Derrota tem de tudo.
Os que alardeiam ter avisado.
Os que dizem não ser hora de balanço.
Os que afirmam que a culpa é do derrotado.
Os que juram não ter nada que ver com isto.
Os que cospem no prato que comeram.
E tem os que buscam fazer uma crítica honesta, respeitosa, ponderada,
profunda e acertada.
André Singer faz parte desta última categoria. Infelizmente,
considero que sua crítica é tudo aquilo, mas não é propriamente acertada.
Busco demonstrar isto noutro texto, anexo a nova edição do livro
A
metamorfose, que trata da evolução do programa e da estratégia do PT desde
1980.
Aqui, quero me limitar ao que está dito no texto publicado pela Folha de S. Paulo no dia 14 de maio de
2016, assinado por André Singer e intitulado “Nocaute”.
Começo pela opinião
de Singer sobre a Operação Lava Jato.
Noutros momentos, ele defendeu o caráter republicano da
investigação. No texto da Folha,
Singer faz uma pequena concessão aos fatos: afirma que “em março deste ano
(...) ficou claro que já não havia isenção”.
A ilusão acerca do caráter republicano da Operação Lava Jato é um
dos muitos indicadores de que Singer compartilha parte importante das ilusões
de classe presentes no próprio lulismo, ilusões expressas, por exemplo, no “republicanismo”.
Isto não é novidade para quem conhece a trajetória de Singer
como militante petista e como integrante do governo Lula, embora talvez seja um
fato ignorado por quem o conhece apenas como intelectual crítico do lulismo.
Outro exemplo das afinidades eletivas entre o crítico e o
criticado é o argumento de Singer, segundo o qual o mais “racional” teria sido “a
antiga ministra da Casa Civil (...) ter entregue à recandidatura a Lula”.
Desconheço se Singer defendeu esta posição na época. Em todo
caso, lembro que Dilma não era apenas a “antiga ministra da Casa Civil”: era a
presidenta em exercício. Motivo pelo qual ela renunciar a disputar a reeleição
não era uma operação trivial.
O mais importante, contudo, é a tese de que Lula reunia “melhores
condições” para enfrentar a “força da coalizão capitalista”.
Para quem acredita que um fator decisivo para nossa derrota foi a
“falta de diálogo” entre Dilma, o empresariado e os políticos de direita, faz
todo sentido defender (mesmo que retrospectivamente) que Lula deveria ter sido
candidato em 2014.
Mas quem defende esta tese precisa ir além dos efeitos curativos
do diálogo e nos explicar de que forma Lula conseguiria enfrentar “melhor” os
efeitos acumulados da estratégia de conciliação de classes.
Aprofundando esta estratégia ou alterando esta estratégia??
Sem responder a esta questão, a tese de que Lula reunia “melhores
condições” é uma mistura de fé nos líderes e ignorância sobre os fatores reais
que levaram a classe dominante e seus representantes políticos a deflagrar uma
guerra contra o PT.
Guerra que nunca seria vencida pelo diálogo, nem pelos dotes
individuais de quem quer que seja.
Que este tese seja expressa por Singer apenas confirma as
afinidades eletivas a que nos referimos mais acima.
Um terceiro exemplo disto, tão sutil quanto os outros, é a
afirmação de que “o lulismo estava nas cordas” desde que Dilma “anunciou que
havia decidido entregar a condução da economia do país ao projeto austericida
que condenara na campanha eleitoral”.
É público e notório que Lula foi defensor, durante algum tempo,
da política econômica adotada por Dilma. Aliás, não foi só Dilma que subestimou
a Operação Lava Jato e, de forma mais geral, o tema da corrupção.
Lula conspirava contra o lulismo? Ou será que o emprego deste
termo pode mais confundir do que esclarecer determinadas situações?
Por falar em situações, Singer cita 1954 (no que está certo),
mas não fala de 1964. Acontece que o trabalhismo não foi extinto em 1954, pelo
contrário. Para extinguir o trabalhismo, foi necessário um golpe militar e uma
longa ditadura.
Por isto, ao afastar Dilma da presidência, o Senado não “encerrou”,
ele apenas aprofundou uma das “lutas mais dramáticas da história
democrática brasileira”.
Para que o período seja encerrado, a classe dominante
brasileira terá que radicalizar muito mais do que fez até agora. Vão tentar. Se
vão ter êxito, é outra história.
Singer encerra seu texto afirmando que “com a traumática
derrubada do lulismo, interrompe-se mais uma vez a tentativa — no fundo a mesma
de Getúlio Vargas — de integrar os pobres por meio de uma extensa conciliação
de classe. Venceu de novo a forte resistência nacional a qualquer tipo de
mudança verdadeiramente civilizatória. Mesmo a mais moderada e conciliadora”.
Numa primeira leitura, parecem afirmações totalmente justas. E
algumas são mesmo, especialmente a que sugere (com outras palavras) que a
classe dominante não tolera a esquerda, mesmo quando a esquerda tolera a classe
dominante.
Mas há três senões importantes.
Se o que Singer chama de lulismo tivesse tido êxito, o que
teríamos aqui no Brasil seria capitalismo com algum nível de justiça social,
democracia e soberania. Pergunto: é isto que devemos chamar de “mudança
verdadeiramente civilizatória”?
Adotar isto como programa máximo não teria sido uma das muitas
causas de nossa derrota?
Em segundo lugar: a experiência encabeçada por Lula é muito diferente
da encabeçada por Vargas. Motivo pelo qual utilizar o termo “lulismo” – seja para
defender, seja para criticar -- pode nos empurrar para uma analogia indevida e
enganosa.
O mais importante, contudo, é
outra coisa. Se for verdade que “interrompe-se” uma tentativa, o que devemos
fazer? Tentar de novo do mesmo jeito? Ou tentar de novo de outro jeito? Ou não
terá jeito?
Não cobro de Singer que apresente,
num artigo de jornal, o que pensa sobre os dilemas estratégicos e programáticos
da esquerda brasileira. Mas me chamou a atenção uma lacuna no seu texto, que
tem relação direta com as questões citadas.
Singer diz que “talvez sejam
necessários anos para reconstruir as condições de disputa perdidas na manhã da
quinta passada”. Concordo. Mas o que é mesmo que precisamos reconstruir? O
lulismo? Ou precisamos reconstruir o petismo e a esquerda, palavras salvo engano ausentes do
artigo publicado pela Folha?
Segue
abaixo o texto comentado
Nocaute
14/5/2015
O lulismo estava nas cordas desde
a quinta-feira, 27 de novembro de 2014, em que a presidente reeleita anunciou
que havia decidido entregar a condução da economia do país ao projeto
austericida que condenara na campanha eleitoral. Um ano e meio depois, na aurora
desta quinta-feira (12), o exausto lutador caiu. Ao afastar Dilma Rousseff da Presidência por 55 a
22 votos, o Senado encerrou talvez uma das lutas mais dramáticas – embora perca
para a de 1954 – da história democrática brasileira.
Haverá ainda prorrogação, mas só um milagre reverterá o jogo no
espaço senatorial em que se fará o julgamento dos inexistentes crimes da
mandatária afastada. Um bloco partidário e social comandado pelo PMDB se formou
para isolar, desmoralizar e, caso possível, extinguir o arco de forças
comandado por Lula. O lulismo não morreu, mas talvez sejam necessários anos
para reconstruir as condições de disputa perdidas na manhã da quinta passada
(12).
Pois embora o fator econômico tenha sido decisivo, não se tratou
da mera derrocada de um governo associado a desemprego, inflação e queda da
renda. Foi também o resultado das revelações e da manipulação da Mãos Limpas
nacional, conhecida como Lava Jato. Dilma subestimou o tamanho dessas duas
encrencas, que apareceram com nitidez no último ano do seu primeiro mandato.
Se a antiga ministra da Casa Civil tivesse percebido a força da
coalizão capitalista consolidada em torno do ajuste recessivo assim como o
potencial que a delação premiada traria à investigação na Petrobras, o mais
racional era ter entregue a recandidatura a Lula. O ex-presidente reunia
melhores condições para o pugilato de pesos-pesados.
Só o tempo dirá em que ponto do percurso Sergio Moro, Deltan
Dallagnol e outros personagens das investigações resolveram colocar a bomba
atômica que controlavam a serviço da demolição do lulismo. De toda maneira, em
março deste ano, quando o juiz curitibano fez a condução coercitiva de Lula e a
divulgação do diálogo deste com Dilma, ficou claro que já não havia isenção.
Independentemente das falhas de avaliação de Dilma, o lulismo
foi incapaz de oferecer uma narrativa coerente sobre a avalanche de acusações
formuladas pelo Partido da Justiça sediado em Curitiba. De outro lado, a mídia
estimulou um clima de caça às bruxas decisivo para cimentar a maioria que deu
suporte ao golpe parlamentar.
Com a traumática derrubada do lulismo, interrompe-se mais uma
vez a tentativa — no fundo a mesma de Getúlio Vargas — de integrar os pobres
por meio de uma extensa conciliação de classe. Venceu de novo a forte
resistência nacional a qualquer tipo de mudança verdadeiramente civilizatória.
Mesmo a mais moderada e conciliadora.
André Singer
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