes voltou ao patamar de 300 óbitos diários. A situação é agravada pela ação criminosa do governo Bolsonaro, que segue atacando as medidas de vacinação e de proteção sanitária. Nesse cenário, ganha ainda mais importância a pressão e a mobilização pelo fim do governo Bolsonaro e de suas políticas o mais rápido possível.

4.A pandemia se abateu sobre um mundo ainda marcado pela crise de 2008 e suas consequências sociais, econômicas, ambientais, políticas, culturais, militares e geopolíticas. Apesar disso, há quem acredite ser possível superar a instabilidade sem tocar nas causas da crise: o capitalismo realmente existente.

5.Também contribuem para a instabilidade mundial as ações – internas e externas - do imperialismo estadounidense visando deter e reverter seu declínio.

6.No plano interno, até o momento não tiveram êxito as supostas mas muito propagandeadas intenções “rooseveltianas” do governo Biden. A tibieza do presidente, a postura da "direita" do partido Democrata e a decidida oposição do partido Republicano fizeram murchar a “revolução” tuitada por alguns.

7.No plano externo, a retirada do Afeganistão foi um desastre político e diplomático; a pressão da Otan sobre a Rússia não está tendo os desdobramentos esperados pelo governo Democrata; as provocações contra a China, especialmente em Taiwan, não parecem direcionadas ao êxito; e as relações dos EUA com a Europa e com a América Latina não se alteraram para melhor.

8.Entretanto, não se deve subestimar os Estados Unidos, em nenhum terreno. Mas é preciso perceber que sua força deriva cada vez mais: i/do “privilégio exorbitante” resultante do dólar ser, ao mesmo tempo, moeda nacional e principal moeda internacional; ii/da capacidade militar, ainda que com limitações táticas e estratégicas crescentes.

9.Seja por razões estruturais (o peso do setor militar na economia dos EUA), seja por razões de outro tipo (heranças de governos anteriores, interesses eleitorais etc.), os governos estadounidenseses estão cada vez mais viciados em lançar mão de ações militares como meio de, supostamente, tentar deter e reverter seu declínio. 

10.Essa conduta belicista contamina todo o cenário mundial, alimenta direta ou indiretamente movimentos de extrema direita e pode ter consequências catastróficas, apesar dos esforços de China e Rússia no sentido contrário.

11.Por tudo isto, independente de como evolua o conflito na Ucrânia, a esquerda brasileira deve seguir acompanhando com atenção a situação mundial, deve fortalecer a dimensão partidária de sua política internacional e deve – retomando o governo federal – implementar uma política externa comprometida com a construção de outra ordem mundial, o que inclui superar a hegemonia do dólar nas transações mundiais.

12.Nesta luta por uma nova ordem mundial, temos um inimigo principal (o imperialismo dos EUA) e temos potenciais aliados (os governos da China, da Rússia, povos e muitos governos da América Latina e Caribenha, povos e vários governos progressistas da África, Ásia e Oriente Médio). Os imperialismos europeu e japonês, embora não sejam nosso inimigo principal, não são nossos aliados.

13.No continente americano também vivemos uma imensa instabilidade, originada mais uma vez dos Estados Unidos e de seus aliados em cada país da região.

14.Nesses tempos em que muitos defendem “virar a página do golpe”, é importante relembrar: foi o governo Obama presidente/Biden vice quem capitaneou a operação conjunta imperalismo-oliguarquias locais visando sabotar, derrotar e derrubar os governos progressistas e de esquerda existentes na América Latina. Durante cerca de dez anos, esta operação conjunta imperialismo-oligarquias teve grande êxito. Mas desde 2018 vem ocorrendo uma reversão - com a exceção, por ahora, de El Salvador, Uruguai e Equador - e com a importante novidade de termos um governo progressista no México, com a possibilidade de elegermos um governo progressista na Colômbia e com a perspectiva de retomarmos o governo do Brasil.

15.Entretanto, os governos progressistas e de esquerda deste ciclo iniciado em 2018, com a eleição de Andrez Manoel Lopez Obrador, não atuam no mesmo cenário do ciclo iniciado em 1998, com a eleição de Hugo Chávez. Tanto internamente, quanto no plano continental e mundial, a situação é muito diferente e sob vários aspectos pior.

16.Os setores moderados da esquerda extraem desta constatação a conclusão de que devemos andar devagar; nós extraímos a conclusão oposta: a de que é preciso sermos mais velozes e mais radicais na superação do neoliberalismo e no enfrentamento do imperialismo. Este é o pano de fundo do debate sobre o programa, a chapa, as alianças e a tática da campanha presidencial no Brasil. 

17.De nossa parte, reiteramos a necessidade de um programa capaz de enfrentar o capital financeiro, o setor primário-exportador (agronegócio e mineração) e o imperialismo. 

18.Nesse espírito, estimulamos o debate das propostas divulgadas pelo MANIFESTO PETISTA, tanto as propostas emergenciais para superar o desemprego, a inflação, a fome, a carestia, a miséria; o apagão na saúde; os retrocessos na educação e na cultura; a falta de perspectivas para a juventude; quanto as propostas de natureza estrutural, de médio e longo prazo, capazes de garantir a soberania, o bem-estar, a liberdade e um desenvolvimento de novo tipo para nosso país. A seguir, tais propostas com alguns acréscimos de nossa responsabilidade:

i/decretar situação de emergência em âmbito nacional, para que o novo governo tenha os meios legais necessários para enfrentar o caos herdado do governo anterior, em particular no enfrentamento das necessidades mais imediatas: o alimento, a moradia, a saúde, o transporte, o emprego;

ii/corrigir imediatamente o orçamento herdado do governo anterior, ampliando a dotação vinculada às áreas sociais e ao desenvolvimento econômico, inclusive recuperando a capacidade de investimento do BNDES, do BB e da CEF, bem como das empresas estatais;

iii/tomar as medidas necessárias para cobrar imposto emergencial sobre grandes fortunas, lucros e dividendos, para contribuir no financiamento das medidas de reconstrução e transformação nacional, especialmente para dobrar ao longo do primeiro biênio de governo as receitas do SUS (hoje de aproximadamente 4% do PIB ou 4,00 per capita). Ao mesmo tempo, apoiar as propostas de reforma tributária já apresentadas pelos partidos de esquerda;

iv/fazer a retomada imediata do Bolsa Família e retomada igualmente imediata do programa Mais Médicos, mas em ambos casos com aprimoramentos significativos. Convocação de concursos públicos emergenciais para recompor o quadro de servidores públicos federais;

v/revogar o “teto de gastos” (através de emenda constitucional), bem como revogar a reforma previdenciária, a reforma trabalhista e a autonomia do Banco Central. Nos casos de alteração constitucional, lançar mão de referendo revogatório;

vi/como parte da defesa da economia popular e do combate à inflação, fazer aprovar uma lei de reajuste do salário mínimo, garantindo ganho real capaz de recuperar o poder de compra afetado pela carestia; promover a ampliação imediata dos recursos disponíveis para agricultura familiar, principal fonte de alimentos saudáveis e baratos; pelos mesmos motivos, ampliação dos recursos para aquicultura familiar e pesca artesanal ; reduzir os preços da energia elétrica, do gás de cozinha, da gasolina e demais combustíveis, pondo fim ao atual sistema subordinado à oscilação dos preços internacionais;

vii/iniciar ainda em 2023 um plano de reconstrução da infraestrutura nacional (através de obras públicas nas estradas, hidrovias, ferrovias, fontes de energia, prédios e vias públicas, habitação popular), de reconstrução da Petrobrás como empresa de desenvolvimento nacional, com plena retomada do sistema de partilha para exploração do pré-sal e das medidas dinamizadoras da construção civil e da industrial naval, incluindo a anulação das criminosas vendas dos ativos da empresa: o petróleo deve ser nosso, como também a Eletrobrás, os Correios e a Vale;

viii/interromper a destruição do meio ambiente, com moratória imediata da expansão do agronegócio na Amazônia, retomada da demarcação das áreas indígenas e das comunidades quilombolas;

ix/promover a reconstrução do Ministério da Cultura, relançar a Empresa Brasileira de Comunicação e retomar os projetos de expansão do setor público de educação;

x/retomar as políticas em defesa dos direitos das mulheres, dos negros e negras, da juventude, da comunidade LGBT+, das pessoas com deficiência, dos povos indígenas, das comunidades quilombolas;

xi/instituir medidas em defesa do direito à memória e à verdade do povo brasileiro, com responsabilização dos agentes envolvidos em desrespeitos aos direitos, liberdades e vida do povo desde o golpe de 2016. Entre as medidas destaca-se, emergencialmente, a declaração oficial do novo chefe de Estado e de Governo sobre o conjunto de ataques aos direitos, liberdades e vida do povo brasileiro desde o golpe de 2016 até o governo Bolsonaro. Paralelamente à difusão nacional da declaração oficial do Estado brasileiro, que sejam  instaladas Comissões da Verdade nos Estados brasileiros, sob coordenação do governo federal, para apuração/sistematização  detalhada localmente. Outras medidas cabíveis: a)punição imediata dos responsáveis no que estiver sob alcance do Executivo; b) abertura de procedimentos administrativos e judiciais contra todos que tenham atentado contra os direitos humanos durante a administração anterior, especialmente os relacionados ao genocídio causado por políticas negacionistas frente à pandemia; c)devolução imediata às Forças Armadas de todos os militares nomeados para cargos de natureza civil; d)transferência para a reserva de todos os comandantes nomeados no mesmo período; e) apresentar PEC para revogar o artigo 142 da Constituição; f)apresentar PEC para  desmilitarizar a segurança pública, com o objetivo de deter a escalada de violência contra as populações pobres, periféricas e negras, combinado com medidas para dar fim à denominada "guerra às drogas"

xii/retomar a política externa altiva e ativa, com prioridade para a integração regional latino-americana e caribenha, para as relações com o continente africano, com o Oriente Médio e com os BRICS;

xiii/tomando como referência a resolução do 6º Congresso do PT, abrir o debate com a sociedade brasileira acerca da convocação de uma Assembleia Nacional Constituinte.

12.Consideramos que o debate programático é fundamental. Primeiro, para lembrar que nossa alternativa não consiste em tirar uma pessoa e colocar outra pessoa na presidência. Nossa alternativa consiste em mudar o programa que hoje é implementado por Bolsonaro e no passado recente foi implementado por Temer, FHC, Itamar e Collor. Segundo, para convocar o povo brasileiro para as batalhas que virão depois da eleição. Terceiro, para explicar por quais motivos não podemos ter um vice golpista e neoliberal. Nos opomos à proposta de indicar um vice golpista e neoliberal como Alckmin. Defendemos no primeiro turno alianças em torno do programa. E defendemos uma tática de mobilização de massas, não apenas para vencer as eleições, mas também para sustentar um governo disposto a fazer mudanças profundas e urgentes.

13.O Brasil está diante de uma encruzilhada histórica. Os neoliberais de Collor, os tucanos de FHC, o MDB de Temer e os bolsonaristas destruíram grande parte das empresas, instituições e politicas que permitiram ao país, ao longo de 50 anos, sair da condição de fazenda primário-exportadora e converter-se em uma potência industrial.

14.Décadas serão necessárias para reconstruir o que foi destruído. Acontece que para a classe capitalista não interessa nem mesmo “reconstruir”: os grandes capitalistas e seus porta-vozes, inclusive Alckmin – estão totalmente comprometidos com o programa neoliberal. Por outro lado, para a classe trabalhadora não basta “reconstruir”: precisamos construir outro tipo de instituições e outro tipo de desenvolvimento, vinculado à ampliação da igualdade, das liberdades, da soberania e da integração regional.

15.Para dar conta desta tarefa história, precisamos de líderes, mas acima de tudo precisamos de organizações coletivas: uma classe trabalhadora consciente, mobilizada e organizada, com sindicatos, movimentos e partidos, entre os quais se destaca – pelo que  fez e pelo que representa – o Partido dos Trabalhadores.

16.Também por isso nos opomos frontalmente a proposta de uma federação com o PSB. No dia 16 de dezembro, o Diretório Nacional do PT aceitou discutir o tema, mas sob condução da executiva nacional do Partido. Entretanto, a CEN não se reuniu uma  única vez desde então. As reuniões com o PSB e outros partidos ocorreram sem debate prévio nas instâncias partidárias. Não houve sequer um mísero informe, ao Diretório e a Executiva, acerca do que foi debatido. 

17.A resolução do TSE sobre o funcionamento da federação contém claúsulas que confirmam as preocupações dos que se opõem a firmar um acordo por 4 anos, com efeitos no plano nacional, nos estados e nos municípios, com um partido como o PSB, que apoiou Aécio Neves em 2014, votou a favor do golpe em 2016, não esteve oficialmente conosco no primeiro turno de 2018 e cuja bancada atual contém um grande número de parlamentares que votam sistematicamente contra os interesses populares.

18.O PT não é e nunca foi refratário a fazer alianças com outras forças políticas. Mas não está disposto a sacrificar sua autonomia e independência, compondo por 4 anos uma federação partidária, com programa, estatutos e direção definidas às pressas.

19.Não se trata apenas de um tema eleitoral; trata-se da natureza e do papel do próprio PT. Também por isso, seguiremos denunciando e lutando contra os que buscam converter o PT em um partido tradicional, com finanças totalmente dependentes do fundo público, dirigido por parlamentares e governantes, onde a militância é tratada como eleitorado. Os diversos casos de infidelidade partidária cometidos em 2020, sobre os quais as instâncias respectivas procrastinam, e o escandaloso voto de um senador do Partido a favor do "orçamento secreto" constituem exemplos de uma degeneração que, se não for detida, ameaça a sobrevivência do Partido. 

20.Nesse mesmo espírito exigimos consulta às bases. Uma decisão transcendental como a federação - bem como a decisão sobre a vice - não podem ser tomadas apenas pelo Diretório Nacional do partido. Um congresso partidário precisa ser realizado.

21.Em 2022 vamos comemorar 200 anos de luta democrática e popular pela independência. Hoje, mais do que nunca, fica evidente que para um país como o nosso, a soberania, a democracia e o bem estar-social estão totalmente vinculados a construção de uma nova ordem social, econômica, política e cultural. Uma ordem em que a classe trabalhadora seja dona do país que constrói com seu esforço diário. Uma ordem socialista.

Viva o PT!

Fora Bolsonaro e todos os neoliberais!

Lula presidente!

sexta-feira, 28 de janeiro de 2022

Contribuição ao debate do PT Campinas sobre as federações

Hoje 28 de janeiro vai ocorrer um debate, organizado pelo PT Campinas, sobre o tema “federações partidárias”.

Para fazer este debate, é fundamental conhecer i/ a lei que criou as “federações” e ii/ a regulamentação aprovada pelo TSE.

A lei nº 14.208, de 28 de setembro de 2021 diz o seguinte:

Art. 11-A. Dois ou mais partidos políticos poderão reunir-se em federação, a qual, após sua constituição e respectivo registro perante o Tribunal Superior Eleitoral, atuará como se fosse uma única agremiação partidária.

§ 1º Aplicam-se à federação de partidos todas as normas que regem o funcionamento parlamentar e a fidelidade partidária.

§ 2º Assegura-se a preservação da identidade e da autonomia dos partidos integrantes de federação.

Alguém pode perguntar: como pode ao mesmo tempo “atuar como se fosse  uma única agremiação” e “preservar a identidade e autonomia dos partidos integrantes”.

Este problema é o grande nó prático de uma federação. E no fundo revela a intenção real de alguns dos defensores da federação: manter a coligação, com nova fachada.

O PT, é bom lembrar, trabalhou pelo fim das coligações. 

Voltemos à lei: ela diz ainda o seguinte: II – os partidos reunidos em federação deverão permanecer a ela filiados por, no mínimo, 4 (quatro) anos.

Se não der certo, problemas, pois a lei diz: § 4º O descumprimento do disposto no inciso II do § 3º deste artigo acarretará ao partido vedação de ingressar em federação, de celebrar coligação nas 2 (duas) eleições seguintes e, até completar o prazo mínimo remanescente, de utilizar o fundo partidário.

Tem gente no PT dizendo: fazemos uma federação agora e depois mudamos a lei. De fato, sempre é possível mudar a lei, mas contar com isso é um alto risco. Além de revelar o desejo oculto de alguns: fazer uma coligação, com outro nome.

A lei diz também o seguinte: a decisão de integrar uma federação deve ser tomada pela maioria absoluta dos votos dos órgãos de deliberação nacional de cada um dos partidos integrantes da federação.

No PT está se considerando tomar esta decisão em uma reunião do Diretório Nacional. Ou seja: uma decisão que afetará a vida do Partido em cada município do país será adotada pelo DN, com pouquissimo debate.

A lei diz ser necessário um “programa” e “estatuto comuns da federação constituída” e também “ata de eleição do órgão de direção nacional da federação”.

O tal estatuto “definirá as regras para a composição da lista da federação para as eleições proporcionais”.

Fácil, certo? 

Definir em alguns meses (março de 2022, pelo menos hoje a data é essa) um programa, um estatuto, uma direção e regras para compor chapas de candidaturas.

Detalhe: § 8º Aplicam-se à federação de partidos todas as normas que regem as atividades dos partidos políticos no que diz respeito às eleições, inclusive no que se refere à escolha e registro de candidatos para as eleições majoritárias e proporcionais, à arrecadação e aplicação de recursos em campanhas eleitorais, à propaganda eleitoral, à contagem de votos, à obtenção de cadeiras, à prestação de contas e à convocação de suplentes.

Veremos mais adiante que este item resulta em problemas graves.

Como se pode perceber, há muitas lacunas e contradições e insuficiências na lei.

E por isso o TSE aprovou uma “regulamentação”.

Isto em si é algo muito grave, pois na prática o TSE assumiu as vestes de legislador, mais um passo no sentido de judicializar a política.

Exemplo: “9. A necessidade de fixação de marco temporal uniforme para habilitar partidos e federações a participar do pleito motivou, ainda, decisão por mim proferida em 08.12.2021, na ADI nº 7.021, em que deferi parcialmente a cautelar requerida, apenas para adequar o prazo para constituição e registro das federações partidárias e, nesse sentido: (i) suspender o inciso III do § 3º do art. 11-A da Lei nº 9.096/1995 e o parágrafo único do art. 6ºA da Lei nº 9.504/1997, com a redação dada pela Lei nº 14.208/2021, bem como (ii) conferir interpretação conforme a Constituição ao caput do art. 11-A da Lei nº 9.096/1995, de modo a exigir que, “para participar das eleições, as federações estejam constituídas como pessoa jurídica e obtenham o registro de seu estatuto perante o Tribunal Superior Eleitoral no mesmo prazo aplicável aos partidos políticos”.

“Suspender o inciso”...

O texto do TSE afirma ainda: “Segundo o caput do novo art. 11-A da Lei nº 9.096/1995, ‘dois ou mais partidos políticos poderão reunir-se em federação, a qual, após sua constituição e respectivo registro perante o Tribunal Superior Eleitoral, atuará como se fosse uma única agremiação partidária’. Compete ao TSE, portanto, regulamentar o registro das federações e tratar de aspectos práticos indispensáveis para operacionalizar sua atuação”.

Vejam a sutileza: a lei fala que cabe ao TSE fazer o registro e o TSE interpreta isto como o poder de regulamentar o registro e também como o poder de ”tratar de aspectos práticos indispensáveis para operacionalizar sua atuação".

Os aspectos práticos citados pelo TSE são:  (i) o procedimento de registro das federações, após registro civil como associação e obtenção de CNPJ; (ii) as regras mínimas relativas à estrutura da federação; (iii) a harmonização entre a atuação unificada da federação e a preservação da autonomia dos partidos políticos que a compõem; e (iv) a vigência, que será por prazo indeterminado, e os efeitos do desligamento precoce e da extinção das federações.

Por óbvio, as “regras mínimas” e a “harmonização” são aspectos políticos. 

A verdade é: o TSE usurpou para si o papel de legislar sobre “questões de grande relevo, como a preservação da autonomia partidária e o impacto das federações sobre a cláusula de desempenho, bem como questões do cotidiano da nova entidade, como a indicação de delegados e a facultatividade do registro de órgãos estaduais, distritais e municipais”.

Entre os aspectos práticos propriamente ditos, há um muito importante: “somente participarão das eleições as federações que tenham registro deferido até 6 meses antes do pleito”. 

Como o primeiro turno é no dia 2 de outubro, seis meses antes é 2 de abril. E como o TSE tem que reconhecer a federação, na prática é como se as federações tivessem que se registrar, digamos, até o dia 1 de março.

Prazos curtíssimos, para uma decisão tão impactante.

O TSE também alerta para o seguinte: “o partido que transferir recursos públicos a outro da mesma federação poderá ter suas contas desaprovadas em razão da aplicação irregular desses recursos, o que tornará inócua eventual utilização de uma das agremiações como intermediária para a prática de irregularidades”.

Ou seja: depois de muito lutar para que o TSE não aplicasse, ao DN, as responsabilidades por atos cometidos pelos diretórios estaduais e diretórios municipais do próprio Partido, estaremos agora diante de uma situação ainda pior: poderemos ser responsabilizados por atos cometidos por outros partidos!!!

Mas ainda bem que só faremos federação com partidos 100% cumpridores da lei, como é o caso do PSB de Campinas!!

Isto posto, vejamos algumas outras armadilhas:

(....)  A federação deverá ser previamente constituída sob a forma de associação, devidamente registrada no cartório competente do Registro Civil das Pessoas Jurídicas do local de sua sede. Adquirida sua personalidade jurídica, a federação apresentará seu pedido de registro ao Tribunal Superior Eleitoral, instruído com os seguintes documentos:

I – a respectiva certidão do Registro Civil de Pessoas Jurídicas;

II – o seu número de inscrição no Cadastro Nacional de Pessoas Jurídicas (CNPJ);

III – cópia da resolução tomada pela maioria absoluta dos votos dos órgãos de deliberação nacional de cada um dos partidos integrantes da federação;

IV – exemplar autenticado do inteiro teor do programa e do estatuto comuns da federação constituída, inscritos no cartório competente do Registro Civil das Pessoas Jurídicas;

V – ata de eleição do órgão de direção nacional da federação; e

VI – endereço e telefone de sua sede e de seus dirigentes nacionais, bem como endereço eletrônico para recebimento de comunicações.

Parágrafo único. O estatuto de que trata o inciso IV deste artigo deverá conter regras para a composição de listas para as eleições proporcionais, que vinculará a escolha de candidatos da federação em todos os níveis (Lei nº 9.096/1995, art. 11-A, § 7º).

Art. 3º O pedido será autuado na classe Registro de Federação Partidária (RFP) e distribuído a um relator ou a uma relatora (....)

Seguem-se então os prazos para recursos, oitivas etc.

E aí o caso será levado para “julgamento perante o plenário do Tribunal”.

Se deferido o registro da federação, os partidos que compõem a federação passarão a atuar, em todos os níveis, de forma unificada.

Em todos os níveis: federal, estadual e municipal.

Portanto, embora não seja obrigatório, podem existir direções também estaduais e municipais, bem como regras para compor as respectivas listas de candidaturas etc.

Diz a resolução: “Art. 9º Nos estados, no Distrito Federal e nos municípios, o funcionamento da federação não dependerá de constituição de órgãos próprios, bastando que exista, na localidade, órgão partidário de algum dos partidos que a compõem. Parágrafo único. Havendo a constituição de órgão estadual, distrital ou municipal da federação, é facultada sua anotação no SGIP, bem como o credenciamento de delegados, em número equivalente ao dos partidos políticos”.

Entretanto, salvo se a escolha e o registro de candidaturas municipais e estaduais passarem a ser feitas pela direção nacional da federação, é bastante provável a constituição de direções estaduais e municipais da federação.

Ao mesmo tempo, a resolução do TSE diz o seguinte: Art. 5º O disposto no art. 4º não afeta a identidade e a autonomia dos partidos integrantes da federação, os quais conservarão:

I - seu nome, sigla e número próprios, inexistindo atribuição de número à federação;

II – seu quadro de filiados;

III – o direito ao recebimento direto dos repasses do Fundo Partidário e do Fundo Especial de Financiamento de Campanhas, na forma da lei;

IV – o dever de prestar contas; e

V – a responsabilidade pelos recolhimentos e sanções que lhes sejam imputados por decisão judicial.

Entretanto, como já foi explicado, os partidos que integram a federação podem ser responsabilizados por atos cometidos pelos outros.

Além disso, tem um detalhe: “§ 5º Extinta a federação, cessará imediatamente o efeito previsto no § 1º do art. 4º desta Resolução, devendo-se proceder a novo cálculo para a distribuição do Fundo Partidário conforme a cláusula de desempenho em vigor”.

Também está decidido o seguinte: “A federação vigorará por prazo indeterminado, devendo os partidos políticos nela permanecer por, no mínimo, 4 (quatro) anos, contados da data de seu ingresso”

Fora disto, para entrar ou para sair, é preciso o “deferimento do pedido pelo Tribunal Superior Eleitoral”.

E mesmo se houver deferimento, o artigo 7º diz assim: “O partido que se desligar da federação antes do tempo mínimo previsto no caput do art. 6º desta Resolução ficará sujeito à vedação de ingressar em federação, de celebrar coligação nas 2 (duas) eleições seguintes e, até completar o prazo mínimo remanescente, de utilizar o fundo partidário”.

Ou seja: a história segundo a qual se não der certo, depois a gente pede para mudar a lei, é uma operação de altíssimo risco. Se não der certo, estaremos amarrados.

A resolução do TSE afirma o seguinte: “Art. 11. As controvérsias entre os partidos políticos relativas ao funcionamento da federação constituem matéria interna corporis, de competência da justiça comum, ressalvada a competência da Justiça Eleitoral para dirimir questões relativas ao registro da federação e das alterações previstas nos arts. 6º e 7º desta Resolução ou que impactem diretamente no processo eleitoral”.

Vejam só: as “controvérsias” serão assunto de competência da justiça comum!

Cabendo a justiça eleitoral interferir “apenas” nos assuntos “que impactem diretamente no processo eleitoral”.

No PT, travamos uma batalha cotidiana com o objetivo de não levar assuntos internos para a justiça. E salvo raríssimas exceções, conseguimos isso. 

Alguém tem dúvida acerca do que irá acontecer numa federação? E não será apenas por motivos políticos, mas também criminais, como se pode depreender do já comentado artigo 12 da resolução do TSE:

“II – Havendo transferência de recursos oriundos do FEFC ou do Fundo Partidário entre os partidos que integram a federação, a desaprovação das contas do partido beneficiado, quando decorrente de irregularidades na aplicação daqueles recursos na campanha, acarretará a desaprovação das contas do partido doador”.

Por fim, pergunto:

1/o PT precisa fazer parte de uma federação?

2/em caso positivo, será possível - nos prazos e nos termos estabelecidos legalmente - organizar uma federação com implicações sobre 2022 e sobre 2024, em todos os estados e municípios?

3/em caso positivo, o PSB é um parceiro idôneo para este projeto?

4/em caso positivo, uma decisão desta magnitude pode ser adotada pelo DN? E pode estar sendo negociada sem nem ao menos o DN e a CEN estarem conduzindo as negociações?

A respeito deste tema das negociações, sugiro ler: https://www.pagina13.org.br/as-instancias-nacionais-do-pt-foram-postas-de-quarentena/

Isto tudo posto, algumas opiniões:

i/o PT não precisa de uma federação;

-os partidos que precisam de uma federação são aqueles cujo desempenho eleitoral nas eleições proporcionais é muito baixo

ii/a candidatura Lula não precisa de uma federação

-a candidatura Lula precisa de partidos coligados na campanha majoritária

-isso pode ser conseguido sem federação

-o PSB faz chantagem ao dizer que só vai apoiar Lula se tiver federação

-fazer uma federação sem precisar e com quem te chantageia é duplamente errado

iii/o governo Lula não precisa de uma federação

-precisamos de uma base de apoio no Congresso

-mesmo se houver uma federação, ela não vai eleger 50% mais 1 do Congresso

-e a julgar pela composição atual do PSB (e levando em consideração a migração tucana para este partido) e também considerando as dificuldades na gestão da “minoria” no atual congresso nacional, não há nenhum sinal de que uma federação vá tornar mais fácil a nossa vida no Congresso

iv/se for para fazer federação, tem que ser com base em identidade programática e isto não existe entre o PT e o PSB, nem no plano nacional, nem na maioria dos estados e municípios do país

v/uma federação – nos termos postos, não falando em tese, não pensando em termos ideais, mas levando em consideração a federação que está sendo negociada – vai ter todos os defeitos de uma coligação e não vai ter a única qualidade

-defeitos: vamos transferir votos do PT para os partidos federados e ainda vamos pagar a conta

-a qualidade: as coligações acabavam ao término das eleições. A federação dura no mínimo 4 anos.

Sobre Campinas:

1/já imaginaram termos o PSB de Campinas como partido federado?

2/para além do problema político, temos um problema eleitoral

-como demonstrou o Adriano Bueno, se tivesse havido federação em 2020, teríamos eleito menos vereadores petistas

-ler o texto do Adriano Bueno: 

https://www.pagina13.org.br/voce-troca-2-vereadores-do-pt-por-3-do-psb-em-campinas-nao/

Um resumo do texto:

Como seriam as eleições municipais de 2020 em Campinas se a federação PT/PSB/PCdoB estivesse valendo?

No processo eleitoral de 2020 em Campinas o PT elegeu 3 vereadores, o PSB elegeu 4 e o PCdoB elegeu 1

Se PT, PSB e PCdoB estivessem concorrendo como uma federação, o resultado seria bem outro, conforme a tabela abaixo. Seriam 7 vereadores do PSB, 1 do PT e 1 do PCdoB.

Ou seja: de modo geral, a federação elegeria 9 vereadores, 1 a mais do que a simples soma dos três partidos sem a federação (8 vereadores). Mas o PT perderia 2 vereadores e o PSB ganharia 3 (O PL também perderia 1).

3/tem gente que defende a federação “em tese”. Em tese, uma federação com partidos de esquerda poderia ser legal. Mas não é isso que está sendo debatido.

Por fim, por fim mesmo: um dos efeitos da federação é reduzir a renovação interna de nossos mandatários. Pois os partidos vão tender, naturalmente, a fortalecer ainda mais os puxadores de voto, para evitar vazamento de votos em direção aos demais partidos federados.

Resumo da ópera: por diversos motivos, programáticos, pragmáticos, eleitorais e estratégicos, esta federação realmente existente é um péssimo negócio para o PT.

 

Seguem minhas respostas para as tuas perguntas

Abaixo, diálogo mantido ontem com uma militante do PT.

“-Valter, voce leu o noticiário sobre a federação?”

Sim, li.

“Aquilo tudo é verdade?”

Não sei dizer. Recebi informações diferentes a respeito. Uma pessoa me disse que existe uma proposta de que certas decisões só poderão ser tomadas por maioria qualificada, ou seja, o PT pode ter 50% mais 1 da direção da tal Federação e na prática isto não significar nada. Outra pessoa que o clima nas reuniões está pesando, primeiro porque o PSB insiste em ter muitas candidaturas a governador e, em segundo lugar, porque tem um bando de tucano planejando vir para o PSB. 

"Tucanos no PSB?"

Sim, aparentemente não é apenas o Alckmin. Aliás, é engraçado. Na única vez que o DN debateu o assunto, um companheiro disse textualmente o seguinte: a Federação causaria uma depuração no PSB, levaria a direita do PSB a sair do Partido. Mas há sinais fortes de que vai acontecer o oposto. E isso terá impacto nas direções da Federação em âmbito estadual e municipal. Se o critério for o de número de parlamentares, o PT vai ficar totalmente minoritário.

“E o que pensa a direção do Partido sobre tudo isto?”

Olha, não sei dizer. A última reunião do DN do PT aconteceu em 16 de dezembro de 2021. Nunca mais o Diretório reuniu. E não houve nenhum informe oficial a respeito. A gente sabe o que sai na imprensa e o que ficamos sabendo por acaso.

“Mas a Comissão Executiva Nacional do PT está acompanhando o assunto, certo?”

Olha, a Executiva também não reúne faz bastante tempo. E até onde eu sei, também não houve nenhum informe a respeito para a executiva. Nem informe, nem consulta, nada.

“Mas existe uma comissão designada para tratar do assunto?”

Olha, há controvérsias. Perguntei a respeito, me disseram que existiria uma comissão designada pelo Diretório. Eu estava na tal reunião do Diretório e não me lembro de ter sido designada comissão alguma. Mas sabe como é, essas reuniões virtuais são fogo, a gente as vezes deixa escapar decisões importantes. Assim pedi que me enviassem a ata da reunião do DN, onde certamente está a nominata de tal comissão.

“E o que diz a ata?”

Não sei, não recebi ainda, estou esperando. Mas o fato é: mesmo que exista uma comissão, desde 16 de dezembro de 2021 ela não informa nada a respeito do assunto, nem para o Diretório, nem para a Executiva. Ou seja: tem um grupo de dirigentes tratando com outros partidos acerca do futuro do PT pelos próximos 4 anos e a direção do Partido está sendo informada pela imprensa. O presidente do PSB sabe mais a respeito do que ocorre nestas reuniões, do que os dirigentes do PT.

“O presidente do PSB?”

Sim, o Carlos Siqueira, aquele que foi apoiar o Aécio Neves no segundo turno de 2014. Aliás, é engraçado: quando estávamos fracos, este grupo do Siqueira ajudou a pisotear o PT, por exemplo votando a favor do impeachment, impondo condições em 2018 etc. Mas agora que  PT está se recuperando, este grupo recebe tratamento vip.

“Mas afinal, o que vai acontecer?”

Em algum momento o assunto vai ter que ser debatido e votado oficialmente pelo DN do PT. E espero que nessa hora se constitua uma maioria no DN contrária a firmar essa federação, especialmente neste momento. Podemos ter coligação majoritária em 2022 e ano que voltamos a conversar sobre o assunto. E até lá precisamos alertar as pessoas acerca desta política de "fato consumado". As instâncias dirigentes nacionais do Partido não estão sendo informadas, nem estão orientando esta "negociação" relatada pela imprensa.  


ps. depois de postar este texto, localizei a resolução sobre as federações e lá está dito o seguinte acerca das negociações com os demais partidos sobre a Federação: "cabendo à Comissão Executiva Nacional do Partido conduzir este processo de diálogo para posterior decisão do DN".” Portanto, segundo a resolução do DN, a CEN deve "conduzir" o processo. Isto é diferente de ser informada posteriormente. Com comissão ou sem comissão - sigo aguardando a ata da reunião onde teria sido supostamente aprovada a tal comissão - o processo de negociação está sendo conduzido de maneira bem diferente do aprovado pelo Diretório Nacional.

quarta-feira, 26 de janeiro de 2022

Lula, Dilma e a (im)paciência

Recomendo a todo mundo ouvir a entrevista dada por Lula hoje, 26 de janeiro, à rádio CBN do Vale do Paraíba.

A entrevista pode ser ouvida neste link:

https://youtu.be/phsLZpGTrPQ

A entrevista – pela forma e pelo conteúdo – confirma os motivos pelos quais muita gente vai votar em Lula, eu inclusive.

Isto posto, há três passagens da entrevista que me chamaram a atenção.

A primeira delas é o que Lula fala sobre Alckmin.

Podemos ou não concordar com entregar a vice para Alckmin (eu não concordo).

Mas a maneira como Lula aborda o assunto na entrevista para a CBN “valoriza” excessivamente o “passe” do cidadão.

Se foi essa a intenção, seria na minha opinião um duplo erro. 

Outra passagem que me chamou a atenção é sobre como enfrentar o desemprego.

Lula disse  que fará de tudo para acabar com o desemprego.

Menos, segundo entendi, fazer um “plano emergencial para gerar emprego”.

Nesse caso, o ritmo de geração de empregos dependeria excessivamente dos “mercados”, cabendo ao governo criar o ambiente, estimular e até financiar.

A prudência indica o contrário: o tema da fome e do desemprego precisam ter solução muito veloz e só a ação direta do Estado pode garantir isso.

A terceira passagem da entrevista que me chamou a atenção foi sobre Dilma.

O tema tem vários aspectos, vou me limitar a um.

Em meio a vários elogios à companheira Dilma, Lula diz o seguinte: “Aonde que a companheira Dilma, na minha opinião, erra? É na política. Ela não tem a paciência que a política exige que a gente tenha para conversar, para ouvir as pessoas dizerem não, para atender as pessoas mesmo quando você não gosta do que elas estão falando.”

Eu nunca trabalhei nem com Lula, nem com Dilma, então não tenho tantos elementos pessoais para opinar. Mas já ouvi inúmeros relatos a respeito dos respectivos estilos. 

E a conclusão que tiro destes relatos e da fala de Lula acerca do que ele considera "erro" - a falta de paciência de Dilma - é a seguinte: não importa como a gente aja, não importa se somos simpáticos ou antipáticos, se somos pacientes ou impacientes, a classe dominante passa a régua.

Dilma foi presa durante a ditadura militar.

Lula também foi preso durante a ditadura.

E Lula foi preso durante a "democracia".

Portanto, não é exatamente com "paciência" e "conversa" que se consegue resolver determinados problemas.


 

 

 

domingo, 23 de janeiro de 2022

Reflexões decorrentes do encontro de Lula com FHC

Os recentes encontros de Lula com Aloysio Nunes e com Fernando Henrique Cardoso não deveriam surpreender ninguém: fazem parte da aposta na “frente ampla”, que por sua vez decorre da opção por insistir na estratégia adotada pelo Partido entre 1995 e 2015. 

Aliás, exceto por pudor, a lógica desta política conduz a também incluir no “mutirão para governar” o senhor Michel Temer, por sinal muito mais influente no parlamento do que certos tucanos.

Tampouco deveriam ser motivo de surpresa as seguidas afirmações feitas por Lula, segundo as quais ainda não é candidato e que a palavra final caberá ao Partido. 

A “surpresa” manifesta por alguns deve-se, acho eu, às citadas afirmações parecerem desnecessárias e até contraditórias com o amplo apoio que as posições defendidas por Lula parecem receber do eleitorado e da militância da esquerda.

Este apoio resulta, acho, de quatro motivos combinados.

O primeiro deles é Bolsonaro: para muita gente, todo preço é barato se o resultado for tirar o cavernícola. Por isso, atrair desde já setores de centro e direita para ser bônus sem ônus.

O segundo motivo é a incerteza sobre o que fará a extrema-direita: apesar das pesquisas ou por causa delas, todos sabem que a eleição não será um passeio, governar muito menos. Por isso, muita gente acha recomendável a mais ampla aliança.

O terceiro motivo é o tamanho da destruição e a imensidade dos problemas econômicos, sociais, políticos e culturais. Isto conduz grande parte da esquerda a não se preocupar muito com as concessões programáticas: a lógica gradualista recomenda reconstruir primeiro, para depois tentar transformar.

O quarto motivo é que, apesar de todas as alianças e concessões, na cabeça do processo estará o Lula, que dispõe de enorme crédito de confiança em amplos setores da esquerda. Soluções como “Alckmin vice” não estariam sobre a mesa, nem seriam toleradas por muita gente, se o candidato fosse outra pessoa.

Mas se é assim, por qual motivo Lula fala que ainda não é candidato e que a palavra final caberá ao Partido? 

Seria um excessivo cuidado com as formas e com a legalidade? 

Ou seria um “recado” (palavra adorada por certos jornalistas, Freud explica) do tipo “se me querem, terá que ser nestes termos”?

Na minha opinião, olhando de longe e sem ter nenhuma informação privilegiada, arrisco uma outra interpretação, vinculada ao que vou chamar de calcanhar de Aquiles da coisa toda.

O caso é: a estratégia adotada pelo PT entre 1995 e 2015 demonstrou seus êxitos e debilidades. 

Os êxitos nos fizeram vencer 4 eleições presidenciais seguidas. 

As debilidades nos impediram de derrotar o golpe de 2016 e o resto da história todos sabemos. 

Hoje, a opção de Lula e de parcela majoritária da atual direção nacional do PT é por repetir a estratégia adotada entre 1995 e 2015, mas há três agravantes ou complicadores. 

O primeiro deles é a situação objetiva (mundial e nacional), bem pior do que em 2002. 

O segundo deles é a crescente aproximação com aqueles contra os quais disputamos entre 1995 e 2005: os tucanos. 

Na prática, Lula está assumindo as vestes de Tancredo, que por sinal foi buscar Sarney para ser vice da Aliança Democrática. 

O terceiro agravante é a extrema dependência de toda esta estratégia em relação a pessoa física do próprio Lula.

Este terceiro agravante ou complicador não é segredo. Por exemplo, na coletiva de Lula à parte da chamada mídia independente o jornalista Nassif aludiu ao fato: se atentarem contra a vida de Lula, Alckmin assumiria.

Proponho, entretanto, fazer o exercício oposto ao proposto por Nassif: submeter a estratégia a um estresse positivo. 

Explico: vamos imaginar que Alckmin vira vice, Lula vence as eleições, o governo toma posse, nomeia um ministério amplo (inclusive com ministros tucanos), a reconstrução segue seu curso, Lula é candidato à reeleição em 2026, vence novamente as eleições etc.

E depois?

Nesta hipótese do "tudo dando certo, o “depois” dependerá de múltiplas variáveis. 

Algumas são impossíveis de prever, outras não estão sob nosso controle. 

Mas há uma variável que a vida já demonstrou ser previsível, estar sob nosso controle e jogar papel decisivo: o Partido (ou, numa chave mais ampla, a esquerda partidária e social como um todo).

A estratégia adotada entre 1995 e 2015 fortaleceu o Partido até o momento em que viramos governo; depois o Partido se enfraqueceu continuamente, em todos os terrenos. 

Não apenas o Partido no sentido estrito, mas o partido no sentido histórico da palavra se enfraqueceu muito a partir de 2003: movimentos populares, sindicatos etc.

Hoje o Partido no sentido estrito está em vias de se recuperar eleitoralmente, mas do ponto de vista mais amplo estamos mais frágeis do que éramos em 2002.

Pois bem: mesmo que tudo “dê certo”, a opção pela estratégia de frente ampla em 2022 vai submeter o Partido, a partir de 2023, a dificuldades e tensões maiores do que as vividas entre 2003 e 2015. 

Inclusive porque já sabemos - a partir da experiência pós 2003 - que a vida do povo pode melhorar, mas o Partido e a esquerda podem se enfraquecer.

Minha impressão é que – exatamente por saber disto – o cidadão Lula está deixando claro ao PT que, se aceitar o curso proposto por ele, deve assumir as responsabilidades pelas consequências e riscos derivados. 

Noutras palavras: tenham consciência das implicações e riscos de médio prazo mesmo no caso de tudo "dar certo"; e não venham depois dizer que o Lula não "sabe o que faz". 

Se o próximo governo de Lula for bem mais amplo que o PT, se existir uma aliança com setores da direita, se por conta disso o programa de governo for em maior ou menor medida social-liberal, é preciso que o PT preserve sua condição de partido de esquerda, preserve sua capacidade de não apenas defender o governo contra a extrema-direita, mas também sua capacidade de seguir lutando e pressionando em defesa das posições da classe trabalhadora.

Moral da história: mesmo nos marcos da estratégia de frente ampla - com a qual não estou de acordo (por razões eleitorais, programáticas e estratégicas) - acho uma absurda temeridade entregar a vice para Alckmin e acho outra absurda temeridade enfiar o PT numa federação com o PSB

Estas duas opções são totalmente desnecessárias para a tal “frente ampla” e tornarão muito mais difíceis as coisas para o PT.

Infelizmente, quem entrou na “vibe” de "virar a página do golpe" pode acabar cometendo este tipo de temeridade, Temer inclusive.

Falta moderação na moderação!


 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

sábado, 22 de janeiro de 2022

Helena Chagas e o velho sonho de “enquadrar” o PT

É visível o entusiasmo de setores da “mídia independente” com a possível chapa Lula-Alckmin.

Até aí, tudo bem.

 O debate é livre e cada um apoia o que considera justo.

O problema é quando aparecem comportamentos muito parecidos com os da mídia oligopolista.

Por exemplo: esconder ou minimizar Pinheirinho e a responsabilidade de Alckmin no ocorrido.

Me lembra a tentativa de isentar Geisel e outros das responsabilidades pelas torturas, assassinatos e desparecimento de cadáveres.

Tudo seria obra dos “porões”.

A realidade era outra: como o próprio Geisel admitiu em entrevista, a tortura era uma política de Estado e administrada pela mais alta cúpula do governo militar, reconhecimento que deixou chocados algumas pessoas que acreditavam sinceramente no “estadista”.

Talvez chegue o dia em que Alckmin abra seu armário e revele do que é capaz um tucano “leal” e de “boa índole” (adjetivos do Nassif, não meus).

Aí será difícil esconder ou minimizar as afirmações contidas num documento de 88 páginas - disponível na internet – intitulado Denúncia do “Massacre do Pinheirinho” à Comissão Interamericana de Direitos Humanos da OEA”.

O documento é datado de 22 de junho de 2012 e tem como requerentes, entre outros, Fabio Konder Comparato, Cezar Britto e Dalmo de Abreu Dallari.

A lista de autoridades responsáveis pelas violações é encabeçada pelo então Governador do Estado de São Paulo, Geraldo Alckmin.

Os fatos incluem a violenta desocupação e remoção de 1.659 famílias, ocorrida na madrugada de um domingo, dia 22 de janeiro de 2012.

Participaram mais de 2 mil policiais.

Diz o citado documento: “Cerca de 6 mil pessoas foram tratadas como animais, arrancadas de suas moradias e lançadas em abrigos coletivos improvisados. Durante a desocupação, dentro dos abrigos, os moradores ainda recebiam pancadas, eram vítimas de policiais armados, de balas de borracha e bombas de gás. Ambulâncias saiam do local carregando feridos, inclusive crianças vítimas dos gases e bombas de efeito moral. As balas e bombas eram lançadas em todos os bairros contíguos ao terreno, atingindo pessoas e residências. Mesmo após a desocupação, durante a noite, a Polícia Militar ainda atirava bombas de gás dentro do pátio da Igreja, onde se resguardavam moradores que não quiseram ficar nos abrigos. Os advogados não puderam acompanhar os atos da desocupação, inobstante sua natureza judicial. Alguns levaram tiros com balas de borracha, como o advogado Antônio Donizete Ferreira, atingido nas costas, joelho e virilha por balas de borracha. Membros da Defensoria Pública, órgão estatal responsável pela assistência jurídica aos necessitados, foram impedidos militarmente de acompanhar o cumprimento da ordem. A imprensa também não pode acompanhar o procedimento policial”.

Incrivelmente, alguns advogados e jornalistas – dez anos depois – passam o pano no ocorrido e cobrem Alckmin de elogios. Há quem o considere, inclusive, aliado contra o fascismo.

A esse respeito, a denúncia encaminhada à OEA dizia: “Pode-se comparar a operação policial, em sua brutalidade e selvageria, a um “pogrom”, ou à Noite dos Cristais na Alemanha nazista, que destruiu milhares de propriedades, casas e templos da comunidade judaica em 1938. Na comunidade do Pinheirinho, no Brasil de 2012, no entanto, o motivo não foi o ódio étnico. Foi o alegado direito de propriedade, reputado absoluto pelo Judiciário e imposto ao custo de indizível sofrimento de toda uma população”.

O Relatório encaminhado à OEA resume assim a violência do ato de desocupação, com base em 634 entrevistas com as vítimas:

 - Ameaças e humilhações: 260 denúncias

 - Consequências do uso de armamentos: 248 denúncias

 - Pouco tempo para recolher bens: 225 denúncias

 - Casa demolida sem a respectiva retirada de bens: 205 denúncias

 - Expulsão/ordem para sair de casa: 179 denúncias

 - Agressão física – 166 denúncias

 - Perda de emprego/impedimento de renda: 80 denúncias

 - Dificuldade/impedimento de livre circulação: 77 denúncias

 - Abrigos em situação de insalubridade: 73 denúncias

 - Casas saqueadas: 71 denúncias

 - Ameaças mediante armamentos: 67 denúncias

 - Falta de orientação e de oferta de estrutura para retirar bens: 64 denúncias

 - Falta de assistência: 54 denúncias

 - Agressão/morticínio de animais: 33 denúncias

 - Separação de filhos e outros parentes – 10 denúncias

O relatório afirma ainda o seguinte: “Os governos estadual e municipal, ao mesmo tempo em que participavam da negociação para elaboração do Protocolo de Intenções visando regularizar a área, prepararam e executaram, traiçoeiramente, em atitude inaceitável para quem exerce munus público, a remoção dos 6 mil moradores. Note-se que a operação policial foi preparada durante 4 meses, e evidentemente jamais teria sido realizada sem autorização do governador do Estado, Geraldo Alckmin. Esta autoridade participava, por sua Secretaria de Estado da Habitação, ao mesmo tempo, das negociações para regularizar o terreno e da preparação da operação de remoção abrupta dos moradores, executada pela força policial que comanda.

Esses são os fatos.

Passa o pano em Alckmin quem gosta ou quem quer. Mas não argumentem ignorância sobre do que é capaz um “homem de bem” (aliás, li em algum lugar que “Cidadãos de Bem” era o nome do jornal da Ku Klux Klan).

Isto posto, recomendo a leitura do texto de Helena Chagas, publicado no dia 19 de janeiro de 2022 pelo Brasil 247 e intitulado “Lula aliancista enquadra PT, acena a militares e acalma o centro”.

O texto pode ser achado no seguinte endereço:

https://www.brasil247.com/blog/lula-aliancista-enquadra-pt-acena-a-militares-e-acalma-o-centro

O mais interessante do texto são os termos utilizados: “o recado serviu também ao público interno, os petistas que estão vindo a público detonar o entendimento, patrocinando até um abaixo assinado da militância contra Alckmin (...) Lula fez o que sempre faz nas divergências do PT: deixa todo mundo gritar, mas avisou que, uma vez tomada a decisão pelo partido, ela será seguida (...) Lula, que, a seu modo, acabou por enquadrar o partido (....) Lula acenou ao birrento PSB com a desistência das candidaturas de Humberto Costa, em Pernambuco, e de Fabiano Contarato, no Espírito Santo (....) Lula mandou mensagens a públicos variados, inclusive militares, a quem fez um gesto de paz. (....) Ao mercado financeiro, deu o duro recado de que não vai de forma alguma governar para eles e para as demais elites.  Mas no que interessa de verdade para esses setores, a sinalização foi positiva”.

Resumindo: os opositores da aliança com Alckmin “gritam” mas serão “enquadrados”; o PSB seria “birrento”; para os militares fala-se em “paz”; e aos empresários, um duro recado mas “sinalização positiva”.

Cada um interpreta como quer as opiniões de Lula. Algumas destas interpretações são projeção dos desejos e sonhos do respectivo intérprete. Todo mundo tem direito a ter sonhos, inclusive áulicos. Mas como todos os sonhos, sonhos são.

 

 

quinta-feira, 20 de janeiro de 2022

Paulo Teixeira e a admirável arte de “dourar a pílula”

Sou a favor de alianças.

E as vezes as alianças precisam ser amplas.

Mas tudo tem seu preço.

Este detalhe é simplesmente desconsiderado por parcela dos que defendem Alckmin na vice de Lula.

Para estas pessoas, Alckmin só traria benefícios, seria um bônus sem ônus.

Um exemplo disto é a entrevista concedida pelo companheiro Paulo Teixeira, atual secretário-geral nacional do PT, ao jornal Folha de S. Paulo (ver íntegra ao final).

A versão publicada da entrevista começa com Teixeira hierarquizando os temas: primeiro “construir a aliança para disputar a eleição e governar o Brasil”. Depois o programa de “reconstrução nacional” elaborado “pelo PT e os partidos aliados”. Terceiro, a formação de uma “federação com siglas como PSB, PC do B e PV, ainda que saibamos que as alianças que faremos não necessariamente estarão nesse formato”.

Paulo ressalta que a “definição da vaga de vice não deve preceder a esse roteiro”.

No mundo ideal é isto mesmo: primeiro o programa, depois a aliança, depois a vice. 

Mas no mundo real, não é este o roteiro atualmente em curso.

Paulo destaca, também, que a vice “não deve representar um rebaixamento programático, nada que comprometa ou prejudique o programa”. 

Idealmente, perfeito. 

Mas no mundo real, alguém acredita que a entrada de Alckmin na vice não vai comprometer o programa?

Interessada nisto, a Folha pergunta a Paulo: “A possibilidade de ser Alckmin o vice dialoga com o que o sr. propõe?” 

A resposta de Paulo é arrolar dois “critérios” para a escolha de um vice: “que não seja alguém do PT” e “que venha do Sudeste, para alcançar um eleitorado com perfil mais conservador”.

E arremata: “Cumpridos esses critérios, na minha opinião, o nome do Alckmin não pode sofrer qualquer restrição por parte do PT”.

Ou seja: o histórico e o programa defendido por Alckmin não fazem parte dos critérios.

Opção lógica para quem – além de acreditar por definição que a vice “não deve representar um rebaixamento programático, nada que comprometa ou prejudique o programa” – também afirma, ao final da entrevista, que “nossas divergências ficaram no passado”.

Acontece que as duas premissas são falsas.

Não é sério acreditar que Alckmin aceite ser vice sem interferir no programa.

E as divergências com os neoliberais (bolsonaristas ou não) continuam afetando o presente. Não são um assunto do passado.

É a própria Folha que lembre uma destas divergências, ao perguntar: “Vê Geraldo alinhado aos debates propostos pelo PT, por exemplo, em relação à reforma trabalhista?”

Teixeira responde assim: “O movimento que ele faz em direção à candidatura do Lula é também em direção a algo conhecido, já que todo o país conhece as posições do PT em relação aos principais assuntos. E, ao mesmo tempo que o nome dele entra no debate, temas fundamentais para o nosso projeto estão sendo discutidos sem que haja uma mudança nas agendas do PT”.

O nome desta resposta é tergiversação.

Afinal, é público e notório o desalinhamento total de Alckmin com as posições do PT, não apenas no tema da reforma trabalhista.

Sendo assim, só há duas possibilidades: i/ou bem se está acreditando que Alckmin aceitaria ser um vice decorativo, ii/ou bem se está evitando reconhecer e admitir o óbvio: toda aliança tem seu preço.

Aliás, se Alckmin viesse a ser apenas decorativo, então isso não seria suficiente para atrair o “eleitorado com perfil mais conservador”. 

Portanto, Teixeira está tergiversando, mas com bons propósitos: “dialogar com as preocupações trazidas por aqueles que resistem” ao nome de Alckmin.

Agradecendo a postura, reitero o argumento: o único jeito de Alckmin não implicar em rebaixamento programático é o rebaixamento ocorrer antes dele ser oficializado como vice. 

Mas aí sairíamos do reino da tergiversação e adentraríamos no império da hipocrisia.

Talvez um problema esteja na dificuldade que o próprio Paulo tem de chamar certas coisas pelo nome.

Por exemplo: ele afirma que essa aliança seria “democrática progressista”.

Chamar Alckmin de progressista e/ou de democrático na semana em que se comemoram os 10 anos de Pinheirinho é um escárnio.

Uma aliança com Alckmin, se vier a ocorrer, seria uma aliança com a direita não bolsonarista. 

E sobre isso há duas perguntas que precisam ser respondidas.

Uma pergunta é: uma aliança deste tipo iria mesmo, como afirma Paulo Teixeira, “criar uma onda no Brasil que possa levar [Lula] à vitória e afastar qualquer ameaça de ruptura com o sistema democrático que este presidente [Bolsonaro] representa”?

Outra pergunta é: quais impactos uma aliança deste tipo teria sobre a ação do futuro governo Lula?

Sobre a primeira pergunta, minha opinião é que não devemos apostar nossas fichas neste cavalo. 

O que pode criar uma “onda” capaz de levar Lula à vitória é o apoio nas camadas populares e nisso Alckmin não tem nada a contribuir, salvo negativamente. 

Além disso, constitui excesso de otimismo acreditar que o golpismo bolsonarista poderia ser debelado graças aos mesmos que abriram passo para Bolsonaro chegar onde chegou.

Pois nunca é demais lembrar: o golpe de 2016 e a Lavajato não foram obra de Bolsonaro. Foram obra da direita gourmet, Alckmin inclusive.

Vejamos agora como Teixeira responde a segunda pergunta, a saber, quais impactos uma aliança deste tipo teria sobre a ação do futuro governo Lula.

A pergunta acima é minha, não foi feita a Teixeira pela Folha, mas ao longo da entrevista ele relaciona vários itens que permitem construir, ao menos parcialmente, uma resposta: “oferecer oportunidades de trabalho, reduzir a desigualdade social, valorizar o salário-mínimo, fortalecer o SUS e a educação pública, cessar o desmatamento da Amazônia”; “valorizar o mundo do trabalho, rever o enfraquecimento sindical pela reforma trabalhista, fortalecer o salário-mínimo e enfrentar os temas da emergência climática, da fome, do desemprego e do baixo crescimento econômico”; “consolidação da escolha democrática feita na Constituição de 1988”, a “manutenção do pacto constitucional”; “dar todos os passos possíveis na direção de derrotar o bolsonarismo e o ultraliberalismo que está destruindo a economia brasileira”.

A relação acima tem detalhes curiosos (como “rever” ao invés de “revogar” a contrarreforma trabalhista), mas deixemos os detalhes de lado e vamos ao núcleo da polêmica, a saber: como derrotar o ultraliberalismo.

O ultraliberalismo de Guedes dá continuidade às políticas neoliberais de Temer, FHC e Collor.

Por esse motivo, aliás, os neoliberais votam como votam no Congresso nacional, apoiem ou não Bolsonaro. 

Portanto, se pretendemos derrotar não apenas Bolsonaro mas também suas políticas, será preciso enfrentar e derrotar não apenas a direita bolsonarista, mas também a direita neoliberal não bolsonarista.

E a pergunta é: Alckmin estaria disposto a participar disso? 

Ele está disposto a enfrentar a hegemonia do capital financeiro? Do agronegócio? Dos Estados Unidos?

Se alguém acredita que sim, por favor nos prove, pois não conhecemos nenhuma, absolutamente nenhuma, declaração ou atitude de Alckmin que apontem nesse sentido. 

Confrontado pela Folha sobre o passado de Alckmin, Paulo responde assim: “É inegável que nós estivemos em campos opostos com o PSDB, que fizemos uma dura oposição ao governo do Alckmin e que tivemos divergências ao longo das nossas histórias. Entretanto, nós temos hoje um governo que permite a morte de 620 mil brasileiras e brasileiros [por Covid], que destrói a Amazônia, que entrega o patrimônio nacional e que representa um risco de uma ruptura com o sistema democrático. Então, tenho que saudar o reencontro dessas forças para recuperar a escolha democrática da Constituição de 1988. As nossas divergências ficaram no passado. O que agora vai nos unir é derrotar este governo da destruição nacional e colocar no lugar o da reconstrução nacional”.

Ao contrário do que diz Paulo, nós não “estivemos em campos opostos”. PT e PSDB seguem em campos opostos ainda hoje. E Alckmin saiu do PSDB, mas o PSDB não saiu dele.

A postura do PSDB em relação ao governo Bolsonaro e suas políticas não é a mesma do PT. Basta lembrar do que Dória (candidato oficial) e Leite (candidato alternativo) fizeram em 2018 e praticaram nos últimos 3 anos. Sobre Alckmin, o que foi mesmo que ele disse e fez em relação a Bolsonaro, que justifique o consideramos como um “democrata”?

Sem falar que a destruição da Amazônia teve grande participação de Salles, ex-secretário privado de Alckmin e ex-secretário de meio ambiente de Alckmin.

Portanto, é falso dizer que “nossas divergências ficaram no passado”. Aliás, alguns porta-vozes do “mercado” defendem a aliança por entender que ela implicaria numa mudança da posição do PT. Nesse sentido, é sintomático que Paulo Teixeira fale em programa de “reconstrução” e não use o termo “reconstrução e transformação” (nome do documento aprovado pelo DN do PT). 

Mas mesmo que aceitássemos limitar nossa “missão” a “consolidação da escolha democrática feita na Constituição de 1988”, a “manutenção do pacto constitucional”, as divergências não desapareceriam. Basta lembrar que  nos marcos da Constituição, PT e PSDB polarizaram todas as eleições presidenciais entre 1994 e 2014. E em todas elas, Alckmin esteve do lado errado. O que mudou agora?

Assim, mesmo que admitíssemos – o que não é minha opinião – que ter Alckmin na vice ajudaria a “derrotar [o bolsonarismo]” e a “impedir um golpe”, ainda assim restaria o problema: com que programa vamos “conseguir governar o Brasil”? 

Teixeira dá uma resposta incrível, como se uma aliança desse tipo não tivesse preço, fosse só bônus, sem ônus algum.

A realidade é outra, bem diferente. Os defensores da aliança deveriam colocar sobre a mesa as concessões que pensam em fazer.

Isso seria intelectualmente mais respeitoso e políticamente mais responsável do que insistir nesta admirável arte de dourar a pílula.

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A entrevista de Teixeira aborda três outros assuntos (corrupção, Dilma e Haddad) que deixo para outra ocasião. Mas não tenho como não registrar imediatamente duas coisas, uma engraçada, outra triste.

A engraçada: ao falar do golpe contra Dilma, Teixeira evita falar de corda em casa de enforcado. Ele não cita o nome de Temer, um vice cujos predicados foram apresentados no passado com argumentos que lembram os utilizados hoje em favor de Alckmin.

A triste: Teixeira informa a existência de “entendimentos entre o França e o Haddad são o de que seria candidato aquele que estivesse mais bem colocado nas pesquisas, e o outro sairia ao Senado”. Espero ter entendido errado, pois desconheço que tais entendimentos – se existem – tenham sido aprovados pelo Partido.

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Segue a íntegra da entrevista comentada acima.


Folha de São Paulo

Mônica Bergamo é jornalista e colunista.

Eleições 2022

Alckmin como vice de Lula não muda programa do PT, diz secretário-geral do partido

Para Paulo Teixeira, debate sobre ex-tucano na chapa deve ocorrer sem interdições dentro da sigla

19.jan.2022 às 16h35

Joelmir Tavares

SÃO PAULO Favorável ao diálogo para o ex-tucano Geraldo Alckmin ser vice na chapa presidencial do petista Luiz Inácio Lula da Silva, o deputado federal e secretário-geral do PT, Paulo Teixeira (SP), adota postura pragmática e defende a composição, criticada por outros integrantes do partido.

"Ao mesmo tempo que o nome dele [Alckmin] entra no debate, temas fundamentais para o nosso projeto estão sendo discutidos sem que haja uma mudança nas agendas do PT", diz ele à Folha.

Teixeira, que integrou a oposição ao ex-governador de São Paulo, admite que sejam dados "todos os passos possíveis na direção de derrotar o bolsonarismo", o que inclui a aliança com Alckmin, cujas tratativas foram reveladas pela coluna em novembro. "Nossas divergências ficaram no passado."

Em entrevista à Folha no domingo (16), o ex-presidente do PT e deputado federal Rui Falcão (PT) disse que "Lula não precisa de uma muleta eleitoral" e que o ex-tucano representa uma contradição a tudo o que o partido fez e quer fazer caso volte a ocupar a Presidência.

Contemporizando com a frase "no PT é proibido proibir", Teixeira afirma que o debate não pode ser interditado e que é preciso ouvir "as preocupações trazidas por aqueles que resistem" à ideia. O importante, ressalta, é que o programa da legenda não sofra recuos.

O parlamentar argumenta ser necessário deixar diferenças de lado em nome de uma frente democrática para derrotar tanto o presidente Jair Bolsonaro (PL), que ele classifica como de extrema direita, quanto o que chamou de "outra cepa do bolsonarismo", o ex-juiz e presidenciável Sergio Moro (Podemos).

Nesta quarta-feira (19), Lula defendeu a dobradinha com o ex-governador e disse que, de sua parte, "não existe nenhum problema de fazer aliança com Alckmin e ter ele de vice".

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O que está sendo feito para conciliar as alas do partido favoráveis e contrárias à chapa com Alckmin? Antes de entrar nisso, é preciso falar dos esforços para construir a aliança para disputar a eleição e governar o Brasil. Isso envolve debates com PSB, PC do B, PSOL, Solidariedade, PV, Rede e, por que não dizer, segmentos do MDB que querem apoiar o presidente Lula.

O segundo esforço é o de oferecer uma proposta de reconstrução nacional, com um programa elaborado pelo PT e os partidos aliados. E o terceiro é em torno da formação de uma federação com siglas como PSB, PC do B e PV, ainda que saibamos que as alianças que faremos não necessariamente estarão nesse formato.

Constituída a aliança, é preciso que ela tenha uma agenda. Estamos falando em valorizar o mundo do trabalho, rever o enfraquecimento sindical pela reforma trabalhista, fortalecer o salário-mínimo e enfrentar os temas da emergência climática, da fome, do desemprego e do baixo crescimento econômico.

São agendas nas quais os governos Lula e Dilma Rousseff foram muito bem, com responsabilidade fiscal e manutenção de direitos. Muito diferente dessa agenda retrógrada que veio depois.

E como a questão da vice se insere nesse debate? A definição da vaga de vice não deve preceder a esse roteiro que apresentei. Em primeiro lugar, ela não deve representar um rebaixamento programático, nada que comprometa ou prejudique o programa. Os partidos da aliança concordam com nosso projeto de reconstrução nacional, com atuação do Estado para estimular o crescimento, instituições públicas robustas, fortalecimento dos sindicatos.

A aliança que está sendo construída tem como missão a consolidação da escolha democrática feita na Constituição de 1988. Estamos diante de um risco profundo, com ameaças à democracia brasileira por este governo [Bolsonaro]. Para fazer frente a isso, precisamos construir uma frente democrática que garanta a manutenção do pacto constitucional.

A possibilidade de ser Alckmin o vice dialoga com o que o sr. propõe? O PT, em primeiro lugar, tem critérios para a escolha de um vice. Na minha opinião, os critérios são: que não seja alguém do PT - seguindo o exemplo de 2002, na escolha do José Alencar [PL] - e que venha do Sudeste, para alcançar um eleitorado com perfil mais conservador. Cumpridos esses critérios, na minha opinião, o nome do Alckmin não pode sofrer qualquer restrição por parte do PT.

O Alckmin fez um movimento interessante: saiu do PSDB e não foi construir a terceira via. Está fazendo um diálogo com o Lula, conhece o programa e os propósitos do Lula. E acho que o PT não pode ter nenhum tipo de veto ou reserva a uma chapa com Alckmin, que também precisa ser amadurecida com os partidos do arco de alianças.

Vê Geraldo alinhado aos debates propostos pelo PT, por exemplo, em relação à reforma trabalhista? O movimento que ele faz em direção à candidatura do Lula é também em direção a algo conhecido, já que todo o país conhece as posições do PT em relação aos principais assuntos. E, ao mesmo tempo que o nome dele entra no debate, temas fundamentais para o nosso projeto estão sendo discutidos sem que haja uma mudança nas agendas do PT.

O ex-presidente do PT Rui Falcão fez críticas a essa chapa em entrevista à Folha e outros líderes do partido também são contra. O que o partido faz para equacionar essas questões? No PT, nenhum debate pode ser interditado. No PT é proibido proibir. E é assim desde que o PT foi fundado, com debate caloroso, ideias circulando. Mas também temos que dialogar com as preocupações trazidas por aqueles que resistem. É por isso que estou reafirmando a necessidade de não haver nenhum rebaixamento programático.

Além disso, creio que essa aliança democrática progressista, que é de esquerda, mas também com alcance para o campo democrático, vai criar uma onda no Brasil que possa levar [Lula] à vitória e afastar qualquer ameaça de ruptura com o sistema democrático que este presidente [Bolsonaro] representa.

Seu raciocínio é o de que essa chapa teria maior legitimidade, afastando, por exemplo, o risco de impeachment? Acho que devemos entrar na campanha com o espírito de que vamos criar um movimento de mudança no Brasil, de fortalecimento democrático, que vai oferecer oportunidades de trabalho, reduzir a desigualdade social, valorizar o salário-mínimo, fortalecer o SUS e a educação pública, cessar o desmatamento da Amazônia.

As condições para isso estão dadas. Temos que transformar essa aliança num movimento político que contagie a sociedade brasileira, que leve o Lula à Presidência e uma grande bancada ao Congresso Nacional.

A história não nos perdoará se nós errarmos e Bolsonaro não for derrotado, ou não for derrotada a outra cepa do bolsonarismo, que é o morismo. Por isso defendo que possamos dar todos os passos possíveis na direção de derrotar o bolsonarismo e o ultraliberalismo que está destruindo a economia brasileira.

O sr., assim como outros vários petistas, já fez duros ataques a Alckmin quando ele era governador de São Paulo e candidato à Presidência pelo PSDB. Como conciliar a posição crítica do passado com a chance real de uma aliança? É inegável que nós estivemos em campos opostos com o PSDB, que fizemos uma dura oposição ao governo do Alckmin e que tivemos divergências ao longo das nossas histórias. Entretanto, nós temos hoje um governo que permite a morte de 620 mil brasileiras e brasileiros [por Covid], que destrói a Amazônia, que entrega o patrimônio nacional e que representa um risco de uma ruptura com o sistema democrático.

Então, tenho que saudar o reencontro dessas forças para recuperar a escolha democrática da Constituição de 1988. As nossas divergências ficaram no passado. O que agora vai nos unir é derrotar este governo da destruição nacional e colocar no lugar o da reconstrução nacional.

Se essa composição for resultado de um amadurecimento do presidente Lula e dos partidos aliados, vejo com bons olhos. Creio que o PT não terá dificuldade em aprová-la. Precisamos formar uma aliança para ganhar as eleições e reconstruir o Brasil.

O PT considera ser possível dialogar com a base de Bolsonaro ou vê essa como uma causa perdida? Nós não podemos entrar nessa campanha de salto alto. Temos que entrar sem o "já ganhou", com humildade. E a humildade é promover esse diálogo que estamos propondo, um diálogo aberto e respeitoso, que recepciona aqueles que querem vir e têm boas intenções de caminhar juntos conosco.

Acho que, ainda que as pesquisas indiquem que o Lula tem muita chance de ganhar no primeiro turno, nós temos que notar que são pesquisas.

A campanha não começou de fato e haverá um esforço da extrema direita e da direita, representadas respectivamente por Bolsonaro e Moro, para derrotar o presidente Lula. São craques em mentiras e manipulações.

Por isso acho que todo esforço na direção de construir uma frente democrática, com conteúdo forte, que possa criar um movimento político no Brasil, nós temos que fazer. São três desafios: derrotar [o bolsonarismo], impedir um golpe e conseguir governar o Brasil.

O PT admite a possibilidade de fazer autocrítica em relação à corrupção, tema amplamente explorado pelos adversários e comprovado em vários casos? O PT fortaleceu as instituições brasileiras para combater a corrupção. Agora, o grande desvio ali na Lava Jato foi tentar associar o PT a essa corrupção. Uma coisa é a existência de corrupção, que é um mal que tem que ser combatido, mas ele está presente na atividade pública e na atividade privada.

Os governos Lula e Dilma combateram a corrupção, e o grande desvio da Lava Jato foi querer associar essa corrupção aos dois presidentes. Tanto foi um erro que as sentenças contra o presidente Lula foram anuladas e a presidenta Dilma nem sequer responde a processo. O grande pecado da Lava Jato foi se politizar. O juiz virou ministro. Por outro lado, acho que devemos aperfeiçoar os instrumentos de combate à corrupção e avaliá-los.

E Dilma, associada à recessão econômica, deve ser lembrada na campanha? A Dilma é uma mulher honesta, séria e que sempre trabalhou para melhorar a vida do povo. Nós temos que sempre incluí-la nos nossos projetos. O Brasil viveu em 2015 o auge da crise mundial, em decorrência da situação na China. Aqui no Brasil, isso coincidiu com uma crise política, com o candidato derrotado na eleição de 2014 [Aécio Neves, do PSDB] recusando-se a aceitar o resultado da eleição e o presidente da Câmara, Eduardo Cunha, trabalhando para sabotar o governo. Não vamos esconder tudo o que fizemos pelo nosso país.

Fernando Haddad (PT) pontua bem nas pesquisas para governador em São Paulo, mas Márcio França (PSB), que é um potencial aliado do PT, mantém sua pré-candidatura. Vê saída para o impasse? Os entendimentos entre o França e o Haddad são o de que seria candidato aquele que estivesse mais bem colocado nas pesquisas, e o outro sairia ao Senado.

O Haddad ganhou uma dianteira e acho que deve ser o candidato a governador. O PT é muito forte em São Paulo, o Haddad foi prefeito e ministro com desempenho positivo e foi candidato a presidente. Por essas razões, acho que ele deveria ser o candidato.

A oportunidade da eleição do Haddad é muito grande. E o governo de São Paulo apoiando o governo Lula [caso ambos se elejam] traria grande estabilidade ao Brasil. Que é tudo o que não temos com este atual presidente da República.

RAIO-X

Paulo Teixeira, 60

Deputado federal por São Paulo em seu quarto mandato, é pré-candidato à reeleição em outubro. Ocupa hoje o posto de secretário-geral nacional do PT, partido ao qual está filiado desde 1982. Já foi também vereador e deputado estadual em São Paulo e secretário na prefeitura da capital, entre outros cargos. Nascido em Águas da Prata (SP), é graduado pela Faculdade de Direito da USP