domingo, 27 de setembro de 2020

As eleições de 2020 e o futuro do PT

Segue abaixo o roteiro (sem revisão) da fala feita no debate sobre "as eleições de 2020 e o futuro do PT", realizado no dia 27 de setembro de 2020.

Boa tarde a todos, boa tarde a todas.

Boa tarde a quem está aqui na sala zoom e também a quem está nos acompanhando pelo YouTube.

Este debate, como outros que fizemos, não tem nenhum outro propósito, senão o de debater questões de fundo. Motivo pelo qual, inclusive, as posições dos que vão falar não necessariamente são coincidentes entre si.

Na minha opinião, o resultado das eleições de 2020 está por ser definido.

Pode ocorrer uma vitória das candidaturas bolsonaristas, pode ocorrer uma vitória das candidaturas da direita não-bolsonarista, pode ocorrer uma vitória das candidaturas da oposição de centro, pode ocorrer uma vitória da oposição de esquerda, especialmente do PT.

Assim como pode ocorrer um quadro indefinido, onde todos possam cantar vitória.

Apesar da indefinição, uma coisa é certa: a maior parte dos partidos, dos meios de comunicação e dos analistas vai esquadrinhar o resultado das eleições 2020, a busca de provas definitivas de que o PT sofreu uma grande derrota e que está fora do páreo de 2022.

O PT pode sofrer esta grande derrota?

Pode, sempre pode.

Aliás, a minha impressão é que uma parte do PT está se esforçando muito neste sentido.

Primeiro, ao não alterar a estratégia do Partido. A classe dominante mudou de estratégia, desde o final de 2014. Mas o PT insiste na mesma estratégia. Para ser mais exato: o PT ensaiou mudar de estratégia no 6º congresso de 2017, mas depois voltou a adotar a mesma estratégia de antes.

Estratégia baseada, entre outras coisas, em um acúmulo de forças principalmente eleitoral, colocando em segundo plano o trabalho cotidiano de organização, conscientização e mobilização da classe trabalhadora e demais setores populares.

Quando falamos isso, é comum que militantes digam: “isso não é verdade, eu estou todo dia na luta”. Sim, é verdade, a imensa maioria dos petistas está na luta. Mas o PT como instituição, suas instâncias dirigentes, sua ação prática, está organizada pela institucionalidade, pela dinâmica do parlamento, dos governos, das eleições.

Um dos efeitos práticos disto nós vimos na luta contra o golpe: na hora de resistir ao golpe, não havia base social organizada capaz de fazer isso.

Outro exemplo prático desta estratégia organizada em torno das instituições foi a fé cega em que não ia ter golpe, não ia ter condenação do Lula, não ia ter prisão do Lula, não ia ter interdição do Lula.

O esforço de parte do Partido, o esforço que alguns chamam de política suicida, no sentido de que contribui para sermos derrotados, não se limita a manter uma estratégia superada. Inclui, também, adotar uma tática confusa.

É ou não é confuso passar o ano de 2018 dizendo “eleição sem Lula é fraude” e, no segundo turno, gastar dias preciosos buscando o apoio de FHC?

É ou não é confuso denunciar Bolsonaro como miliciano e fascista, mas passar de novembro de 2019 até maio de 2020 debatendo se devíamos ou não defender o Fora Bolsonaro?

É ou não é confuso defender, para as eleições de 2020, o lançamento de candidaturas próprias onde for possível e, ao mesmo tempo, fazer alianças com bolsonaristas? E, também ao mesmo tempo, intervir em cidades que tem candidaturas próprias, para forçar o apoio a candidaturas real ou supostamente aliadas??

Estes dois exemplos que eu dei – estratégia ultrapassada e tática confusa – não necessariamente vão resultar numa derrota eleitoral do PT nas eleições de 2020. Mas dificultam muito que o PT obtenha, qualquer que seja o seu resultado eleitoral, uma vitória política.

E o mais importante que o PT poderia e pode obter nas eleições de 2020 é uma vitória política. Ou seja, um resultado que nos posicione para enfrentar, não as batalhas do passado, que vão se traduzir nas urnas de 2020; mas um resultado que nos posicione para enfrentar as batalhas do futuro. E para que estejamos posicionados para as batalhas futuras, não bastam resultados eleitorais; aliás, respeitosamente, o mais estratégico não são os resultados eleitorais.

Vou dar um exemplo. Em 1972, em plena ditadura militar, aconteceram eleições municipais. A Arena elegeu 3.322 prefeitos contra 468 do PMDB. Contribuiu para isso o fato de que a Arena tinha candidaturas em todos os municípios do país, enquanto o MDB não existia em parte das cidades.

A vitória eleitoral da ditadura era acompanhada do massacre dos remanescentes da luta armada e da perseguição implacável contra todas as oposições. E em janeiro de 1974, Geisel foi eleito presidente da República pelo Congresso, derrotando o anticandidato Ulysses Guimarães, por 400 votos contra 76 votos. Mas apesar disso, no final do ano, nas eleições parlamentares de 1974, o MDB elegeu 16 senadores e a Arena elegeu apenas 6. E na Câmara, a bancada do MDB cresceu de 87 para 160 parlamentares.

Qual o segredo? Obviamente, não foi o resultado eleitoral de 1972 que construiu o resultado eleitoral de 1974. O principal motivo da mudança, que se traduziu na derrota do governo nas eleições de 1974,  foi a evolução da consciência do povo, a interpretação que o povo fazia do que estava acontecendo na economia, na sociedade e na política do país, inclusive diante de uma crise de endividamento que desmentia o “milagre” da ditadura.

E o que fez a ditadura, depois da derrota de 1974? Mudou as regras institucionais, com Lei Falcão e, mais adiante, com o chamado Pacote de Abril e a Lei de Organização dos partidos Políticos.

Não sabemos qual teria sido o desfecho deste jogo de gato e rato, se ele tivesse sido mantido apenas no terreno eleitoral; o que sabemos é que o jogo foi totalmente subvertido, quando entraram em cena as grandes mobilizações populares no final dos anos 1970: as lutas estudantis, as lutas populares e principalmente as lutas sindicais.

Guardadas as proporções, como aconteceu a partir de meados dos anos 1970, estão se acumulando fatores que, mais cedo ou mais tarde, vão levar à grandes lutas populares. 

O desemprego, a inflação, a pandemia, várias outras questões, tudo junto e misturado. 

A questão posta para nós do PT, é dupla: 

-primeiro, por um lado, se vamos contribuir para que as grandes camadas populares se organizem melhor para mudar essa situação, como no final dos anos 1970? 

-segundo, se e quando isto ocorrer, vamos adotar a posição de bombeiros ou de incendiários?

Esta segunda questão remete a questão abordada pelo singular senador Requião, em artigo recente, em que ele pergunta se o PT estaria se convertendo no velho Partidão, cuja direção, no final dos anos 1970, assumiu esta posição de bombeiro a que me referi antes.

Mas eu quero concluir, falando da primeira questão: o que fazer para contribuir na conscientização, organização e mobilização do povo.

Há duas dimensões que eu gostaria de destacar.

Primeiro, ter uma diretriz organizada de trabalho de base partidário. Não trabalho de base dos movimentos sociais e sindicais, refiro-me a trabalho de base partidário, fundamental para realizar e dirigir o trabalho de base social. Sobre isto, chamo a atenção para o livro Alfaiate de Ulm, de Lucio Magri, que nos conta que pesou, na crise final do Partido Comunista Italiano, a burocratização e a desaparição dos organismos de base do Partido, que terceirizaram  para outras instituições – no caso italiano, terceirizaram para os sindicatos – o trabalho cotidiano junto a classe trabalhadora. E a ausência de um trabalho partidário cotidiano fortaleceu o economicismo, deixando a classe trabalhadora mais fragilizada frente a ofensiva neoliberal.

Segundo, a necessidade de adotar uma diretriz ideológica, programática e estratégica organizada em torno do socialismo, não em torno da quimera de um capitalismo democrático.

Vejamos, por exemplo, o Plano de reconstrução e transformação lançado recentemente pelo PT.

Nele tem muita coisa positiva.

A começar pelo fato de que foi lançado num momento de campanha municipal, quando muita gente tenta desvincular o local do nacional.

Ademais, demarca com o conjunto da política cavernícola, defendendo a soberania, as liberdades, os direitos e o desenvolvimento.

Uma defesa do povo e do futuro, contra aquilo que está nos levando em direção ao passado.

Entretanto, trata-se de um plano mais de “reconstrução”, do que de “transformação”.

E isso é, em si mesmo, uma contradição, pois na atual situação não dá para reconstruir sem transformar.

Além disso, embora tenha colocado o legado no anexo, ou seja, trata do legado dos governos Lula e Dilma num anexo do texto, a verdade é que o plano segue fortemente prisioneiro da lógica que prevaleceu em 2002.

Isto porque o plano de fato não defende rupturas estruturais, naquilo que é o essencial: a propriedade e o poder.

Refiro-me, por exemplo, ao que se diz e ao que não se diz acerca do setor financeiro, do agronegócio, das estatais privatizadas e sob ameaça de privatização.

Refiro-me, também, ao fato de que o plano não enfrenta o tema das forças armadas.

Nem ao menos repete aquilo que o partido já tem acumulado a respeito, por exemplo a mudança no artigo 142 da Constituição e as decisões da Comissão Nacional da Verdade.

Ocorre que não estamos numa situação parecida com a de 2002. Portanto, não é bom caminho repetir a lógica adotada na época ou fazer algo parecido com aquela lógica.

No fundo destes defeitos do Plano, está na minha opinião o fato de que ele contém um programa bem pouco desenvolvimentista e quase nada socialista.

Pouco desenvolvimentista, isso apesar da palavra desenvolvimento aparecer 188 vezes no texto, enquanto a palavra socialismo aparece acho que umas duas vezes.

Acontece que desenvolvimento, especialmente um desenvolvimento de novo tipo, exige um alto nível de enfrentamento com o imperialismo, com o capital financeiro, com a lógica primário-exportadora e, em particular, com o poder das classes dominantes.

E, nesse sentido, o plano deixa a desejar.

E acho que é assim, por um motivo que fica claro quando fazemos a busca da palavra “capitalismo” no programa.

Descobrimos que se fala uma vez de “capitalismo de vigilância”; outra vez se diz que o capitalismo precisa de um sistema de crédito; e as restantes oito vezes se fala de “capitalismo neoliberal”.

Para bom entendedor, meia palavra basta: para alguns, o objetivo de médio prazo do plano de reconstrução e transformação é construir no Brasil outro tipo de capitalismo.

É por isso que, no debate travado no Diretório Nacional do PT, foram derrotadas as várias propostas que defendiam explicitar, como fio organizador deste plano, a construção de um Brasil democrático, popular e socialista.

Se diz no Plano, acerca do socialismo: “O nosso Programa Democrático e Popular se articula do ponto de vista estratégico com o projeto histórico do Socialismo Democrático, o “Socialismo Petista”, reafirmado ao longo de toda a trajetória do PT”.

Se "articula", no caso, implica em que seriam coisas distintas. de um lado o programa democrático-popular, de outro lado o socialismo, "articulado" de maneira que não está nem um pouco claro. Compreensão diferente daquela expressa nas resoluções do quinto encontro nacional do PT, de 1987.

Nesse sentido, penso que Requião tem certa razão no texto que ele publicou no Brasil 247, criticando o plano do PT: a lógica que anima este plano é parecida com a que animava o velho Partidão.

O que Requião não leva em devida consideração (e é natural que não leve, ele que ficou os últimos 40 anos no PMDB-MDB), na sua crítica, é que o fantasma do partidão ronda o PT faz muito tempo.

Por exemplo, lembro que num texto escrito em dezembro de 1992, texto intitulado “Noventa e três e os próximos anos”, eu comecei dizendo o seguinte: “Um fantasma ronda o PT: o fantasma do comunismo. Não o comunismo de que falava Marx, mas sim um comunismo pragmático, eleitoreiro, reformista, típico do velho Partidão”.

Agora, trinta anos depois, pergunto: e por acaso poderia ser diferente? Seria (ou será) possível construir um partido socialista de massas no Brasil, sem conviver com as “tentações” da conciliação de classe?

Quem achava que seria possível, ou não entrou no PT, ou em algum momento saiu dele. E não me consta que tenham conseguido resultados superiores aos obtidos pelo PT, desde 1980 até agora.

Entretanto, assim como não há mal que nunca se acabe, também não há bem que sempre dure. A atual situação histórica coloca o PT diante de situações que ele nunca viveu antes. Erros antigos, aos quais sobrevivemos, agora podem ser fatais.

É por isso que é preciso, além de disputar e vencer as eleições de 2020, é preciso – qualquer que seja o resultado das eleições de 2020 -- ampliar a luta por outra estratégia, por outro programa e por outra postura prática no cotidiano da luta de classes.

Não dá para seguir funcionando, principalmente, como um partido de anos pares.

Obrigado pela atenção.


Arbesú, presente!!!



 Acabo de receber a notícia do falecimento do camarada José Antonio Arbesú Fraga, conhecido como ARBESÚ. O conheci quando ele era o responsável por dirigir o Departamento de América Latina do Partido Comunista de Cuba. Nasceu em 1940, partiu em 2020, aos 80 anos. Entre muitas de suas tarefas, dirigiu a representação diplomática de Cuba nos Estados Unidos. Uma pessoa muito interessante, a quem tive o prazer de ciceronear numa visita que fez ao Brasil, quando esteve com Requião, Ana Júlia, Pochmann no Ipea, Gabrielli na Petrobrás. Bem humorado, me contou várias histórias hilárias, entre as quais uma envolvendo o lendário Comandante Manuel Piñeiro, outra envolvendo o também lendário Tirofijo das FARC colombianas, outra envolvendo os representantes do PT em uma reunião do Foro de São Paulo em Antigua, sem falar numa envolvendo o próprio & a alfândega cubana. Espero que tenha deixado suas memórias, serão geniais. Arbesú, presente!!!

quinta-feira, 24 de setembro de 2020

Requião critica o programa do PT

Numa reunião recente, de avaliação do ato de lançamento do plano de reconstrução e transformação do Brasil, um importante dirigente do Partido disse que em política existem situação, oposição e Requião.

Lembrei da frase, ao ler o artigo assinado por Requião e divulgado há pouco no Brasil 247, artigo cujo título é “Teria o PT se transformado no Partidão?”

O referido texto está no seguinte endereço: 

https://www.brasil247.com/blog/teria-o-pt-se-transformado-no-partidao

Como é curto, transcrevo na íntegra abaixo:

“No dia 21 de setembro, às vésperas da primavera (algum simbolismo?),  participei também do lançamento do “Plano de Reconstrução e Transformação do Brasil” proposto pelo PT. E, mais uma vez, fiquei com a sensação da incompletude, de que minha fome, voracíssima fome, por um programa revolucionário, verdadeiramente transformador para as nossas desgraças tão antigas e encrostadas, ficou na vontade de comer”.

“Ah, diriam: não é um programa, é um plano. Tipo assim a Carta aos Brasileiros, que era um plano para quebrar as resistências das elites conservadoras e vencer as eleições e que se tornou o programa dos governos do PT?”

“(Desculpem o mau jeito. Talvez devesse começar o texto elogiando os aspectos positivos do texto, que os há às pencas, para só depois fazer reparos. Mas, vamos em frente.)”

“Por exemplo, gostaria de entender se os tais pressupostos da macroeconomia, aquele trio famoso, são apenas parte de um plano ou são elementos fundantes de um programa”.

“(Ou seriam os pressupostos macroeconômicos uma entidade que paira acima das terrenas disputas político-ideológicas, etérea e intocada lá nos céus das verdades eternas?)”

“Enfim, o que eu quero dizer é que não existe -porque nunca existiu nos governos do PT- essa distinção entre plano e programa. Uma coisa é outra coisa, e outra coisa é a primeira coisa. Tudo misturado e batido, a mesma coisa.”

“Se não tocamos nos pressupostos, esses sacralíssimos bovinos, o que nos resta, então? Se não temos uma política radical de reversão de todas! as privatizações; de recuperação de cem por cento do pré-sal; de revogação de todas as reformas e medidas lesivas aos interesses dos trabalhadores e aos interesses nacionais; se o capitalismo financeiro continuar correndo solto, sem o bridão do Estado; se não recuperarmos total e incondicionalmente a soberania nacional sobre o solo e o subsolo, sobre o ar, os mares, os rios, as florestas; se isso e muito mais, o que nos resta?”

“Resta-nos a generosidade das políticas compensatórias e identitárias. Enfim, fazer cócegas, se tanto, nas crostas insensíveis do monstro. Não mais que isso.”

“(Com tristeza d’alma e aperto no coração, vejo que é proporcional o aumento de espaço na agenda da esquerda para as políticas identitárias à diminuição do espaço para as propostas de transformação revolucionária da sociedade brasileira. E há todo um esforço, que não diria assim tão inocente, de substituir as lutas dos trabalhadores e das periferias pobres por comida, moradia, salário, saneamento, saúde, educação, segurança dignidade, por bandeiras políticas distantes das emergências de suas desgraças.)”

“Os mais jovens não se lembram, mas nós, os mais velhos e a geração dos anos 80, deveriam dar uma espiada na história, para recordar.  Como surge o PT e como se forma a ala dos autênticos do MDB? Frutos do que fomos, quem emulamos, com quem litigiamos e demandamos para florescer? Com o PCB. O Partidão viu o seu quase monopólio sobre a esquerda brasileira esfarelar-se por causa de suas posições reformistas, frentistas, amplas e conciliatórias.”

“Por que descaminhos se perderam os revolucionários dos anos 80?”

“Outra coisa: um plano com 210 páginas?

“(Mais uma aproximação com o antigo Partidão, que vivia sempre o dilema de ser um partido de quadros ou um partido de massas. Um plano com 210 páginas é para um partido de quadros. É isso, então?)”

“Desculpem-me a sinceridade, mas redigi este texto com a mesma franqueza com que o Papa Francisco combate o domínio absoluto do capital financeiro sobre a humanidade. O longo, o longuíssimo texto do Plano não transmitiu ao povo brasileiro aquele sentimento de esperança e de mudança imprescindível, conditio sine qua, para insufla-lo.”

“O que haverá de mobilizar os brasileiros, os trabalhadores, os assalariados de todas as classes, as massas pobres e deserdadas da cidade e do campo, as cada vez mais empobrecidas camadas médias se não fortes, peremptórios e sinceros acenos de mudança?”

“Amigos, companheiros, camaradas são as minhas aflições. Relevem as amarguras e as angústias deste velho companheiro. Mas, pensem no que ele disse”.


Ao ler este texto, eu fico me perguntando: a que ponto nós chegamos? 

Afinal, não é de hoje que o PT recebe este tipo de crítica, vinda de partidos (real ou nominalmente) à nossa esquerda. 

Mas é, digamos, um pouco impactante ler tudo isso, vindo de alguém que passou os últimos 40 anos no PMDB-MDB, convivendo com Sarney, com Temer e outros de igual quilate. 

(Aliás, recordo de uma visita que fiz ao então governador Requião, acompanhando uma delegação do Departamento América do PC cubano. Com o mesmo estilo sincero, o anfitrião reclamou de-não-sei-o-quê do PT e eu respondi ter certeza que ele, como peemedebista, entendia bem mais do que eu as diferenças que existem em um partido.)

Mas enfim, deixemos de lado o mensageiro e prestemos atenção na mensagem.

Igual ao que diz Requião, acho que o Plano de reconstrução e transformação tem muita coisa positiva. 

A começar pelo fato de que foi lançado num momento de campanha municipal, quando muita gente tenta desvincular o local do nacional. 

Ademais, demarca com o conjunto da política cavernícola, defendendo a soberania, as liberdades, os direitos e o desenvolvimento. 

Uma defesa do povo e do futuro, contra aquilo que está nos levando em direção ao passado.

Agora, concordo que o plano é mais de “reconstrução”, do que de “transformação” (e isso é em si mesmo uma contradição, pois na atual situação não dá para reconstruir sem transformar). 

Além disso, embora tenha colocado o legado no anexo, o plano é fortemente prisioneiro da lógica que prevaleceu em 2002 (pois de fato não defende rupturas estruturais, naquilo que é o essencial: a propriedade e o poder). 

Refiro-me, por exemplo, ao que se diz e ao que não se diz acerca do setor financeiro, do agronegócio, das estatais privatizadas e sob ameaça de privatização. 

Refiro-me, também, ao fato de que o plano não enfrenta o tema das forças armadas (nem ao menos repete aquilo que o partido já tem acumulado a respeito, por exemplo a mudança no artigo 142 da Constituição e as decisões da Comissão Nacional da Verdade).

Ocorre que não estamos numa situação parecida com a de 2002. Portanto, não é bom caminho repetir a lógica adotada na época ou algo parecido com ela.

Em resumo, penso que o plano apresentado ao país no último dia 21 de setembro contém um programa bem pouco desenvolvimentista e quase nada socialista (isso apesar da palavra desenvolvimento aparecer 188 vezes no texto, enquanto a palavra socialismo aparece acho que umas duas vezes).

Acontece que desenvolvimento, especialmente um desenvolvimento de novo tipo, exige um alto nível de enfrentamento com o imperialismo, com o capital financeiro, com a lógica primário-exportadora e, em particular, com o poder das classes dominantes. 

E, nesse sentido, o plano deixa a desejar.

Por exemplo: quando fazemos a busca da palavra “capitalismo” no programa, descobrimos que se fala uma vez de “capitalismo de vigilância”; outra vez se diz que o capitalismo precisa de um sistema de crédito; e as restantes oito vezes se fala de “capitalismo neoliberal”. 

Para bom entendedor, meia palavra basta: o objetivo do plano de reconstrução e transformação é construir no Brasil outro tipo de capitalismo

É por isso que, no debate travado no Diretório Nacional do PT, foram derrotadas as várias propostas que defendiam explicitar, como fio organizador deste plano, a construção de um Brasil democrático, popular e socialista.

Nesse sentido, penso que Requião tem certa razão: a lógica que anima este plano é parecida com a que animava o velho Partidão.

O que Requião não leva em devida consideração, na sua crítica, é que o fantasma do partidão ronda o PT faz muito tempo. 

Por exemplo, lembro que num texto escrito em dezembro de 1992, texto intitulado “Noventa e três e os próximos anos”, eu comecei dizendo o seguinte: “Um fantasma ronda o PT: o fantasma do comunismo. Não o comunismo de que falava Marx, mas sim um comunismo pragmático, eleitoreiro, reformista, típico do velho Partidão”

Agora, trinta anos depois, pergunto: e por acaso poderia ser diferente? Seria (ou será) possível construir um partido socialista de massas no Brasil, sem conviver com as “tentações” da conciliação de classe? 

Quem achava que seria possível, ou não entrou no PT, ou em algum momento saiu dele. E não me consta que tenham conseguido resultados superiores aos obtidos pelo PT, desde 1980 até agora.

Entretanto, assim como não há mal que nunca se acabe, também não há bem que sempre dure. A atual situação histórica coloca o PT diante de situações que ele nunca viveu antes. Erros antigos, aos quais sobrevivemos, agora podem ser fatais. Especialmente por isto, considero que as críticas de Requião são muito bem-vindas. Embora eu realmente não consiga entender o seu, digamos, "lugar de fala".  

 

segunda-feira, 21 de setembro de 2020

O discreto charme da chapa Boulos-Erundina

 Uma parte da esquerda está debatendo com paixão os rumos da eleição paulistana. Os motivos são vários e óbvios, dada a importância do resultado eleitoral na maior cidade do país. Mas para além dos motivos nobres, existem outros, nem tanto.

Entre os que são de esquerda, mas não são petistas, há o legítimo desejo de superar o PT no maior eleitorado do país. Desejo que é compartilhado pela direita, que não de hoje estimula alternativas que pretendem superar a influência do petismo nos setores populares. Quem não lembra da capa da IstoÉ em que um flamejante Ciro Gomes expulsa Haddad e Gleisi do paraíso???



A novidade, desta vez, é a quantidade de petistas que estão cedendo à pressão. Alguns, por cansaço de material (cansaço que levou um bom número a só se manifestar agora, pouco ou nada participando no momento em que era possível construir outro rumo para a tática e para a chapa do PT nas eleições municipais). Outros, por não se verem moralmente obrigados a respeitar uma decisão adotada num diminuto colégio eleitoral, por apertada diferença. Há os que rejeitam o candidato, por variados motivos, que em alguns casos cresceram depois do anúncio do vice, que muitos de nós esperávamos que ampliasse a diversidade de gênero e étnica da chapa. Mas o que me parece ser a razão fundamental do crescimento do número de petistas e simpatizantes capturados pelo discreto charme da chapa Boulos-Erundina é de natureza político-eleitoral.

O fato é que as pesquisas (tanto as pesquisas profissionais, quanto aquela “pesquisa” individual que cada um de nós faz todo dia) são até agora negativas. Não negativas apenas para o PT, mas para a esquerda como um todo. Cresce a chance de a esquerda ser excluída do segundo turno das eleições de São Paulo capital. Assim, influenciados por estas pesquisas, muitos petistas olham para Boulos, na crença de que ele seria capaz de ir além de seu eleitorado atual (que os dados das pesquisas oficiais indicam estar concentrado nos setores médios de esquerda) e chegar ao segundo turno.

Não compartilho desse olhar, nem dessa crença. Mas antes quero lembrar que não voto em São Paulo capital, mas em Campinas, onde temos uma chapa PT-PSOL encabeçada pelo PT. Lembro, também, que lutei até o limite formal (no meu caso, um recurso ao Diretório Nacional do PT para que o companheiro Haddad fosse convocado a assumir a candidatura a prefeito). Entretanto, se estivesse em São Paulo, eu estaria fazendo campanha pelo PT (e, portanto, pela chapa Jilmar-Zaratini, com zero de chance de votar em qualquer outro partido ou candidatura). Entre outros motivos, porque nesse tipo de questão não coloco em primeiro plano as pesquisas, nem os cenários eleitorais.

Sou petista e não passa pela minha cabeça a hipótese de “cristianizar” uma candidatura petista. E fico deveras impressionado com a leveza com que alguns fazem isso, talvez por não perceber a relação que existe entre a destruição das liberdades democráticas e o desmonte (por dentro ou por fora) dos partidos de esquerda.

Entretanto, mesmo quando estudo as pesquisas, assim como os cenários eleitorais, não consigo me convencer do raciocínio feito pelos petistas que estão, na prática, apoiando Boulos. Apoiando ou "deixando apoiar", como fazem muitas lideranças e até candidaturas a vereador. Para explicar o porquê, gostaria de apresentar dois cenários.

Cenário 1. O PT mantém a candidatura, mas parte de sua militância e de seu eleitorado migram para a candidatura do PSOL. Boulos cresceria (não se sabe quanto), mas a divisão do eleitorado da esquerda faria com que a disputa de segundo turno fosse resolvida entre as candidaturas de direita. Os que pensam assim deduzem, por óbvio, que não basta fazer campanha por Boulos, seria preciso também fazer campanha contra Tatto, para fazer com que quase todo o seu eleitorado migrasse para Boulos. Ou seja: partindo da tese de que deveríamos unificar a esquerda, acabam desembocando numa operação de sangrar o PT. Se o cenário político geral estivesse favorável à esquerda, poderia ser feio, mas ainda assim poderia dar certo. Mas num cenário político geral tão difícil para a esquerda, não consigo compreender como, de uma operação autofágica deste tipo, possa resultar uma vitória da esquerda.

Cenário 2. O PT retira sua candidatura a prefeito e orienta seu eleitorado a votar na candidatura do PSOL. Do ponto de vista prático, o PT deixaria de ter espaço de TV e rádio. Mesmo que houvesse alguma redistribuição, isso não ampliaria significativamente o tempo reduzido de TV&Rádio da candidatura de Boulos, nem seus recursos financeiros. Portanto, tudo dependeria da campanha militante. De qual militância? A do PSOL, a da esquerda em geral e, principalmente, dependeria da campanha da militância do PT!!! Esta militância (supostamente) não estaria disposta a se engajar por Tatto, mas (supostamente) compareceria para fazer campanha por Boulos, movida (supostamente) pelo entusiasmo provocado pela unidade da esquerda e pela possibilidade de levar Boulos ao segundo turno.

Os que pensam assim, no fundo reconhecem que a militância e o eleitorado do PT existem e têm força suficiente para levar uma candidatura ao segundo turno, mas acrescentam dois senões: 1/desde que não seja uma candidatura do PT e/ou 2/desde que não seja a candidatura Tatto.

O primeiro senão é parente daquele sustentado por Ciro em 2018. Mas, e o segundo senão? Será que o problema é o Tatto? Se tirarmos o Tatto, tudo se resolveria?

Como é público, eu não apoiei a candidatura Tatto na disputa interna; e defendi, no Diretório Nacional do PT, que Haddad fosse convocado para ser candidato. E acho que a campanha vem subestimando os problemas. Apesar disso, considero inacreditável qualquer raciocínio que subestime a força da direita na cidade de São Paulo, que subestime o conservadorismo de uma parcela do eleitorado, que subestime a força do próprio PT, imputando todos os nossos problemas e dificuldades às características de quem foi escolhido para ser o candidato do PT.

Como é óbvio, a esquerda pode ir ao segundo turno das eleições em SP capital, ou por conta da força orgânica, da capilaridade, da presença real; ou por conta do voto de protesto; ou por uma combinação de ambos motivos.

O PSOL tinha e tem todo o direito de achar que pode atingir este objetivo, o que passa necessariamente por atrair eleitores que, em 2016 e 2018, votaram no PT. Aliás, vamos lembrar que o PSOL paulistano nunca propôs uma aliança com o PT.

O PCdoB também tem todo o direito de achar que pode atingir este objetivo, sozinho (igual ao PSOL, o PCdoB tampouco procurou fazer uma aliança com o PT na capital). Assim como é compreensível que o PCdoB lance candidatura própria a prefeito na capital paulista, para contribuir na defesa da sobrevivência futura do Partido, em parte ameaçada pelos rigores da legislação.

E o PT? O PT não teria o direito de lutar por reconquistar o voto de quem já votou nele? O PT não poderia defender sua sobrevivência? Considero espantoso que militantes do PT tenham dúvida a respeito, exigindo do PT algo que não exigem dos demais partidos, as vezes sob o pretexto de que o PT é um grande partido e por isso deveria “demonstrar grandeza”, desconsiderando ou subestimando o processo de cerco e aniquilamento que está em curso contra o PT.

Tal atitude, vinda inclusive de importantes petistas, é um sinal dos tempos, é certamente um sinal de uma justa preocupação com as consequências de mais uma vitória eleitoral da direita em SP capital, mas –em alguns casos –  também é um sinal de que a insistência em uma estratégia esgotada começa a causar danos colaterais, incluindo engolir alguns dos espertos que a defendem.

Explico: entre 1989 e 2014 o PT apostou grande parte de suas fichas no acúmulo eleitoral. E pouco a pouco começou a acreditar que sua força eleitoral derivava principalmente dos votos obtidos na última eleição (e do desempenho de seus mandatos). Colocando em segundo plano o que constitui a força real do Partido, a saber: a força organizada na classe trabalhadora, inclusive no terreno da cultura política.

Em 2014, depois de quatro derrotas eleitorais presidenciais seguidas, a classe dominante decidiu mudar de estratégia e foi para o golpe. Golpe que foi vitorioso, entre outros motivos, porque, além das ilusões republicanas, ao longo de anos se subestimou a necessidade de organizar nossa base social. Desde então, o PT está diante de uma disjuntiva: ou adotar uma nova estratégia, ou insistir na estratégia antiga. Desta segunda alternativa, decorrem as ilusões na “frente ampla”. Mas decorre, também, o efeito meio déjà-vu, a ilusão de que se poderia fazer tudo de novo do mesmo jeito, mas agora resultando em algo diferente. Um dos problemas é que o PT realmente existente, duramente atingido pelo golpe e tudo-o-mais, tem dificuldade de fazer-tudo-de-novo-do-mesmo-jeito. Mas, ao invés de reconhecer isso, parcela do petismo insiste nas velhas fórmulas. Em alguns casos, fazendo alianças com partidos de direita, inclusive bolsonaristas.

Mas, paradoxalmente, no caso de São Paulo, alguns enxergam que a velha fórmula seria materializada na candidatura do PSOL, ilusão para a qual contribui bastante a presença de Erundina na chapa encabeçada por Boulos, assim como contribuem – não posso provar, mas estou convicto disto – os ensinamentos de Stanislavski.

Do meu ponto de vista, de quem defende enfaticamente a necessidade de outra estratégia, considero que a essa altura do campeonato, a pressão pública de setores da esquerda contra o PT em São Paulo é um desserviço, não apenas para o PT, mas para toda a esquerda. Pois se é verdade que não haverá nova estratégia, sem a construção de uma frente de esquerda; também é verdade que não haverá frente de esquerda, sem o PT, contra o PT ou apesar do PT. 

Noutras cidades, mais por iniciativa do PT do que de outros partidos, foi possível construir a unidade da esquerda. Noutros lugares, apesar da iniciativa e disposição do PT, a unidade foi parcial (é o caso da cidade do Rio de Janeiro). Na maioria das cidades, entretanto, a unidade da esquerda não se materializou no primeiro turno. 

O fato é que a unidade da esquerda é essencial, mas uma frente não pode ser imposta artificialmente, nem a “golpes de mídia”; além do que, a vida não acaba em 2020, muito menos no primeiro turno. Sendo preciso compreender que a construção de uma nova estratégia para toda a esquerda brasileira é uma tarefa de médio prazo, que inclui a defesa, a reorientação estratégica e a revitalização orgânica do Partido dos Trabalhadores. 

Isto posto, o risco de uma derrota catastrófica em São Paulo (e noutras cidades importantíssimas) existe. E, salvo a alternativa que já foi rechaçada pela direção nacional do Partido dos Trabalhadores, só vejo um caminho para tentar evitar esta catástrofe: fazer uma campanha pela esquerda, de classe, politizada, que demarque com Bolsonaro, com Doria, com Covas, com a direita, com a classe dominante. Se fizermos isso, podemos conseguir não apenas uma vitória política, mas também eleitoral. Com o perdão do trocadilho infame, num certo sentido será necessário que Jilmar tenha muito pouco tato.

 

 

 

domingo, 20 de setembro de 2020

Aula sobre “a economia política e a crítica da economia política”, do curso capitalismo e luta pelo socialismo no século XXI

(texto sem revisão, citações indicadas por WP são de Wladimir Pomar)

Boa noite a todos.

Boa noite a todas.

Boa noite a quem está nos acompanhando aqui, nesta sala zoom.

Boa noite a quem estiver nos assistindo on-line.

Cumprimento também a quem nos assistir em outro momento.

Como já informei na primeira aula deste curso, meu nome é Valter Pomar.

Sou professor de relações internacionais na Universidade Federal do ABC.

E integro a equipe de professores voluntários da Escola Latinoamericana de história e política.

Hoje vamos encerrar a primeira parte de mais um curso da Elahp, o curso intitulado “O capitalismo e a luta pelo socialismo no século XXI”.

Como foi explicado na primeira aula, o curso está sendo oferecido em três módulos (ou cursos) independentes:

-um tratando do capitalismo, com 6 aulas;

-outro tratando do capitalismo latino-americano, com 7 aulas;

-outro tratando do capitalismo e da luta pelo socialismo no século XXI, também com 7 aulas.

Hoje vamos encerrar o primeiro módulo, que contou com aulas de Mateus Santos, de Breno Altman, de Joana Salen, de Victor Schincariol e deste que vos fala, a quem coube a aula de abertura e, agora, a aula de encerramento.

O próximo módulo, ou curso, tratará do capitalismo latino-americano e contará com a participação de Ramon Vicente Garcia Fernandez, de Olivia Carolino, de Virginia Fontes, de Guilherme Magacho, de Laura Tavares, de Fernanda Cardoso e de Breno Altman.

O terceiro módulo, ou curso, tratar do capitalismo e da luta pelo socialismo no século XXI. Contaremos com a contribuição de Juliane Furno, Breno Altman, Valéria Lopes Ribeiro, Arturo Guillen, Maria Carlotto, Monica Bruckman e, novamente, deste que vos fala.

Esperamos contar com a presença de todos e todas, nos próximos módulos. 

Isto posto, inicio minha aula de hoje sobre “a economia política e a crítica da economia política”, repetindo o mesmo que eu falei na aula de abertura do curso: “O capitalismo é produto de uma longa evolução histórica; portanto, mais cedo ou mais tarde, sob formas que podemos imaginar ou que podem nos surpreender, o capitalismo também será superado historicamente por outro modo de produção e reprodução da vida social”.

O reconhecimento da natureza histórica do capitalismo, portanto de sua especificidade como fenômeno, não é ponto pacífico.

Tanto no senso comum, quanto no mainstream acadêmico, prevalece de fato outra visão.

Digo que prevalece de fato, porque mesmo em tempos de ofensiva terraplanista, não é tão simples sustentar a eternidade dos fenômenos humanos.

Mas há maneiras de enfrentar esta dificuldade.

Basta, por exemplo, que o “capital” seja convertido em uma “coisa”, por exemplo num instrumento, para que supostamente se encontrem sinais de capitalismo na era das cavernas e para que, por tabela, se possa projetar o capitalismo por toda a eternidade, ou pelo menos enquanto existir espécie humana.

Curiosamente, o reconhecimento que a natureza em geral e a humanidade em particular possuem uma história, coincide com a emergência do capitalismo, nas entranhas do feudalismo.

Portanto, da mesma forma como a burguesia começou revolucionária e terminou reacionária, o pensamento burguês começou afirmando e terminou negando a natureza histórica das formas de organização social.

“Terminou” não é bem a palavra, pois o pensamento burguês continua aí, firme e forte.

Um pensamento que assumiu, desde o fim das revoluções burguesas, o seguinte lema: “até aqui houve história, a partir de agora não há mais”.

Ou seja, para fazer uma blague que inverte a famosa frase, é como se dissessem “antes de mim, o dilúvio”.

A chamada economia política clássica é marcada por esta contradição.

Por um lado, os “economistas” sérios são obrigados a reconhecer a historicidade em geral; por outro lado, são tensionados a declarar a eternidade essencial do capitalismo.

Mas como isso se “resolve”, na prática?

Nas obras mais geniais e mais representativas, se “resolve” geralmente combinando a descrição da evolução histórica, com a formulação de categorias a-históricas, que posteriormente vão ser apresentadas através de fórmulas matemáticas que aterrorizam muitos estudantes.

Chamo a atenção para o fato de que esta combinação entre descrição histórica as vezes bastante correta, com categorias analíticas eternas (no sentido de válidas para todos os períodos históricos), ajuda a economia política burguesa a perpetuar sua hegemonia, inclusive em amplos setores da esquerda.

Nada mais comum do que nos depararmos com economistas de esquerda, capazes de se indignar contra os crimes do capitalismo e do imperialismo, mas que ato contínuo nos lembram da necessidade de respeitarmos as “leis da economia”, que eles tratam como se fossem as “leis da economia em geral”, embora muitas vezes não sejam nem mesmo as leis que regem a economia capitalista.

Portanto, para os que fazem a crítica da economia política burguesa, não basta a afirmação genérica de que o capitalismo é um fenômeno histórico, que teve um início e que algum dia terá fim.

É preciso compreender de que forma isso ocorreu e de que forma tende a ocorrer.

Nas palavras de um russo que resenhou o tomo I de O capital,  trata-se de elucidar “as leis particulares que regem o surgimento, a existência, o desenvolvimento e a morte de um organismo social determinado e sua substituição por outro, superior ao primeiro”.

Parte disso (o surgimento e certo período da existência) pode, ao menos em tese, ser resolvido de maneira relativamente simples.

Afinal, embora o estudo do passado não seja nada trivial – como se viu nas aulas do Mateus e do Breno--, ainda assim estamos diante de um fenômeno que já se concluiu e que pode ser dissecado.

Mas o debate sobre o que está ocorrendo e sobre o que ainda vai (ou pode) ocorrer, é obviamente mais complexo.

Cito a este respeito uma resenha, que enviaremos para os alunos do curso, sobre as diferentes interpretações existentes – entre marxistas – acerca da crise de 2008. Refiro-me ao texto LA CRISIS ECONÓMICA MUNDIAL Y LA ACUMULACIÓN DE CAPITAL, LAS FINANZAS Y LA DISTRIBUCIÓN DEL INGRESO. DEBATES EN LA ECONOMÍA MARXISTA, de Juan Pablo Mateo Tomé, da Universidad Pontificia Comillas (Madrid, España).

*

Como o que chamamos de “presente” é sempre o ponto de encontro entre o passado e o futuro, vamos nos concentrar neste último, ou seja, no futuro.

Para começo de conversa, sobre o futuro não há como provar quase nada de maneira “definitiva” (nos limites em que algo vivo possa se considerar “definitivo”), por motivos que são explorados no debate da chamada história contrafactual.

Vou dar um exemplo acerca deste tema da “prova”: grande parte das polêmicas existentes na esquerda se concentram em torno de escolhas que foram feitas, em determinadas situações históricas.

Tomar ou não o poder? Fazer ou não uma determinada aliança? Defender ou não uma determinada proposta? Por exemplo, apresentar ou não a Carta aos Brasileiros.

Vejamos este exemplo: há quem diga que Lula não teria vencido as eleições de 2002 sem a tal Carta. Há os que dizem que Lula teria sido eleito sem a tal Carta (minha opinião é esta, aliás).

Os primeiros em geral argumentam que apresentamos a Carta e vencemos; logo...

Do ponto de vista política pode ser um argumento forte, embora perigoso por legitimar a lógica adotada pela história dos vencedores. Mas para além disso, trata-se de um argumento precário do ponto de vista lógico, pois nem sempre uma coincidência é também uma relação de causa-e-efeito.

Mas os que dizem que teríamos vencido mesmo sem a Carta, têm ainda mais dificuldade para comprovar sua opinião; entre outros motivos, porque não há como voltar atrás no tempo e fazer o teste.

O que resta, então, aos defensores desta posição, de que Lula teria vencido mesmo sem a Carta, é construir no plano do pensamento, no plano da abstração mental, um encadeamento virtual de causa-e-efeito que resulte na vitória eleitoral, mesmo que a Carta não existisse.

Mas neste caso estamos diante de uma hipótese que nunca será provada.

Agora imaginemos outra situação: houve um debate, no Comitê Central do POSDR, sobre tomar ou não poder em outubro de 1917.

Entre os que falaram contra tomar o poder, apareceu o argumento da correlação de forças. Ambos os lados na polêmica não podiam “provar” nada no momento do debate. Mas uma decisão foi tomada, a favor da tomada do poder, e uma prova foi feita: o poder foi conquistado e estabilizado.

Imaginemos, entretanto, que Lênin tivesse sido derrotado naquele debate, que o POSDR tivesse decidido não tomar o poder. E imaginemos que, por decorrência, desde1917 até este ano de 2020, nunca tivesse existido uma URSS.

Como provar que Lênin tinha razão em 1917? Como provar que havia correlação de forças para tomar o poder? Nós sabemos que havia, pois esta foi a opção feita e testada; mas se a opção tivesse sido outra, não saberíamos e nunca poderíamos provar que se tratou efetivamente de uma “oportunidade perdida”.

Os exemplos que dei dizem respeito ao passado. Mas do ponto de vista lógico, o problema posto está presente, também, quando debatemos as implicações futuras de decisões presentes, quando debatemos o que pode vir a acontecer.

Em primeiro lugar, por conta de variáveis não conhecidas. Imaginemos, por exemplo, que estejamos todos convencidos, sem sombra de dúvida, que o capitalismo é não apenas histórico, mas também que um dia será substituído por outro modo de produção, tal e qual Marx entendia. Agora imaginemos que semana que vem descobrimos que um cometa se aproxima da terra e, passado um ano, este planeta Terra e todos nós simplesmente não existimos mais.

Pergunto: enquanto esperamos a Terra virar pó, o que pensamos sobre a teoria de Marx, na qual acreditávamos até ontem? Esta teoria estava errada, no sentido de que uma de suas previsões, a principal talvez, não vai se materializar? Ou, como toda teoria, ela seria válida apenas em determinadas condições de temperatura e pressão, excluindo algumas variáveis, a começar obviamente por aquelas que não estão ao alcance do conhecimento contemporâneo?

Por óbvio, a resposta científica é esta segunda, mas ela tem implicações políticas que não são triviais.

Em segundo lugar, quando debatemos sobre o futuro, é preciso lembrar das características do fenômeno analisado. Estamos falando de um fenômeno social extremamente complexo – a sociedade humana, na sua etapa atual capitalista.

Qualquer previsão sobre o futuro desta sociedade enfrenta dificuldades muito mais complexas do que o estudo de uma matilha, de uma colmeia, de um formigueiro; ou do fluxo das marés e a evolução dos planetas.

Estas dificuldades encontradas no estudo da sociedade humana não são intransponíveis, mas são extremamente reais.

Parte destas dificuldades diz respeito a potencial assincronia entre condições objetivas e subjetivas; diz respeito, no que diz respeito ao tema que estamos tratando nesta aula, a potencial não simultaneidade das crises capitalistas e da existência de forças político-sociais capazes de dar uma determinada solução, socialista, para estas crises.

Em terceiro lugar, quanto debatemos sobre o futuro, é preciso lembrar que a capacidade de previsão supõe regularidades – do tipo, se acontecer isto, vai dar naquilo.

Por exemplo: é possível “prever” que um ser humano vai morrer, embora não saibamos quando; e esta previsão se baseia não apenas na observação dos antepassados e dos contemporâneos, mas também no estudo do comportamento de certos componentes do organismo humano, que tendem a perder progressivamente sua capacidade de funcionar.

Mas este raciocínio não pode ser meramente extrapolado para o plano social. Isto por pelo menos dois motivos.

Motivo 1: porque o fato de sociedades pré-capitalistas terem morrido, não implica necessariamente que o capitalismo também vá morrer; é um indício, digamos assim, mas não é uma prova. E não é uma prova exatamente porque afirmamos a historicidade singular dos fenômenos!

Motivo 2: embora existam – no capitalismo – certos “componentes” que tendem a uma perda da capacidade de seguir funcionando, também há “componentes” que funcionam em sentido contrário.

Pior ainda: o que não mata, engorda. Há variáveis que resultam, simultaneamente, em crise & expansão do capitalismo.

Por exemplo: as guerras, o desemprego.

Em sendo assim, não bastam generalidades, é inescapável uma análise concreta da situação concreta.

Este foi o desafio enfrentado por Karl Marx e por Friedrich Engels.

E a conclusão a que eles chegaram aponta, como já foi dito, para o desenvolvimento e morte do capitalismo e para o advento do comunismo.

Nesta dupla previsão reside outra diferença essencial da economia política burguesa (clássica ou vulgar) e a crítica marxista da economia política.

Uma descreve, a outra descreve & condena.

Noutras palavras, Marx não apenas reconheceu o caráter histórico em geral da sociedade humana, e o caráter histórico do capitalismo, como também localizou as contradições que levam a seu desenvolvimento, morte e superação.

Entre os marxistas, esta última parte da frase que acabo de dizer não é unanimidade.

Pelo contrário, há quem acredite que Marx não pensava isto; há quem reconheça que pensava, mas diz que não teria provado; há quem reconheça que “provou”, mas acrescente que as mudanças ocorridas no capitalismo mudaram a situação e que, portanto, a conclusão e a prova já não valem mais; e há quem diga que Marx tinha posições contraditórias a respeito; como também há quem lembre que a “prova” desta questão é essencialmente prática, não teórica.

Notem que esta controvérsia envolve pelo menos três dimensões:

-a primeira delas é filológica, ou seja, o estudo algumas vezes erudito, outras vezes escolástico, acerca do que Marx disse ou não disse;

-a segunda delas é histórico-econômica, ou seja, o estudo das leis do desenvolvimento capitalista;

-a terceira delas é política, ou seja, como o desenvolvimento da luta de classes forja (ou neutraliza) as forças capazes de efetivamente superar o modo de produção capitalista.

Quem tiver interesse em ler mais a respeito da primeira dimensão esta controvérsia, deve mergulhar na bibliografia que vamos enviar a vocês, durante a semana.

Chamamos a atenção, em especial, para três clássicos, todos poloneses: Rosa Luxemburgo, Henryk Grossmann e Roman Rosdolski.

Rosa Luxemburgo escreveu A acumulação do capital.

Grossmann escreveu La ley de acumulación y derrumbe del sistema capitalista. Uma teoria de las crisis.

Rosdolsky escreveu Genesis e surgimento de O Capital de Karl Marx, com base no estudo dos Grundrisse.

E para quem quiser ler uma obra mais recente, sugiro De leyes y límites del capitalismo en la larga duración, de Rodrigo Gómez (2018).

Obviamente, as obras indicadas anteriormente não se limitam a filologia; simultaneamente também abordam a análise do capitalismo.

E sobre esta análise do capitalismo, que é a segunda dimensão da controvérsia citada anteriormente, cabe destacar outro aspecto importante da obra de Marx, em certo sentido o seu aspecto mais importante: seu método.

No método reside mais uma diferença importante entre a economia política burguesa (clássica, vulgar, suas variantes) e a crítica marxista da economia política.

Para entender qual é esta diferença, é preciso antes de mais nada lembrar que para Marx não se tratava apenas de interpretar o mundo, mas de transformar o mundo.

Mas atenção: no plano da luta política, estes dois verbos (interpretar e transformar) podem expressar duas ações diferentes, de pessoas diferentes, em momentos diferentes. Ou aspectos diferentes e antagônicos, da ação de uma mesma pessoa (ou setores de classe).

Noutros termos, é possível que haja uma desconexão entre interpretação e transformação.

Por exemplo: a esmagadora maioria das pessoas que se engajam numa revolução eram, até a véspera, e provavelmente continuarão a ser, durante certo tempo, adeptos de visões conservadoras de mundo.

Portanto, é provável que sejam revolucionárias na prática, embora ainda sejam conservadoras na teoria. “Na prática, chegaram ao ponto de não mais suportar viver como até então, ao mesmo tempo que os dominantes não mais conseguiam dominar como até então”. (WP)

Isto no plano da luta política. E no plano da teoria?

No plano da teoria, também pode haver uma desconexão deste tipo, entre a dimensão da interpretação e a dimensão da transformação?

Claro que pode. Aliás, há inúmeros exemplos de teorias que são um amontoado desconexo de partes que se desmoralizam mutuamente.

Por exemplo: a interpretação segundo a qual a origem dos problemas da URSS estaria no atraso relativo da economia capitalista russa, antes da revolução; acompanhada da ideia de que a solução para os problemas da URSS estaria em uma revolução política. Ou bem a interpretação está incorreta; ou bem a transformação proposta está incorreta. Ambas não podem estar certas ao mesmo tempo.

O fato é que teorias com este tipo de desconexão, ou não explicam adequadamente, ou não servem adequadamente como guia para a ação da classe trabalhadora, em sua luta por superar o capitalismo.

Pois bem: o método tem relação direta com a capacidade de elaborar uma explicação-que-sirva-de-guia-para-a-ação.

Se Marx não tivesse “realizado uma revolução filosófica” e elaborado o que ele chamou de “método dialético materialista”, se Marx não tivesse adotado “o método dialético materialista”, O Capital não conseguiria explicar o capitalismo, nem serviria como guia para a ação.

Por qual motivo?

Porque se fazia necessário um método de análise do capitalismo que localizasse sua essência dinâmica, que não apenas fotografasse a aparência do fenômeno, mas que – digamos -- filmasse a essência do fenômeno, que registrasse a contradição em processo, as tendências e contra tendências, a metamorfose.

Um método, portanto, capaz de localizar e descrever as contradições e suas soluções, estas também contraditórias.

Como sabemos, tanto Marx quanto Engels denominavam seu método de “dialético materialista”; e Marx fará referência explícita a Hegel, em particular a uma obra denominada Ciência da Lógica.

O próprio Marx dirá o seguinte sobre seu método: a “intelección positiva de lo existente incluye también, al próprio tempo, la inteligência de su negación, de su necessária ruina; porque concibe toda forma desarrollada em el fluir de su movimento, y por tanto sin perder de vista su lado perecedero”.

O método adotado por Marx sofreu vários questionamentos, entre os quais o questionamento sobre se Marx era mesmo um economista; um questionamento típico de um jeito-de-pensar adepto de uma hiperespecialização que nunca será capaz de compreender a natureza da economia política, muito menos compreender a natureza da crítica marxista à economia política.

Com base neste método, como já apontamos antes, Marx descobrirá e descreverá "tendencias que operan y se imponen con férrea necesidad”; apresentando o comunismo como “forma superior de vida a la que tiende irresistiblemente la sociedad actual por su propio desarrollo económico”.

Neste ponto chegamos a terceira dimensão, a mais complexa, da controvérsia a que me referi antes.

Pois se as leis do desenvolvimento capitalista apontam no sentido de sua crise e sua superação pelo comunismo, resta saber se este mesmo desenvolvimento forjará no tempo certo as forças políticas e sociais capazes de efetivamente materializar aquela superação.

Na aula de abertura deste curso, eu já apontei que é preciso que se construa, na sociedade capitalista, mas contra o capitalismo, uma contramola com a disposição e a energia necessárias para reorganizar a vida social.

E mesmo que esta contramola triunfe politicamente, o capitalismo só poderá ser superado no curso de uma revolução social de longa duração, no curso daquilo que se convencionou chamar de transição socialista, onde continuarão existindo, por um longo tempo, relações capitalistas de produção.

Sendo evidente que só estaremos diante de uma transição socialista, se estas relações capitalistas sobreviventes forem submetidas a um crescente controle social, que inicialmente e por bom tempo será feito através do Estado, sob comando socialista.

O que é algo similar, mas com sentido diferente, ao que ocorreu, desde o século 18, com as relações não capitalistas de produção, que foram submetidas a crescente controle social por parte dos capitalistas, também utilizando para isto o Estado, neste caso sob comando dos capitalistas.

Daí decorre que a essência da luta contra o capitalismo, a essência da luta pelo socialismo, está na luta política, está na luta da classe trabalhadora pelo poder, com o objetivo de usar este poder para controlar os meios de produção, para alterar as relações sociais.

Portanto, se é verdade que a superação do capitalismo é um longo processo revolucionário, o ponto de partida desta revolução social, o fio condutor desse processo de transformação estrutural, é uma revolução política.

Mas, como já dissemos antes, essa dimensão política, subjetiva, não está desvinculada das condições objetivas.

Primeiro, porque as chances de êxito e as características da revolução socialista estão diretamente relacionadas às características do desenvolvimento capitalista, em âmbito nacional e mundial.

Segundo, porque os caminhos da transição socialista dependem, em alguma medida, do nível de desenvolvimento capitalista prévio.

Lembrando que, quando falamos de “desenvolvimento capitalista”, estamos falando da resultante da luta de classes, em um dado momento histórico.

Marx morreu em 1883. Engels em 1895. Desde então a luta pelo socialismo avançou e retrocedeu várias vezes. E a tradição intelectual inaugurada por eles, o chamado marxismo, foi dado como morto e ressuscitou outras tantas vezes.

Mas, observando de conjunto os últimos 120 anos, o fato mais relevante é a expansão e consolidação do capitalismo como modo de produção hegemônico.

E o fato mais curioso é que o capitalismo de hoje exibe, mais do que o capitalismo prevalecente na época da Guerra Fria (1945-1991), diversas das tendências descobertas por Marx e Engels.

E o fato mais terrível é, embora estejamos em meio a uma profunda crise sistêmica, a situação do “exército do proletariado” não está das melhores.

A rigor, isto não constitui uma surpresa, pois as crises implicam uma mudança súbita e profunda nas condições objetivas; motivo pelo qual os destacamentos fundamentais do proletariado, mesmo que estivessem otimamente organizados no dia anterior ao início da crise, estavam no fundamental organizados para travar uma batalha num terreno político e cultural que não existe mais.

Por isso, aliás, é que as crises são em maior número do que as revoluções; e também por isso as revoluções são em maior número do que as revoluções vitoriosas. Ou, dito de maneira menos simpática, é por isso que as derrotas são maiores do que as vitórias, mesmo que as condições objetivas sejam favoráveis.

Isto posto, qual a principal batalha em curso no terreno cultural, ao menos no âmbito que nos interessa diretamente aqui, o da crítica à economia política burguesa?

Evidente que há múltiplos debates, por exemplo a análise:

-da articulação entre a economia mundial e as economias nacionais;

-da relação entre os diversos setores da economia capitalista;

-“da relação entre o desenvolvimento C&T das forças produtivas (trabalho morto) e o crescente desemprego do trabalho vivo” (WP)

-do imperialismo e do capital financeiro na dinâmica capitalista;

-da relação entre economia, Estado e política, no sentido amplo da palavra (incluindo todas as dimensões da vida social e cultural);

-da geopolítica mundial, sendo inescapável debater o papel jogado pela República Popular da China (e, por meio dela, as tentativas de construção do socialismo ocorridas no século XX).

Entretanto, a principal batalha em curso diz respeito a como entender a crise e que alternativas defender frente a ela.

A clivagem fundamental está entre os que consideram estar em curso uma crise sistêmica do capitalismo; e os que, mesmo reconhecendo que há uma crise profunda, apontam o dedo mais para as fortalezas do que para as debilidades do capitalismo.

Por decorrência da primeira clivagem, abre-se outra, entre os que advogam, como alternativa fundamental, o socialismo; e os que advogam que nossa alternativa fundamental deveria ser um outro tipo de capitalismo.

Do ponto de vista da economia política burguesa, em suas variadas escolas, a defesa do socialismo como alternativa é “ideológica”, no sentido de não ter nenhuma motivação científica.

Esta é, também, a interpretação de uma parte do movimento socialista que, acompanhando a opinião majoritária na socialdemocracia alemã há cem anos, considera que o socialismo é uma questão fundamentalmente ética, política, ideológica.

Por isso, como dissemos no início, uma parte da esquerda se encontra sob domínio ideológico da economia política burguesa.

Por óbvio, este domínio só pode ser abalado através do debate; mas grande parte deste debate, hoje, é vencido por WO pelos economistas burgueses, especialmente por aqueles da tradição keynesiana.

Aliás, preparando esta aula, li a obra VALOR, ACUMULACION Y CRISIS. Ensayos de economia politica, do paquistanês ANWAR SHAIKH (1990).

Nela, o autor relata “una investigacion de las teorias que estan presentes, implicita o explicitamente, em el analisis politico de la izquierda en los Estados Unidos (y, por extension, de la izquierda en otros paises). Inevitablemente el proyecto dio origen al estudio de la economia politica subyacente en los planteamientos de las varias corrientes influyentes de la izquierda en los Estados Unidos, desde las del Partido Comunista y del Partido Socialista de los Trabajadores hasta la de la escuela del Monthly Review y la de los Democratic Socialists of America. Los resultados son sorprendentes y revelan una influencia profunda de las teorias keynesiana y kaleckiana”.

Segundo entendi, esta “descoberta” data dos anos 1980. Não tenho a menor dúvida acerca de qual seria o resultado de uma pesquisa semelhante, realizada hoje, por exemplo no Brasil.

O desafio posto para os que pretendem dar continuidade a tradição aberta pela crítica marxista à economia política burguesa é demonstrar que a crise é uma manifestação das contradições mais profundas do capitalismo; e que a solução sistêmica para esta crise é o controle social dos meios de produção e de poder, permitindo o planejamento da produção e a distribuição, no sentido de atender as necessidades do conjunto da sociedade.

Esta é a única saída? Claro que não. Neste caso, dado o adiantado da hora, vou me amparar na opinião daquele velho russo que disse: “Não existem situações que não apresentem em absoluto alguma saída”. Ou, noutra versão, não existe situação sem saída para a burguesia.

A questão é que as outras saídas possíveis terão um custo social imenso, que será pago pelas classes trabalhadoras de todo mundo; e na melhor das hipóteses nos colocarão, daqui há algum tempo, de volta ao ponto de partida.

Concluo por aqui a minha exposição, abrindo para perguntas e convidando para a próxima aula, com o professor Ramon.