quarta-feira, 28 de julho de 2021

Uma foto que vale por mil palavras

Não é por falta de aviso.

15 meses é muito tempo.

E 2021-2023 será muito diferente de 2001-2003.

A mensagem abaixo diz quase tudo.


ps. depois que publiquei a nota acima, o Paulo Fontes me enviou a informação de que a foto teria sido comprada de um banco de imagens de um fotógrafo da África do Sul. A legenda da foto: "caçador". Para voce ver o que é o preconceito: eu achava que era uma fotografia do Borba Gato!!!




segunda-feira, 26 de julho de 2021

Cuba e o debate sobre o socialismo

No dia 26 de julho de 1953 aconteceu o assalto rebelde ao Quartel Moncada. Do episódio surgiu o nome do Movimento 26 de Julho, organização que – com aliados e no curso de uma revolução popular – chegou ao poder no dia 1 de janeiro de 1959. 

A história do que veio depois é mais ou menos conhecida. A revolução converteu-se em socialista por força de uma dupla pressão: de um lado, a luta popular em favor de suas reivindicações; de outro, a reação combinada da oligarquia cubana e do imperialismo contra a revolução. 

Que destino teria a revolução cubana se não existisse a União Soviética? Não há como saber. O que sabemos é que a URSS acabou, Cuba sobreviveu, mas os Estados Unidos não cessaram o bloqueio, nem cessou a pressão pela “mudança de regime”. Pelo contrário, com Trump e com Biden a pressão sobre Cuba aumentou. 

Que fazer diante desta situação? Antes de mais nada muita solidariedade, pelo menos da parte daqueles que percebemos que não haverá alternativa boa em caso de triunfo do imperialismo. 

Além da solidariedade, não há como escapar do debate permanente que se trava a respeito de Cuba. Boa parte deste debate é - por dever e direito - cubano: cabe aos “mambises” decidir o que farão de sua vida. 

Mas há um aspecto do debate que é universal: trata-se do que entendemos por “socialismo”. 

Há várias definições a respeito, mas tanto inimigos quando defensores giram ao redor das mesmas variáveis fundamentais: a “igualdade” e a “liberdade”.

Para os inimigos, o socialismo geraria menos liberdade e menos igualdade. Para impor a igualdade, se teria limitado a liberdade. E limitando a liberdade, cresceria a miséria e a desigualdade.

Já para os defensores, o socialismo geraria mais igualdade e mais liberdade. A libertação da maioria tornaria possível a busca da igualdade. E a igualdade tornaria possível uma liberdade de novo tipo. 

Entretanto, os defensores do socialismo não encaram de maneira uniforme a relação que existe (ou que deveria existir) entre igualdade e liberdade, especialmente em condições de imperialismo, como ficou mais uma vez evidente na polêmica recente acerca das manifestações ocorridas em Cuba.

As diferenças e divergências são variadas, muitas delas remetendo para a seguinte questão: será possível construir o “socialismo em uma só ilha”? 

Para aqueles que consideram que o socialismo é essencialmente a divisão igualitária da riqueza já existente, obviamente que sim. É verdade que restaria ao socialismo enfrentar pelo menos dois problemas: como tratar as desigualdades herdadas do passado e como impedir que surjam novas desigualdades. 

Há exemplos – especialmente no passado – de sociedades mais ou menos isoladas, com baixa desigualdade social e com diferentes níveis de liberdade. E podemos especular sobre como isto poderia ser feito no presente, se existissem condições favoráveis de temperatura e pressão. 

Mas vamos deixar de lado este mundo hipotético e coloquemos a questão nos seguintes termos: é possível construir o “socialismo em uma só ilha”, se esta "ilha" for vítima da agressão continuada de um inimigo materialmente superior?

Neste caso, além das desigualdades herdadas do passado e das que poderiam surgir de “condições normais”, teríamos novas desigualdades produto das agressões externas. E o esforço para conter estas agressões tenderia a estimular o surgimento de novas desigualdades.  

Não precisamos especular sobre como esta situação poderia ser compensada pela ajuda externa e que tipo de efeitos colaterais esta ajuda poderia causar: o estudo da relação entre Cuba e URSS nos fornece abundante material histórico. 

O que podemos especular é: no longo prazo, caso esta situação se mantivesse, resultaria no quê? Uma sociedade sob cerco eterno, compensado por um também eterno auxílio? Que tipo de igualdade e que tipo de liberdades seriam possíveis nestas condições? 

De maneira mais geral, será possível enfrentar um capitalismo em constante desenvolvimento tecnológico, se o socialismo não for também capaz de desenvolver as forças produtivas em nível pelo menos equivalente?

Voltando ao caso de Cuba, não saberemos nunca o que aconteceria caso a URSS não tivesse desaparecido. O que sabemos são os efeitos históricos derivados deste desaparecimento, combinados ao agravamento do cerco estadounidense. 

A divisão igualitária do que se possuía foi complicada pela redução substancial daquilo que se possuía. Tornou-se cada vez mais difícil superar as desigualdades anteriores à revolução. Além disso, novas desigualdades foram introduzidas pelas medidas indispensáveis adotadas para compensar o fim da ajuda externa, como o turismo, a dupla moeda etc. E as possibilidades de desenvolvimento das forças produtivas foram ainda mais reduzidas.

Para agravar a situação, as medidas políticas indispensáveis à luta contra a agressão externa continuada consomem recursos escassos (agravando a desigualdade). E as crescentes desigualdades internas provocam conflitos reais, que por sua vez são em alguma medida estimulados e até financiados pelo agressor externo. Isto por sua vez coloca a liberdade sob pressão crescente, inclusive por dificultar a atuação dos críticos socialistas do "socialismo reamente existente". Sendo que alguns chegam a afirmar que as medidas políticas adotadas para lutar contra o inimigo externo estariam, ao menos parcialmente, à serviço da manutenção do status quo, que pelos motivos já expostos não é de crescente igualdade.

Há várias conclusões a tirar desta situação. Uma delas é: a agressão imperialista torna impossível existir um caminho ótimo, perfeito, harmônico, sem contradições*.

Portanto, ao menos em países como Cuba, com limitações materiais e históricas enormes, sob pressão direta e constante de um inimigo desproporcionalmente mais poderoso, a disjuntiva fundamental é: ou 1/deixar a luta pelo socialismo para quando mudar o contexto histórico estrutural ou 2/ buscar fazer o melhor e o máximo possível nas condições dadas. 

Reconhecer as limitações históricas e estruturais não significa negar a existência de margem de manobra, nem justifica opções políticas que prejudicaram/prejudicam a luta pelo socialismo entendido simultaneamente como igualdade e liberdade. Reconhecer as limitações dadas significa apenas compreender que a derrota do imperialismo é condição sine qua non para ampliar as possibilidades do socialismo significar efetivamente a máxima igualdade e a máxima liberdade.

Podemos debater muito, contrafactualmente, acerca do que teria ocorrido em Cuba se tivesse prevalecido a alternativa de "deixar a luta pelo socialismo para outro momento". Mas por mais que se debata a respeito, não há como provar que a passividade seja superior à rebeldia, do ponto de vista político, histórico e humano.  

Pelos dois  motivos, honra eterna aos rebeldes de 1953 e a todos os cubanos e cubanas que não dobram sua espinha ao império.

Viva Cuba Livre!


*ps. é curioso como líderes e intelectuais da esquerda - que em seus próprios países são muitas vezes os primeiros a apresentar as limitações da conjuntura como explicação e justificativa para todas as concessões que fazem nos processos reformistas de que participam - sejam tão maximalistas na hora de exigir perfeição e coerência dos processos revolucionários noutros países. Mais contraditórios, só os defensores da iconoclastia-tão-somente-em-terra-estrangeira.

domingo, 25 de julho de 2021

Maringoni e a defumação de Borba Gato



São quatro parágrafos lacradores publicados no Diário do Centro do Mundo. Dizem assim:

“O incêndio da estátua do Borba Gato, na zona sul da capital paulista, no mesmo dia em que os setores democráticos realizam nacionalmente maciças manifestações pacíficas de protesto, tem toda a pinta de provocação da direita”.

“O bandeirante homenageado com a horrível escultura foi um escravocrata assassino. Trata-se de homenagem descabida. Deve ser aberto um debate público por sua remoção do local”.

“No entanto, tacar fogo na peça, como foi feito, é ato de puro vandalismo. A extrema direita se aproveitará do evento”.

“A esquerda e os setores progressistas devem imediatamente desautorizar qualquer vínculo com a mazorca”.

Vamos começar pelo começo: de onde foi que Gilberto Maringoni – cometedor dos quatro parágrafos acima - tirou que a defumação de Borba Gato tem “pinta de provocação da direita”?

Da coisa em si não foi, pois queimar pneus e defumar a estátua de um “escravocrata assassino” também têm “toda a pinta” de ser “ação direta”. 

Sem falar que tanto eu quanto Maringoni já aprendemos  - pelo menos desde a época em que o pessoal do MR8 espancava militantes da oposição metalúrgica - que para fazer merda a esquerda não precisa estar infiltrada pela polícia.

Claro, os grupos de “ação direta” também podem ser "estimulados" ou infiltrados. Se foi o caso, peo menos desta vez o vídeo da ação está esteticamente melhor, mais para Casa de Papel do que aquele feito por um P2 que registrou seu coturno numa manifestação pelo Fora Bolsonaro.

De toda maneira, volto a perguntar: de onde Maringoni tirou sua afirmação acerca da "pinta"?

A "resposta" achei num post de Cid Benjamin, outro que se incomodou com a defumação de Borba Gato. 

Neste post, Cid diz o seguinte: 

“Houve gente bem intencionada apoiando aquela ação de mascarados queimando a estátua do Borba Gato, ao melhor estilo dos provocadores a serviço da polícia. O grupo se autodenomina "Revolução Periférica". Pois bem, Gilberto Maringoni foi procurar por esse grupo nas redes sociais. Vejam o que encontrou e concluam se essa gente é de esquerda ou se estamos diante de infiltração policial. Passo a palavra ao Maringoni”.

A seguir vem as palavras do Gilberto Maringoni, tal e qual reproduzidas por Cid:

 "Fui atrás do tal grupo Revolução periférica no Facebook e no Instagram. Nesta última rede, tem 34 mil seguidores, 5 posts e dois dias de existência. Existe só para propagar a queima dos pneus (a estátua quase não sofreu danos). O Facebook é semelhante. Acabou de ser criado. Sim, é um grupo revolucionário com extenso trabalho de base. Contam com apoio do Papai Noel e do Coelhinho da páscoa..."

As referências finais são um esforço para fazer rir de piada ruim, pois do que foi descrito não há elementos para afirmar que estamos “diante de infiltração policial”.

Outros que foram de fato atrás do assunto chegaram a conclusão bem diferente, como se pode ler no texto disponível no link a seguir: 

https://jornalistaslivres.org/foraborbagato-ou-a-revolucao-sera-periferica-ou-nao-sera/

Quem tem razão nesta questão, Gilberto Maringoni ou Laura Capriglione? 

Logo saberemos, entre outros motivos porque a polícia deve estar atrás dos autores da “mazorca” (um termo que não lia faz tempo e que por sinal “tem toda a pinta” de cair bem na boca de certos meganhas).

Seja como for, de uma coisa tenho certeza: existem muitos motivos e ambiente propício para que uma parcela da militância parta para a “ação direta”, mesmo que apenas performática. 

E se esta militância for tratada e se estas ações forem interpretadas da forma como Maringoni e outros fizeram, o resultado não vai ser bom para a esquerda.

De que outros estou falando? 

Primeiro, de Aldo Rebelo, que faz tempo vem se notabilizando por confundir a defesa da soberania nacional com a defesa dos valores e das instituições da classe dominante.

Diante da defumação de Borba Gato, Aldo disparou dois tweets dizendo o seguinte:

“Canalhas, bandidos, assassinos da memória nacional. Vejam que não molestam as dezenas de imitações de “estátuas da liberdade” espalhadas pelo Brasil, escolhem a obra de artista brasileiro, um símbolo da história e da identidade da cidade de São Paulo”.

“É como o movimento não vai ter copa: filhinhos de papai de “esquerda” e de “direita” tocavam o terror nas ruas, vandalizavam, com a cumplicidade da mídia. Era a guerra híbrida contra o Brasil”.

Na interpretação de Aldo Rebelo, o “escravocrata assassino” cf. Maringoni seria um “símbolo da história e da identidade da cidade de São Paulo”. 

Num certo sentido, ambos têm razão e uma boa questão é o que faremos com este tipo de símbolos em homenagem a assassinos, escravocratas, ditadores etc.

Aldo, sempre tão generoso com a memória dos que até agora foram vencedores, talvez proponha uma coleta para restaurar a obra símbolo da "pátria" bandeirante. 

Maringoni propõe a “remoção do local” (parece que Borba Gato está lá desde 1963). Mas o que o preocupa mesmo são os efeitos políticos da defumação: “(...) tacar fogo na peça, como foi feito, é ato de puro vandalismo. A extrema direita se aproveitará do evento. A esquerda e os setores progressistas devem imediatamente desautorizar qualquer vínculo com a mazorca”.

A preocupação política é legítima. Se ela procede ou não, é um bom debate. 

Em nenhum caso, contudo, o critério pode ser apenas ou principalmente o referido por Maringoni, a saber: se “a extrema direita se aproveitará do evento”.

Claro que se aproveitará (já há posts falando de queima de igrejas). 

A direita em geral, o bolsonarismo em particular, tenta se “aproveitar” de qualquer coisa. 

Nem os que lutam certo, nem os que lutam errado, tampouco os bundões são poupados da propaganda da direita. Assim, o critério deve ser outro. 

O problema é que Maringoni acha que “tacar fogo na peça, como foi feito, é ato de puro vandalismo”. Ele não percebe que é preciso diferenciar o “puro vandalismo” de “performances” com propósito político. 

Neste caso do Borba Gato, mesmo que Maringoni tivesse razão e fosse provocação policial, em nenhum caso se trataria de “puro vandalismo”: existe um propósito político na ação. Desconhecer isto é validar o conservadorismo mais atroz. 

Por sinal, Aldo que me perdoe, em um país verdadeiramente democrático aquela estátua não teria sido construída nem estaria de pé. 

Voltando a Maringoni, ele foi um gentleman nas suas críticas, ao menos em comparação com Renato Rovai, que em artigo publicado na revista Forum disse o que segue: 

“Não foi um ato de terrorismo. Longe disso. É uma ação direta contra um símbolo cujo conteúdo histórico remete à opressão e ao genocídio. Mas é uma ação violenta contra o patrimônio histórico, mesmo que em sua base esteja a contestação à violência”.

“Não se pode escrever as regras do jogo apenas para um lado. Recentemente o ex-ministro da Educação Abraham Weintraub ameaçou retirar um mural de Paulo Freire do MEC porque ele era “feio, parecia um vudu e além do que Freire era comunista”.

“Sérgio Camargo, da Fundação Palmares, usou discurso semelhante para excluir nomes de lutadores e intelectuais negros da lista de personalidades da instituição. Foram 27, incluindo Gilberto Gil, Martinho da Vila, Marina Silva, Milton Nascimento e Sueli Carneiro. O motivo é que eram de esquerda”.

“É possível debater certas homenagens e buscar corrigi-las. Evidente que sim. Defendo que podemos e devemos debater e negociar a retirada de certos monumentos históricos de lugares públicos. E inclusive considero que se deva construir espaços para que certas estátuas e obras sejam expostas e que as histórias dessas personagens sejam contadas a partir de um viés crítico”.

“Mas destrui-las é agir como os talebans procederam no Afeganistão ou como os extremistas da Ucrânia que destruíram a estátua de Lenin. Não é um bom caminho. E para a esquerda é o caminho da burrice, porque quem costuma ter a força para destruir a História são as classes dominantes. Elas é que costumam ter o poder e as armas para destruir placas como as de Marielle”.

“Não é um jogo bom para a esquerda apostar na violência. Em especial num momento em que temos um fascista no poder com um governo militarizado e que está doido para poder achar “terroristas” por aí para justificar o uso da força contra o campo progressista e os movimentos populares”.

“Mas a burrice da ação contra a estátua de Borba Gato é ainda maior porque pegou carona num dia de lutas contra Bolsonaro. O genocida da vez que nos assombra com 550 mil mortes. O fascista que precisa ser derrotado pelo seu presente e não pelo seu passado. E, por conta do que foi feito, as redes ontem falaram mais de Borba Gato do que do seu impeachment. É uma pena”.

Como já disse antes, a preocupação política é legítima, ainda que possamos tirar conclusões diferentes. 

Já a comparação com os “extremistas da Ucrânia” e com os “talebans” é de um exagero sem tamanho.

Não sei se Rovai diria (ou disse) o mesmo do que foi feito, recentemente, com estátuas similares no mundo anglo-saxão. Ou será que lá pode?

O problema não é apenas o exagero; o problema principal é tratar de maneira simétrica a violência dos opressores e a violência dos oprimidos. 

Pode ser um erro político fazer tal e qual ato, especialmente em determinada data; mas defumar a estátua de um “escravocrata assassino” é um ato que possui uma legitimidade politica incomparável com a violência da extrema direita e do fundamentalismo religioso. 

Podemos discutir o que fazer com os símbolos que a classe dominante plantou e segue plantando neste país, mas não dá para tratar como equivalentes – por exemplo - o Paulo Freire e o Borba Gato.

Ademais, o “patrimônio histórico” não caiu do céu. Como bem lembrou o Célio Turino, "antes de escandalizarem-se de forma precipitada, censurando os atos como simples vandalismo ou esquerdismo infantil, melhor buscar compreender o que motiva essa indignação em relação a determinados monumentos, que, pela força simbólica, condensam essa "raiva". A partir dessa busca por compreensão cabe o diálogo quanto à forma".

Claro que este diálogo ficará mais difícil se atos como a defumação forem classificados como "burrice", termo adotado por Rovai entre outros motivos porque "quem costuma ter a força para destruir a História são as classes dominantes. Elas é que costumam ter o poder e as armas para destruir placas como as de Marielle”.

Isto que diz Rovai sobre a força da classe dominante é verdade. O problema é que continuaria sendo verdade se a estátua não fosse defumada. Até porque temos "um fascista no poder com um governo militarizado". 

Frente a isso há diferentes reações na esquerda: os que apostam quase tudo nas eleições, os que apostam quase tudo nas instituições, os que apostam quase tudo na mobilização de massas etc. E também há quem aposte tudo ou quase na ação direta. 

E, reitero, há inúmeros motivos e ambiente propício para que ocorram atos de “ação direta”, que obviamente podem ser objeto de manipulação da direita, assim como podem ser objeto de manipulação atos que aos nossos olhos têm legitimidade social e popular, mas que aos olhos da extrema direita e de amplas camadas da população também não têm.

Se a atitude da esquerda que se acha muito sabida, sabedora - e que ainda por cima se comporta como se tivesse feito tudo certo contra a extrema direita - for denunciar estes atos como “provocação policial”, o problema não será resolvido e pode até crescer. 

E para não dizer que não falei de flores: Borba Gato fez por merecer muito mais do que uma singela defumação. 


Fontes dos textos citados

https://www.diariodocentrodomundo.com.br/a-quem-interessa-incendiar-estatuas-no-mesmo-dia-de-protestos-contra-bolsonaro-por-gilberto-maringoni/

https://revistaforum.com.br/blogs/blogdorovai/fogo-no-borba-gato-nao-e-terrorismo-e-so-burrice-mesmo/

https://www.google.com.br/amp/s/www.brasil247.com/brasil/aldo-rebelo-diz-que-fogo-em-estatua-de-borba-gato-faz-parte-da-guerra-hibrida-contra-o-brasil%3famp


quinta-feira, 22 de julho de 2021

Maria Herminia, Cuba e a brutalidade

Os sandinistas tomaram o poder na Nicarágua em 1979. Adotaram um "modelo" de economia mista e pluralismo político. Não adiantou nada: desde 1981 os EUA financiaram e armaram uma guerrilha contra o regime sandinista. Mesmo assim os Sandinistas ganharam as eleições de 1984. Os EUA continuaram pressionando e apoiando os Contra. Os sandinistas não arredaram pé e mantiveram as eleições presidenciais de fevereiro de 1990. O povo votou com um fuzil apontado para a cabeça: se os sandinistas ganhassem, a guerra civil continuaria. Diferente de 1984, a oposição ganhou. “Democraticamente” tiveram início 16 anos de neoliberalismo. Mas tinha pluralismo partidário e propriedade privada que, na opinião de alguns, constituiriam a base da verdadeira democracia.

Nicarágua foi torturada pelos Estados Unidos por 10 anos. Os cubanos são torturados há uns 60 anos. Será que nessas condições seria possível manter um “socialismo libertário” e dispensar o apoio soviético?

Cuba buscou ampliar sua margem de manobra frente aos soviéticos, através do fortalecimento da esquerda na Ásia, na África e na América Latina. Em nosso continente, a quase totalidade das guerrilhas apoiadas por Cuba foi derrotada. Previsível mas infelizmente, pois nosso continente seria mais soberano, mais igualitário e mais democrático se a luta armada tivesse triunfado.

Com a crise e o desaparecimento da União Soviética, Cuba entrou no famoso “período especial em tempos de paz”. A partir de então, os danos causados pelo bloqueio estadounidense tornaram-se brutais. A situação econômica e social deteriorou-se. A situação política tornou-se mais difícil. Mas Cuba seguiu praticando a solidariedade internacional e nenhuma criança cubana dormiria na rua, entre outros detalhes que talvez não façam muita diferença para certo tipo de “ciência política”.

Cuba voltou a ter alguma folga a partir de 1998, quando por toda a América Latina começaram a surgir governos de esquerda e progressistas, que administraram seus países “com pleno respeito pelas liberdades”, mas que mesmo assim foram vítimas de todo tipo de patranha por parte da mesmíssima direita que ama os EUA e demoniza Cuba.

E o bloqueio? Seguiu, as vezes mais relaxado, as vezes mais brutal, como ocorreu durante o governo Trump e segue durante o governo Biden, que está firme no propósito de fazer uma "revolução capitalista"... em Cuba.

Aliás, se eu trabalhasse no Departamento de Estado, estaria nesse momento embrulhando um “presente” para enviar a Cuba, por ocasião do aniversário do assalto ao Quartel Moncada, ocorrido no dia 26 de julho de 1953.

É certamente um bom momento para isto: uma nova geração assumiu o comando do governo cubano, acumulam-se problemas de longa data que exigem solução para ontem, está em curso uma reforma que como todas tende a causar mais problemas antes de causar mais benefícios, a pandemia afetou pesadamente o turismo, o bloqueio endureceu, a economia está no limite, parte da população está cansada e sem perspectivas etc.

Frente a isso, o Partido dos Trabalhadores escolheu fazer a coisa certa: denunciar o bloqueio e prestar solidariedade incondicional ao povo e ao governo cubano.

Há quem escolha fazer diferente: denunciar a "ditadura", virar as costas, impor condições, dar conselhos ao estilo “engenharia de obra feita”, sugerir como modelo nossa experiência 100% exitosa de luta contra a direita brasileira, propor a eles construírem o socialismo libertário etc.

Nos últimos dias, vi, ouvi e li de tudo. O troféu "brutalidade" - por enquanto - foi para Maria Herminia Tavares de Almeida, cientista política e socióloga brasileira.

Palavras de Hermínia, em artigo publicado no dia 21 de julho na FSP: “pobre, isolada, embargada e sem a influência de outrora, Cuba não passa de um anacronismo. Mais insondáveis se tornam, por isso, as razões da tolerância retórica do PT diante das arbitrariedades cometidas pela ditadura de Havana contra seus cidadãos. Essa ambiguidade apenas gera ruído que alimenta o discurso obscurantista da extrema direita. Por isso, é pior que um erro. É um delito político. Há que dar adeus a Cuba”.

Confesso que não me surpreendo com a expressão “delito político”, afinal não faz muto tempo que os tucanos aplaudiram a prisão e condenação e interdição de Lula. Nem me surpreendo com a pressão sobre o PT: também não é de hoje que buscam nos domesticar com este tipo de demagogia.

O que considerei merecedor do troféu "brutalidade" foi a frase “Cuba não passa de um anacronismo”. Não é o PC cubano, não é o regime cubano, não é o modelo cubano. É Cuba.

Não sei que decorrência Maria Hermínia tira disto. Delenda Cuba? Cortem as suas cabeças? Enola Gay? Desert Storm? 

Seja qual for, me causa repugnância este jeito de tratar um país, uma nação, um povo, uma cultura, situação e oposição, reduzindo tudo a um "anacronismo".

Espero que tenha sido um erro do editor da Folha... 

Mas se não tiver sido, se Maria Herminia cometeu mesmo o raciocínio, só me resta apelar à frase célebre (cujo sentido, talvez por ato falho, ela inverteu no parágrafo supracitado): reduzir Cuba a um anacronismo é pior do que um crime, é um erro. 

Crimes as vezes não são punidos, vide os militares que hoje nos governam. Já erros provocam sempre consequências. Tenhamos ou não concordância com o governo cubano, é hora de defender a soberania de Cuba. Sem isto, não haverá depois disso.

Se a América Latina deixar Cuba sofrer o mesmo destino da revolução haitiana, podemos dar adeus a nosso futuro. 


Hora de dar adeus a Cuba

https://www1.folha.uol.com.br/colunas/maria-herminia-tavares/2021/07/hora-de-dar-adeus-a-cuba.shtml?origin=uol

Em 1960, Jean-Paul Sartre visitou o país com a sua companheira, a escritora Simone de Beauvoir.

Os mais cultivados entre os seus admiradores brasileiros esperavam que ele falasse do existencialismo, ou de seu polêmico livro "Crítica da Razão Dialética" — aqui lido por poucos. Mas, vindo de Havana, seu assunto foi a Revolução Cubana: a seu ver, a promessa de um socialismo libertário, a léguas do modelo soviético, e o fato presente de que a vitória dos guerrilheiros de Sierra Maestra atingia os interesses americanos no seu quintal, subvertendo a geopolítica da Guerra Fria. O fim da ditadura de Batista fez mais do que aquecer os corações da juventude rebelde e de intelectuais progressistas em muitos países: mudou a história da esquerda.

Só que o grande pensador francês estava errado. Não passou uma década para que Cuba se amoldasse ao "socialismo real", confirmando que não há espaço para a democracia e as liberdades quando as empresas são do estado e o regime é de partido único.

Sua estrela política só se apagou com a derrota dos movimentos de oposição armada aos governos militares que fizeram da América Latina dos anos 1970 uma usina de autoritarismo. Inspirados pela experiência cubana e apoiados pelo governo de Fidel, multiplicaram-se pela região focos de luta armada — de esquerda, mas também autoritários e incapazes de vencer as ditaduras de direita.

Elas, finalmente, cederam à força de ampla movimentação democrática, à qual se somavam lideranças e organizações de diferentes colorações políticas. Os partidos e agrupamentos de esquerda que dela participaram nada tinham a ver com Cuba e seu modelo socialista, ainda que contassem com a participação de ex-guerrilheiros convertidos aos valores democráticos. O chileno Partido pela Democracia (PPD), as organizações uruguaias que se reuniram na Frente Ampla e o Partido dos Trabalhadores, no Brasil, são os exemplos mais destacados dessa esquerda com inequívoco compromisso com a democracia, as garantias individuais e o reformismo social. Compromissos mais do que provados quando governaram seus países com pleno respeito pelas liberdades públicas.

Enquanto isso, pobre, isolada, embargada e sem a influência de outrora, Cuba não passa de um anacronismo. Mais insondáveis se tornam, por isso, as razões da tolerância retórica do PT diante das arbitrariedades cometidas pela ditadura de Havana contra seus cidadãos. Essa ambiguidade apenas gera ruído que alimenta o discurso obscurantista da extrema direita. Por isso, é pior que um erro. É um delito político. Há que dar adeus a Cuba.

Maria Hermínia Tavares, professora titular aposentada da USP e ex-docente da Unicamp

Sátira de autoria desconhecida

Nesta manhã de 22 de julho, logo depois de ler um texto publicado na falha de SP, recebi e socializo o texto abaixo, de autor e paradeiro desconhecido:

Uma das coisas mais encantadoras que existe é a compaixão que os bem-aventurados demonstram ter pelos danados da Terra.

O cidadão (ou cidadã) vive bem, come bem, dorme bem, se veste bem, frequentou boas escolas e tem acesso adequado à saúde, não lhe falta energia elétrica nem água limpa e - que lindo – ainda encontra tempo e energia para se preocupar com o fato de que a esmagadora maioria das pessoas que vive neste planeta não tem e nunca teve nada disso.

Às vezes a preocupação chega ao ponto de virar doação, voto ou até mesmo militância numa ONG, num partido, num mandato institucional. Se bobear, vira até intelectual globalmente conhecido por suas opiniões humanitárias e engajadas.

Mas sabe como são as coisas: não faz sentido despir um santo para vestir outro. Então, a compaixão, para ser eficaz e eficiente e efetiva, precisa ser direcionada no sentido de convencer os pobres de que - para melhorar de vida – eles têm que se esforçar, têm que demonstrar que sabem subir na vida por seus próprios méritos.

Mérito é fundamental!

E fazendo assim, veja que legal, crescerá a produtividade e a produção e – bingo – como resultado aquilo que o pobre vier a ganhar terá sido produto dele mesmo e não do rico. Mostrando que a sociedade oferece os problemas quando já tem as soluções à vista!

O que tem a vantagem adicional de contribuir para a autoestima do pobre, que desta maneira não se sentirá merecedor da caridade alheia. Por isso, gente, o negócio é ensinar a pescar, para que cada um tenha o que consiga com seu próprio esforço!

E que isto demore um pouco é algo normal, mais que isso é inclusive natural que a pobreza só possa ser reduzida bem devagar e a desigualdade as vezes nem isso, afinal veja bem: quem faz milagre em 7 dias é Deus, não gente como a gente!

Mesmo os que vieram de barco e hoje são ricos demoraram muito para juntar sua fortuna e olha que eles são em pequeno número; por isso, vamos dar tempo ao tempo!

Além do que “there is no alternative” ao método lento, seguro e acima de tudo gradual. Pois querer mudar tudo de pressa, rapidamente, de maneira atabalhoada, confusa, além de ser um horror estético – pobreza não combina com palácio – não dá certo, simplesmente não dá certo. 

Pois como sabemos, para acelerar o ritmo da ascensão social seria preciso transformar o Estado naquele Leviatã que inferniza a vida das pessoas, especialmente das pessoas de bem, que mesmo tendo os meios, não poderão mais fazer o que querem, quando querem e como querem. 

Ademais, bloqueadas as fontes de toda a riqueza e inovação – a propriedade privada, o livre mercado e a remuneração adequada pelo esforço do proprietário: o lucro” – a sociedade vai estagnar ou retroceder. E tudo isto vai prejudicar principalmente quem? Os pobres!

E tem algo ainda pior nisso tudo: essas aventuras voluntaristas, de gente apressada, que não tem aquelas qualidades que vem do berço, provocam reações dos que – diferente de nós – não têm compaixão. 

É daí que surgem os golpes militares, as ditaduras, as intervenções estrangeiras e os bloqueios: reações aos desatinos de gente apressada. 

Para evitar que os reacionários reajam, é preciso mudar lentamente, de preferência silenciosamente, para que o gigante não desperte.

Por tudo que foi exposto antes, nem que seja por compaixão aos que têm compaixão por si, os pobres da terra deveriam perceber que precisam ficar no seu lugar. Pois como sabemos, bem aventurados os pobres, pois deles é o reino de Deus.

*

Publico o texto anônimo acima como homenagem a "colegas de profissão" que são capazes de falar com sincera paixão dos jacobinos negros do Haiti e de sua revolução sufocada pelas potências do século XIX, ao mesmo tempo que contribuem – com suas palavras e atos ou falta deles– para que os gringos sufoquem a revolução cubana.

Normal: para a turma de Higienópolis, comunista bom é comunista morto, revolução boa é revolução morta!


quarta-feira, 21 de julho de 2021

MARCO AURÉLIO GARCIA VIDA E OBRA

O texto abaixo é uma versão revista e atualizada do que preparei para a aula debate sobre a vida e a obra de Marco Aurélio Garcia. Participaram da aula-debate, além de várias pessoas convidadas e do corpo discente, a professora Maria Carlotto e o professor Victor Marques.

Marco Aurélio Garcia (22/6/1941-20/7/2017) foi - junto com Celso Amorim, Samuel Pinheiro Guimarães, Luís Inácio Lula da Silva e Dilma Rousseff - um dos principais formuladores e executores da política externa conhecida como "altiva e ativa".

Além disso, MAG foi protagonista do debate sobre as tentativas de construção do socialismo no século XX e XXI e, também, do debate sobre a estratégia da esquerda brasileira.

MAG faleceu pouco depois de completar 76 anos, no dia 20 de julho de 2017, há exatos quatro anos, vítima de um infarto fulminante que o surpreendeu em seu apartamento na Praça da República, no centro de São Paulo capital.

Para marcar a data, o professor Victor Marques e a professora Maria Carlotto tiveram a ideia de realizar exatamente no dia de hoje uma atividade uma homenagem a este brasileiro ilustre, como se diria noutros tempos.

Entre as alternativas possíveis, optamos por fazer isto através de uma aula-debate na disciplina intitulada “América Latina e Caribe: Inserção Mundial e Trajetórias”, do programa de pós graduação em Economia Política Mundial da Universidade Federal do ABC.

Primeiro, porque a vida e a obra de MAG têm relação direta com os temas abordados nesta disciplina: os dilemas do mundo, da América Latina e Caribe, mas especialmente do Brasil nesse momento tão especial e tão difícil da vida nacional. [Outros aspectos de sua trajetória, que certamente também merecem análise, com destaque para seu artesanato gastronômico, ultrapassam os limites desta disciplina].

E nada melhor do que uma aula - em uma universidade pública - para debater a vida e a obra de alguém que tinha orgulho de ser um “professor”.

Como professor responsável por ministrar a disciplina “América Latina...” neste segundo quadrimestre de 2021, me coube abrir a aula-debate. Para tal, além da memória e do meu arquivo pessoal, contei com as seguintes fontes:

*a “Coleção MAG”, composta até agora por três volumes: A Opção Sul-AmericanaConstruir o Amanhã e Notas para Uma História dos Trabalhadores. A organização destes volumes foi feita por Bruno Gaspar, Rose Spina e Dainis Karepovs. Os três livros estão disponíveis gratuitamente para download. A coleção foi edita sob o patrocínio da Fundação Perseu Abramo e do Instituto Futuro - Marco Aurélio Garcia.

*o dossiê publicado pela revista Teoria e Debate, com artigos entre outros de Monica Hirst, Maria Regina Soares de Lima, André Singer, Marcelo Ridenti, Jorge Mattoso, Martín Granovsky e Walnice Nogueira Galvão.

*a entrevista feita pelos professores Alexandre Fortes, do Instituto Multidisciplinar da UFRRJ, e Paulo Fontes, do Instituto de História da UFRJ. A entrevista foi publicada originalmente em Laboratório de Estudos de História dos Mundos do Trabalho (LEHMT) da UFRJ.

Começo exatamente citando os professores Alexandre Fortes e Paulo Fontes:

“Marco Aurélio Garcia, o MAG, como era conhecido, nasceu em 22 de junho de 1941. Militante do movimento estudantil, aderiu ao Partido Comunista do Brasil (PCB) no final dos anos 1950. Foi vice-presidente da União Nacional dos Estudantes entre 1961 e 62. Após o golpe de 1964, aderiu à Dissidência do Partido Comunista no Rio Grande do Sul e, em seguida foi um dos fundadores do POC (Partido Operário Comunista). Em 1967, ele e a socióloga Elizabeth Lobo, com quem era casado, partiram para a França. Chegaram a voltar para o Brasil e depois foram para o Chile durante o governo da Unidade Popular liderado por Salvador Allende. Com o golpe de 1973, exilaram-se definitivamente na França, onde completaram sua formação acadêmica”.

De volta ao Brasil, depois da Anistia de 1979, MAG trabalhou profissionalmente como professor, tendo sido parte do Departamento de História da Universidade de Campinas e um dos criadores do Arquivo Edgar Leuenroth.

Conforme nos lembra Cláudio Batalha, MAG “foi um dos iniciadores do GT “Partidos e Movimentos de Esquerda” junto à Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais (ANPOCS), junto com outros pesquisadores como João Quartim de Moraes e Daniel Aarão Reis Filho. No âmbito desse GT foi retomada a ideia de elaborar a história da esquerda no Brasil, que depois foi mudada para uma história do marxismo no Brasil, dando origem à publicação da coleção homônima de seis volumes a partir de 1991. Na qual, paradoxalmente, Marco Aurélio Garcia nunca chegou a escrever, possivelmente porque essa publicação coincidiu com o período em que assumiu a Secretaria de Cultura de Campinas na gestão de Jacó Bittar e depois desempenhou funções de crescente responsabilidade no PT, resultando no seu crescente afastamento da vida acadêmica”.

Vale dizer que seu envolvimento com a vida partidária não o afastou das preocupações ditas “acadêmicas”. Como prova disso, Batalha lembra que “em 1997, dentro da Fundação Perseu Abramo, [MAG estruturou] o Projeto Memória e História do PT, o qual, em 2011, se transformou no Centro Sérgio Buarque de Holanda, instituição responsável pela preservação da memória do partido”.

Voltando aos anos oitenta: como tantos outros que regressaram do exílio, MAG manteve intensa atividade política. Destaco sua participação, com Eder Sader e outros, na criação da revista Desvios e , claro, sua militância no então recém-criado Partido dos Trabalhadores, em cuja direção nacional chegou a ser presidente nacional (em 2006), além de por muitos anos ter sido membro da comissão executiva nacional, vice-presidente e, com destaque, secretário de relações internacionais.

MAG também foi secretário de Cultura de Campinas (1989-1990) – quando se criou a revista Trabalhadores -e depois encabeçou a secretaria de Cultura de São Paulo capital (2001-2002).

Entretanto, a partir dos anos 1990, a atividade política de MAG foi se concentrando nas relações internacionais do PT e na política externa do Brasil.

Lembro que ele foi um dos fundadores, em 1990, do Foro de São Paulo; e que foi de 2003 a 2016 Assessor-Chefe da Assessoria Especial para Assuntos Internacionais da Presidência da República.

Tanto na SRI quando na PR, MAG contou com um conjunto de colaboradores, entre os quais cito Nani Stuart, Bruno Gaspar, Audo Faleiro e Ricardo Azevedo.

Também cabe citar sua mãe Sonia, seu neto Benjamim, seu filho Leon e – vou transcrever um trecho do texto de Jorge Matoso – “sua esposa, companheira de vida, militância e mãe do Leon, a Beth Souza Lobo”, falecida “em um acidente de automóvel em março de 1991 perto de João Pessoa. Na Paraíba, Beth foi dar palestras no Mestrado de Ciências Sociais da UFPB e em Campina Grande entrevistou mulheres militantes sindi­cais rurais”.

Aliás, recomendo enfaticamente ler o texto que MAG escreveu sobre Beth, intitulado “AUSÊNCIA E PRESENÇA” e publicado na revista Teoria e Debate n. 14, abr/ma/jun. de 1991.

A vida e a obra de MAG são deveras interessantes.

Infelizmente, ele mesmo não nos deixou uma autobiografia, nem mesmo publicou livros autorais que sistematizassem sua opinião.

Aliás, salvo engano da minha parte, ele foi “dispensado” da – para alguns – via crucis de elaborar uma dissertação de mestrado e uma tese de doutorado.

Segundo me informou um de seus alunos, “ele e a Beth iniciaram [a pós graduação] sob orientação do Lucien Goldman em Paris. Ela concluiu, mas não tenho certeza no caso dele. (...) No Brasil, nos anos 70 havia muita gente lecionando em universidade sem ter pós-graduação, mas não sei se ocorria na França. No Brasil ele estava inscrito como aluno de doutorado na USP tendo o Leôncio [Martins Rodrigues, 1934-2021] como orientador. Essa era a tese que nunca terminou.  Mas ele pode ter entrado direto no doutorado”.

Como nos disse Bruno Gaspar, pouco antes de falecer MAG tinha planos de escrever muito. Segundo Jorge Matoso, “Marco Aurélio recomeçou a organizar em seu apartamento os livros e um conjunto amplo de materiais dos mais diversos tipos (anotações, cartas e escritos variados) acumulados e guardados em muitas caixas ao longo de muitos anos. Esse processo – que já gerava palestras e deveria resultar em textos e livros que favorecessem o mais amplo conhecimento desta sua atividade única, militante e intelectual nas relações internacionais – foi lamentavelmente interrompido por sua morte repentina”.

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A maior parte das pessoas que conheceu MAG despois de sua volta do exílio pouco sabe de sua vida antes do golpe militar de 1964. Parte desta lacuna é preenchida pela entrevista supracitada, feita no dia 18 de novembro de 2009 e que cobriu basicamente os primeiros 23 anos de vida de MAG.

Por diversos motivos, não aconteceu a continuidade da entrevista – cobrindo o período pós 1964 – o que é uma tragédia sem nome para os que fazemos parte da Central Única de Historiadores, entidade cuja sigla – como o Waldemor de Harry Porter –não deve nunca ser mencionada.

Naquela entrevista, Marco Aurélio fala de sua família (gaúchos progressistas de classe média), fala do ambiente político e cultural do Rio Grande do Sul e conta um detalhe particularmente interessante: [minha] “família é laica. Meus pais não casaram no religioso, eu não sou batizado, eu não casei no religioso, meu filho não é batizado. Laicidade. O meu avô materno era espírita, mas se comportava como um laico, de uma maneira geral. E, de uma certa maneira, tinha um certo componente anticlerical na família”.

MAG também conta muitos episódios curiosos, entre os quais: “Havia um programa lá em Porto Alegre, na Rádio Guaíba, que era um grande sucesso, e eu terminei me inscrevendo. Participei de treze programas e ganhei. O prêmio foram duas viagens para Paris. Então fui com meu pai. Uma coisa interessante, porque eu nunca tinha saído de Porto Alegre. Eu não conhecia nem São Paulo nem o Rio de Janeiro. (...) Eu fui a Paris em janeiro de 1959, passei um mês, fui a Lisboa”.

O mais importante da entrevista, obviamente, é o que ele nos conta acerca de sua vida intelectual, de sua militância estudantil, de seu ingresso no Partido Comunista.

Em julho de 1961 Marco Aurélio foi eleito vice-presidente da UNE, mais precisamente “vice-presidente da Reforma Universitária e Cultura”.

Era uma época de efervescência política e cultural, no qual a UNE estava metida dos pés à cabeça: “Nós organizamos a greve do 1/3, que foi uma greve que paralisou as universidades brasileiras, todas, sem exceção (Todas! Isso é uma coisa espantosa) durante quase dois meses”.

MAG nos conta que viveu “um ano no Rio de Janeiro, e foi um momento que eu conheci o Brasil. Salvador tinha me chamado muito a atenção. (...) UNE Volante. Então nós fomos para Manaus, Belém do Pará, Piauí”.

Ele destaca que naquela época conhecer vários estados do país não era algo comum, nem mesmo para pessoas de “classe média”.

Além disso, há detalhes interessantíssimos dos contatos que MAG manteve - na véspera da renúncia - com o presidente Jânio Quadros, com o governador Leonel Brizola e com San Tiago Dantas, quando este era cotado para ser primeiro-ministro.

Quando terminou sua gestão como vice-presidente da UNE, MAG e outros foram participar do congresso da União Internacional do Estudantes, em agosto de 1962, na cidade de Leningrado, hoje renomeada de São Petersburgo. Foi também à Polonia, a Romenia, a Iugoslávia e a Tchecoeslovaquia.

De lá ele volta para o Brasil, onde se dedica a concluir sua formação universitária e organizar o Partido Comunista. Além de ter sido eleito vereador em Porto Alegre, de fato pelo PCB mas de direito pelo “Partido Republicano”. Em seguida vem o golpe, a ruptura com o PCB e o exílio, “entre 1970 e 1979, quando foi professor na Universidade do Chile (na Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais) e nas Universidades de Paris 8 e Paris 10, da França”.

Como se vê, por essa breve resenha, foi uma vida venturosa, de uma pessoa com qualidades humanas muito interessantes, que são fortemente destacadas por todos os que escreverem no Dossiê publicado recentemente pela revista Teoria e Debate, por ocasião de seu aniversário de nascimento (junho de 1941).

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Ao analisar a vida e obra de MAG, percebo que suas posições sobre a política externa do Brasil foram construídas a partir da reflexão acerca dos dilemas programáticos e estratégicos da esquerda brasileira.

Embora esta reflexão envolva outros momentos e outros aspectos, um ponto importante foi a coleção de textos escritos por MAG acerca da esquerda brasileira.

Nas palavras do professor Marcelo Ridenti: “em 1979, voltando do exílio após a anistia, Marco Aurélio Garcia produziu uma série lendária de artigos para o jornal alternativo Em Tempo sobre a história da esquerda brasileira de 1960 a 1979”, “antecedendo em oito

Em Tempo iniciou a publicação da série Contribuição à História da Esquerda Brasileira em agosto de 1979, chegando a um total de 29 artigos, 22 deles de Marco Aurélio, autor também de mais duas matérias e respostas a várias cartas”.

Foram 34 as “organizações elencadas, a partir de três eixos: o caráter da revolução brasileira (nacional-democrática ou socialista), o tipo de organização revolucionária (partido ou grupo de guerrilha), e as formas de luta para chegar ao poder (pacífica ou armada – insurrecional ou guerrilheira – com ênfase no campo ou na cidade), com diversas posições híbridas ou intermediárias entre cada alternativa. Essas três coordenadas analíticas tornaram-se tão correntes em estudos posteriores que muitas vezes se esquece sua origem na obra de Marco Aurélio”.

Não cabe aqui fazer uma análise propriamente historiográfica deste tour de force, nem tampouco de suas referências intelectuais, entre os quais Ridenti cita E. P. Thompson, Claude Lefort e Cornelius Castoriadis.

No contexto desta aula-debate, o que me parece ser necessário destacar é que este balanço da trajetória da esquerda brasileira contribuiu muito para MAG construir sua “visão” pessoal acerca de qual deveria ser a “linha” adotada pela esquerda brasileira a partir dos anos 1980. Esta visão/linha é o “núcleo duro” a partir do qual MAG foi construindo sua abordagem acerca da política internacional do PT e da política externa do Brasil.

Segundo Ridenti, “havia nas entrelinhas a esperança de que o novo partido que se gestava [Ridenti se refere aqui ao Partido dos Trabalhadores] pudesse ser a superação das tradições anteriores, notadamente a bolchevique e a social-democrata, indo além também do anarquismo, do trotskismo, da esquerda cristã, do trabalhismo, identificando-se com propostas autonomistas”.

Mais adiante MAG se concentrará no objetivo de superar apenas duas destas tradições: a comunista e a social-democrata. Ressalto que a relativa desatenção concedida ao trabalhismo e ao desenvolvimentismo ajudam a compreender alguns dos dilemas intelectuais e políticos que ele enfrentou, não apenas no período em que foi assessor da presidência da República (2003-2016), mas principalmente depois do impeachment da presidenta Dilma Rousseff.

Selecionei três textos – de 1990, 2003 e 2015 – para exemplificar o que foi dito acima.

O primeiro deles é o artigo intitulado “Terceira via: a social-democracia e o PT”, publicado pela revista Teoria e Debate nº 12, em novembro de 1990.

O segundo texto intitula-se “Pensar a terceira geração da esquerda” e corresponde a uma palestra feita por MAG no seminário internacional “História e perspectivas da esquerda”, realizado na USP entre os dias 13 e 15 de agosto de 2003.

O terceiro texto, por sua vez, corresponde a participação de Marco Aurélio Garcia no Colóquio Internacional "Claude Lefort: a invenção democrática hoje", na Universidade de São Paulo, em 14 de outubro de 2015.

No artigo de 1990, Marco Aurélio afirma que seria “óbvio” que “o socialismo não era o objetivo imediato do partido”: “somente cabeças muito acaloradas poderiam imaginar que o socialismo se colocava como questão de atualidade imediata”, deixando claro que nisto “o PT não se diferenciava dos partidos comunistas”.

Registro que nessa fórmula sintética podem se confundir – ou melhor, pode não se distinguir - duas questões diferentes: uma é saber se a conquista do poder e a construção de uma sociedade socialista eram os objetivos táticos imediatos do PT; outra é saber se o socialismo era o objetivo estratégico ou se antes dele se pretendia alcançar um objetivo intermediário (uma etapa de desenvolvimento capitalista, uma revolução democrático-burguesa, uma fase de libertação nacional etc.).

Poucos anos antes do texto de MAG ser escrito, o PT realizara um congresso (denominado 5º Encontro Nacional, de 1987) onde foi aprovada uma resolução que afirmava o socialismo como objetivo e recusava explicita e nominalmente “uma nova teoria das etapas”.

Portanto, quando MAG fala que “nisto” o PT não se diferenciava dos partidos comunistas, ele deve estar se referindo a atualidade imediata, no sentido de atualidade “tática” do socialismo. Mas o que de fato começou a ocorrer, da parte de alguns setores do PT ao longo dos anos 1990, foi o deslizamento para uma nova “teoria das etapas”, a saber: primeiro caberia lutar contra o neoliberalismo e depois lutar contra o capitalismo/diretamente pelo socialismo.

Voltando ao texto de 1990: nele MAG diz que a diferença entre comunistas e petistas estaria na “forma” pela qual se “articulam a luta por este programa democrático-popular com os objetivos socialistas”.

E neste ponto ganharia “considerável importância” a “discussão com a social-democracia e a pergunta sobre as perspectivas de sua vigência em países como o Brasil”.

A esse respeito, Marco Aurélio registra que existiriam duas posições: numa “as reformas teriam um caráter cumulativo e terminariam levando ao socialismo, pensado como regime qualitativamente distinto”; noutra “não havia uma diferença qualitativa entre capitalismo e socialismo. O socialismo passava a ser o próprio movimento pelas reformas”. Destacando que se trata de uma questão “fundamental para a discussão estratégica da esquerda”, MAG defende que ela deveria ser respondida não “discutindo a tese geral, em abstrato, mas examinando no contexto brasileiro”, no qual o caminho para as “reformas” exigiria um “agudo processo de lutas sociais”, uma “rearticulação da luta pela democracia política com a democracia social e destas duas com o socialismo”, com a luta pelo socialismo tendo “que levar em conta o potencial político-revolucionário das reformas sociais e tirar as consequências disto no plano da luta pelo poder”.

A esse respeito, Marco Aurélio afirma que “um dos avanços do PT é abandonar a ideia do poder como um lugar a ser tomado e reformado (proposta social-democrata) ou tomado, destruído e reconstruído (proposta revolucionária clássica)”.

MAG alerta que “esta inovação, pelo menos para o debate político brasileiro, tem de ser aprofundada, sob pena de, aí sim, o PT sucumbir a uma das teses mencionadas e das quais se distanciou”.

O texto de 1990, ao apresentar as coisas desta maneira, releva:

*uma tradição que se construíra no próprio movimento comunista – o denominado eurocomunismo - sem falar nas reflexões do professor Carlos Nelson Coutinho e outros militantes destacados do comunismo brasileiro;

*a experiência latino-americana que buscou escapar do dilema exposto por MAG: o Chile da Unidade Popular (1970-1973). MAG esteve no Chile neste período e tinha opiniões fortes a respeito, mas o tema não comparece no texto de 1990;

*as experiências e os dilemas do trabalhismo e do desenvolvimentismo de esquerda, especialmente no período anterior ao golpe de 1964 (dilemas que voltariam com força no período dos governos Lula e Dilma).

Obviamente MAG não desconhecia nada disso. Por isso mesmo cabe perguntar: por qual motivo não incluiu (nem mesmo citou) estas três questões na equação?

Há vários motivos possíveis, mas me concentrarei naquele motivo que parece óbvio para quem assistiu Dark: frente ao iminente colapso da URSS, muitos militantes de esquerda buscavam descobrir o ponto na história a partir do qual a tragédia se tornara irreversível. Alguns localizavam este ponto na eleição de Gorbachev para a secretaria geral do Partido Comunista soviético (PCUS), outros no período Brejnev, outros no XX Congresso do PCUS, outros na ascensão de Stálin...

Tenho a impressão de que para MAG o “nó” estaria na trágica cisão ocorrida no movimento socialista, especialmente entre 1914 e 1921. Neste sentido, a defesa de uma esquerda pós-socialdemocrata e pós-comunista seria uma tentativa de (perdoem o comentário vintage) “rebobinar e recomeçar”.

Esta maneira de ver as coisas tem seus pontos fortes. Mas tem também seus pontos fracos. O principal deles é que a cisão socialdemocracia/comunismo não foi produto de um mal entendido; resultou de diferentes opções frente a situações históricas determinadas. Portanto, não basta querer uma esquerda que seja pós-comunista e pós-socialista. É preciso existir uma situação histórica em que esta esquerda possa prosperar. O fracasso do eurocomunismo, a derrota da Unidade Popular e os dilemas do trabalhismo e do petismo no Brasil demonstram – na minha opinião – que as bases objetivas da cisão entre socialdemocracia e comunismo não foram superadas; motivo pelo qual, no final das contas, mesmo que por caminhos diferentes, as ideias, as pessoas e os partidos acabam voltando ao dilema original. (Para os que assistiram Dark: até agora não se conseguiu voltar ao momento do acidente na ponte.)

Sigamos a análise do texto de 1990.

Defendendo articular “a luta pela democracia política com a luta pela democracia social”, articulação que se desdobraria “no plano social e no plano institucional”, MAG propõe que o PT deveria assumir “uma postura republicana” que demonstraria “como o Estado está a serviço das classes dominantes e não é um instrumento de conciliação social, como pretende a ideologia dominante”.

Em resumo, MAG defendia que “para construir seu projeto de transformação socialista do Brasil”, o PT precisaria “escapar do dilema bolchevismo x social-democracia”, evitando tanto a “defesa intransigente da ortodoxia” quanto o “abandono da noção de socialismo em proveito de um (neo)liberalismo que nem mesmo os (neo)liberais praticam”.

Desde 1990 até hoje, esta “inovação” pretendida por MAG segue carente de aprofundamento.

Por “inovação” refiro-me à ideia de que “um dos avanços do PT é abandonar a ideia do poder como um lugar a ser tomado e reformado (proposta social-democrata) ou tomado, destruído e reconstruído (proposta revolucionária clássica)”.

O artigo que analisamos anteriormente foi publicado em novembro de 1990. Uma década, dois anos e alguns meses depois o PT chegaria ao governo federal.

Hoje, parafraseando MAG, só “cabeças acaloradas” seriam capazes de sustentar que deu tudo “certo” ou tudo “errado”. Afinal, o PT chegou onde a esquerda brasileira nunca havia chegado, o que contribuiu para mudanças importantes do ponto de vista da maioria do povo. Mas também é preciso dizer que o PT fez escolhas que, ao fim e ao cabo, confirmaram esplendorosamente que o Estado está mesmo “a serviço das classes dominantes”, cuja derrota dependeria de um “agudo processo de lutas sociais” que não compareceram, nem (na minha opinião) foram devidamente incentivadas por quem poderia e deveria fazê-lo.

Há muitos motivos para o que ocorreu, bem como para as escolhas feitas pelo Partido dos Trabalhadores, especialmente entre 2003 e 2016.

Uma delas é que o PT não era social-democrata, mas tinha muitos candidatos a bolchevique. Daí resulta que – ironia da história – na tentativa de escapar do dilema bolchevismo x social-democracia, muita gente tenha deixado de ser “bolchevique” mas pouca gente tenha deixado de ser “social-democrata”.

O que – misturado com a influência do trabalhismo e do desenvolvimentismo - desembocou em um equilíbrio ecológico-ideológico que certamente não correspondia ao que Marco Aurélio defendia e pretendia.

Um dos efeitos disto foram as opções políticas feitas, durante os governos Lula e Dilma, em nome do “republicanismo”, mas numa direção oposta à desejada por MAG.

Aliás, a esse respeito vale reler o que diz o próprio MAG acerca do golpe de 1964, na entrevista concedida a Alexandre Fortes, sua crítica ao “despreparo, uma subestimação, completamente, dos efeitos que uma mobilização da direita poderia ter. (...) nessa época, o Estadão publicou uma série de artigos do [jornalista] José Stacchini, que ele reuniu num livro primoroso, extremamente inteligente, chamado Março de 64: Mobilização da audácia”. Onde ele, como o título diz, credita em grande medida o êxito do golpe a essa “mobilização da audácia”.

A “audácia” que faltou a esquerda, compareceu de sobra na direita, tanto em 1964 quanto em datas mais recentes.

Lendo os textos de MAG, não tenho dúvida de que ele tinha consciência plena destes problemas e limites. Mas frente a estes problemas e limites, ao menos nos textos e nos espaços públicos, predominava nele a tendência a apontar que o “copo” estaria “meio cheio”. Acredito que isto se deva, entre outros motivos, a algo simples: outra atitude colocaria em questão as premissas teóricas, programáticas e estratégicas a que nos referimos anteriormente. Mas seria subestimar a inteligência de MAG achar que este seria o motivo principal. Há pelos menos dois outros motivos que pesaram mais: as conquistas reais obtidas pela classe trabalhadora e os êxitos reais da política externa.

Hoje sabemos que estes êxitos não sobreviveram à contraofensiva reacionária. Mas eles não são menos reais por isso e – na minha opinião – são aqueles êxitos que explicam o fundamental da dificuldade que MAG tinha em perceber o “lado B” de sua aposta programática e estratégica.

Aqui é preciso explicitar o seguinte: no terreno da política geral do PT e do governo, a influência de MAG foi relativamente menor, embora em alguns momentos pontuais possa ter sido muito expressiva (por exemplo, no final de 2006). Mas no terreno da política internacional do PT e no terreno da política externa do governo, MAG sempre exerceu grande influência.

A esse respeito, o já citado texto de 1990 diz que a escolha dos interlocutores internacionais do PT “está vinculada a esta preocupação de construir um projeto socialista para o Brasil levando em conta as ricas, e às vezes dramáticas, experiências do socialismo internacional. Abre-se fundamentalmente para uma nova esquerda que se constitui (ou se reconstrói) politicamente na América Latina e que enfrenta vicissitudes semelhantes às nossas”. “Dialoga, sem preconceitos, com a social-democracia, e com as expressões do comunismo renovado que se manifestam em países como a Itália ou mesmo no Leste Europeu”. “Colabora, ainda, com forças alternativas, como os verdes alemães, o SOS Racisme da França e outros movimentos que buscam saídas originais para a crise da esquerda”.

MAG prevê que a "reconstrução" do Leste Europeu “se dará em meio a duros embates sociais e políticos, desmentindo a tese de que a luta de classes acabou”. Diz que a social-democracia “será confrontada com a necessidade de impulsionar lutas sociais e políticas nesta região ou perder o controle do processo para os conservadores, como já ocorreu”. E que a “aplicação dos programas de ajuste em quase toda a América Latina colocará a esquerda mundial (sic) diante do desafio de oferecer um programa de reformas que compatibilize o combate a problemas emergenciais (...) com a necessidade inadiável de resolver questões estruturais”. O “mundo não assiste ao fim da história hoje, como pretendem alguns, mas, ao contrário, a uma aceleração sem precedentes desta”.

Além disso, naquele texto de 1990, MAG considerava possível que se estivesse “assistindo ao fim de um ciclo na história do socialismo, que tem seu início com a formação da social-democracia e que em boa parte deste século foi dominado pelo conflito entre socialistas e comunistas”. Para ele, o PT seria parte integrante “deste processo de transição da esquerda mundial. Neste sentido, é um partido pós-social-democrata e pós-comunista. Constrói sua identidade não combatendo estas correntes, mas dialogando criticamente com elas”.

Podemos discordar de parte desta análise – entre outros motivos por fazer mais sentido na Europa do que no resto do mundo, onde a tradição social-democrata original não vigorou e onde o comunismo se confundia com o anti-imperialismo. Por sinal, não é de se admirar que em todos os textos de MAG publicados pela FPA, a China não mereça a devida atenção. Mas, justiça seja feita, MAG não estava sozinho isso: especialmente na década dos noventa, 9 em cada 10 “especialistas” cometeram este mesmo erro.

Isto posto, é preciso reconhecer que daquela chave de análise, mesmo com as limitações citadas e outras, MAG extraiu uma orientação laica, ecumênica e fortemente latino-americanista para a política de relações internacionais do PT.

E foi com esta abordagem que Marco Aurélio integrou aquele já citado grupo restrito de quadros – composto também por Celso Amorim, Samuel Pinheiro Guimarães, Lula e Dilma Rousseff, entre outros e outras – que, sem pensar o mesmo a respeito de inúmeros temas, foram coletivamente responsáveis por formular a política externa do governo brasileiro entre 2003 e 2016. Neste coletivo mais ou menos informal, MAG era a principal expressão do que podemos chamar de internacionalismo petista.

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Passemos agora ao que MAG diz em outro texto, intitulado “Pensar a terceira geração da esquerda” e corresponde a uma palestra feita por ele no seminário internacional “História e perspectivas da esquerda”, realizado na USP entre os dias 13 e 15 de agosto de 2003. Portanto, já durante o primeiro mandato de Lula.

Diz que “entre 1989 e os dias de hoje assistimos fundamentalmente a duas grandes transformações no que diz respeito aos paradigmas que dominaram a esquerda no século XX. A primeira transformação foi, sem dúvida nenhuma, a crise do modelo comunista, que teve como acontecimentos emblemáticos a queda do muro de Berlim, de um lado, e a autodissolução da União Soviética, de outro, arrastando com ela quase todos os partidos que, de alguma maneira, se vinculavam a estes paradigmas, mesmo aqueles que tentavam fazer um aggiornamento de suas posições. Por outro lado, também assistimos a uma crise, talvez não tão dramática, mas nem por isso menos importante, dos paradigmas social-democratas, não tanto pelas derrotas que sofreram em algumas eleições, talvez compensadas por vitórias em outras, mas muito mais pela desconfiguração do ideário social-democrata, em certa medida explicitada aqui nas três intervenções que me antecederam”.

Notem que 13 anos depois do artigo publicado na revista Teoria e Debate, a “chave de leitura” continua a mesma: o dilema socialdemocracia versus comunismo.

No mesmo texto, MAG pergunta (lembro de novo a data, 2003):

“É possível uma experiência de esquerda na periferia do capitalismo, como é o caso do Brasil e de outros países? Essa experiência está condenada de antemão a ser inviabilizada e um governo de esquerda que se constituir vai terminar como terminou o governo Allende ou como terminaram outros governos de esquerda na América Latina? Ou ele vai necessariamente trair o seu ideário? Não vou dar a resposta. Sem dúvida tenho convicções muito profundas sobre qual é a resposta, mas quero dizer que esse é um debate político e, mais do que isso, é um debate intelectual. Há intelectuais brasileiros que defendem a inviabilidade de um projeto de esquerda efetivo, radical, na periferia do capitalismo”.

E conclui sua intervenção dizendo que a “na América do Sul, ou na América Latina, temos uma história que, de certa forma, manteve conexão com a história das grandes alternativas do socialismo no mundo. No entanto, detecto, e escrevi sobre isso, que vivemos uma espécie de terceira onda, uma terceira geração de esquerda que, em certa medida, contém alguns elementos estruturantes que eu chamaria de pós-comunistas e pós-social-democratas. O grande problema é que essa novidade, que é uma novidade social, uma novidade política, não necessariamente se expressou em termos teóricos, não necessariamente foi capaz de produzir efetivamente uma referência teórica”.

Vejam que ele termina sua exposição de 2003 repetindo, de certa forma, o que já há havia dito em 1990: existiria uma novidade política, mesmo que potencial, mas que ainda não havia sido capaz de “produzir efetivamente uma referência teórica”.

Que esta “referência teórica” faz falta, estou totalmente de acordo. Mas por qual motivo fazia falta em 1990, continuou assim em 2003 e - acrescento - segue fazendo falta em 2021?

Por qual motivo os defensores daquela “chave de leitura” não conseguiram produzir a “referência teórica” reivindicada pelo próprio Marco Aurélio?

Qualquer um que tenha convivido com MAG ou lido seus textos sabe muito bem que não foi por falta de capacidade. Nem dele, nem da coorte de intelectuais que tinham MAG como “irmão em armas”.

Claro, pode-se argumentar que a coruja de Minerva alça voo no “cair do crepúsculo”; mas já se passaram 5 anos do impeachment, as pesquisas apontam que Lula tem chances de ser eleito nas próximas eleições presidenciais e até agora os partidários daquela visão defendida por MAG não produziram a tal “referência teórica” a qual ele se referia.

Por quê?

Uma possível explicação (ainda que indireta) está contida, na minha opinião, em um dos textos do Dossiê publicado pela Teoria e Debate em julho de 2021, mais precisamente no texto do professor André Singer.

Neste texto, intitulado “Marco Aurélio, lulismo e sonho rooseveltiano”, André Singer relata ter sabido de MAG como “parte de um grupo de companheiros e companheiras que haviam tomado uma orientação autonomista na França”.

Depois relata três conversas tidas por ele, Singer, com Marco Aurélio:

“A primeira conversa, creio, ocorreu na sede do Diretório Nacional do Partido dos Trabalhadores, perto da Praça da Sé, no primeiro semestre de 2002. Falávamos sobre o programa do PT para o pleito, cuja confecção ele coordenou inúmeras vezes. No meio de um raciocínio, virou-se para mim e disse: “Escuta, tem um aspecto que você precisa entender. Existe o petismo, mas hoje em dia existe uma outra coisa, independente, que é o lulismo” (...) Não se tratava de aumentar ou diminuir o partido, mas de dar a César o que é de César (passe o trocadilho)”.

“(...) foi, talvez, no início do mandato que ocorreu a segunda conversa chave. Nela, o tema eram os planos referentes ao Nordeste. É provável que eu buscasse encaixar o assunto nos esquemas da luta de classes, quando Marco, de novo, surgiu com o inesperado. “Olha, existe uma componente rooseveltiana na concepção deste governo”.

“(...) Tal como fora surpreendido pela existência do lulismo, nunca tinha me passado pela cabeça que o modelo reformista em curso pudesse passar não pela experiência socialista europeia, mas pela democrata norte-americana. Com o tempo percebi que ele estava certo. Uma noção de capitalismo popular, com raízes nos EUA, explicaria diversas iniciativas governamentais como, por exemplo, a do crédito consignado”.

“Na última vez que nos vimos, penso que seis meses antes de sua morte, outra vez o cenário era o do Diretório Nacional do PT no centro da cidade. (....) Estava claro, para mim, e creio que para ele, que o sonho rooseveltiano se quebrara. Já tínhamos entrado nesta conjuntura regressiva que, quatro anos depois, ainda nos envolve. Ao me despedir, não sabia que precisaríamos sair dela sem as ideias e o humor do MAG”.

Considero este relato de Singer absolutamente genial, pois de maneira totalmente imprevista ele descortina os – na minha opinião – descaminhos da teoria e prática baseada na “chave de leitura” construída por MAG desde seu regresso do exílio.

Focado em superar as tradições comunista e socialdemocrata, MAG foi sendo arrastado (e, mais do que isso, ajudando a construir) desdobramentos imprevistos do ponto de vista daquele suposto dilema socialdemocracia/comunismo. Alguns destes desdobramentos aparecem no relato de Singer: do “autonomismo” ao lulismo, do “socialismo democrático” ao “sonho rooseveltiano”, da derrota de 1964 à derrota de 2016.

Dizendo de outro modo: MAG fez parte de uma geração que fez a crítica da política predominante na esquerda hegemônica no período pré1964. Quatro décadas depois, parte daquela geração se viu diante de dilemas para os quais apresentou soluções teoricamente aparentadas com as posições daquela mesma esquerda pré1964.

A esse respeito, lembro de MAG comentando comigo que a política do PC chinês nos anos 2000 lembrava a política do PC soviético nos anos 1950, época em que o PC chinês proferia as maiores acusações contra o PC soviético. MAG tinha razão no comentário; mas em certa medida o mesmo poderia ser dito acerca de algumas posições existentes no PT e no antigo PCB pré 64.

Essas analogias não constituem nenhum mistério para quem acompanhou a trajetória de parte da esquerda chilena, por exemplo aqueles que integraram a esquerda do PS chileno e o MIR na época do governo da Unidade Popular (1970-1973). Muitos dos que criticavam Allende e defendiam “avanzar sem transar” (o que em português é algo do tipo avançar sem conciliar), tornaram-se defensores acérrimos das supostas virtudes da Concertación.

Aliás, como me lembrou outro dos alunos de MAG, “o governo Lula é muito herdeiro de uma certa leitura dos "erros chilenos" e da necessidade vital de fazer diferente, em geral numa chave fortemente não confrontacionista e de alianças amplíssimas”. E o que ocorreu em 2013 e o golpe de 2016 “desnorteiam muito essa visão”.

Ou, para citar um ex-ministro do governo Lula, em palestra feita no campus de Santo André da UFABC, “achávamos que se fizéssemos um governo moderado, isso estimularia o outro lado a também ser moderado”. Como sabemos, não foi exatamente isto o que aconteceu.

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O terceiro texto que vou comentar – texto inédito até sua publicação no já citado Dossiê - é o roteiro utilizado por Marco Aurélio Garcia em sua participação no Colóquio Internacional "Claude Lefort: a invenção democrática hoje", na Universidade de São Paulo, em 14 de outubro de 2015.

Segundo MAG:

“Todos os segmentos da esquerda brasileira – da tradicional até os grupos armados – haviam sofrido uma terrível derrota política e militar durante os anos 1970. Essa derrota era sobredeterminada pela crise dos paradigmas ortodoxos que haviam, por décadas, informado as esquerdas no Brasil, na América Latina e no mundo. Antes mesmo da queda do Muro de Berlim (em 1989) e da autodissolução da União Soviética (em 1991) a crise polonesa e a emergência do sindicato Solidariedade, apontavam internacionalmente para a possibilidade (ou, ao menos, para a necessidade) de uma alternativa pós-comunista, que seria também pós-social-democrata, tendo em vista os descaminhos da socialdemocracia europeia naquele momento”.

Como se vê, 25 anos depois do primeiro texto citado, a tese básica segue a mesma.

No texto de 2015, fala-se de projetos de mudança, de novas políticas econômicas e de uma “revolução democrática”. Critica-se o pragmatismo. Mas não se fala do socialismo.

Lembro que em 1990 a questão se colocava assim: “para construir seu projeto de transformação socialista do Brasil”, o PT precisaria “escapar do dilema bolchevismo x social-democracia”, evitando tanto a “defesa intransigente da ortodoxia” quanto o “abandono da noção de socialismo em proveito de um (neo)liberalismo que nem mesmo os (neo)liberais praticam”.

Quando lemos este texto de 2015, não fica clara a relação entre o projeto socialista e a alternativa realmente existente, que veio sendo construída desde 1990 até 2015.

Claro que não se deve exagerar neste argumento, pois há outros textos em que a questão é mencionada (por exemplo, num texto de 2005 sobre os 25 anos do Partido, quando ele fala da “possibilidade de uma alternativa nacional, democrática, popular e socialista para o Brasil”).

Ressalto, neste texto de 2015, a maneira como MAG critica os que apresentam os processos da região como sendo algo que não são. Vejamos o trecho:

“A maioria dos processos democráticos em curso na América do Sul carece de uma narrativa, aí incluído o que ocorre no Brasil”.

“No que vem ocorrendo na América do Sul nesta última década, onde há claros indícios de um processo de revolução democrática em curso, há, o risco de revestir essas transformações de um conteúdo que não lhe é próprio e até mesmo oposto”.

“Um discurso fundado em experiências revolucionárias passadas e  fracassadas não será capaz de ocupar o vazio que a ausência de uma narrativa original sobre o processo de invenção democrática em curso deixa.

E é nesse ponto e dessa forma que o tema do socialismo aparece: como desdobramento da democracia.

“Uma das contribuições que Lefort nos deixou foi a de associar o destino do    socialismo às perspectivas da revolução democrática. Por isso ele abre  sua reflexão sobre a experiência soviética – no La Complication – com a frase aparentemente paradoxal: “O comunismo pertence ao passado; por outro lado, a questão do comunismo permanece no coração de nosso tempo.”

O comunismo permanece no coração. Mas a “equação” que conduz da revolução democrática ao socialismo não deixa de ser uma atualização customizada da fórmula socialdemocrata citada por MAG no texto de 1990, a saber: “O socialismo passava a ser o próprio movimento pelas reformas”. A fórmula reformista é radicalizada no último texto de MAG (de 2017), como foi destacado, com propósitos distintos, pelo professor Victor Marques.

MAG termina o texto de 2015 conclamando a democracia, não o socialismo. É sintomático que uma tradição teórica que insistiu tanto em não dissociar socialismo e democracia, termine inúmeras vezes cometendo - com sinais trocados - a justamente criticada atitude daqueles que diziam que primeiro o socialismo, depois a democracia.

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Já comentamos que no terreno da política geral do PT e do governo, a influência foi relativamente menor.

Isso fica claro no balanço que MAG fez em 2005, no aniversário de 25 anos do Partido, seja no que diz acerca do “interregno do governo Itamar, que o PT equivocadamente decidiu não integrar”, seja quando ele diz que “o Plano Real e o governo FHC não eram um plano/governo “de direita”, mas se transformaram na alternativa “da direita”.

Por outro lado, nesse mesmo texto MAG diz que o “discurso sobre a política econômica apresentou dois graves problemas. Primeiro, coincide com o dos conservadores, quando celebra unilateralmente alguns aspectos – metas de inflação, superávit primário, risco país – e silencia ou é parcimonioso sobre questões-chave como a forte diminuição de nossa vulnerabilidade externa. Segundo, não tem sido capaz de explicitar um projeto estratégico de desenvolvimento que aponte mais além do nacional-desenvolvimentismo e do receituário do Consenso de Washington”.

Tive a oportunidade de ver MAG defendendo esta abordagem, que usando minhas palavras resumo assim: nossa prática seria melhor do que nossa teoria; cabe-nos mudar a “narrativa”. Deixo para outra ocasião polemizar com esta abordagem “narrativa”, que virou moda em alguns meios; mas no terreno fático, o discurso sobre a política econômica não era apenas um discurso, correspondia a hegemonia de um setor – liderado por Palocci – que deu continuidade à parte das políticas adotadas no período FHC.

MAG adotava – nos textos e nas aparições públicas – uma atitude crítica, mas muito cautelosa, o que é compreensível dado seu papel no governo e sua opção na “luta interna”. A questão é saber se esta cautela – politicamente compreensível – afetou a qualidade de sua análise.

Por estes e outros motivos, é preciso saber como lidar com a análise histórica e com o debate teórico. Discutir a influência efetiva de MAG e de suas propostas em determinados acontecimentos é diferente de interpretar determinados acontecimentos à luz das opções programáticas e estratégicas propostas por MAG.

Para exemplificar com um tema que foi abordado por Victor Marques na aula-debate: uma coisa é analisar as condições históricas em que uma ditadura revolucionária se impõe; outra coisa é formular uma teoria acerca da ditadura do proletariado. Quaisquer que sejam as posições que se tenha, são âmbitos diferentes.

Neste sentido, mesmo que possamos concluir que a posição de MAG foi, em um caso concreto, a “politicamente correta”, isto não se estende necessariamente à suas premissas teóricas; e vice-versa: uma derrota não invalida necessariamente as premissas dos derrotados.

Os três livros publicados pela FPA contribuem para que se possa fazer esta discussão, embora de maneira insuficiente, primeiro porque muitos dos textos são fortemente marcados pela retórica oficial, segundo porque constituem apenas pequena parte dos textos de MAG. É líquido e certo que seus arquivos revelarão muita coisa interessante.

Feitas estas ressalvas, os textos publicados no livro A opção Sul-americana confirmam os pontos fortes e os pontos fracos do programa e da estratégia defendidas por Marco Aurélio.

Quanto aos pontos fortes, me concentro naquilo que é citado no artigo de Maria Regina Soares de Lima no Dossiê: “a heterogeneidade política e ideológica da América do Sul”; “a unidade regional constitui imperativo estratégico”; “a tarefa da política externa altiva e ativa é impedir que a heterogeneidade se transforme em divisão e polarização, condições que nos colocaria em extrema fragilidade diante da ameaça de intervenção externa”; “escrevendo em 2005, divergia das raquíticas análises correntes que identificavam uma esquerda populista, do mal, e uma socialdemocrata, do bem”.

Já os pontos fracos - que na minha opinião decorrem direta e indiretamente da “chave de leitura” já citada – dizem respeito a ausência de uma reflexão de fundo: 1/ sobre as tendências do capitalismo e do imperialismo; 2/ sobre as possibilidades do desenvolvimento capitalista na região; 3/sobre a China.

No caso da China, a explicação me parece a seguinte: a sobrevivência e fortalecimento do PC chinês mantinha algum nível de contradição com a opinião de MAG sobre o esgotamento da tradição comunista. Já falei a respeito num texto em que polemizo com artigo recente do professor Fiori, portanto não vou insistir aqui.

Quanto aos outros dois pontos, penso que na prática se caminhou no sentido de superestimar as possibilidades de uma “convivência pacífica” com os Estados Unidos e, também, as possibilidades de desenvolver um “capitalismo de novo tipo” na região.

Para exemplificar, cito alguns trechos extraídos dos textos publicados no livro supracitado:

No texto “O melancólico fim de século da política externa”:

“O governo Lula definiu desde 2003 seus objetivos fundamentais: a retomada do crescimento econômico, capaz de reverter a tendência de décadas de recessão ou crescimento medíocre; a compatibilização desse crescimento com um processo de distribuição de renda, alicerçado na construção de um mercado de bens de consumo de massas, por sua vez ancorado na expansão do emprego e dos salários, na oferta ampliada de crédito e nas políticas de transferência de renda; a conquista do equilíbrio macroeconômico, que se encontrava ameaçado em 2002, e a redução da vulnerabilidade externa, em grande medida lograda pela extraordinária ampliação e diversificação do comércio exterior; o aprofundamento da democracia e a inserção internacional soberana do país. A todos esses elementos se somava a decisão de dar maior consistência à integração da América do Sul”.

 

Notem que o tema da (re)industrialização não comparece nesta síntese; e a redução a vulnerabilidade externa seria “em grande medida” lograda pela via do comércio. Comércio de quê? Cito novamente MAG:

 

“Essa opção decorre da percepção brasileira acerca das potencialidades da América do Sul no mundo de hoje, mas, sobretudo, no de amanhã. O continente tem o maior e mais diversificado potencial energético do planeta – se levarmos em conta suas reservas hidrelétricas, de gás e de petróleo, além de sua capacidade de produção de biocombustíveis. A América do Sul possui a maior reserva de água doce do mundo. Sua agricultura ocupa lugar de destaque, não só pela extensão e fertilidade de suas terras como pelos avanços científicos e tecnológicos alcançados nos últimos anos. Suas jazidas minerais são enormes e diversas. Para um mundo que se mostra (e se mostrará mais ainda) ávido de energia, água, alimentos e minérios, os fatores antes alinhados mostram quão relevante pode ser a contribuição da região para o desenvolvimento da humanidade. Some-se a tudo isso a rica biodiversidade do continente, o tamanho de sua população, a extensão e a diversidade de seu território e clima”.

E só depois deste desfile primário-exportador vem o complemento:

“A América do Sul tem um parque industrial de porte, ainda que concentrado em poucos países. Abriga universidades e centros de pesquisa científica e tecnológica de alta qualidade. Possui uma exuberante cultura”.

Como foi ressaltado anteriormente, o texto glosado é em certa medida “oficial”. Mas o que está escrito está escrito. E não admira que, por este caminho, MAG logo se veja na obrigação de defender o “populismo” contra as críticas de direita.

A esse respeito, ele diz assim:

“Muitos analistas não hesitam em caracterizar o fenômeno como “renascimento do nacionalismo-populista” – qualificado como “arcaísmo”, posto que remeteria às problemáticas dos anos 1950 na região”.

“A denúncia do “nacionalismo populista” como “arcaísmo” é ela mesma “arcaica”, política e conceitualmente. Reflete, em versão atualizada, os mesmos preconceitos que marcaram a avaliação de fenômenos como o peronismo na Argentina, ao qual se procurou, muitas vezes, colar a etiqueta “fascista”.

Noutro texto, intitulado “Dez anos de política externa” (2003), MAG chega a dizer o seguinte:

“É importante destacar, entretanto, que essa vocação para celeiro do mundo da região não depende exclusivamente de fatores naturais ou mesmo de uma força de trabalho barata, como no velho modelo agroexportador. A agricultura da região – em particular a brasileira – ganhou altos níveis de produtividade em função da pesquisa científica e tecnológica, da qual uma entidade como a Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) é paradigmática. A América do Sul possui grandes florestas e uma opulenta (e inexplorada) biodiversidade, além de um rico e diversificado acervo mineral”.

“Nos últimos anos, conflitos em torno de impactos ambientais e/ou sociais de grandes projetos energéticos, de logística ou mineiros, ganharam visibilidade e testemunharam o avanço da democracia. Reduziu-se o espaço para ações predatórias contra a natureza ou em detrimento de povos originários”.

“O parque industrial da região é relevante, a despeito de problemas conjunturais. Materializando-se a preocupação de muitos governos da América do Sul de levar adiante amplos programas de formação de mão de obra e de inovação tecnológica, a indústria poderá atingir um novo patamar, comparável ao das economias emergentes mais competitivas”.

“Um dado demográfico é essencial: 400 milhões de sul-americanos formam parte do mercado de consumo, beneficiados em grande medida por políticas de inclusão social. A relevância desse mercado de bens de consumo de massa pôde ser constatada quando da irrupção da crise econômica mundial a partir de 2008. O retraimento dos fluxos comerciais internacionais foi compensado pelo vigor do mercado interno”.

Aqui faço um parêntesis: Há alguns anos, tive a oportunidade de assistir a uma palestra de um chanceler de outro país, pessoa que cumpriu um belíssimo papel em Mar del Plata no enterro da ALCA. E o que ouvi foi mais ou menos o seguinte: que a experiência dos governos progressistas da região havia demostrado que certas ideias dos anos 1950 – por exemplo, a crítica a troca desigual, a maldição do primário-exportador etc., as palavras são minhas mas o sentido era esse – não teriam mais a mesma vigência.

Na minha opinião, a experiência dos chamados governos progressistas e de esquerda demonstrou o contrário: que o tipo de desenvolvimento possível com base numa economia primário exportadora será sempre limitado. E o “vigor do mercado interno” nem de longe dá conta do problema – que na minha opinião depende um imenso investimento estatal, concentrado em bens duráveis de consumo público (ferrovias, hidrovias, reconstrução das cidades etc.).

Voltando ao texto de MAG de 2013: nele fica explícito o quanto se subestimou a crise de 2008 e seus desdobramentos. Lá se pode ler o seguinte:

“Essa crise teve consequências muito distintas daquela que abalou o mundo em 1929, quando o continente enfrentou grave depressão econômica e social e aguda instabilidade política. A última década tem mostrado a América do Sul como uma região estável, onde se fortalece a democracia. Com exceção do episódio da destituição arbitrária de Fernando Lugo no Paraguai – pronta e unanimemente condenada pelo Mercosul e pela Unasul –, os presidentes de todos os demais países da região foram eleitos em pleitos limpos e com forte participação popular”.

Parte da subestimação tinha raízes na análise econômica, parte tinha raízes na análise política. E esta última incluía subestimar de um lado o imperialismo e, de outro subestimar a direita brasileira, em particular as forças armadas.

Sobre a subestimação do imperialismo, destaco o seguinte trecho:

A transformação de um até então anódino G20 financeiro em uma instância de maior peso, revelou que as grandes potências passavam a reconhecer – ainda que sem tirar todas as consequências – não ser mais possível enfrentar o grave momento que vivia a humanidade com o mesmo grupo de países, sobretudo, porque eles tinham responsabilidade central na catástrofe que se desenhava”.

Quanto às forças armadas, infelizmente a política externa deu sua dose de contribuição ao que ocorreria a partir de 2016, ao não enxergar certos efeitos colaterais da participação na MINUSTAH. A esse respeito, MAG diz o seguinte:

“Quando o Brasil integra e comanda a Minustah, no Haiti, ao abrigo das Nações Unidas e do Direito Internacional, ele está não apenas participando de uma iniciativa multilateral, mas dando sentido próprio a esse tipo de missão, distinto das intervenções internacionais passadas em países demandantes de estabilização”.

Em 2014, no texto “As novas faces da integração regional”, MAG diz o seguinte:

“Todos os elementos expostos até aqui esboçam uma explicação de por que a região – apesar de viver os problemas da crise de 2008 – pôde resistir, melhor que outras partes do mundo, às turbulências externas, ao mesmo tempo que atraía um significativo número de investimentos internacionais e mantinha suas conquistas sociais, necessárias para reduzir as desmesuradas iniquidades ainda latentes”.

A realidade é que hoje a América Latina e o Caribe têm pouca importância na política externa dos EUA, como ocorrera em outras décadas. Entretanto, já em algumas ocasiões os EUA voltaram seus olhos, em termos diplomáticos, para a América Latina, no momento em que sentiram sua hegemonia ameaçada na região. Foi assim durante a Segunda Guerra Mundial, quando formularam a política de "boa vizinhança. (...) Dito isso, a relação com os EUA tem que se assentar sobre novas bases. Não se pode persistir em um antiamericanismo – que tem justificativas prescritas em outros tempos – nem em um alinhamento incondicional, também obsoleto”.

Depois do impeachment, num texto de 2017, publicado numa coletânea organizada por mim, intitulada Uma política externa altiva e ativa, MAG diz o seguinte:

“São muitos os sinais de involução da situação sul-americana: a prolongada crise venezuelana, as pressões da direita no Equador, a derrota de Evo Morales no plebiscito boliviano, a vitória de Macri na Argentina, as dificuldades do governo de Michelle Bachelet no Chile, a exclusão da esquerda no segundo turno da eleição presidencial peruana, a derrota da proposta de paz no referendo da Colômbia, para citar os exemplos mais relevantes.”

Mesmo assim MAG afirma que a política externa brasileira, política que alguns tentaram qualificar depreciativamente como “terceiro mundista” – não nos tenha afastado das grandes potências. Se assim fosse, como explicar as boas relações que mantivemos com os Estados Unidos, a despeito de inevitáveis contenciosos, ou o fato de haver sido o Brasil considerado como “aliado estratégico” da União Europeia, logo após a China? Como explicar, igualmente, nossa presença como convidado às reuniões do G8 e, posteriormente, nossa presença destacada nas negociações da Rodada Doha (da OMC) e no G20 financeiro, que teve destacado papel para evitar que a crise de 2008 se transformasse rapidamente em catástrofe?”

MAG conclui seu texto dizendo que será fundamental avançar (nacional e regionalmente) na (auto)crítica desses 15 anos de emergência de movimentos sociais, de transformações governamentais e de surgimento de uma nova cultura política. Não há boas políticas sem um forte debate de ideias. Constrangidos pelos desafios do exercício das tarefas governamentais, fomos frequentemente negligentes em realizar uma reflexão crítica sobre a herança passada e sobre os desafios futuros. Essa reflexão não é condição suficiente, mas necessária, para nossa ação. (...) É fundamental entender que está em curso uma grande mudança geopolítica no mundo. Não só entender, mas revertê-la”.

O que talvez seja o último texto publicado em vida por MAG saiu no LMD, em junho de 2017 e se intitula exatamente “Retomar o ciclo progressista”:

“não era o socialismo que estava em jogo. As transições colocavam na ordem do dia reivindicações de democracia política, econômica e social no marco do capitalismo”.

“Para tanto, em vez de uma hoje improvável revolução permanente, ou de uma recaída social liberal, abre-se o espaço para a invenção de um processo permanente de reformas, com as quais o próprio capitalismo realmente existente tenha dificuldades de conviver e, por essa razão, possa ser desestabilizado, abrindo espaço para mudanças importantes”.

“Tendo claro que a revolução dos anos 1960 não mais estava na ordem do dia, os governos e partidos progressistas seguiram o caminho de reformas inclusivas. Mas não foram capazes, na maioria dos casos, de impulsionar um reformismo forte, para retomar uma expressão cara à esquerda italiana, capaz de dar perenidade e sustentabilidade política às importantes transformações em curso”.

“O mal não está em fazer reformas e deixar de “fazer a revolução” ou por ela esperar uma eternidade, limitando-se ao exercício crítico do capitalismo ou dos desvios das esquerdas. O problema está em não inserir um processo de reformas em uma visão de longo prazo de mudança social, política e cultural, capaz de mobilizar uma sociedade que não pode ser reduzida ao papel de espectador. É a ligação constante de governos e partidos com a sociedade que impede uma leitura individualista e conservadora das transformações em curso, como tem aparecido em muitas pesquisas”.

A lógica embutida neste raciocínio, feito em 2017, pode ser melhor compreendida a partir do que está num texto de 1997, sobre o Manifesto Comunista. Citemos:

“Rompendo com o pensamento único, este mundo do fim de século aparece não só como um campo de constrangimentos econômicos, sociais e políticos, mas também como um espaço de enormes oportunidades para o progresso e bem-estar humanos, que não se realizarão nos marcos de uma sociedade capitalista, ainda que reformada”.

“Abre-se, assim, claramente a problemática de um mundo pós-capitalista. Mas, ao invés de construir a utopia de uma sociedade alternativa que os progressos materiais de hoje podem viabilizar facilmente, melhor é concentrar a reflexão sobre os meios de enfrentar a barbárie capitalista na sua versão neoliberal e de construir os instrumentos de sua superação”.

Porque seria “melhor” concentrar esforços contra a “versão neoliberal”?

Uma possível resposta está em um texto posterior, de 2001, onde afirma-se o seguinte:

“Um programa socialista para o século XXI, diferentemente de outros no passado, não parte de uma meta construída a partir da qual se desenhará um caminho para atingi-la. Não se trata de um movimento teleológico. Sua única premissa: o capitalismo não é o fim da história e, portanto, coloca-se no horizonte, ainda que em forma imprecisa, uma sociedade pós-capitalista. A diferença está em que o processo que conduz a essa sociedade é tão importante quanto o resultado. Este não pode ser separado daquele. Movimento (meios) e fins se articulam mutuamente. Vou, então, alinhar alguns temas que me parecem importantes para essa agenda do socialismo no século XXI”.

Os temas abordados por MAG neste texto de 2001 são: INTERNACIONALISMO E NAÇÃO; PROPRIEDADE, MERCADO, PLANEJAMENTO, REGULAÇÃO; A IGUALDADE SOCIAL; O MUNDO DO TRABALHO; NOVOS PARADIGMAS DE DESENVOLVIMENTO; A SOCIALIZAÇÃO DA POLÍTICA; EXPLORAÇÃO E OPRESSÃO; SOCIALISMO, CULTURA E CONHECIMENTO; SUJEITOS SOCIAIS; PARTIDO E MOVIMENTO.

Mas para os fins que estamos debatendo aqui, o tema mais importante é intitulado “O processo”, onde MAG diz o seguinte:

“A luta pelo socialismo envolve em muitos países, e este é o caso brasileiro, uma curiosa relação com o capitalismo realmente existente no país. Um programa de transformações centrado em reformas econômicas de cunho fortemente redistributivista, que exija uma reorientação importante do modelo de desenvolvimento, associadas a um processo de radicalização da democracia e de defesa da soberania nacional com a correspondente designação de um novo lugar para o Brasil no mundo, pode ter pouco a ver com o socialismo e ser até entendido como um projeto de fortalecimento do capitalismo brasileiro. Essas reformas, consolidando abstratamente o capitalismo no Brasil, desestabilizam-no concretamente, sempre e quando as mudanças forem resultado de intensa mobilização social”.

“Abre-se, então, um processo continuado de transformações em que as conquistas parciais preparam novas conquistas e sinalizam que as possibilidades de reformas profundas deixam o terreno das possibilidades para transformar-se em viabilidades”.

“Para tanto, e especialmente no plano das transformações internacionais, deve-se estabelecer uma dialética entre a consciência dos constrangimentos e a vontade política de vencê-los. Política é ação, e por maiores que sejam suas exigências de racionalidade há uma margem para decisão e ação transformadoras da vontade humana”.

Como se pode ver pelos textos acima, as já apontadas limitações dos textos publicados no livro A opção Sul-americana devem ser lidas em diálogo com os textos que integram o livro Construir o amanhã. Reflexões sobre a esquerda (1983-2017).

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Para concluir, quero destacar o texto apresentado por MAG em um encontro das fundações Maurício Grabois (PCdoB), Perseu Abramo (PT) e Leonel Brizola – Alberto Pasqualini (PDT). O encontro ocorreu no dia 14 de julho de 2017, portanto seis dias antes da partida de MAG.

O texto se intitula “CONSTRUIR O AMANHÔ. O professor Victor Marques fez vários elogios a este texto, a começar pelo título, que ele considera “poético”. Óbvio que o texto tem muitas qualidades, mas o que me chamou a atenção é o fato de que o “amanhã” não inclui nenhuma referência, nem mesmo ritual, ao tema do socialismo.

Considero isto uma lacuna espantosa, entre outros motivos porque não tenho dúvida alguma de que MAG foi um socialista convicto e militante até o último segundo de sua vida. E o referido texto foi lido em um espaço de fundações de partidos que, em maior ou menor medida, tem relação com a tradição socialista. Portanto, a ausência de qualquer referência à “palavra maldita” não é um detalhe menor.

Como para mim fica claro da leitura do parágrafo a seguir, trata-se do efeito colateral de uma linha política, que nos dias que correm convencionou-se chamar de “frente ampla”:

“As forças progressistas aqui reunidas sabem que têm um caminho complexo e árduo a percorrer. Que exige derrotar os atuais donos do poder e que supõe entender criticamente as razões da grande derrota que sofremos. Mas que depende, também, e essencialmente, de nossa capacidade de formar uma grande coalizão social e política capaz de construir um novo amanhã para o Brasil. Essa coalizão tem de ser mais ampla que o espaço das esquerdas. Aos setores progressistas, representados por partidos de esquerda e movimentos sociais hoje agrupados em Frentes de intervenção política, compete conduzir um movimento, que se faz cada vez maior e mais combativo. Compete fundamentalmente atrair amplos setores democráticos em todas as esferas da sociedade brasileira, inclusive aqueles que, equivocados, participaram da aventura golpista”.

A ausência de referência explicita ao socialismo enquanto parte integrante do “amanhã” a ser construído tem implicações práticas sobre a potência de nossa ação, aqui e agora. Não se trata apenas da discussão programática, tática e estratégica. Há um elemento mais de fundo: uma das causas da derrota sofrida em 2016 é a ausência de uma permanente batalha ideológica em favor de uma cultura de massas de novo tipo. E é impossível para nós travar esta batalha abrindo mão da defesa explícita do socialismo, pois é esta defesa que “dá liga” e “sentido” ao conjunto da obra. A não ser, é claro, que se aceite que o movimento (cego) é tudo, o fim nada.

Não quero exagerar estas conclusões e estou certo que os que tiveram contato mais próximo com MAG e compartilham suas posições vão corrigir várias afirmações aqui feitas e várias injustiças que possam ter sido cometidas. Mas estou seguro de que MAG apreciaria este tipo de debate.

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Para concluir, como relato pessoal, posso dizer que nas últimas vezes em que estive com MAG, o encontrei cada vez mais preocupado, não apenas com a situação em si mesma, mas também com a nossa dificuldade de compreender o que estava ocorrendo e o que poderia vir a ocorrer no mundo, na região e no Brasil.

Aliás, uma de suas últimas participações destacadas na vida interna do PT foi integrar a comissão de teses do 6º Congresso Nacional do PT (junho de 2017), composta por outras vinte pessoas. Naquela ocasião, MAG contribuiu ativamente para a tentativa de uma reformulação global da estratégia e do funcionamento partidários, tentativa que terminou frustrada e com ele fora do Diretório Nacional, como já expliquei noutro texto.

Seja como for, estou seguro de que nos próximos anos e décadas muitos “cientistas” políticos, historiadores e especialistas em política de relações internacionais escreverão a respeito de sua vida e obra.

Para os que tivemos a chance de conhecer e conviver com Marco Aurélio – e também, pelo menos no meu caso, disputar duramente contra ele e várias de suas posições – fica a lembrança e saudade carinhosa por alguém divertido, culto, ateu irredutível, um camarada que não tinha vergonha de ser gauche na vida. Faz e seguirá fazendo muita falta.


ps. na aula debate de 20 de julho, a professora falou sobre a importância de estudarmos não apenas a "vida", mas também a obra intelectual de MAG. Isto é particularmente verdadeiro para os "internacionalistas, especialmente para os que estudam a política externa no período dos governos Lula e Dilma; mas também para os que estudam a América Latina e Caribe entre 1989 e 2016. Espero que os cursos de graduação e pós em RRII incluam (ou reforcem a presença) de MAG na sua bibliografia obrigatória. A Universidade ganhará com isto.

ESTE TEXTO NÃO FOI REVISADO.