sábado, 12 de janeiro de 2019

Ciro, Luciana, Maringoni, Tarso, Fornazieri e a “incômoda” Venezuela

Ao comparecer a posse do presidente Nicolas Maduro, a presidenta nacional do PT sabia que seu gesto provocaria ataques da direita brasileira e internacional.

O que talvez ela não imaginasse fosse a reação que surgiria dentro da esquerda e da centro-esquerda brasileira.
A seguir, alguns exemplos disso.
Ciro Gomes (atualmente no PDT) disse que "o PT perdeu o norte. A burocracia do PT perdeu o rumo. Está que nem cachorro que cai do caminhão de mudança. E a dona Gleisi agrava isso. A grande questão é: por que não comparecer à posse do Jair Bolsonaro, eleito dentro das regras, reconhecido internacionalmente, e depois ir para a posse do Maduro, que a esmagadora maioria dos estados da OEA não reconhece legitimidade ao regime". E reverberou o site Sensacionalista, dizendo que “"Há muita gente dizendo que ela é uma infiltrada do Bolsonaro para destruir o que resta da decência e da respeitabilidade do pensamento progressista brasileiro".
Ou seja: Ciro pegou carona no assunto Venezuela, mas sua real preocupação é a suposta contradição existente entre o PT comparecer na posse de Maduro e não comparecer na posse de Bolsonaro.  
Ciro considera a si mesmo como parte daquilo que resta de “decência e respeitabilidade” no “pensamento progressista brasileiro”. Mas o que ele agrega como argumento resume-se ao “reconhecimento internacional”, o que pode ser relevante, mas não pode ser determinante para a decisão soberana de um governo ou de um partido acerca de suas relações internacionais. Sem falar que, se reconhecimento internacional também inclui comparecimento a posse, Maduro largou com vantagem frente a Bolsonaro. 
Luciana Genro (PSOL) também criticou a presidenta do PT. Segundo Luciana, numa mensagem divulgada pelo twitter dia 10 de janeiro as 9h38, ao representar o PT na posse de Maduro, Gleisi estaria “dando uma mãozinha para aqueles que querem liquidar a esquerda. Mas só uma esquerda mofada para apoiar Maduro a estas alturas. Há muito tempo deixou de ser um governo progressista. E o pior é que a oposição forte é burguesa e elitista”.
O fato é que grande parte da esquerda latino-americana apoia o governo Maduro, mesmo “a estas alturas”. Este apoio não significa, necessariamente, concordância com o que faz ou com o que deixa de fazer o governo Maduro. O apoio provém, muitas vezes, de um raciocínio muito simples: os Estados Unidos e a oposição local buscam maneiras de empurrar o país para uma guerra civil com intervenção estrangeira. Muitos dos que apoiam o governo Maduro o fazem, portanto, como forma de contribuir para impedir que tenhamos, na região, um cenário sírio.
Mas para Luciana esta questão não parece ser decisiva. O importante, segundo sua sintética declaração, é que Maduro deixou de ser um “governo progressista”. Ou seja, diferente de Ciro e suas preocupações com o reconhecimento internacional, o determinante para ela parece ser a linha adotada internamente pelo governo. O que, visto do ponto de vista de Luciana, faz muito sentido; afinal se Maduro merecesse ser apoiado por conta de seus inimigos, isto poderia levar a uma revisão total ou parcial da postura do PSOL frente aos governos Dilma e Lula.
Gilberto Maringoni (PSOL), diferente de Ciro e de Luciana, apoiou a presença de representantes da esquerda brasileira na posse de Maduro. E publicou a respeito um artigo, intitulado “Esquerda: como proceder com governos incômodos?”
Maringoni inicia assim seu artigo com a seguinte pergunta: “como tratar administrações que – sem serem de direita ou neoliberais – apresentam tantos problemas que se tornam incômodas para as forças democráticas e progressistas?” 
Portanto, Maringoni se propõe a tratar o problema do ponto de vista das “forças democráticas e progressistas”, não do ponto de vista da esquerda, nem mesmo do ponto de vista de um determinado partido. Acontece que as forças democráticas e progressistas são muito diversas. O que é incômodo para algumas, não é para outras. 
O PSOL, por exemplo, fez oposição às duas administrações de Lula (não apenas oposição a Dilma, a quem Maringoni acusa de ter realizado “uma gestão abertamente neoliberal e de direita, em especial em seu segundo mandato”). Já a maioria das forças democráticas e progressistas do mundo e do Brasil apoiou os governos Lula. 
Claro: como até o conselheiro Acácio perceberia, uma “maioria” se forma em torno de posições “democráticas” e “progressistas”, não em torno de posições de esquerda, socialistas e/ou revolucionárias. Portanto, a pergunta formulada por Maringoni pode ser adequada para partidos como o PDT e o PSB, mas não é suficiente para determinar a posição de partidos como o PT, o PCdoB e o PSOL. 
Ademais, caberia diferenciar claramente a posição que adotamos dentro do nosso próprio país e a posição que adotamos acerca do que se passa em outro país. E caberia distinguir entre a posição de um partido e a posição de um governo, acerca do que se passa em outros países. Nos dois casos, as posições podem ser idênticas, mas também podem ser muito diferentes, por diversos motivos.
Talvez por todos os motivos acima listados, no artigo citado Maringoni diz o seguinte sobre Maduro e seu governo: “Não faz uma gestão democrática. Há denúncias de corrupção e a ineficiência dá o tom em vários níveis de governo. (...) O problema maior está no autoritarismo e na violência. O governo perdeu as eleições legislativas, em 2015. Conseguiu evitar – valendo-se de artifícios jurídicos – que a oposição não obtivesse maioria qualificada para promover alterações constitucionais, mas perdeu a maioria simples. Sem força no Legislativo, o mandatário apelou para um expediente de duvidosa eficácia: convocou uma Constituinte, sem esclarecer a necessidade de uma nova arquitetura institucional. A Carta de 1999, elaborada no governo Chávez, até agora não sofreu qualquer mudança estrutural para melhor. Na verdade, buscou-se ali virar o jogo institucional com a Assembleia Nacional e ganhar tempo para colocar a casa em ordem, enquanto os preços do petróleo não subiam. (...)  Apesar de todos os percalços, a Venezuela controla sua produção, mantém o petróleo sob controle nacional, não adota o neoliberalismo como diretriz e não mudou sua política externa. Há excessos contra a oposição, mas o cerco econômico, político e comunicacional é brutal, bem como ações explícitas de sabotagem. Detalhe: não há alternativa imediata à esquerda de Maduro. A queda do governo conduzirá o país – sob a batuta da extrema-direita local – à condição de semiprotetorado dos EUA, com a alienação das maiores reservas petrolíferas do mundo”.
Repetiremos alguns itens: “Não faz uma gestão democrática”, “denúncias de corrupção”, “ineficiência”, “autoritarismo”, “violência”, “artifícios jurídicos”, “expediente de duvidosa eficácia”, “excessos contra a oposição”. 
Por outro lado: “mantém o petróleo sob controle nacional”, “não adota o neoliberalismo como diretriz”, “não mudou sua política externa”, “cerco econômico, político e comunicacional é brutal”, “ações explícitas de sabotagem”, “não há alternativa imediata à esquerda de Maduro”, “queda do governo conduzirá o país – sob a batuta da extrema-direita local – à condição de semiprotetorado dos EUA, com a alienação das maiores reservas petrolíferas do mundo”.
Em resumo, Maringoni elogia aquilo que, dadas as condições concretas, é garantido graças ao que ele critica. 
Em decorrência, concluo que se houvesse uma alternativa de esquerda e se a queda do governo Maduro não transformasse a Venezuela num semiprotetorado dos EUA, Maringoni  adotaria outra posição frente ao presidente venezuelano. 
Claro, se as coisas não fossem como são, seriam diferentes. Neste caso, todos - Maduro inclusive - adotariam outra posição. Mas como na vida prática esta posição é, digamos, meio “incômoda”, Maringoni usa a Nicarágua para tentar cobrir o flanco: “Para não nos alongarmos, uma menção á Nicarágua: o governo Ortega é indefensável. Uma gestão que investe com mão pesada sobre manifestantes e provoca quase duas centenas de mortes em poucos meses nada tem de popular. Nos dois casos, a esquerda não pode agir com o cinismo do Departamento de Estado, que sempre manteve seus “friendly dictators” tratados a pão de ló. Mas importa saber que algumas linhas não podem ser ultrapassadas”.
Ou seja: mesmo não havendo uma alternativa de esquerda, mesmo que a queda do governo Ortega transformasse a Nicarágua num semiprotetorado dos EUA, não se poderia defender o governo Ortega, porque ele “investe com mão pesada sobre manifestantes” e “provoca quase duas centenas de mortes em poucos meses”, nada tendo de “popular”. Estas seriam as “linhas” que “não podem ser ultrapassadas”. Linhas que, como é público e notório, a extrema direita e o imperialismo fazem de tudo para que sejam ultrapassadas, sempre que estão trabalhando para derrubar um governo. 
De toda forma, com os considerandos acima, Maringoni defende que “a defesa da legitimidade do mandato de Nicolás Maduro, em um mundo no qual a direita joga sujo para conquistar espaços, é iniciativa sobre a qual a esquerda não pode vacilar”.
Não sei se o PSOL mandou representantes à posse de Maduro. O PT mandou sua presidenta. Mas isto não quer dizer que dentro do PT não tenha havido muita gente “vacilando”. Pelo contrário, não foram poucos os que criticaram, pública ou privadamente, a posição de Gleisi. 
O mais conhecido destes críticos, até agora e até onde eu sei, foi Tarso Genro, para quem a “ida de Gleisi a posse de Maduro não ajuda na reconstrução da imagem do PT”. 
Em geral, os petistas críticos são, no fundo, adeptos da equação proposta por Maringoni: “sem ser de direita ou neoliberal”, a administração Maduro apresenta “tantos problemas” que se tornou “incômoda”. Em linguagem popular, são amigos nas horas boas.
O desdobramento completo disto está na posição de um ex-petista, Aldo Fornazieri, que numa mensagem postada na sua conta no facebook escreveu o seguinte: “hoje Nicolas Maduro toma posse para um novo mandato na Venezuela. O PT mandou a presidente do Partido, Gleisi Hoffmann, para a solenidade num evidente gesto de apoio ao regime. Penso que é um absurdo. O PT apanha e depois se queixa. O regime de Maduro não merece apoio. Causa a pobreza e a infelicidade de milhões de venezuelanos, hoje em diáspora por vários países da América Latina. Trata-se de um regime corrupto e incompetente que, efetivamente, não é uma democracia. Os venezuelanos precisam encontrar o seu próprio caminho, sem ingerência externa, seja do grupo de Lima, do qual o Brasil faz parte, seja por parte dos Estados Unidos. Mas ao mesmo tempo em que se condena a ingerência externa, não dá para apoiar este regime que causa tanto mal aos venezuelanos. A esquerda democrática não pode apoiar este regime.”
Ou seja: os Estados Unidos e sua gangue fazem ingerência. E a “esquerda democrática”, na concepção de Aldo, critica os EUA, mas repete sem “incômodo” algum os mesmos argumentos dos EUA para justificar sua ingerência.


segunda-feira, 7 de janeiro de 2019

Ciro confirma: não é apenas Bolsonaro que deseja livrar o Brasil do PT

O jornal El País publicou uma ótima entrevista com Ciro Gomes, feita pelo jornalista Florestan Fernandes Jr.

A íntegra da entrevista, concedida no dia 2 de janeiro de 2019, está disponível no seguinte endereço:

Toda a entrevista de Ciro é organizada, do início ao fim, pelo antipetismo.

Exemplo: a primeira pergunta da entrevista versou sobre o fato de Bolsonaro ter falado, em seu discurso de posse, de “libertar o povo do socialismo”.

Na resposta, Ciro faz diversas críticas, mas termina acusando Bolsonaro de ser um antipetista “superficial”.

Outro exemplo: a segunda pergunta da entrevista é sobre corrupção, Bolsonaro e Queiroz. 

Na resposta, Ciro cobra explicações. Mas agrega: Eu quero dar um tempo. Não quero ser um trombeteiro que nem um petista raivoso, que é o tipo mais parecido com um bolsominion.“

E Ciro?

Ciro, segundo ele próprio, prefere deixar “o Bolsonaro tomar pé das coisas. Mas daqui a uns 100 dias, tenho toda uma plataforma por onde vou começar a cobrar. Porque foi este o papel que a nação deu a mim. O papel da oposição é estimular Bolsonaro ao jogo democrático, obrigá-lo a seguir a institucionalidade democrática”.

Ficamos sabendo, portanto, que a “nação” deu um papel a Ciro Gomes. 

E este papel é ser uma oposição que “estimule” Bolsonaro “ao jogo democrático”, que o obrigue a “seguir a institucionalidade democrática”.

Segundo Ciro, a “rua” diz: “Ajuda o homem! O homem foi eleito, ajuda ele, não atrapalha”. 

E Ciro afirma que “nós temos que ter essa sensibilidade. Não em respeito ao Bolsonaro, mas em respeito ao milhões de brasileiros que deram a ele a maioria”

Portanto, diferente dos raivosos petistas, Ciro é um cara com “sensibilidade”.

Mas ele não sabe se Bolsonaro “conseguirá fazer um pacto de governabilidade”. 

O motivo citado é: “Eu, Ciro Gomes, não conheço uma única proposta do Governo Bolsonaro”.

E, ao responder sobre a “legalização das armas”, Ciro aproveita para dizer que devemos “chamar” Bolsonaro para “outra agenda”, “a do emprego, palavra que ele não citou uma vez sequer, nem no discurso oficial”.

Portanto, ele se propõe a “chamar” Bolsonaro para “a questão dos juros, da inadimplência de 63 milhões de brasileiros que estão com o nome sujo no SPC. Para discutir a questão da aposentadoria. Precisamos discutir aqueles assuntos que ele vai fugir deles”. 

Ciro acha que Bolsonaro vai “fugir” desses assuntos. 

E acha que Bolsonaro vai fugir porque “ele não entende o problema,  a equipe dele não entende o problema e, quando entende, interpreta de forma equivocada. Portanto, o remédio que vão propor será o remédio errado, que tenderá muito mais a agravar a doença socioeconômica do Brasil do que mitigá-la”. 

A linguagem de Ciro é deveras ambígua. As vezes parece “manha de político”, discurso de opositor “sensível” ao período em que o povo é tolerante com o eleito. 

Outras vezes parece que —coerente com a abordagem de Mangabeira Unger (ver https://jornalggn.com.br/noticia/mangabeira-unger-attacks-again-por-valter-pomar) — Ciro está disposto não propriamente a fazer oposição, mas sim a “orientar” Bolsonaro a seguir o caminho certo. 

Onde Ciro não é ambíguo é ao não “aceitar a provocação do Bolsonaro de discutir identitarismos” ... “não que o assunto não mereça discussão. Estou só dizendo que o Bolsonaro não pode escolher o campo de batalha”.

Muita gente da esquerda concorda com esta opinião de Ciro. Mas, na vida real, a questão é bem mais complicada: não se trata de uma “discussão”, nem de uma “provocação”.

Está em curso um ataque aos direitos humanos de uma parte da população brasileira. O campo de batalha está dado. Portanto, a alternativa realmente posta é: ou não travar o combate ou discutir como travar o combate. 

Nessa altura do campeonato, o entrevistador pergunta: “O senhor tem se colocado como nova liderança da oposição. Aceitaria o PT numa frente de oposição ao novo Governo?”

A resposta de Ciro é muito interessante. Reproduzo na íntegra:

“Acho que sim. Nosso inimigo não é o PT. Agora, nós precisamos não nos comprometer. Estou falando sob o ponto de vista histórico. Precisamos dar ao jovem brasileiro uma plataforma em que ele não precise de um salvador da pátria, de um guru, de um líder carismático que, preso, de dentro da cadeia, fica mandando recado. Isso é o fundo do poço. Não quer dizer que a gente abandone o Lula. A questão central do país não pode ser identitarista ou o salve Lula. Enquanto a agenda for esta, estamos fazendo exatamente o que o Bolsonaro quer que a gente faça. Ele não ganharia em hipótese nenhuma no Brasil que eu conheço se não fosse o antipetismo que o petismo cevou. O Palocci é réu confesso. E não é um petista periférico. Foi o homem que Lula escolheu para comandar a economia do Brasil por 8 anos e a Dilma escolheu para comandar o governo. O Levy foi escolhido pela Dilma. O Michel Temer foi escolhido pelo Lula. Se a gente ficar alisando essas coisas pela dor que tem do Lula estar onde está, não vamos pensar na questão brasileira. Cabe a oposição vigiar, cobrar. O que faz a burocracia do PT? Se retira da posse. Ora, quando o Aécio Neves nega o reconhecimento do sucesso eleitoral da Dilma, começa a plataforma do golpe. E o PT soube denunciar isso. Como é que se explica agora para o povo brasileiro que um adversário nosso, por mais deplorável que seja, não é reconhecido como vitorioso?”

Vamos por partes.

Ciro, como já foi dito, acha que a “nação” o escolheu para ser líder da oposição.

Nesta condição, ele “acha” que aceitaria que o PT fizesse parte de uma frente de oposição a Bolsonaro.

Curioso, não? O cidadão ficou em terceiro lugar, mas “acha” que aceitaria a, digamos, ajuda de quem ficou em segundo lugar.

E por que a dúvida?

Porque, embora Ciro diga que o PT não é “nosso inimigo”, “nós precisamos não nos comprometer”. 

O “nós”, no caso, é majestática figura: ele Ciro não quer se comprometer com o PT, porque “sob o ponto de vista histórico”, nós “precisamos dar ao jovem brasileiro uma plataforma em que ele não precise de um salvador da pátria, de um guru, de um líder carismático que, preso, de dentro da cadeia, fica mandando recado. Isso é o fundo do poço”. 

Realmente, parece o “fundo do poço” ver sua principal liderança condenada, presa e impedida ilegalmente de disputar uma eleição. 

Mas o que Ciro pretende que “nós” do PT façamos diante disso? 

Segundo Ciro, “não quer dizer que a gente abandone o Lula. A questão central do país não pode ser identitarista ou o salve Lula. 
Enquanto a agenda for esta, estamos fazendo exatamente o que o Bolsonaro quer que a gente faça”. 

Ou seja: os golpistas acham essencial manter Lula preso. Mas lutar por soltar Lula é fazer “exatamente” o que os golpistas querem que a gente faça. 

E a luta pela liberdade de Lula é posta no mesmo patamar do “identitarismo”.

E qual a base, digamos, racional desta argumentação? A resposta é: a tese de Ciro, segundo a qual a vitória de Bolsonaro é culpa do PT.

Portanto, segundo Ciro, enquanto houver PT, o Bolsonaro sairá vitorioso.

Vejam o que Ciro diz: Bolsonaro “não ganharia em hipótese nenhuma no Brasil que eu conheço se não fosse o antipetismo que o petismo cevou. O Palocci é réu confesso. E não é um petista periférico. Foi o homem que Lula escolheu para comandar a economia do Brasil por 8 anos e a Dilma escolheu para comandar o governo. O Levy foi escolhido pela Dilma. O Michel Temer foi escolhido pelo Lula. Se a gente ficar alisando essas coisas pela dor que tem do Lula estar onde está, não vamos pensar na questão brasileira”. 

Como papo de palanque, vá lá. 

Bolsonaro não teria vencido se Lula fosse candidato. Não bastava o antipetismo. Foi preciso um golpe, um “sequestro” e uma campanha de mentiras.

E falemos sério: alguém acredita mesmo que Lula está preso por conta de Palocci (que está solto), de Levy (que está no BNDES) e de Temer (que ao menos neste momento também segue solto)???

Lula não está preso por nada disso. E o antipetismo não resultou da soma de Temer/Levy/Palocci. 

Basta lembrar que estes três fizeram parte do governo federal em diferentes momentos, entre 2003 e 2014.

Talvez o problema seja outro: Ciro quer fazer uma oposição “sensível” contra Bolsonaro. 

Palavras dele: “Cabe a oposição vigiar, cobrar. O que faz a burocracia do PT? Se retira da posse. Ora, quando o Aécio Neves nega o reconhecimento do sucesso eleitoral da Dilma, começa a plataforma do golpe. E o PT soube denunciar isso. Como é que se explica agora para o povo brasileiro que um adversário nosso, por mais deplorável que seja, não é reconhecido como vitorioso?”

Ciro adora usar a palavra “burocracia”, ao referir-se ao PT.

Seu sonho é ficar com os votos do petismo, mas sem o PT. 

Mas será que foi a “burocracia” que decidiu se “retirar da posse” de Bolsonaro? Ou será que esta posição foi aplaudida pela imensa maioria dos petistas em todo o país. Se não por razões políticas, inclusive por razões morais, como salientou o insuspeito jornalista Jânio de Freitas?

Como se explica isso para o povo brasileiro? Simples assim: o presidente eleito, na campanha e depois da campanha, fez ameaças contra o PT e contra a esquerda que são absolutamente inaceitáveis numa democracia. Nada que ver, portanto, com a atitude de Aécio.

Noutros tempos, Ciro seria o primeiro a defender boicotar a posse. 

Hoje, pelo visto, está tentando vestir um figurino mais “paz e amor”. 

Menos quando diz respeito ao PT.

Talvez percebendo isto, o entrevistador pergunta: “o senhor fez parte dos Governos Lula e Dilma. Por que só agora descobriu estes problemas do PT?”

A resposta de Ciro é dizer que fez parte, mas foi se afastando. Revela que votou “no Haddad como cidadão”. Mas que não vota mais “nesta burocracia do PT”. 

E apresenta o seguinte motivo: “De lá pra cá eles se corromperam. Essa é a triste, dura e sofrida realidade. Apodreceram. Tomaram gosto pelas benesses do poder”.

A política brasileira é realmente interessante. Ciro tem uma trajetória longa na política brasileira. Passou por não sei quantos partidos. Faz parte de um clã oligárquico, os Ferreira Gomes. E se acha na condição de dizer que “eles”, os outros, se “corromperam”.

O “eles” inclui, paradoxalmente, setores do PT que sempre defenderam alianças com os Ferreira Gomes. E que defenderam, inclusive, apoiar Ciro como “plano B” em 2018.

O importante, entretanto, é perceber que Ciro usa a palavra “corromperam”. Não por coincidência, a mesma acusação que foi lançada contra o PT nos últimos anos e que frequenta grande parte das mensagens que Bolsonaro lança nas redes sociais.

O entrevistador insiste em saber por que Ciro, “que já esteve tantas vezes junto com o PT, não apoiou o Haddad”.

Ciro, o estadista, apresenta como primeiro motivo sua inconformidade contra Lula, por ter — segundo ele — imposto o nome de Dilma, quando ele Ciro e Eduardo Campos estariam melhor nas pesquisas.

Depois, o estadista destila sua inconformidade contra a decisão do PT, de manter a candidatura Lula: “todas as pedras do caminho sabiam que Lula não podia ser candidato pela lei da ficha limpa. E eles impõem a candidatura do Lula, mentem para a população brasileira explorando a boa fé do nosso povo mais pobre para comovê-lo até o limite da eleição e botar uma pessoa sem autoridade”.

Portanto, segundo Ciro, o PT deveria ter desistido de Lula desde a condenação em segunda instância. Ciro desconsidera todos os argumentos – democráticos, políticos, eleitorais – que levaram o PT a manter a candidatura Lula. Considera que insistir no nome de Lula teria sido uma exploração da boa fé do povo, visando... “botar uma pessoa sem autoridade”, ou seja, Haddad.

(Nesta narrativa não cabe, não encaixa, a versão segundo a qual Ciro teria sido convidado para ser vice de Lula e, depois, ser o candidato a sucessão. Sobre isso, mais ao fim da entrevista, Ciro diz o seguinte: “Ele me chamou para esta farsa. Ora, se eu estou denunciando uma farsa, uma fraude, e ele me chama para aperfeiçoar esta fraude, que tipo de homem eu sou, que tipo de líder eu seria no Brasil se eu, por qualquer tipo de ambição pessoal, fosse cumprir este papel imundo? Mandei dizer pra ele que me sentia insultado”. Ou seja: fraude não foi tirar Lula da disputa presidencial: fraude para Ciro teria sido insistir no nome de Lula.)

A pergunta óbvia é: se o PT tivesse desistido de Lula, quem se beneficiaria disto? Ciro imagina que teria sido ele. Pode ser. Como pode não ser. Isto nunca saberemos. O que sabemos é que, mesmo com Lula preso, o PT conseguiu levar uma “pessoa sem autoridade” ao segundo turno. E frente a esta situação, Ciro não teve a estatura de um Brizola.

Este são os fatos. E é por conta disto tudo que, hoje, Ciro está disposto a contribuir, ativamente, para a destruição do PT. Pois enquanto o PT existir, Ciro não poderá cumprir o papel que a “nação” destinou a ele.

E a destruição do PT começa por sua desmoralização.

É por isso que Ciro considera que Lula é um “preso comum”. 

E por qual motivo Lula seria um preso comum?

Segundo Ciro, se Lula “fosse um preso político, não tinha que recorrer aos tribunais. Lula não é condenado pelo Sérgio Moro, que eu sempre critiquei. É condenado por unanimidade pelo Tribunal Regional Federal. Tentou diversos recursos no STJ e STF. Portanto, por definição, é um preso comum. Mas se ele entende que é um preso político, não podia estar recorrendo às instâncias formais”. 

Este raciocínio de Ciro é típico dos tempos em que estamos vivendo.

Segundo ele, Lula seria -“por definição” - um preso “comum” porque foi condenado pelas instâncias comuns.

E se Lula acreditasse mesmo ser um preso político, então ele não poderia recorrer às “instâncias formais”.

O fato das instâncias comuns terem condenado sem provas e com claríssimas motivações políticas, é para Ciro um detalhe.

E o fato de que presos políticos, no Brasil e em outros países, em diferentes circunstâncias históricas, terem também recorrido às respectivas “instâncias formais”, é para Ciro outro detalhe.

O que importa para ele, falemos claro, é que Lula precisa ser considerado um preso comum.

Pois se Lula for considerado um preso político, então a insistência do PT em manter sua candidatura teria sido uma atitude absolutamente justa e necessária. 

Ciro reconhece que a sentença que condenou Lula é “frágil”. Mas insiste que isso (a sentença frágil) não o transformaria num preso político, porque “ele aceitou a dinâmica”.

Ciro “alisa” Moro, o TRF4 e a maioria do STF e do TSE. A sentença não foi “frágil”. Foi ilegal e injusta. Precisa ser anulada. 

E o que caracteriza uma prisão política não é a atitude do preso frente ao processo. O que caracteriza a natureza política da condenação é sua motivação, que levou a atropelos de toda ordem no processo, até resultar numa condenação sem provas.

Ciro confunde a discussão sobre a natureza política do processo e da condenação, com a discussão sobre qual tática se devia adotar frente ao processo. 

É óbvio que uma parte do PT demorou muito para perceber que estávamos diante de um processo político, que deveria ser respondido politicamente.

E é óbvio que uma parte da defesa de Lula segue acreditando demais no judiciário e acreditando de menos na luta política. 

Mas reconhecer que todo o processo e a condenação (e não apenas a prisão coercitiva) foi politica, não implica obrigatoriamente na adoção desta ou aquela tática. Por exemplo, não implica em aceitar a ideia do “asilo”.

Até porque defender que Lula pedisse “asilo político” poderia, entre outros problemas, mandar uma mensagem que confirmaria, junto a vários setores da população, inclusive setores da esquerda, a interpretação que hoje Ciro Gomes defende.

Dito de outra forma: ou Ciro é incoerente hoje, ou foi incoerente ontem, ou ambas coisas. Pois não se defende asilo político para preso comum. 

Ademais, se o processo é justo, se a condenação é tão somente “frágil”, o que pensar de alguém que está tentando fugir para evitar pagar sua pena?

Mas isto tudo são, digamos, detalhes. O essencial é que, para Ciro, só há futuro se o PT e Lula estiverem fora do caminho.

Segundo o próprio Ciro, a minha missão hoje é ajudar o jovem brasileiro a entender o nosso país e a formular um caminho (...) chamando o debate para a inteligência e não para estas mistificações superficiais. Porque o bicho mais parecido com o bolsominion (nome pejorativo para os seguidores de Bolsonaro) é o petista fanático. Tanto para o bolsominion como para o fanático do PT pode acontecer o diabo que eles relativizam o diabo”. 

Ou seja: Ciro sabe que suas chances em 2022 - ou quando seja - dependem de que Bolsonaro e o PT não tenham a força que exibiram em 2018. E por isso Ciro investe contra o inimigo que aprece momentaneamente mais frágil: o PT.

Ciro não tem limites: mistura críticas políticas às alianças com Renan Calheiros e Eunício de Oliveira, com acusações de corrupção contra o PT: “Lula e o PT deram 1 bilhão de reais em contratos sem licitação na Petrobras. Vai pro diabo a burocracia do PT. Tudo picaretagem da pura. O Sergio Machado metia a mão na Transpetro, eu cansei de dizer isso ao Lula. Então, PT, vai devagar comigo, porque eu não gostaria de transformar o PT em meu adversário”.

A violência verbal é tão grande, que o entrevistador comenta que, na prática, Ciro estaria transformando o PT em adversário.

Ele nega: “Não estou, não. Mas cada vez que eles vierem com uma dessas, e agora veio da sua pergunta, não porque você interpreta, mas porque eles estão dizendo, eu vou dizer porque eu não pude mais apoiar o PT. Eu engoli tudo o que eu podia engolir. E regozijei” (sic).

Regojizou...

Ciro é um cara curioso. Adora falar da “nação”, mas quando estava em curso a batalha do segundo turno, em que estavam em jogo os interesses mais profundos do povo e portanto da mais legítima nação brasileira, ele preferiu ir embora do país, sob o argumento de que “não estava na minha mão”, que era uma “eleição perdida”, que “todo mundo estava vendo isso”. 

E, apoiando-se no fato de que no Ceará Haddad teve 70% dos votos, diz que “portanto eu apoiei o Haddad. O que eu não faço mais é campanha com esta quadrilha (...) Se eu achasse que ia fazer diferença, eu engolia de novo, como engoli lá atrás. Agora, me obrigar, por uma solidariedade ao campo progressista... o Haddad é progressista, sem dúvida. Mas o PT é uma força corrupta. Estou falando da cúpula do PT, não da sua base”.

Segundo Ciro, o PT seria uma força corrupta.

Segundo Ciro, o PT seria uma quadrilha.

Frases que poderiam sair da boca de Bolsonaro.

Mas que Ciro repete, com “regojizo”.

Ciro acusa o PT de querer “tudo na imposição de uma hegemonia podre. Já foi. Agora eles encontraram alguém que tem coragem de encará-los. Eu sou pós PT”.

E deixa claro que pretende “criar uma corrente de opinião, que livre o Brasil desta burocracia corrompida do PT”.

Portanto, Ciro e Bolsonaro querem livrar o Brasil do PT.

Vou pular as coisas óbvias que Ciro diz sobre uma possível candidatura a presidência da República (“eu aceito que o meu partido cogite a minha candidatura”) e passo de novo à obsessão de Ciro: o PT.

Segundo ele, só “existe o Bolsonaro porque existe este tipo de petismo” (...) “eles se amam, na prática”.

Contra isto, Ciro se propõe a ser não uma terceira via, mas “a via”.

Ciro termina sua entrevista fazendo mais uma crítica ao PT. 

Segundo ele, foi “nas mãos do PT/PSDB que o Brasil faz a mais grave concentração bancária do mundo capitalista”.

E acrescenta:  “Durante o governo do PT/PSDB, nós criamos o seguinte fenômeno: seis brasileiros tem a renda equivalente a fortuna que somam 100 milhões de brasileiros. Aí estes 100 milhões de brasileiros estão obrigados a se conformar com o Bolsa Família. Isso é irrelevante? Não, é muito importante. Mas o país que eu sonho vai emancipar seu povo pelo trabalho decentemente remunerado e pela educação emancipadora”.

Suponhamos que Ciro estivesse em sono profundo na época em que, segundo ele, ocorria estava esta tragédia.

E aceitemos como correta a posição segundo a qual não haverá desenvolvimento democrático, popular ou socialista no Brasil, enquanto o grande capital financeiro exercer sua ditadura sobre o pais.

A pergunta é: Ciro acha mesmo que será possível enfrentar este monstro, sem o PT e contra o PT? Acha que será possível derrotar o capital financeiro, sem que o PT estava engajado nessa guerra?

Se há alguma sinceridade programática no que Ciro fala, a política dele contra o PT não faz o menor sentido.