O El Pais publicou, no dia 11 de fevereiro
de 2020, um artigo intitulado “Como a esquerda brasileira morreu”.
Ao
contrário do que sugere o título, o artigo não é assinado por alguém da direita,
mas sim por Vladimir Safatle.
Vejo
quando posso os artigos de Safatle, tendo polemizado com alguns, como se pode ler
nos endereços abaixo:
Desta vez, Safatle começa explicando ter cometido “um artigo que gostaria de não ter escrito e não tenho
prazer algum em fazer enunciações como a que dá corpo ao título”.
Entretanto, diz ele, “talvez não haja nada mais
adequado a falar a respeito da situação política brasileira atual, depois de um
ano de Governo Jair Bolsonaro e a consolidação de seu apoio entre algo em torno
um terço dos eleitores”.
Se entendi direito, teriam bastado um ano de governo da extrema direita e um
terço dos eleitores para Safatle declarar morta a esquerda brasileira.
Que aconteceria se este tipo de “peso e medida”
tivesse prevalecido em inúmeras outras situações de derrota, no Brasil e mundo
afora?
Um século de existência, quatro vitórias
presidenciais seguidas desde 2002, 47 milhões de eleitores em 2018, centenas de
milhares de militantes distribuídos em inúmeros partidos e movimentos sociais, uma
imensa tradição cultural, tudo isto teria morrido??
O absurdo é tão grande, que Safatle logo explica
que “não que se trate de afirmar que ela está diante do seu fim puro e simples.
Melhor seria dizer que um longo ciclo que se confunde com sua própria história
termina agora”.
Então tá: a esquerda não morreu, foi um “longo
ciclo” que “termina agora”. Mas, complementa Safatle, se “a esquerda brasileira
não quiser ver sua morte definitiva como destino, seria importante se perguntar
sobre qual é esse ciclo que termina, o que ele representou, quais seus limites”.
Nem sempre um fim de ciclo equivale a morte.
Portanto, é justo perguntar: qual a origem desta equivalência sugerida por Safatle?
O governo Bolsonaro??
A primeira vista, parece ser isto mesmo. Nas palavras de Safatle, “aqueles
que acreditavam em alguma forma de colapso do
Governo e de sua base precisam rever suas análises. O que vimos foi, na
verdade, outro tipo de fenômeno, a saber, a inoperância completa do que um dia
foi chamado de ‘a esquerda brasileira’ enquanto força opositora”.
Certamente quem acreditava naquela besteira do “colapso”,
precisa mesmo rever suas análises. Acontece que: 1) esta nunca foi a única
posição existente na esquerda brasileira; 2) as esquerdas brasileiras já
incorreram em erros analíticos maiores e já sofreram derrotas paralisantes por
mais tempo, sem que isto tenha significado sua morte.
O uso da expressão “morreu”, mesmo atenuado, revela
um pessimismo que talvez nem Freud explique. Pessimismo que está relacionado,
penso eu, às ilusões de quem achava que, necessária
e rapidamente e definitivamente, uma determinada estratégia
seria superada por outra.
Safatle cita, entre os “signos” do tal “diagnóstico
terminal”, a aprovação da “reforma previdenciária, isso sem nenhuma resistência
digna deste nome. Ou seja, a maior derrota da história da classe trabalhadora
brasileira foi feita sem que anotassem sequer o número da placa do carro
responsável pelo atropelamento”.
Não subestimo o tamanho da derrota sofrida na reforma
da previdência. Mas as afirmações feitas por Safatle e transcritas no parágrafo anterior são incorretas, por vários motivos.
O principal motivo de erro é a ideia de que a reforma
previdenciária teria sido “a maior derrota da história da classe trabalhadora”.
Não foi a maior (o golpe em si e a reforma trabalhista foram, estruturalmente
falando, muito mais graves) e, além disso, derrotas maiores podem vir por aí.
Achar que chegamos ao fundo do poço apenas prepara
o terreno para novas e piores crises depressivas. Afinal, tudo indica que as
coisas vão piorar muito antes de começar a melhorar.
Outro motivo pelo qual as afirmações acima citadas são
incorretas é que sabemos, sim, quem são os responsáveis pelo atropelamento: diretamente,
a coalizão que sustenta o governo Bolsonaro; indiretamente, os setores oposicionistas
que, desde o início, flertaram com aspectos da reforma, criando dificuldades
para que a esquerda tivesse uma tática coesa e consistente.
Acontece que nada disso é novo. Desde os anos 1990,
um setor da esquerda brasileira vem assumindo posições social-liberais. E,
especialmente depois de 2014, isto tem contribuído para derrotas gravíssimas.
Portanto, se há novidade, ela reside em Safatle falar em morte de toda
a esquerda.
Como já disse, ele usa a palavra “morte” de forma,
digamos, um pouco criativa. Por exemplo, copio a seguir outra frase dele: “a esquerda
brasileira não é mais capaz de impor outro horizonte econômico-político”.
Ou seja: segundo Safatle, não se trata de um setor
da esquerda que traiu, que está equivocado, que adota uma linha inadequada etc.
Nem se trata de algo temporário, passageiro, momentâneo, que possa ser superado.
Não! Segundo Safatle, seria toda a esquerda que “não
é mais capaz de impor outro horizonte econômico-político”.
Aqui há uma pegadinha: para “impor” outro
horizonte, é preciso lutar por ele, acumular forças, conquistar vitórias
parciais etc. E quanto se está saindo de uma derrota, como é o nosso caso
agora, é preciso lamber as feridas e corrigir rumos. No caso concreto, é
preciso compreender, derrotar e superar as posições que contribuíram para a derrota
brutal que experimentamos entre 2015 e 2018.
Quem disse que isso ia ou vai ser fácil? Quem disse que
isso ia ou vai ser rápido? Quem disse que ia ou vai ser linear? E quem disse que nosso
realinhamento seria garantido?
Safatle diz que “durante todo o ano de 2019”, “não
foram poucos aqueles que esperaram da esquerda brasileira (todos os partidos e
instituições inclusas) a expressão de outro tipo de política. A esquerda
governa estados, municípios grandes e pequenos, mas de nenhum deles saiu um
conjunto de políticas que fosse capaz de indicar a viabilidade de rupturas
estruturais com o modelo neoliberal que nos é imposto agora. Houve época que a
esquerda, mesmo governando apenas municípios, conseguia obrigar o país a
discutir pautas sobre políticas sociais inovadoras, partilha de poder e
modificação de processos produtivos. Não há sequer sobra disto agora”.
Embora não explicite, a crítica de Safatle toma
como parâmetro o ocorrido no período 1982-2002. E o que ele não percebe é que este período
não serve como parâmetro para o que precisamos fazer agora.
Explico: Safatle expressa no parágrafo citado
anteriormente o desejo de que a esquerda, a partir dos locais que governa, saiba
e consiga construir alternativas.
Isto foi parcialmente possível, entre 1982 e
2002: a esquerda, a partir de prefeituras e governos estaduais, conseguiu “indicar a viabilidade” de
políticas alternativas. Mas isto não é possível hoje, exatamente porque o
período histórico mudou e, portanto, nossa estratégia não pode ser a mesma que
adotamos antes.
É paradoxal, mas neste ponto Safatle parte da mesma
premissa adotada por alguns setores moderados do petismo, que gostariam de derrotar Bolsonaro da mesma
forma como derrotamos FHC. O ponto de apoio de um e de outros é, principalmente, a
institucionalidade. Além de tudo, não percebem que existe uma relação direta
entre a derrota que sofremos e a via principalmente institucional de acúmulo de forças.
Depois de Freud, Safatle cita Maquiavel: “não
são as qualidades do Governo Bolsonaro que dão a ele certa adesão popular. É o
vazio, é o fato de não haver nenhuma outra alternativa realmente crível neste
momento. E a razão disso é simples: a esquerda brasileira morreu, ela tocou seu
limite e demonstrou não ser capaz de ultrapassá-lo”.
Confesso que tenho certa dificuldade de acompanhar
o raciocínio de Safatle. Ele diz que Bolsonaro tem “certa adesão popular”, ou
seja, reconhece que há uma parte da população que não adere. Esta não aderência
decorre, ainda que parcialmente, da ação da esquerda. Noutra passagem, Safatle dá
a entender que os não aderentes seriam dois terços da população. Pois bem: entre outros fatores, esta outra parte da população torna perfeitamente “crível” a construção de uma
alternativa. Que, claro, também depende de construir, tanto intelectual quanto
praticamente, uma política globalmente alternativa e adequada.
Segundo Safatle, sua crítica “vale tanto para
partidos, sindicatos quanto para a classe intelectual (na qual me incluo).
Nossas ações até agora não se demonstraram à altura dos desafios efetivos. O
melhor a fazer seria começar a se perguntar pela razão de tal situação”.
Pessoalmente, acho que o “melhor” a fazer seria começar não considerando que a intelectualidade seja uma “classe”. Sugiro, também, afastar a
ansiedade. O fato de que “nossas ações até agora não se demonstraram à altura
dos desafios efetivos” pode significar, 1) ou bem que nossas ações são mal
orientadas, 2) ou bem que (mesmo com a linha adequada) certas mudanças demoram tempo mesmo, 3) ou pode significar (esta é a minha
opinião) ambas as coisas em doses diferentes.
Safatle parece adepto da primeira variante, propondo como “hipótese de trabalho” a seguinte: “a esquerda brasileira conhece apenas um horizonte de atuação”, o “populismo
de esquerda”. E teria sido ele “que se esgotou sem que a esquerda nacional
tenha se demonstrado capaz de passar para outra fase ou mesmo de imaginar” o
que poderia ser a tal “outra fase”.
Safatle não é o primeiro, nem será o último uspiano a desancar e depois declarar morto o "populismo". Assim, o que surpreende mesmo é que Safatle parece acreditar
que no Brasil existiu e existe uma única esquerda, que teria apenas uma única estratégia. Por decorrência, a derrota desta esquerda e desta estratégia, se
converteria em derrota de toda a esquerda.
Esta visão é equivocada. A história da esquerda brasileira é, entre muitas
outras coisas, também a história da luta entre diferentes estratégias, que por
sua vez expressam a existência, dentro da própria esquerda, de diferentes
classes e setores de classe.
O PT, por exemplo, surge por iniciativa daqueles setores
da classe trabalhadora que rejeitavam a conciliação. O fato de que, anos
depois, o próprio PT tenha majoritariamente se inclinado por uma estratégia de
conciliação, também resulta das peripécias da luta de classes, não apenas da desorientação
desta ou daquela liderança.
Hoje, nos dias que correm, é necessário construir uma
nova estratégia e será preciso certo tempo para construir a correlação de
forças necessária para que esta nova estratégia possa ser vitoriosa. Deste ponto de
vista, a referência que Safatle faz a Carlos Marighella pode se prestar a todo
tipo de confusão.
Marighella é um herói do povo brasileiro. Como
tantos outros heróis daquela geração, foi durante muito tempo corresponsável pela política de
conciliação adotada, majoritariamente, pela esquerda, estratégia que naquela quadra foi
derrotada pelo golpe de 1964.
Entretanto, a estratégia alternativa que Marighella
e tantos outros tentaram construir, logo após o golpe de 1964, também não foi
vitoriosa. E isso precisa ser lembrado, para que não se incorra no mesmo erro.
Safatle diz que “a lição de Marighella não foi
ouvida. Tanto que a esquerda brasileira fará o mesmo erro com o final da
ditadura militar e com o advento da Nova República. A história será
simplesmente a mesma: o movimento em direção a um jogo de alianças entre
demandas sociais e interesses de oligarquias locais descontentes tendo em vista
mudanças 'graduais e seguras' que serão varridas do mapa na primeira reação bem
articulada da direita nacional”.
Safatle que me perdoe, mas isto simplesmente não é
verdade. Em primeiro lugar, não é exato que Marighella tenha rompido
completamente com a estratégia predominante no Partido Comunista, estratégia
que estava presente tanto no Manifesto de agosto de 1950 quando na Declaração
de março de 1958, assim como persistiu em inúmeras organizações da luta armada posterior ao golpe militar.
Em segundo lugar e mais importante, a rejeição ao “reboquismo”
levou uma parte da esquerda brasileira a criar o Partido dos Trabalhadores em
1980 e a quase conquistar, pela esquerda, a presidência da República em 1989. Por sinal, Safatle
parece desconsiderar, em sua digressão histórica, o PT dos anos 1980 e meados dos anos 1990.
E por falar em digressão histórica: Safatle, corretamente,
elogia a atitude dos argentinos frente aos crimes da ditadura. E reclama que “no
Brasil, ninguém foi preso”. Mas daí ele deduz que “a resposta argentina
produziu uma linha de contenção, inexistente entre nós, que permitiu ao
peronismo ter ressureições periódicas. Dificilmente, essa será a história
brasileira daqui para frente, pois o risco de deriva militar é real entre nós”.
Penso diferente: as ressureições periódicas do
peronismo têm várias origens, entre as quais o fato de que o peronismo conseguiu
se estender da extrema direita à extrema esquerda. Foram peronistas o Menem neoliberal
e o Kirchner nacional-popular. E a “deriva militar”, assim como a emergência de
um “corpo fascista”, é um risco permanente em quase toda a América Latina: as
linhas de contenção geralmente são temporárias.
Voltando ao Brasil, Safatle encerra seu texto
afirmando que a esquerda estaria “sem capacidade de ação, pois atordoada com o
fato de a direita” ter, enfim, “produzido a sua figura com capacidade de
incorporação do povo”.
Numa situação como essa, completa Safatlle, “a
esquerda nacional ainda paga o preço de ter sido formada para a coalizão e para
a negociação. Esse é seu DNA, desde a política de alinhamento do PCB aos
ditames anti-revolucionários do Soviete Supremo”.
Para não esticar a conversa, deixo para outro
momento a discussão sobre a influência dos “ditames antirrevolucionários do
Soviete Supremo”, apenas registrando que se isso fosse verdade, não haveria
como explicar o ocorrido, por exemplo, em 1935.
Seja como for, não importa tanto a maneira como
Safatle vê a influência soviética, no passado da esquerda brasileira; o que realmente
importa é como ele vê a esquerda brasileira hoje.
Por exemplo: que conclusão prática tirar da afirmação segundo a
qual toda a esquerda brasileira foi “formada para a coalizão e para a
negociação” e, por isso, “não sabe o que fazer quando precisa mudar o jogo e
caminhar para o extremo”, pois “sua inteligência não age nesse sentido, suas
estruturas não agem nesse sentido, sua classe política não age nesse sentido”.
("Classe intelectual", "classe política", que classe de
marxista é capaz de cometer este tipo de conceitos???)
Voltando ao ponto: qual a conclusão? A de que esta esquerda precisa
ser destruída? A de que a destruição desta esquerda deve ocorrer rapidamente,
para assim abrir caminho para uma “verdadeira” esquerda, quimicamente pura e
livre de todo o mal??
Safatle não tira esta conclusão “peregrina e
monstruosa”, talvez porque mentalmente a julgue desnecessária. Afinal, para ele
a esquerda já estaria morta: “seus movimentos de revolta perdem-se no ar por
não ter nenhuma sustentação ou coordenação de médio e longo prazo. Foi assim
que ela morreu. Se ela quiser voltar a viver, toda essa história tem que chegar
a um fim. Ela deverá tomar ciência de seu fim”.
Como já disse alguém, estas notícias de nossa morte
são um pouco exageradas. As esquerdas brasileiras não estão mortas. O PT não está morto. Claro que podemos vir a morrer, até porque tudo que é vivo algum dia morre. E claro que podemos nos
suicidar, se persistimos em orientações políticas e atitudes práticas equivocadas. Mas não estamos mortos.
E neste ponto devemos lembrar do poeta segundo o qual deveríamos sempre perguntar, a uma ideia, a quem ela presta serviços.
Pergunto: na prática, nos dias que correm, a quem serve afirmar que a esquerda “morreu”, “tocou seu limite e demonstrou não ser capaz de ultrapassá-lo”?
Serve aos que lutam para alterar a estratégia hegemônica na esquerda brasileira? Ou serve aos que lutam para destruir toda a esquerda brasileira?
Serve aos que lutam para derrotar Bolsonaro pela esquerda? Ou serve aos que argumentam que o caminho para derrotar Bolsonaro é pelo centro?
Derrotar a coalizão golpista (que é algo mais amplo do que o governo Bolsonaro) certamente vai exigir uma mudança de estratégia e vai demorar certo tempo. E também é correto dizer que corremos contra o tempo. Mas ansiedade não ajuda. E pessimismo só atrapalha.
Segue o
texto criticado:
Como a esquerda brasileira morreu (Vladimir
Safatle, 11/2/2020)
Este é um artigo que gostaria de não ter escrito
e não tenho prazer algum em fazer enunciações como a que dá corpo ao título. No
entanto, talvez não haja nada mais adequado a falar a respeito da situação
política brasileira atual, depois de um ano de Governo Jair Bolsonaro e a
consolidação de seu apoio entre algo em torno um terço dos eleitores. Aqueles
que acreditavam em alguma forma de colapso do Governo e de sua base precisam
rever suas análises. O que vimos foi, na verdade, outro tipo de fenômeno, a saber,
a inoperância completa do que um dia foi chamado de “a esquerda brasileira”
enquanto força opositora. Não que se trate de afirmar que ela está diante do
seu fim puro e simples. Melhor seria dizer que um longo ciclo que se confunde
com sua própria história termina agora. O pior que pode acontecer nesses casos
é “não tomar ciência de seu próprio fim” repetindo assim uma situação que
lembra certo sonho descrito uma vez por Freud na qual um pai morto continua a
agir como se estivesse vivo. A angústia do sonho vinha do fato do pai estar
morto e nada querer saber disto. Se a esquerda brasileira não quiser ver sua
morte definitiva como destino, seria importante se perguntar sobre qual é esse
ciclo que termina, o que ele representou, quais seus limites.
Signos não faltaram para tal diagnóstico
terminal. Contrariamente ao discurso de que o Governo Bolsonaro estaria
paralisado, vimos ao contrário a aprovação de medidas até pouco tempo
impensáveis, como a reforma previdenciária, isso sem nenhuma resistência digna
deste nome. Ou seja, a maior derrota da história da classe trabalhadora
brasileira foi feita sem que anotassem sequer o número da placa do carro
responsável pelo atropelamento. Uma reforma da mesma natureza, mas menos
brutal, está a tentar ser imposta na França. O resultado é uma sequência de
greves e manifestações de vão já para o seu terceiro mês. Na verdade, o que
vimos no Brasil foi o contrário, a saber, governos estaduais pretensamente de
esquerda a aplicarem reformas estruturalmente semelhantes. Como se fosse o caso
de dizer que, no final, governo e oposição comungam da mesma cartilha, sendo
distinta apenas a forma e a intensidade de sua implementação. Fato que já
havíamos visto com o segundo Governo Dilma e sua guinada neoliberal capitaneada
por Joaquim Levy.
Isso é apenas um sintoma de que a esquerda
brasileira não é mais capaz de impor outro horizonte econômico-político.
Durante todo o ano de 2019, diante de um Governo cujas políticas visam a
retomada, em chave autoritária, dos processos de concentração de renda, de
acumulação primitiva e de extrativismo colonial, não foram poucos aqueles que
esperaram da esquerda brasileira (todos os partidos e instituições inclusas) a
expressão de outro tipo de política. A esquerda governa estados, municípios
grandes e pequenos, mas de nenhum deles saiu um conjunto de políticas que fosse
capaz de indicar a viabilidade de rupturas estruturais com o modelo neoliberal
que nos é imposto agora. Houve época que a esquerda, mesmo governando apenas
municípios, conseguia obrigar o país a discutir pautas sobre políticas sociais
inovadoras, partilha de poder e modificação de processos produtivos. Não há
sequer sobra disto agora.
Talvez seja o caso de insistir neste ponto
porque, como dizia Maquiavel, o povo prefere um governo ruim a governo nenhum.
Não são as qualidades do Governo Bolsonaro que dão a ele certa adesão popular.
É o vazio, é o fato de não haver nenhuma outra alternativa realmente crível
neste momento. E a razão disso é simples: a esquerda brasileira morreu, ela tocou
seu limite e demonstrou não ser capaz de ultrapassá-lo. Isso vale tanto para
partidos, sindicatos quanto para a classe intelectual (na qual me incluo).
Nossas ações até agora não se demonstraram à altura dos desafios efetivos. O
melhor a fazer seria começar a se perguntar pela razão de tal situação.
Coloquemos uma hipótese de trabalho: a esquerda
brasileira conhece apenas um horizonte de atuação, este que atualmente
chamaríamos de “populismo de esquerda”. Foi ele que se esgotou sem que a
esquerda nacional tenha se demonstrado capaz de passar para outra fase ou mesmo
de imaginar o que poderia ser “outra fase”. Entende-se por populismo de
esquerda um modelo de construção de hegemonia baseado na emergência política do
povo contra as oligarquias tradicionais detentoras do poder. Este povo é, na
verdade, produzido através da convergência de múltiplas demandas sociais
distintas e normalmente reprimidas. Demandas contra a espoliação de setores
sociais, contra a opressão racial, contra os legados do colonialismo: todas
elas devem convergir em uma figura que seja capaz de representar e vocalizar
esta emergência de um novo sujeito político.
No entanto, o caráter nacionalista do populismo
permite também a inclusão de setores descontentes da oligarquia, grupos da burguesia
nacional dispostos a ter um papel “mais ativo” nas dinâmicas de globalização.
Assim, o “povo”, neste caso, nasce como uma monstruosa entidade meio burguesia,
meio proletariado. Uma mistura de JBS Friboi com MST.
Este é o modelo que a esquerda nacional tentou
implementar em sua primeira tentativa de governar o Brasil: a que termina com o
golpe militar contra o Governo João Goulart. Na ocasião, um dos personagens
mais lúcidos de então, Carlos Marighella, faz um diagnóstico preciso: a
esquerda havia apostado na conciliação com setores da burguesia nacional e com
setores “nacionalistas” das forças armadas dentro de governos populistas de
esquerda. Ela colocou toda sua capacidade de mobilização a reboque de uma
política que parecia impor mudanças seguras e graduais. Ao final, tudo o que
ela conseguiu foi estar despreparada para o golpe, sem capacidade alguma de
reação efetiva diante dos retrocessos que se seguiriam.
A lição de Marighella não foi ouvida. Tanto que
a esquerda brasileira fará o mesmo erro com o final da ditadura militar e com o
advento da Nova República. A história será simplesmente a mesma: o movimento em
direção a um jogo de alianças entre demandas sociais e interesses de
oligarquias locais descontentes tendo em vista mudanças “graduais e seguras”
que serão varridas do mapa na primeira reação bem articulada da direita
nacional.
Nesse sentido, nossa história segue os passos da
história argentina: outro campo de ensaio do populismo de esquerda. Mas há um
diferença substancial aqui. Depois da experiência ditatorial, a Argentina soube
criar um linha de contenção de impulsos golpistas. Hoje, quase mil pessoas
ainda se encontram nas cadeias argentinas por crimes da ditadura. No Brasil,
ninguém foi preso. A resposta argentina produziu uma linha de contenção,
inexistente entre nós, que permitiu ao peronismo ter ressureições periódicas.
Dificilmente, essa será a história brasileira daqui para frente, pois o risco
de deriva militar é real entre nós.
Mas há ainda um outro fator decisivo. O colapso
do lulismo não foi seguido apenas de um golpe parlamentar apoiado em práticas
criminosas de setores do poder judiciário. Ele foi seguido da criação de uma
espécie de antídoto à reemergência do corpo político populista. O que vimos, e
agora isto está cada vez mais claro, foi a emergência de um corpo fascista. Mas
o corpo político fascista é normalmente a versão terrorista e invertida de um
corpo político anterior, marcado pela emergência do povo e pelas promessas de
transformação social. Dessa forma, ele acaba por bloquear sua ressurgência. Já
se disse que todo fascismo nasce de uma revolução abortada. Nada mais justo.
Theodor Adorno um dia descreveu o líder fascista
como uma mistura de King Kong e barbeiro de subúrbio (certamente pensando no
Chaplin de O grande ditador). Essa articulação entre contrários é fundamental.
A pretensa onipotência do líder fascista deve andar juntamente com sua
fragilidade. O líder fascista deve ser “alguém como nós”, com a mesma falta de
cerimônia, a mesma simplicidade e irritação que nós. A identificação é feita
com as fraquezas, não com os ideais. Ele deve ser alguém que come miojo em
banquetes presidenciais, que se veste de maneira desajeitada como alguém do
povo. Ele deve a todo momento dizer que está a combater as elites que sempre
governaram esse país (que agora serão os artistas, as universidades, os
“cosmopolitas” e “globalistas”). Ele deve mostrar que não é alguém da elite
política, que na verdade tal elite o detesta. Pois se trata de criar um
antídoto para toda forma de tentativa de recuperar a produção do povo como
processo de emergência de dinâmicas de transformação social.
Dessa forma, tudo se passa como se Bolsonaro
fosse uma versão militarizada de seu oposto, a saber, Lula. Não se trata com
isso de afirmar que estamos presos em uma polaridade. Ao contrário, trata-se de
dizer que tudo foi feito para anular a polaridade real, criando um duplo
imaginário. Nunca entenderemos nada das regressões fascistas se não
compreendermos estas lógicas dos duplos políticos. Se há algo que nos falta é
exatamente polaridade. Temos pouca polaridade e muita duplicidade.
O fato é que tal dinâmica demonstrou-se eficaz.
Ela quebrou os processos de incorporações populistas que foram, até agora, a
alma da esquerda brasileira. Por isso, o que vemos agora é uma esquerda sem
capacidade de ação, pois atordoada com o fato de a direita brasileira ter,
enfim, produzido a sua figura com capacidade de incorporação do povo, agora sem
o erro de apostar em um egresso da elite político-econômica (Collor) ou em alguém
sem vínculos orgânicos com o militarismo fascista (Jânio).
Numa situação como essa, a esquerda nacional
ainda paga o preço de ter sido formada para a coalizão e para a negociação.
Esse é seu DNA, desde a política de alinhamento do PCB aos ditames anti-revolucionários
do Soviete Supremo. Por isso, ela não sabe o que fazer quando precisa mudar o
jogo e caminhar para o extremo. Sua inteligência não age nesse sentido, suas
estruturas não agem nesse sentido, sua classe política não age nesse sentido. Seus
movimentos de revolta perdem-se no ar por não ter nenhuma sustentação ou
coordenação de medio e longo prazo. Foi assim que ela morreu. Se ela quiser
voltar a viver, toda essa história tem que chegar a um fim. Ela deverá tomar
ciência de seu fim.