quarta-feira, 30 de dezembro de 2020

Tarso Genro, João Doria e a que ponto chegamos

Se o companheiro Tarso Genro não existisse, teríamos que inventá-lo. Pois ele tem a qualidade de levar até as últimas consequências determinadas opções políticas.

 

Um exemplo disto é a carta pública que Tarso enviou, no dia 29 de dezembro de 2020, ao governador de São Paulo, João Doria. Quem ainda não leu, pode encontrar no endereço abaixo:

 

https://aterraeredonda.com.br/carta-a-joao-doria/

 

Qual o objetivo explícito da carta? 

Convocar João Doria a “iniciar um ‘impeachment’ em defesa da nação”. 

Mas antes de chegar neste finalmente, vale a pena conhecer o entretanto.

Tarso começa explicando a João Doria que decidiu escrever “abrigado em três acontecimentos políticos", que o autorizam a pensar que "esta carta é oportuna”.

Os acontecimentos são, pela ordem: 

1/ Doria ter dito que “a união na luta contra a Pandemia precede todas as demais questões políticas na conjuntura”; 

2/ "o ódio exalado pelos dementes da base fascista do Presidente, que tem sido direcionado ao Senhor de uma maneira sordidamente especial”; 

3/ "um vídeo em que Bolsonaro comete “no mínimo três delitos”: “difamação”, “ameaça” pessoal e “ameaça direta ao Estado de Direito Democrático”.

Talvez por ser de São Paulo e ver o que se diz e o que efetivamente se faz, dou um grande desconto em todos os elogios que são feitos ao Doria no tocante a qualquer coisa, a começar pelo combate à pandemia.

Talvez por ser petista, não consigo ver nada de “sordidamente especial” nos ataques feitos pelo bolsonarismo contra o governador paulista; aliás, diria que falta bastante para que causem o estrago dos sórdidos ataques que bolsonaristas (e o próprio Doria) cometem contra petistas.

Quanto aos crimes de Bolsonaro, acredito que Doria tem pleno conhecimento deles; talvez ele suspeitasse da inaptidão de Bolsonaro antes mesmo dele ser eleito, o que não o impediu de apoiá-lo na eleição presidencial de 2018. Nem de apoiar entusiasticamente a cruel reforma da Previdência Social implantada pelo governo Bolsonaro — e logo reproduzida, no âmbito estadual, pelo próprio Doria.

Mas como é véspera de Ano Novo, sigamos o conselho de Washington Quaquá, paremos de olhar pelo retrovisor e vamos olhar apenas pelo para-brisa: admitamos assim a hipótese de que Tarso possa ter mandado bem, ao estilo dos iluministas que escreviam para os déspotas esclarecidos de antanho.

[Aliás, sei lá por qual motivo exato, mas por falar em déspota, acabo de me lembrar de Lord Farquaad, de Shrek.]

Também recordando certas cartas enviadas aos "príncipes" do passado, Tarso diz humildemente para Doria o que segue: “Não tenho evidentemente credenciais políticas para lhe propor qualquer aliança política e nem esta é a minha intenção, com esta mensagem que torno pública. Alianças dignas desse nome se fazem em torno de programas e não creio que isso fosse factível entre nós, de uma parte porque tenho pouco poder convocatório, de outra porque pensamos de modo diferente sobre muitas coisas essenciais, exceto – provavelmente – a respeito dos males de todos os tipos, que o Presidente Bolsonaro tem proporcionado à Federação e a todo nosso povo”.

Se Tarso estivesse certo, as divergências entre Bolsonaro e o governador paulista iriam muito além da pandemia. Será verdade? E se for, iriam até onde? Será, por exemplo, que Doria diverge da política econômica neoliberal, do corte dos direitos sociais, das ameaças às liberdades democráticas do povo, da militarização da segurança pública, das ofensas à soberania nacional?

Sobre tudo isso, eu opino que “provavelmente” Tarso exagerou na mão. Entretanto, assim como Alckmin na hora certa lembrou dos elogios feitos a ele por Haddad, “provavelmente” Doria vai lembrar dos elogios feitos a ele por Tarso,  se isto for útil para capturar votos numa eventual disputa contra Bolsonaro. Assim como pode fazer o contrário, se a disputa for contra a esquerda.

A verdade é que, para todos os setores da classe dominante brasileira, o “bom senso” e a “dignidade republicana” não passam de máscaras para uso eventual e passageiro.

Mas Tarso parece não pensar assim, pois se põe a explicar (para Doria!!!) que a “putrefação do Estado” (....) “pode ocorrer quando as partes conflitantes (...) não têm forças suficientes para levar a termo o controle do poder (...) e o 'empate' permanente entre as forças políticas leva os organismos do Estado a uma lenta desagregação, até que a crise seja solucionada pelo caos, que provém da inércia”.

[Confesso que não entendi a parte final da explicação, pois nunca vi uma “crise” ser solucionada pelo “caos”. O que já vi ou já li a respeito são duas coisas diferentes: 1/ o caos ser fomentado artificialmente, para gerar pretexto e legitimação para "medidas extraordinárias"; 2/ o caos ser resultado das circunstâncias e ser solucionado através de "medidas extraordinárias". Mas imagino que Doria vai se interessar pelo raciocínio e vai entender perfeitamente tudo aquilo que eu não alcancei. E talvez algo mais!]

Segundo Tarso, a situação acima citada seria a “do país, não só pela divisão entre as forças que formaram blocos distintos, depois da deposição ilegal da Presidenta Dilma, bem como entre a totalidade daquelas forças – antes unidas – e a oposição social e política formada pela esquerda e a centro-esquerda. Nenhuma destas forças tem a possibilidade de comandar, no momento, a derrubada constitucional do Governo, pelo impedimento do Presidente: a inércia se consolida e o Estado adoece gravemente”.

Se entendi direito, a continuidade de Bolsonaro gera o caos. E ainda assim Bolsonaro continua, porque nem a direita não bolsonarista, nem a oposição de centro e de esquerda têm a “possibilidade  de comandar” o impeachment.

Aqui Tarso “passa o pano” em Doria (e no grande empresariado). Afinal, é verdade que a esquerda e o centro não têm a “possibilidade de comandar”. Mas a direita não bolsonarista tem a possibilidade de começar o processo de impeachment, ou pelo menos poderia defender a proposta. Mas não faz nem uma coisa, nem outra. Aliado de Doria, o presidente da Câmara, Rodrigo Maia, literalmente sentou-se sobre dezenas de pedidos de impeachment. O "caos" não é o mesmo para todos; alguns lucram muito com a situação.

Nesse ponto, a carta pública de Tarso introduz o personagem adorado por 9 em cada 10 defensores da “frente ampla”: o genial Winston Churchill, aquele do sangue, suor e lágrimas que seriam derramadas em defesa... do Império Britânico.

Segundo entendi, o objetivo da citação parece ser fisgar Doria pela vaidade: aja como um Churchill, seja um “estadista”.

Trocando em miúdos, Tarso pede a Doria um grande "gesto", que mobilize não apenas ele, mas uma parte do “bloco que derrubou a Presidenta Dilma”, aquela parte “que está em estranhamento com o fascismo emergente”.

Tarso evoca até mesmo os brios bandeirantes. Não chega ao ponto de citar o lema do brasão - non ducor duco - mas o sentido do que escreve a Doria é o mesmo: “pela sua condição de Governador do Estado mais importante do país, no qual suas classes dominantes têm exercido uma tutela quase plena, há muitos anos, o Sr. detém hoje a legitimidade necessária para – através dos devidos processos legais – desequilibrar o jogo contra Bolsonaro. Pode reunir em torno de si um apoio significativo do empresariado mais privilegiado e rico do país, para defender seu Estado da barbárie negacionista e – por tabela – também ajudar o país: Bolsonaro não pode continuar governando, o Estado está se deteriorando e a aposta dele no 'quanto pior melhor' só favorece os assaltantes do caos”.

Quando li estas palavras, fiquei na dúvida sobre o que pensar. Tarso estaria dizendo tudo isto para desmascarar Doria? Ou Tarso acredita mesmo que uma frente político-empresarial controlada pela oligarquia paulista seria capaz de “ajudar o país”?

Pois esta é a questão de fundo: Tarso, em nome pessoal, está propondo a Doria que assuma a liderança da luta contra Bolsonaro. Se entendi direito, faz isso sob o argumento de que, se depender apenas da oposição de esquerda, o gesto “poderá chegar tarde demais” e o “caos” seria por demais perigoso.

A questão que parece escapar a Tarso (assim como parece escapar aos que defendem apoiar o Bloco do Maia) é que Bolsonaro é parte do nosso problema, mas o problema como um todo inclui o neoliberalismo; como já escrevi noutro texto, “o programa que esta gente defende - o programa neoliberal versão 5G - vai ampliar a desigualdade social e o corolário disso é menos democracia, não mais democracia. Ou seja, na melhor das hipóteses, teremos expulsado o cavernícola pela porta, mas as condições econômicas, sociais e políticas continuarão propícias ao reino das cavernas”.

Tarso quer pegar um atalho para se livrar do caos, mas o resultado tende a ser o oposto do que ele deseja. Claro: para alguns setores médios talvez não. Mas para o povão, “provavelmente” sim.

Não vou comentar o trecho da carta pública que traz recordações familiares. Apenas registro que Tarso defende compormos “um momento [sic] unitário de redução de danos, visando livrar o país do seu verdadeiro Satanás”. E remete para um ciclo de debates que ele (Tarso, não Satanás) está organizando, ciclo que até onde eu sei começará com... Ciro Gomes no dia 18 de janeiro, tudo com o objetivo de “buscarmos um caminho comum, que não será composto sem a derrubada constitucional do Satã em compota que nos assola”.

Todo apoio ao Fora Bolsonaro, ao impeachment e à derrubada constitucional. Mas se isso tudo não vier acompanhado do “fora este governo e suas políticas”, poderemos ao final constatar que tirar o bode da sala não reduz o aperto, embora possa melhorar o odor. Neste sentido, Doria é o cara certo: seus perfumes devem ser de última geração, talvez até tenha trazido alguns de sua recente viagem-relâmpago a Miami.

Um registro final: nenhuma palavra é dita na carta pública sobre a recuperação dos direitos políticos de Lula. Levando isto em consideração, mais a disposição de outras peças no tabuleiro (participação no Bloco do Maia, o que está rolando no Senado, a carta ao Doria etc.), temo que o movimento de "redução de danos" para impedir o "caos" pretenda ir bem mais longe do que se está dizendo, ao menos publicamente.

Quem for petista, que se cuide.  

 

 

SEGUE O TEXTO COMENTADO

 

https://aterraeredonda.com.br/carta-a-joao-doria/

 

Carta a João Doria

29/12/2020

 

Por TARSO GENRO*

Bolsonaro não pode continuar governando, o Estado está se deteriorando e a aposta dele no “quanto pior melhor” só favorece os assaltantes do caos

Prezado Governador João Doria:

Escrevo-lhe abrigado em três acontecimentos políticos, que me autorizam pensar que esta carta é oportuna. Não tenho evidentemente credenciais políticas para lhe propor qualquer aliança política e nem esta é a minha intenção, com esta mensagem que torno pública. Aliança dignas desse nome se fazem em torno de programas e não creio que isso fosse factível entre nós, de uma parte porque tenho pouco poder convocatório, de outra porque pensamos de modo diferente sobre muitas coisas essenciais, exceto – provavelmente – a respeito dos males de todos os tipos, que o Presidente Bolsonaro tem proporcionado à Federação e a todo nosso povo.

A política negacionista do Presidente, suas posições ideológicas medievais e a sua lassidão – como gestor e governante – cujo apetite principal só está expresso na loucura das incomensuráveis asneiras que diz todos os dias e nas agressões que promove todas as horas do dia, tanto ao bom senso como à própria dignidade republicana do país.

O primeiro acontecimento político a que me referi no início desta carta foi a sua manifestação – praticamente em conjunto com o Presidente Lula – que a união na luta contra a Pandemia precede todas as demais questões políticas na conjuntura; o segundo acontecimento é o ódio exalado pelos dementes da base fascista do Presidente, que tem sido direcionado ao Senhor de uma maneira sordidamente especial; o terceiro é a gravação de um vídeo, pelo Presidente Bolsonaro – largamente difundido nas redes – onde ele comete no mínimo três delitos, ao reportar-se ao Senhor: difamação, o primeiro; ameaça (contra a sua pessoa) o segundo; e chamamento à organização de Milícias (formação de quadrilhas politizadas), o terceiro, que configura ameaça direta ao Estado de Direito Democrático.

O conjunto destas manifestações, já “naturalizadas” no país, conforma mais um crime de responsabilidade do Presidente da República, cuja inaptidão para o cargo já extravasou todos os limites.

A “putrefação do Estado”, Sr. Governador, pode ocorrer quando as partes conflitantes, em um dado momento da história, não têm forças suficientes para levar a termo o controle do poder – democraticamente ou não – e o “empate” permanente entre as forças políticas leva os organismos do Estado a uma lenta desagregação, até que a crise seja solucionada pelo caos, que provém da inércia.

Esta é a situação do país, não só pela divisão entre as forças que formaram blocos distintos, depois da deposição ilegal da Presidenta Dilma, bem como entre a totalidade daquelas forças – antes unidas – e a oposição social e política formada pela esquerda e a centro-esquerda. Nenhuma destas forças tem a possibilidade de comandar, no momento, a derrubada constitucional do Governo, pelo impedimento do Presidente: a inércia se consolida e o Estado adoece gravemente.

Churchill dizia que o pessimista vê dificuldade em toda a oportunidade e o otimista vê oportunidade em toda a dificuldade e, mais ainda: que um demagogo se move pensando nas próximas eleições e um estadista o faz pensando nas próximas gerações. Nesta situação complexa que vive o país precisamos de um grande gesto que, se não partir do bloco que derrubou a Presidente da Dilma – da parte que está em estranhamento com o fascismo emergente – poderá chegar tarde demais, quando a oposição reunir forças para sermos sujeitos iniciantes deste processo.

Pela sua condição de Governador do Estado mais importante do país, no qual suas classes dominantes têm exercido uma tutela quase plena, há muitos anos, o Sr. detém hoje a legitimidade necessária para – através dos devidos processos legais – desequilibrar o jogo contra Bolsonaro. Pode reunir em torno de si um apoio significativo do empresariado mais privilegiado e rico do país, para defender seu Estado da barbárie negacionista e – por tabela – também ajudar o país: Bolsonaro não pode continuar governando, o Estado está se deteriorando e a aposta dele no “quanto pior melhor” só favorece os assaltantes do caos.

Conhecendo a História do seu pai, Deputado João Doria do Partido Democrata Cristão dos idos de 64 (que pouco tem a ver com uma boa parte dos ditos cristãos atuais) penso que ele se orgulharia de uma atitude como a que lhe sugiro, digna de um Chefe de Estado: iniciar um “impeachment” em defesa da nação.

Seu pai, como o meu, foi cassado nos primeiros dias do Golpe de 64, e nós – como seus descendentes morais e de “sangue” – tomamos caminhos diferentes. Um à esquerda, outro à direita, mas nada impede que falemos para – pelo menos por carta – compormos um momento unitário de redução de danos, visando livrar o país do seu verdadeiro Satanás, como disse o Governador Flávio Dino, referindo-se ao atual Presidente da República.

Centenas de organizações políticas em rede do país buscam os caminhos da unidade, em um território desarmado da sua dignidade republicana, no qual traçam os difíceis caminhos para a regeneração política e econômica da nação. Dia 18, começaremos – Instituto Novos Paradigmas, Instituto Declatra (Defesa da Classe Trabalhadora) e DDF (Democracia e Direitos Fundamentais) mais um destes debates entre grandes lideranças de esquerda e centro-esquerda no país. É para buscarmos um caminho comum, que não será composto sem a derrubada constitucional do Satã em compota que nos assola: reúna sua turma, Governador, e responda – como Chefe de Estado – as ofensas que ele lhe assacou. Por São Paulo e pelo Brasil.

Respeitosamente. Tarso Genro.

*Tarso Genro foi governador do Estado do Rio Grande do Sul, prefeito de Porto Alegre, ministro da Justiça, ministro da Educação e ministro das Relações Institucionais do Brasil.

 

 

Quaquá, Lula e o Baleia de Ulysses

O sítio da revista Veja (aquela mesma) tornou disponível, as 18h18 minutos de 29 de dezembro de 2020, uma entrevista com Washington Quaquá. 

Quaquá é vice-presidente nacional do PT e deputado federal eleito.

O título que Veja deu à entrevista é: “Para apoiar Baleia Rossi do MDB, PT topa até esquecer o passado”. 

Evidentemente, Quaquá não responde pelo título. E como estamos falando da Veja, não tenho certeza nem mesmo de que suas respostas foram corretamente editadas.

Feita esta ressalva (que estendo preventivamente a todos os comentários que farei a seguir), achei a entrevista deveras interessante, uma inestimável contribuição que Quaquá e Veja dão para que nós petistas tenhamos “paz de espírito” entre o Natal e o Ano Novo.

Segundo Quaquá, o PT vai apoiar Baleia Rossi para presidente da Câmara. O motivo? 

Segundo ele, “o PT já entendeu por maioria (...) que é preciso ocupar os espaços do Parlamento para defender as nossas posições”. 

Uma declaração sincera, embora deva soar pouco heroica para quem defende apoiar Baleia como parte de uma “tática antifascista”.

Perguntado acerca de Arthur Lira, Quaquá diz que “era o defensor de que o Lira tinha condição mais firme para manter acordos”, mas “depois que o Bolsonaro embarcou de vez no Lira, o PT não podia mais defende-lo”. 

Quaquá faz questão de enfatizar que “se o partido tivesse fechado com Lira antes de o governo o ter feito (...) o PT teria bebido água limpa”. 

Novamente, pouco heroico mas sincero: a equação de Quaquá envolve essencialmente a capacidade de “manter acordos” e o devido timing.

Perguntado sobre qual é a divergência na bancada, Quaquá afirma que “uma parte minoritária acha que o partido tem de lançar candidatura própria para depois desistir e apoiar o Baleia”. 

Para Quaquá, fazer isto seria “desnecessário e até infantil”. 

Motivo, segundo ele: não estaria em disputa a sociedade, mas sim espaços no parlamento. 

A tese pode soar tosca, mas tem lá a sua lógica: afinal, se o objetivo principal é disputar espaços, o melhor é chegar primeiro para poder “beber água limpa”.

O detalhe é que uma parte da sociedade tem o hábito de acompanhar, opinar e avaliar os movimentos que os partidos fazem no parlamento. 

Portanto, gostemos ou não, há uma disputa na sociedade, não havendo como escapar de explicar o que estamos fazendo ao lado de golpistas.

É nesse contexto que Quaquá afirma que “o PT está buscando o comprometimento político, de defesa da democracia, da Constituição, enfim, acho que o Baleia está sob influência do Doutor Ulysses Guimarães”. 

Não sei com base no que Quaquá afirma isso, mas como todo mundo é livre para achar, eu “acho” que Baleia está sob influência mesmo é do Michel Temer.

Aliás, a própria Veja pergunta sobre Baleia ser do MDB de Temer, articulador do golpe. 

A esse respeito, a resposta de Quaquá é absolutamente temerária. 

Diz ele: “quando a gente na vida e na política se apega ao passado, a gente perde o futuro. Eu quero ganhar 2022. Não quero rever o golpe de 2016. Ele já aconteceu, entrou para a história e quem o fez vai ser cobrado pela História. Devemos olhar para o futuro. Quem olha demais para o passado não consegue construir o futuro. Na política, quem faz política grande tem para-brisa, não tem retrovisor”.

Lendo este tipo de raciocínio, fica evidente um dos motivos pelos quais sofremos um golpe em 2016: alguns de nós escolheram ignorar alguns ensinamentos do passado. 

Sob o pretexto de “não se apegar ao passado”, de não “olhar demais para o passado”, simplesmente não quisemos enxergar o que vinha atrás de nós, em alta velocidade.

O golpe de 2016 é, efetivamente, "parte da história". Mas a história não cobra nada de ninguém. 

Quem cobra (ou desiste de cobrar) responsabilidades são as pessoas, as forças sociais e políticas, as instituições. 

Se não fizermos a nossa parte nesse sentido, os crimes do passado seguirão se repetindo no presente e no futuro. 

Aliás, um dos motivos pelos quais o cavernícola ocupa o Palácio do Planalto, é porque os crimes do golpe militar e da ditadura não foram devidamente punidos.

No caso em tela, acreditar em acordos com o MDB de Baleia & Temer é pior do que um crime, é um erro. 

Pois crimes podem ser cometidos, sem que haja punição. Mas erros, não. Erros custam caro, para todos nós.

Talvez por não entender de onde Quaquá tira tanta segurança, Veja pergunta como a eleição do Baleia pode ajudar o PT em 2022.

A resposta de Quaquá, em síntese de minha responsabilidade, é a seguinte: os documentos a que a defesa de Lula agora vai ter acesso vão deixar “claro” que queriam tirar Lula da eleição de 2018 e “vão devolver a elegibilidade ao presidente. Aliado a isso, precisamos garantir, via presidência da Câmara, que tenhamos democracia”.

Pode acontecer do STF declarar Moro suspeito? Pode. 

Lula pode recuperar seus direitos? Também pode. 

Mas se isso vier a ocorrer, não é porque surgiu um “documento-bala-de-prata” que finalmente vai deixar “claro” aquilo que os ministros do Supremo estão cansados de saber. 

O que pode formar uma maioria no Supremo a favor da suspeição de Moro?

Considero pelo menos três alternativas: 

1/uma grande pressão popular; 

2/uma garantia de que, mesmo recuperando seus direitos, Lula não disputaria as eleições 2022, limitando-se a apoiar uma das candidaturas; 

3/um interesse, por parte de uma das frações do golpismo, de que Lula efetivamente dispute as próximas eleições presidenciais. 

Deve haver outras alternativas. Mas pelo menos agora, não está claro para mim qual a relação que Quaquá acredita existir entre uma eventual presidência de Baleia Rossi e o objetivo de “garantir a democracia”, no que diz respeito a devolução dos direitos políticos a Lula.

Talvez por suspeitar que seu próprio otimismo é excessivo, ou talvez por algum outro motivo que ele não explicitou na entrevista, Quaquá diz que Lula é o candidato número um, mas não seria o único candidato do PT. 

Afirma também que “precisamos ter um plano B”; que o “erro da eleição passada foi não ter apresentado o plano B com antecedência”; que o plano B desta vez “pode ser o Haddad, o senador Jaques Wagner”. E anuncia que o PT vai informar “ainda em 2021” quem será este plano B.

Não sei quando nem onde se adotou esta decisão anunciada por Quaquá; até onde eu sei, nem o Diretório Nacional do PT, nem a Comissão executiva nacional deliberaram isso. 

Notem que não se trata de uma decisão trivial, por diversos motivos: 

1/na prática enfraqueceria a luta pela recuperação dos direitos de Lula; 

2/tenderia a ocorrer disputa em torno de quem seria esse tal “plano B”; 

3/obrigaria o Partido a entrar 2021 em modo-campanha-eleitoral.

Aliás, a última questão de Veja é a seguinte: “Está descartada, portanto, a ideia de o PT abrir mão da cabeça de chapa para compor com outros partidos?”

Quaquá responde que “não somos contra. O problema é matemático. Sempre querem tirar um petista que aparece à frente nas pesquisas para que o PT apoie alguém que esteja atrás. Nós queremos uma frente ampla, mas queremos que o partido que tenha o melhor candidato, com mais chances de ganhar, encabece a chapa”.

Na verdade, o problema não é matemático, é político. 

Não haverá frente ampla em torno de uma candidatura petista. 

O que existe desde já, isto sim, é uma “frente ampla” que pretende: 

1/nos impedir de vencer, 

2/nos tirar do segundo turno das próximas eleições presidenciais, 

3/nos impedir de ter candidatura. 

Com Lula candidato teremos boas chances, mas ainda assim será muito difícil. 

Sem Lula, o PT terá que fazer um imenso esforço, provavelmente solitário, para ter alguma chance na disputa presidencial. 

E essa chance será maior ou menor, em grande medida, se conseguirmos fazer de 2021 um ano de imensas lutas sociais, políticas e culturais contra o governo Bolsonaro e contra as políticas ultraliberais. 

Acontece que apoiar Baleia Rossi não contribuirá em nada neste sentido, muito antes pelo contrário. 

Por sinal, estou certo de que Quaquá deve ter falado, na sua entrevista à Veja, do desemprego, da ajuda emergencial, da pandemia, da miséria, da fome, do Fora Bolsonaro, seu governo e suas políticas, entre outros temas do interesse de toda a sociedade.

Por fim: quem acredita mesmo que apoiar Baleia faz parte da "frente antifascista", deveria exigir que seu patrono Rodrigo Maia faça tramitar imediatamente o processo de impeachment do cavernícola.

Mais fácil, óbvio, é ter candidatura da esquerda (preferencialmente do PT) para disputar a presidência da Câmara.


terça-feira, 29 de dezembro de 2020

Novamente, sobre Nildo Ouriques e o V Encontro

Nildo Ouriques escreveu um texto, eu fiz um comentário, ele respondeu aqui:

https://resistentes.org/artigos/valter-pomar-e-o-escafandrista/

Sobre esta resposta, começo confirmando que não aprecio o estilo literário de Nildo. Não por ser um estilo “direto”, mas porque me lembra o de alguém bem mais famoso, que prefiro não nomear para não ferir suscetibilidades.

Ouriques afirma que eu não entendi o que ele quis dizer: “Pomar (...)não somente não tomou superficialmente meu parágrafo como pretendeu atribuir sentido oposto ao que escrevi!!!!”

O que Ouriques escreveu: “O PT nasceu do protesto operário contra a ditadura e do esforço da esquerda socialista, derrotada na luta armada, para avançar na luta pelo socialismo. No entanto, de maneira precoce, aderiu sem inibição à ordem burguesa como qualquer um pode ver revisando as teses vitoriosas no V Encontro do partido em 1987 sob comando de Lula e José Dirceu”.

O que eu entendi: que as teses do V Encontro eram uma “adesão sem inibição à ordem burguesa”.

O que eu deveria ter entendido: “Ou seja, no parágrafo acima eu indico claramente que, se o leitor revisar aquela antiga resolução e a comparar com o “Plano Nacional de Reconstrução e Transformação do Brasil” divulgado há poucos meses pela Fundação Perseu Abramo ou cotejar com a atuação dos deputados e senadores do partido no covil de ladrões assanhados em votar no candidato da fração financeira e/ou, finalmente, buscar ecos daquele texto nas declarações de dirigentes nacionais ou regionais do partido, decerto entenderá por que afirmo o fracasso histórico do PT, sua decadência política, moral e programática sem remissão. Afinal, sou eu quem recordou certa grandeza no V encontro, pois, à época, ainda era filiado ao Partido. É mais do que óbvio meu propósito pois, tal como Pomar, na época militante da Articulação, já guardei, sem o orgulho indisfarçável que ele ainda exibe, a memória daqueles “dias de glória”, que, posteriormente, não impediram os governos petistas – Lula e Zé Dirceu no comando – de se constituírem em tempo bem curto em administradores mais competentes da ordem burguesa do que os tucanos, até então um adversário confortável. Ora, com o ímpeto de sempre, ambos arquivaram as resoluções do V Encontro como exemplo de um “erro de juventude”, que a maturidade não admitiria mais…”

Nildo acha que o escrito acima estava indicado “claramente” no seu texto. E afirma que o seu propósito era “óbvio”. Diz ainda que eu não sou “capaz de reconhecer o bom português”.

De fato, infelizmente, não estive à altura de compreender.

Aliás, no meu texto escrevi o seguinte: “Certamente há algum texto onde Ouriques explica melhor sua posição a respeito. Mas salvo melhor juízo, sua crítica ao que de mais avançado o PT elaborou na década de 1980 indica que – apesar de concordar que “a esquerda brasileira (...) necessita [de] um giro radical” – Nildo aponta no sentido oposto ao que me parece adequado, ou seja, ele aponta em um sentido oposto a uma estratégia democrático-popular e socialista”.

Aproveito para reafirmar que continuo sem compreender se Nildo defende ou não a atualidade da estratégia democrático-popular e socialista.

Por exemplo: Nildo diz que as resoluções do 5º encontro são ainda hoje consideradas “pela consciência ingênua de muitos petistas como o grau mais elevado da consciência possível no interior do partido”.

E qual seria o grau “mais elevado”, daqueles que não são ingênuos? Certamente, Netuno ou o Capitão Nemo saberão dizer.

Mudando de assunto, mas ficando no mesmo: Nildo reclama que eu teria evitado “todos os temas espinhosos e o núcleo racional de meu artigo: a decadência moral, política e programática do PT”.

Lamento a frustração, mas acontece que os argumentos de Nildo a respeito desta questão em particular tornam inútil o debate.  Como discutir sobre o PT, com alguém que escreve o seguinte: “hoje, não há mais o que preservar dessa experiência já superada pelos dinamismos da História. Nem a criança, nem a água suja do banho”. Seria como debater com Olavo de Carvalho sobre o PT. Debates assim, nem com escafandro. 


SEGUE O TEXTO DE NILDO OURIQUES

VALTER POMAR E O ESCAFANDRISTA

Por Nildo Ouriques

Valter Pomar não aprecia meu estilo literário: quando sou direto, ele o rejeita; quando sutil, não o entende. A linguagem, disse Marx, é a consciência prática, razão pela qual não devemos brincar com ela. No Brasil, a estranha combinação entre a recusa machadiana ao debate público e o bom mocismo dominante nas filas da esquerda convertida à ordem liberal produziu um deserto no qual a conduta avessa à polêmica não parece ser signo de impostura e covardia, mas, ao contrário, de sapiência.

Portanto, quando recebi sua crítica ao meu artigo Dentro da Baleia. A esquerda liberal e a eleição da presidência da câmara dos deputados, considerei uma bela oportunidade para sair da vala comum do silêncio cúmplice sobre questões essenciais, que, finalmente, confina a esquerda liberal à manufatura da opinião pública feita pela imprensa burguesa onde seus principais dirigentes imploram espaço.

No entanto, ao ler o artigo de Pomar, recordei de imediato uma antiga advertência de Gramsci quando o sardo, há quase um século, nos Cadernos do Cárcere, recomendava que sempre devemos “ser justos com os adversários, no sentido de que devemos nos esforçar por compreender aquilo que queriam realmente dizer e não se agarrar maliciosamente aos significados superficiais e imediatos de suas expressões”. Pomar, não obstante, foi mais longe: não somente não tomou superficialmente meu parágrafo como pretendeu atribuir sentido oposto ao que escrevi!!!!

Na resposta, Pomar evitou todos os temas espinhosos e o núcleo racional de meu artigo: a decadência moral, política e programática do PT, que, uma vez mais, se expressa na tentativa de “derrotar o governo”, elegendo um deputado que é expressão acabada da fração financeira turbinada por Maia e garantia última de Bolsonaro/Guedes. Ele reconhece – sempre de viés – “afirmações interessantes” no meu texto, unicamente para não tratar o tema crucial. Aproveitou o registro que fiz sobre o V Encontro para, à maneira de um escafandrista, recuperar seletivamente memórias de um tempo submerso, como se a miséria atual do seu partido não guardasse relação com as escolhas de Lula e Zé Dirceu, essas que, ao fim e ao cabo, o motivaram a se separar de ambos e formar a Articulação de Esquerda.

Vamos ao ponto central escolhido por Pomar, ou seja, o V Encontro do PT, realizado em 1987.
Pomar pretendeu me colocar contra as resoluções daquele evento ainda hoje considerado pela consciência ingênua de muitos petistas como o grau mais elevado da consciência possível no interior do partido. Mas o que eu, de fato, escrevi? Reproduzo aqui, uma vez mais, pois mais claro não poderia ser:

“O PT nasceu do protesto operário contra a ditadura e do esforço da esquerda socialista, derrotada na luta armada, para avançar na luta pelo socialismo. No entanto, de maneira precoce, aderiu sem inibição à ordem burguesa como qualquer um pode ver revisando as teses vitoriosas no V Encontro do partido em 1987 sob comando de Lula e José Dirceu”.

Ou seja, no parágrafo acima eu indico claramente que, se o leitor revisar aquela antiga resolução e a comparar com o “Plano Nacional de Reconstrução e Transformação do Brasil” divulgado há poucos meses pela Fundação Perseu Abramo ou cotejar com a atuação dos deputados e senadores do partido no covil de ladrões assanhados em votar no candidato da fração financeira e/ou, finalmente, buscar ecos daquele texto nas declarações de dirigentes nacionais ou regionais do partido, decerto entenderá por que afirmo o fracasso histórico do PT, sua decadência política, moral e programática sem remissão. Afinal, sou eu quem recordou certa grandeza no V encontro, pois, à época, ainda era filiado ao Partido. É mais do que óbvio meu propósito pois, tal como Pomar, na época militante da Articulação, já guardei, sem o orgulho indisfarçável que ele ainda exibe, a memória daqueles “dias de glória”, que, posteriormente, não impediram os governos petistas – Lula e Zé Dirceu no comando – de se constituírem em tempo bem curto em administradores mais competentes da ordem burguesa do que os tucanos, até então um adversário confortável. Ora, com o ímpeto de sempre, ambos arquivaram as resoluções do V Encontro como exemplo de um “erro de juventude”, que a maturidade não admitiria mais…

Nesse caso, então, não me defronto com uma apropriação superficial do meu texto por Pomar tal como condena Gramsci, mas para além disso, observo uma surpreendente leitura interessada, que não é capaz de reconhecer o bom português e, em consequência, tenta atribuir ao parágrafo sentido oposto ao que escrevi!!

Qual a razão desse procedimento arbitrário, contrário ao sentido expresso de meu texto?

Bueno, farei breves considerações. Os poucos militantes do PT que ainda se consideram de esquerda e orientados pelo marxismo estão numa situação bem difícil. O grau de adesão do partido à ordem burguesa é de tal magnitude, que a “esquerda do PT” não possui chance alguma de mudar a correlação de forças internas em seu favor. Ademais, caminhando nesse eterno labirinto, são os mesmos que também defendem a “tese” de que Lula segue sendo a expressão máxima do sentimento popular e que o centro da esquerda brasileira tem como referência o PT e o ex-presidente. Em consequência, não são poucas as vezes que esses mesmos militantes afirmaram a impossibilidade de futuro para a esquerda brasileira… sem Lula e o PT!! Finalmente, nas circunstâncias atuais, não podem estocar contra Zé Dirceu e Lula senão de viés, indicando apenas que eles não eram em 1987 entusiastas das resoluções do V Encontro, embora saibamos que nada seria aprovado naquele evento sem a assinatura de ambos, pois comandavam a tendência majoritária, a Articulação. Assim, Pomar não pode superar a contradição na qual estão metidos e a qual, por sua vez, alimentam!

O PT abandonou precocemente o combate para a superação da dependência e do subdesenvolvimento. O compromisso que em suas origens afirmou com o socialismo jamais foi suficientemente profundo para elucidar a luta dentro e contra a ordem, razão pela qual Lula, Zé Dirceu e seus principais dirigentes muito cedo consideraram – ingênua e tragicamente – que poderiam conquistar a cidadania para nosso povo nos marcos do capitalismo dependente sem teorizar e lutar pela revolução social, pela revolução brasileira. Hoje, não há mais o que preservar dessa experiência já superada pelos dinamismos da História. Nem a criança, nem a água suja do banho.

 

O Baleia, o PT e as duas táticas do PT na luta contra o fascismo

Deveriam impedir notícias ruins entre o Natal e o Ano Novo. Inclusive as que envolvem nosso Partido. Por exemplo as movimentações em favor da bancada do PT apoiar a candidatura de Baleia Rossi para a presidência da Câmara dos Deputados.

Baleia Rossi é a candidatura urdida no encontro entre Michel Temer e Rodrigo Maia. Os três são golpistas e ao menos a Maia não falta sinceridade. 

Segundo declarações dele, publicadas hoje na imprensa, “o nosso campo vota majoritariamente a favor da agenda econômica do governo. Após a sucessão, é óbvio que a agenda econômica vai continuar sendo liberal." Perguntado se há o compromisso com a oposição de não pautar privatizações, Maia responde que “não há compromisso de deixar de pautar matéria alguma."

Sobre 2022, ele considera que o bloco de apoio a Baleia Rossi seria “um sinal forte de que parte desse bloco pode estar junto em 2022. Nós demos o grande passo para reduzir de vez a radicalização da política brasileira." Maia aproveitou para citar os nomes de Luciano Huck, João Doria, ACM Neto, Ciro Gomes e Paulo Câmara."

Moral da história: a “tática antifascista” implementada pela maioria da bancada do PT na Câmara dos Deputados pode, na melhor das hipóteses, derrotar Arthur Lyra. Mas não responde como derrotar o neoliberalismo.

Uso aspas ao falar da “tática antifascista”, por diversos motivos. 

Primeiro, porque acho que Bolsonaro tem uma óbvia pegada fascista; mas seu governo, a coalizão que o sustenta e as políticas que implementa não são exatamente “fascistas”. São reacionárias, são regressivas, são fundamentalistas, são neoliberais, são de direita, são ultraconservadoras, são milicianas, são racistas, são misóginas, são lgbtfóbicas, são saudosistas da ditadura militar, mas não são exatamente “fascistas”, ao menos se quisermos ter rigor com os termos.

Uso aspas, também, porque acho que a maioria da bancada do PT na Câmara dos Deputados decidiu participar do “Bloco do Maia” por diversos motivos. Certamente derrotar a candidatura apoiada por Bolsonaro é um deles; mas há outros motivos, entre os quais garantir espaço na Mesa, na presidência de Comissões, em relatorias importantes etc. Se o objetivo fosse “apenas” derrotar a candidatura apoiada por Bolsonaro, a maioria da bancada teria adotado outra tática, por exemplo, lançar desde o início e para valer uma candidatura petista no primeiro turno da eleição para a presidência da Câmara.

Mas há um terceiro motivo pelo qual uso aspas na expressão “tática antifascista”. Este motivo é: considero que esta tática dificilmente vai “dar certo”; e mesmo que dê "certo", terá como resultado fortalecer algumas das “causas estruturais” do bolsonarismo.

Explico: Baleia Rossi pode derrotar Arthur Lyra. E uma candidatura do “bloco do Maia” pode vencer as próximas eleições presidenciais. Mas o programa que esta gente defende -- o programa neoliberal versão 5G – vai ampliar a desigualdade social e o corolário disso é menos democracia, não mais democracia. Ou seja, na melhor das hipóteses, teremos expulsado o cavernícola pela porta, mas as condições econômicas, sociais e políticas continuarão propícias ao reino das cavernas.

Por isso o PT e a esquerda precisam de outra “tática antifascista”. Pois a "tática-antifascista-versão-frente-ampla-com-neoliberais” já mostrou seus defeitos e limites em 2020.

 

 

domingo, 27 de dezembro de 2020

Nildo Ouriques e o 5º Encontro nacional do PT

Um companheiro sugeriu que eu comentasse um texto do Nildo Ouriques, intitulado “A esquerda liberal e a eleição da presidência da câmara dos deputadose divulgado no seguinte endereço: https://resistentes.org/artigos/dentro-da-baleia/

Neste texto, Nildo Ouriques critica a tática -- defendida por parte do PSOL, adotada pela maioria do PT e pelo PCdoB -- de apoiar um setor da direita golpista para (supostamente) derrotar o outro setor, neste momento apoiado por Bolsonaro, na disputa pela Mesa e Presidência da Câmara dos Deputados.

Há muitas afirmações interessantes no texto de Nildo Ouriques, embora geralmente encobertas por um estilo literário que a mim recorda desagradavelmente o de outro autor, que por pudor prefiro não nomear. Exemplos do estilo: “quinquilharias ideológicas”, “digestão moral da pobreza”, “PT, partido que possui a maior bancada no covil de ladrões”, “duas moléculas de lucidez serão suficientes” etc.

Entre as afirmações interessantes feitas por Ouriques, cito a de que temos no governo brasileiro uma “administração liberal da economia” que aplica um “programa de extração keynesiana”. Sendo que, “nas atuais circunstâncias, a derrota do candidato do governo com a possível eleição do tal Baleia Rossi será sobretudo uma vitória do ultra liberalismo”, “uma vitória de Maia e da fração financeira”. Embora a exposição tenha, na minha opinião, várias inconsistências, concordo com o núcleo da tese; aliás, desde o governo Reagan já se sabe que as políticas hoje chamadas neoliberais não são incompatíveis com medidas comumente chamadas de keynesianas.

Há também pontos que a mim parecem frágeis, como denominar de “esquerda liberal” ou de “liberalismo de esquerda” os que defendem participar do bloco de Maia, segundo Nildo para defender o “atual sistema político como se fosse, de fato, a defesa da democracia”. Aceita esta afirmação, o que sobraria de “esquerda” no Brasil? Pouca coisa, como o próprio Ouriques reconhece. Mas ele parece compensar isso com a temerária afirmação de que “o sistema político foi rechaçado em 2018 pela maioria do povo”. Confesso que não sei bem do que ele está falando, até porque “rechaço” é uma postura ativa. E o notável, tanto em 2018 quanto em 2020, é o tamanho da abstenção, dos votos em branco e nulos. Uma atitude passiva, não ativa.

Mas o que mais me chamou a atenção no texto de Ouriques é o que ele diz acerca do 5º Encontro nacional do PT: “O PT nasceu do protesto operário contra a ditadura e do esforço da esquerda socialista, derrotada na luta armada, para avançar na luta pelo socialismo. No entanto, de maneira precoce, aderiu sem inibição à ordem burguesa como qualquer um pode ver revisando as teses vitoriosas no V Encontro do partido em 1987 sob comando de Lula e José Dirceu”.

“Qualquer um pode ver”?

Vou transcrever a seguir um trecho da resolução do 5º Encontro nacional do PT:

“A ALTERNATIVA DEMOCRÁTICA E POPULAR E O SOCIALISMO

70. A alternativa que apresentamos à Nova República e à dominação burguesa no País é democrática e popular, e está articulada com nossa luta pelo socialismo.

71. Um governo e um programa democráticos e populares – os dois componentes de nossa alternativa – são o reconhecimento de que só uma aliança de classes, dos trabalhadores assalariados com as camadas médias e com o campo, tem condições de se contrapor à dominação burguesa no Brasil.

72. É por isso que o PT rejeita a formulação de uma alternativa nacional e democrática, que o PCB defendeu durante décadas, e coloca claramente a questão do socialismo. Porque o uso do termo nacional, nessa formulação, indica a participação da burguesia nessa aliança de classes – burguesia que é uma classe que não tem nada a oferecer ao nosso povo.

73. As propostas que proclamam a necessidade e a possibilidade imediata de um governo dos trabalhadores evitam a discussão sobre qual a tática, qual a política para alcançar esse objetivo. Na prática, separam a luta reivindicatória da luta política, por não compreenderem a necessidade da acumulação de forças. A retórica aparentemente esquerdista recobre a ausência de perspectivas políticas e uma concepção limitada, atrasada, das lutas reivindicatórias.

74. Na situação política caracterizada pela existência de um governo que execute um programa democrático, popular e antiimperialista, caberá ao PT e aos seus aliados criarem as condições para as transformações socialistas.

75. Nas condições do Brasil, um governo capaz de realizar as tarefas democráticas e populares, de caráter antiimperialista, antilatifundiário e antimonopólio – tarefas não efetivadas pela burguesia – tem um duplo significado: em primeiro lugar, é um governo de forças sociais em choque com o capitalismo e a ordem burguesa, portanto, um governo hegemonizado pelo proletariado, e que só poderá viabilizar-se com uma ruptura revolucionária; em segundo lugar, a realização das tarefas a que se propõe exige a adoção concomitante de medidas de caráter socialista em setores essenciais da economia e com o enfrentamento da resistência capitalista. Por essas condições, um governo dessa natureza não representa a formulação de uma nova teoria das etapas, imaginando uma etapa democrático popular, e, o que é mais grave, criando ilusões, em amplos setores, na possibilidade de uma nova fase do capitalismo, uma fase democrática e popular”.

Pergunto: com base no trecho citado, é mesmo possível a “qualquer um” constatar que o PT teria aderido “sem inibição à ordem burguesa”?

Para ler o texto integral da resolução (em cuja elaboração Dirceu e Lula não tiveram o papel que Ouriques sugere), buscar aqui:

https://fpabramo.org.br/csbh/wp-content/uploads/sites/3/2017/04/07-resolucoespoliticas_0.pdf

Certamente há algum texto onde Ouriques explica melhor sua posição a respeito. Mas salvo melhor juízo, sua crítica ao que de mais avançado o PT elaborou na década de 1980 indica que – apesar de concordar que “a esquerda brasileira (...) necessita [de] um giro radical” – Nildo aponta no sentido oposto ao que me parece adequado, ou seja, ele aponta em um sentido oposto a uma estratégia democrático-popular e socialista.

Aliás, este é um traço típico de certa ultra-esquerda: jogar a criança fora, junto com a água suja do banho.

Neste sentido, embora eu tenha interpretado de maneira diferente a crítica feita a Arthur Miller em “Dentro da baleia”, acho que para ilustrar sua "tese" Nildo Ouriques fez muito bem em escolher George Orwell.

SEGUE ABAIXO O TEXTO CITADO ACIMA

Por Nildo Ouriques

A esquerda liberal e a eleição da presidência da câmara dos deputados

 

A defesa abstrata da democracia volta a circular entre nós. Agora, a propósito de uma eleição para a presidência da câmara dos deputados, os partidos que constituem o liberalismo de esquerda (PT, PDT, PSB e PC do B) se unem para “derrotar Bolsonaro” a partir de uma aliança com Rodrigo Maia, subitamente considerado um representante da “direita democrática”. A distinção política entre a “direita democrática” e a “direita autoritária” foi lançada por Fernando Henrique Cardoso quando seu minúsculo PSDB – com epicentro em São Paulo – decidiu a aliança estratégica com o antigo PFL (o DEM da época) para disputar e vencer as eleições presidenciais de 1994. FHC fez escola…

Não causou surpresa, portanto, quando na semana passada, José Dirceu concedeu algumas entrevistas e escreveu artigo tocando o clarinete do pragmatismo na recuperação do antigo argumento de FHC destinado agora a enfrentar e derrotar Bolsonaro numa disputa no interior do covil de ladrões que também atende pelo nome republicano de congresso nacional.

Quem seria o candidato dessa aliança até bem pouco tempo improvável? Ora, um deputado indicado por Rodrigo Maia que receberia o apoio de aproximadamente 130 deputados da esquerda liberal, talvez suficiente para vencer o candidato presidencial, Arthur Lira.

O candidato da “direita democrática” é um tal Baleia Rossi, do MDB paulista, uma escolha de Rodrigo Maia que toda a esquerda liberal decidiu acompanhar para – por tabela!! – derrotar o candidato de Bolsonaro. Maia é sabidamente homem da fração financeira hegemônica na coesão burguesa que sustentou todos os governos desde 1994 e, ademais, é também o líder das reformas que aumenta a superexploração do povo, comanda o assalto ao estado e aprofunda a dependência e o subdesenvolvimento.

No entanto, Maia expressa de maneira miserável o espírito republicano que o proto fascista despreza em seu combate contra a “velha política” que lhe assegurou a vitória nas últimas eleições presidenciais. O conflito, portanto, entre a presidência da república e o presidente da câmara, é parte constitutiva das tensões imanentes ao jogo político mas, de fato, são incapazes de motivar Rodrigo Maia a votar um dos 56 pedidos de impeachment sob sua guarda. A razão é simples: a crise atual impede a destituição pela via parlamentar do proto facista quem, por sua vez, aproveita cada lance para avançar no programa ultra liberal em favor da coesão burguesa (aliança entre o capital agrário, comercial, industrial-residual e bancário) com apoio decisivo de Maia.

Há algo que precisa ser melhor observado na crise atual. O proto fascista aplica, na prática, um programa de extração keynesiana. Guedes exibe o maior déficit fiscal da história republicana, possui a taxa Selic mais baixa quando comparado com qualquer governo do liberalismo de esquerda, mantém programas sociais que sustentavam a outrora a digestão moral da pobreza turbinada pelos governos do PT e garante o equilíbrio do balanço de pagamentos na base da economia exportadora e de empréstimos externos, além, é claro, de seguir com o super-endividamento do estado via dívida pública e transferências permanentes do Tesouro ao Banco Central. A administração liberal da economia não permite arriscar previsão otimista sobre a superação da crise cíclica mundial que se abate com mais força na periferia capitalista. No entanto, a crise aproximou os ultra liberais dos keynesianos de tal maneira que, no essencial, não existem diferenças substanciais entre os primeiros e os segundos. A divergência – sempre presente – se resume a desacordos eventuais na dosagem, mas jamais no rumo da política econômica.

A defesa abstrata da democracia – na qual Rodrigo Maia figura como representante da “direita democrática” – tem, não obstante, consequências práticas. A mais importante é a união do liberalismo de esquerda com a direita liberal na defesa do atual sistema político como se fosse, de fato, a defesa da democracia. Ora, o sistema político foi rechaçado em 2018 pela maioria do povo e nada indica – absolutamente nada! – que goza de boa reputação nas classes subalternas. Ao contrário, mesmo na análise superficial dos resultados eleitorais de novembro, o rechaço ao sistema político segue sendo uma inclinação evidente do eleitor, além de combustível valioso para a direita em toda disputa eleitoral. Nesse contexto, a reivindicação abstrata da democracia aparece como o que de fato é para amplos setores das classes subalternas: a defesa da podridão do regime político atual, sem dúvida uma peça preciosa da campanha presidencial de 2022.

Mas o liberalismo de esquerda confina o profundo rechaço ao sistema político dominante, afirmando que a “anti-política” não teve vez nas eleições municipais e, em consequência, alimenta ilusões próprias e alheias segundo as quais os ventos mudaram, Bolsonaro saiu derrotado e o “centrão” e a “direita tradicional” venceram… Quinquilharias ideológicas sem solidez alguma, com a finalidade de ocultar o essencial no jogo pesado das classes sociais e suas frações.

A absoluta falta de compromisso com a revolução brasileira no interior do liberalismo de esquerda – portanto, ausência de um projeto estratégico – a deixa rodando no labirinto da crise administrada pelo proto fascista. No fundo, a linha defendida por Zé Dirceu se resume a reivindicação de uma “frente ampla” como se fosse possível com tal artificio reverter a lenta e inexorável deterioração da economia e do sistema político. A democracia – jamais poderemos esquecer – é uma realidade histórica a ser conquistada pela luta dos trabalhadores contra a burguesia e jamais o resultado da disputa de espaços no interior de um sistema eleitoral apodrecido que não goza de prestígio algum nas classes subalternas e tampouco guarda algum interesse à classe dominante. Aqueles que julgam a vitória do proto fascista Bolsonaro em 2018 como mero produto de uma conjuntura eleitoral – em vias de superação – divulgam uma ilusão que custará sangue e suor às classes subalternas.
Ora, um cargo na mesa diretora do parlamento, a presidência de algumas comissões e uma “vitória simbólica” sobre o proto fascista na disputa no interior do covil de ladrões justificaria, finalmente, a aliança entre o liberalismo de direita e o liberalismo de esquerda?

José Dirceu não está só na empreitada, justiça seja feita. A deputada e líder da bancada do PSOL no parlamento, Fernanda Melchiona – acompanhada de Marcelo Freixo – já anunciou que pretende se somar a corrente e eu não duvidaria que meu partido assumisse um lugar no bloco em “defesa da democracia”. Ora, a democracia não é um valor universal pois, tal como ensina a história brasileira, latino-americana e mundial, as classes dominantes não possuem qualquer compromisso com a forma liberal do regime de dominação. O liberalismo de esquerda banaliza as razões do golpe de 1964 e, com a mesma convicção, oculta o conteúdo restringido do regime eleitoral (democracia restringida) que emergiu da crise da ditadura como forma de dominação política a partir de 1985.
A questão não é, de fato, de natureza doutrinária. O senso comum funcional ao cinismo dominante afirma que devemos deixar de lado o purismo e avançar de maneira pragmática contra Bolsonaro impondo derrota após derrota, em todos os terrenos, numa luta sem quartel, até abatê-lo de maneira definitiva. Ora, o pragmatismo é também uma arte que tem lá suas exigências, nada fáceis de eludir. Nas atuais circunstâncias, a derrota do candidato do governo com a possível eleição do tal Baleia Rossi será sobretudo uma vitória do ultra liberalismo.

Não basta – definitivamente não basta! – aos liberais de esquerda justificar sua adesão ao liberalismo de direita prometendo um céu keynesiano nas 10 premissas de um manifesto redigido para inglês ver. Portanto, se a adesão ocorrer e, quem sabe, o tal deputado Baleia derrotar o candidato de Bolsonaro, a operação é um reforço notável à Rodrigo Maia na disputa pela hegemonia da coesão burguesa contra o proto-fascista e, em nenhuma hipótese, um passo adiante para o liberalismo de esquerda. Ao contrário, é mais do que claro que uma vitória de Maia contra Bolsonaro será um reforço precioso ao liberalismo de direita na futura disputa contra os liberais de esquerda em 2022. A polarização na próxima disputa presidencial poderá ser – como tenho advertido antes mesmo das eleições municipais – entre os ultra liberais encabeçados pelo proto fascista e a direita liberal, cujas filas não param de crescer. Enfim, por vez primeira desde 1988, se tal cenário se confirmar, podemos estar diante de uma contenda na qual o liberalismo de esquerda finalmente revelaria os limites de sua própria política justificando o voto na “direita democrática” contra a “direita autoritária”. Portanto, se o pragmatismo é isso, pode ser também um sinônimo para suicídio político!


Nas circunstâncias da crise brasileira, o pragmatismo exige uma boa dose de radicalismo político, mas esse é um tempero que o liberalismo de esquerda “orientado” pelo bom mocismo recusa como se sua adoção violasse um mandamento divino, uma regra moral. Na real, a esquerda liberal só não navega sem bússola porque esta, na prática, orientado pelo liberalismo de direita sob o bordão da… “defesa da democracia”!
Há outras razões, nem sempre exaustivamente tratadas, que comandam a adesão da esquerda liberal ao candidato da fração financeira que hegemoniza a coesão burguesa, razão pela qual devemos exibi-las claramente para entender a racionalidade do pragmatismo que se pavoneia entre nós como se fosse, de fato, um comportamento político “responsável”.
José Dirceu escreve há tempos sobre a necessidade de uma “oposição radical a Bolsonaro” e uma “auto-reforma e renovação da esquerda” (liberal). Para tal, essa oposição, cuja ponto alto seria o impecheament do proto facista, teria que levar a “suspeição de Sérgio Moro” e, mais importante, “anular as condenações a Lula”. Ora, o drama do PT não representa os dramas do liberalismo de esquerda. O PT nasceu do protesto operário contra a ditadura e do esforço da esquerda socialista, derrotada na luta armada, para avançar na luta pelo socialismo. No entanto, de maneira precoce, aderiu sem inibição à ordem burguesa como qualquer um pode ver revisando as teses vitoriosas no V Encontro do partido em 1987 sob comando de Lula e José Dirceu. Portanto, os brados atuais para uma volta às bases, a defesa dos territórios, o enraizamento nas periferias, etc, são mera propaganda para sustentar o cretinismo parlamentar e a paralisia da antiga máquina sindical agora em frangalhos. A reconciliação entre o PT e as demandas populares contemporâneas são irrealizáveis nesse mundo, mesmo com Lula candidato. A propósito, não tenho dúvida a respeito: a devolução dos direitos políticos de Lula apenas elucidaria sua impotência moralista diante dos dramas reais do povo brasileiro. Nesse sentido, o caráter eleitoral dos partidos da esquerda liberal impede um ideário socialista, radical, de “renovação e auto reforma” como retoricamente defende José Dirceu. O PDT, na mesma toada, tampouco pode recuperar o ideário trabalhista tanto de Alberto Pasqualini quanto de Leonel Brizola, razão pela qual adota de maneira desinibida e com indisfarçável orgulho, as “teses” de um scholar chamado Mangabeira Unger! A “auto-reforma” e a “renovação” da esquerda liberal somente poderia ocorrer nos marcos de um diagnóstico da crise que o liberalismo de esquerda é incapaz e de uma ruptura com o sistema dominante. O keynesianismo que balbuciam não possui dentes para morder e, em consequência, não podem captar a força iracunda do povo afundado num abismo social sem remissão nos marcos da ordem burguesa. Na impossibilidade de romper com a coesão burguesa que sustentaram desde sempre com o adorno da filantropia, resta o “radicalismo” dos discursos parlamentares contra a “PEC do teto dos gastos”, manifestos contra as privatizações, ensaios de cobrança de impostos sobre os rentistas agora autorizado pelo FMI, a defesa dos direitos sociais no patamar do moralismo burguês, etc…
Mas se nem tudo é jogo de cena, há também ilusões necessárias na linha adotada pelo liberalismo de esquerda, conduzida pelo PT, partido que possui a maior bancada no covil de ladrões. Antecipo duas delas.
A primeira, de caráter mais geral, consiste no fato de que o pragmatismo restrito a defesa abstrata da democracia é, na real, apenas mais uma jogada para manter o liberalismo de esquerda nos estritos marcos da ordem burguesa, sem avançar jamais na luta contra a ordem. Uma parte considerável do que Zé Dirceu chama de correlação de forças, de um “ciclo de derrotas” que impediria avançar mais é, na verdade, um fracasso histórico que emergiu de maneira clara na destituição de Dilma sem o recurso da luta de massas, pois a “estratégia anti-golpista do petismo” permaneceu apegada aos acordos no parlamento, as ilusões republicanas e a certeza que voltariam pela força do voto nas eleições de 2018… O PT nada mais possui de suas raízes históricas e não existe caminho para a reconciliação entre a máquina eleitoral que de fato é, e os chamados “movimentos sociais” que retoricamente reivindicam. Não por acaso, agora a “tática” é uma frente ampla cujos antecedentes podem ser vistos no encontro das Fundações dos partidos no ano passado com a criação do “observatório da democracia” e na reunião secreta de 5 horas entre Ciro e Lula em setembro desse ano cujo conteúdo o ilustre público nada sabe.
O liberalismo de esquerda encabeçada pelo PT mira 2022 acompanhado das mesmas ilusões que levaram a derrota da destituição da ex-presidente Dilma e a confirmação de seu fracasso histórico. Na real, agora pouco importa se as premissas keynesianas que adornam o voto com Maia no manifesto dos liberais de esquerda serão respeitados por Baleia – obviamente que não serão! – pois o relevante é manter a atuação política nos estritos marcos parlamentares sem convocar o povo para nenhuma batalha importante. Não fosse a pandemia, o artificio seria mais evidente.
A segunda razão, igualmente importante, refere-se a luta do liberalismo de esquerda para liquidar definitivamente o “lavajatismo”. José Dirceu defende há tempos a “suspeição de Moro” e a anulação das “condenações de Lula” como requisito de uma ordem genuinamente democrática. Ocorre que agora, há de maneira cada vez mais desinibida, uma rara e óbvia coincidência entre Bolsonaro, figuras destacadas da direita e do liberalismo de esquerda, todos abrigados no covil de ladrões, que merece maior atenção. De fato, todos querem o fim da Lava Jato que, sob ordens de Bolsonaro, está sendo gradual e seletivamente desativada. O objetivo para o liberalismo de esquerda é restituir os direitos políticos de Lula e deixa-lo livre para disputar as eleições em 2022. A redução da política à moral foi arma eficaz do liberalismo de direita contra o liberalismo de esquerda, mas no contexto de uma república apodrecida até a medula, não pode permanecer por muito tempo dando as cartas. Assim, Bolsonaro, Lula, Aécio, José Serra, Michel Temer e algumas centenas de deputados e senadores indiciados ou investigados querem e necessitam o fim da “pior das ditaduras”, aquela do judiciário e da PF. Nas atuais circunstâncias, num aparente paradoxo, Bolsonaro seguirá tanto beneficiário do reino da impunidade quanto agitador contra a corrupção. A luta contra a corrupção, que tanta autoridade deu ao liberalismo de esquerda encabeçado pelo PT na década de oitenta, foi simplesmente liquidado na esteira da incorporação do partido aos negócios de estado, tão eloquente no “caso Palocci” quanto confesso no financiamento não declarado das campanhas eleitorais. Por sua vez, Bolsonaro não poderia entregar a promessa do fim da corrupção, pois a origem primária do fenômeno se encontra na relação ultra parasitária entre o capital e o Estado, razão pela qual Moro jamais se atreveu em estender suas investigações aos segredos do Banco Central e do Ministério da Fazenda, limitando seu moralismo restaurador dos bons costumes aos partidos políticos e a merenda escolar, sem jamais olhar para os swaps cambiais, a administração da dívida pública, as medidas provisórias que concederam suculentos benefícios as multinacionais e aos capitalistas nacionais, a “fuga” de capitais, etc…
A “virada” de Bolsonaro no meio do ano – quando saiu de cena e diminuiu a emissão de declarações destinada a ocupar a cabeça do liberalismo de esquerda com quinquilharias ideológicas enquanto aprovava o essencial no covil de ladrões com as medidas de Paulo Guedes – não foi suficiente para desacredita-lo completamente como político símbolo da “luta contra a corrupção”. O proto fascista segue agitando aqui e acolá a bandeira da moralidade pública que não pode – por razões óbvias – ser disputada nesse terreno pelo liberalismo de esquerda (especialmente o PT). A queda de Sérgio Moro provou que a maioria seguia mesmo o proto fascista na eficaz redução da política à moral cujo alvo é o atual sistema de partidos políticos, ou seja, o sistema “democrático”. As derrotas históricas, nós sabemos, tardam em diluir-se na memória do povo, razão pela qual mesmo cada dia mais implicado em sucessivos “escândalos” (vide o caso do senador Flávio Bolsonaro!) o proto fascista segue exalando ares de quem permanece solitário na “luta contra a corrupção” mesmo com a ação da PGR, do Ministério da Justiça e de sua própria base parlamentar na direção de um acordo que subalternize as ações judiciais ao mundo da política. No bordão do liberalismo de esquerda, o fim da “judicialização da política e a politização da justiça”. O grito da classe média contra a corrupção – em larga medida incompatibilizada com o petismo – está sustentado tanto nos pequenos privilégios da pequena burguesia proprietária ou assalariada quanto na deterioração de sua posição em função da voracidade da crise econômica.
Maia – e o tal Baleia Rossi – seguirão vigilantes contra os supostos arroubos “populistas” de Bolsonaro, na mesma medida que atentos aos sinais “confusos” de Paulo Guedes em relação as medidas ultra liberais sempre consideradas pela fração financeira como cronicamente insuficientes. A vitória de Baleia sobre Lira seria antes de mais nada, uma vitória de Maia e da fração financeira, jamais uma derrota de Bolsonaro.
Nesse contexto, o liberalismo de esquerda atua apenas para reduzir danos no interior da política oficial, incapaz de tomar a iniciativa política. Na crise atual, a direita liberal acumula forças enquanto o liberalismo de esquerda, contabiliza derrotas políticas e ideológicas. Uma esquerda “auto renovada” não poderá jamais emergir entre nós da “luta” parlamentar, menos ainda quando se limita no parlamento a ser mera consciência crítica da política oficial sem enfrentar a coesão burguesa hegemonizada pela fração financeira.
George Orwell escreveu em 1940 um texto sobre literatura no qual denunciava a impostura intelectual e a covardia dos escritores ingleses diante do fim da literatura do liberalismo, desinibidos na arte de submergir nas entranhas de uma baleia como meio supostamente eficaz de fugir das turbulências históricas que marcaram as vésperas da guerra na Europa.
“As entranhas da baleia – escreveu Orwell – são apenas um útero o suficiente para conter um adulto. Lá ficamos, no espaço almofadado e escuro em que nos encaminhamos perfeitamente, com metros de gordura entre nós e a realidade, capazes de manter uma atitude da mais completa indiferença, não importa o que aconteça. Uma tempestade que naufragaria todos os navios de guerra do mundo mal nos atingiria em forma de eco. Mesmo os movimentos da baleia provavelmente nos seriam imperceptíveis. Ela poderia nadar entre as ondas da superfície e mergulhar na escuridão dos oceanos médios (uma milha de profundidade, de acordo com Herman Melville), que jamais notaríamos a diferença. Com a exceção da morte, é o estágio sem igual, definitivo, da irresponsabilidade.”
A valorização da luta parlamentar representa hoje uma entrada na barriga da baleia e, portanto, um simulacro de luta pela democracia. O divórcio com o mundo real é completo e como manda a tradição, o artificio que fecha os olhos aos milhões de trabalhadores condenados ao desemprego permanente, ao desalento, à violência dos acidentes de trabalho, ao histórico subfinanciamento da saúde e da educação, ao domínio avassalador da cultura metropolitana sob a cultura nacional-popular, à superexploração da força do trabalho é o mesmo que justifica “a defesa da democracia”. Enquanto isso, naquele covil de ladrões, a coesão burguesa legaliza compra irregular de terras por estrangeiros, a ampliação sem limites da fronteira agrícola, permite a fuga de capitais, transforma o Tesouro em garantia de lucros aos banqueiros e todo tipo de assalto ao estado com a conivência do liberalismo de esquerda.
A esquerda brasileira – ou o que sobrou dela – necessita um giro radical noutra direção. O liberalismo de esquerda não poderá fazê-lo, não tenho dúvidas a respeito. Creio, tal como podemos ver noutros países latino-americanos, que as explosões sociais mais ou menos radicais ocorrem sem que os partidos da ordem – da direita ou da esquerda liberal – possam sair as ruas e encabeçar a luta contra a classe dominante. Não há na política situações sem saída, razão pela qual sempre haverá algo pra fazer, mesmo em condições totalmente adversas. Nessas situações, duas moléculas de lucidez serão suficientes para entender a função construtiva da recusa em atuar na miséria do jogo parlamentar; antes de isolamento social, essa recusa é, precisamente, o caminho que abrirá as portas do futuro para a esquerda na próxima semana diante de milhões de trabalhadores condenados ao abismo social sem remissão nos marcos da ordem burguesa. A derrota do proto fascista não virá da luta parlamentar; até lá, se não podemos ganhar as ruas, não devemos nos somar ao cinismo e a impostura dominante que garante vida longa a classe dominante e condena nosso povo ao vale de lágrimas como se não houvesse outro futuro possível.