segunda-feira, 30 de março de 2020

A volta dos que nunca foram (sobre a Ordem do Dia de 31 de março de 2020)

Para quem anda animado com a possibilidade de uma banda dos militares "enquadrar" ou até depor Bolsonaro, recomenda-se ler a "Ordem do Dia Alusiva ao 31 de março de 1964", divulgada na véspera pelo Ministério da Defesa.

A Ordem do Dia é assinada pela turma toda: Fernando de Azevedo e Silva, Ministro de Estado da Defesa; Ilques Barbosa Junior, almirante de esquadra e comandante da Marinha; Edson Leal "braço forte e mão amiga" Pujol, general e comandante do Exército; tenente brigadeiro Antonio Carlos Moretti Bermúdez, comandante da Aeronáutica.

Segundo os pós-historiadores acima listados, o "Movimento de 1964" é um "marco para a democracia brasileira". 

Graças àquele Movimento, o Brasil "cresceu até alcançar a posição de oitava economia do mundo". 

Depois, a Lei da Anistia de 1979 teria permitido um "pacto de pacificação", determinando os "rumos que ainda são seguidos".

Hoje, em 2020, vivemos o "o pleno exercício da liberdade". 

Mas, como sabemos, a Marinha, o Exército e a Aeronáutica seguem firmes, "com o propósito de manter a paz e a estabilidade".

Ou seja: os que nunca foram, continuam por aí, prontos para o que der e vier.

E o que teria acontecido com os países que não tiveram a sorte de ter um Movimento de 64? 

A "Ordem do Dia" responde: "os países que cederam às promessas de sonhos utópicos ainda lutam para recuperar a liberdade, a prosperidade, as desigualdades e a civilidade que rege as nações livres".

Lutar pelas "desigualdades"!!! 

Ato falho ou sincericídio, não há melhor síntese do significado histórico do Golpe de 64. 

Afinal, o "resto" todo -- a quebra da legalidade, a corrupção, as prisões, torturas, assassinatos e desaparecimentos -- não passa de sangrento detalhe, indispensável para manter e ampliar nossa repulsiva desigualdade social.

A Ordem do Dia, mais a mensagem do general Villas Bôas em apoio a Bolsonaro, confirmam que para mudar certas coisas, só com uma revolução. 

E quando este dia chegar, o aniversário do "Movimento de 64" continuará sendo lembrado, mas sempre no primeiro de abril.

Honra eterna aos brasileiros e brasileiras que tombaram na luta contra a ditadura militar!!!

      
MINISTÉRIO DA DEFESA
Ordem do Dia Alusiva ao 31 de Março de 1964
       
Brasília, DF, 31 de março de 2020.
      
O Movimento de 1964 é um marco para a democracia brasileira. O Brasil reagiu com determinação às ameaças que se formavam àquela época.
O entendimento de fatos históricos apenas faz sentido quando apreciados no contexto em que se encontram inseridos.  O início do século XX foi marcado por duas guerras mundiais em consequência dos desequilíbrios de poder na Europa. Ao mesmo tempo, ideologias totalitárias em ambos os extremos do espectro ideológico ameaçavam as liberdades e as democracias. O nazifascismo foi vencido na Segunda Guerra Mundial com a participação do Brasil nos campos de batalha da Europa e do Atlântico. Mas, enquanto a humanidade tratava os traumas do pós-guerra, outras ameaças buscavam espaços para, novamente, impor regimes totalitários.
Naquele período convulsionado, o ambiente da Guerra Fria penetrava no Brasil.  Ingredientes utópicos embalavam sonhos com promessas de igualdades fáceis e liberdades mágicas, engodos que atraíam até os bem-intencionados. As instituições se moveram para sustentar a democracia, diante das pressões de grupos que lutavam pelo poder. As instabilidades e os conflitos recrudesciam e se disseminavam sem controle.
A sociedade brasileira, os empresários e a imprensa entenderam as ameaças daquele momento, se aliaram e reagiram. As Forças Armadas assumiram a responsabilidade de conter aquela escalada, com todos os desgastes previsíveis.
Aquele foi um período em que o Brasil estava pronto para transformar em prosperidade o seu potencial de riquezas. Faltava a inspiração e um sentido de futuro. Esse caminho foi indicado. Os brasileiros escolheram.  Entregaram-se à construção do seu País e passaram a aproveitar as oportunidades que eles mesmos criavam. O Brasil cresceu até alcançar a posição de oitava economia do mundo.
A Lei da Anistia de 1979 permitiu um pacto de pacificação. Um acordo político e social que determinou os rumos que ainda são seguidos, enriquecidos com os aprendizados daqueles tempos difíceis.
O Brasil evoluiu, tornou-se mais complexo, mais diversificado e com outros desafios.  As instituições foram regeneradas e fortalecidas e assim estabeleceram limites apropriados à prática da democracia. A convergência foi adotada como método para construir a convivência coletiva civilizada. Hoje, os brasileiros vivem o pleno exercício da liberdade e podem continuar a fazer suas escolhas.
As Forças Armadas acompanharam essas mudanças. A Marinha, o Exército e a Aeronáutica, como instituições nacionais permanentes e regulares, continuam a cumprir sua missão constitucional e estão submetidas ao regramento democrático com o propósito de manter a paz e a estabilidade.
Os países que cederam às promessas de sonhos utópicos ainda lutam para recuperar a liberdade, a prosperidade, as desigualdades e a civilidade que rege as nações livres.
O Movimento de 1964 é um marco para a democracia brasileira. Muito mais pelo que evitou.
  

terça-feira, 24 de março de 2020

Bolsonaro encarnou o general Millán-Astray


Que o cidadão é um sociopata, já sabíamos. Mas é preciso reconhecer que o cavernícola exibe imensa fidelidade de classe e coerência política. Como muitos empresários, pelo mundo e pelo país, Bolsonaro diz que o show da produção capitalista não deve parar. E como tantos extremistas de direita que o antecederam, Bolsonaro repetiu com outras palavras o bordão daquele general falangista: “Viva a morte! Abaixo a inteligência!”

terça-feira, 10 de março de 2020

O PT na crise dos 40



Em meio ao carnaval, num almoço com amigos, alguém disse que Bolsonaro, além de fascista, era um maluco total, pois vive para combater o comunismo, algo que “não existe mais no Brasil”. E acrescentou: “ninguém é mais comunista hoje!”

Por educação, não abri a boca, mas levantei o dedo, a mão e o garfo (não a faca, que permaneceu prudentemente deitada sobre a mesa). Surpresa, a interlocutora retrucou com ênfase: “que comunista nada, você é do PT!!”.
Este episódio é revelador da confusão política e ideológica em que estamos metidos, todos nós da esquerda brasileira.

Por um lado, somos atacados por uma extrema-direita que vê um comunista por detrás de cada palavra de ordem democrática. Por outro lado, temos uma esquerda que, na sua grande maioria, não consegue perceber que a extrema-direita tem certa razão.

Afinal, ao longo da história, muito sangue e suor tiveram que ser derramados para conquistar a soberania nacional, os direitos sociais e as liberdades democráticas. Ao contrário da lenda difundida por alguns, quem garantiu aquilo tudo não foi o fordismo e muito menos o liberalismo, mas sim a luta da classe trabalhadora, em especial do movimento socialista.
Além disso, o capitalismo neoliberal que nos é contemporâneo experimenta cada vez mais dificuldade para conviver com o bem estar social, as liberdades democráticas e a soberania nacional dos outros, o que faz com que políticas historicamente reformistas e socialdemocratas sejam hoje, de fato, ainda mais “ameaçadoras” do que antes.

E no Brasil, assim como em boa parte da América Latina, as classes dominantes continuam operando em chave escravocrata e colonial. Para um patrimonialista, democratizar um pouquinho que seja a política é como uma expropriação.

Por todos estes motivos, quem quiser lutar de forma consequente por aquelas políticas “reformistas”, precisa estar disposto a enfrentar uma reação aparentemente despropositada. Queres paz, prepara-te para a guerra; queres reforma, prepara-te para fazer uma revolução.

No fundo, o espanto da colega de almoço tem relação direta com a derrota sofrida pelo PT e pelo restante da esquerda brasileira, entre 2016 e 2018: a crença de que se fossemos moderados, eles também seriam.

A vida confirmou o contrário. E o fez porque o capitalismo segue cada vez mais refratário a reformas, inclusive àquelas reformas que noutros tempos ajudaram a salvar o capitalismo de si mesmo. Vale dizer que em geral estas reformas foram impostas aos capitalistas. Talvez por este motivo, diz-se que Vargas acusava a burguesia brasileira de ser meio burra; se for verdade, isto nunca a impediu de lucrar como nunca, ao longo de cada período da história de nosso país.

Uma das conclusões a tirar disto tudo é que, seja ou não “comunista”, toda a esquerda brasileira é e continuará sendo alvo de uma feroz campanha anticomunista. E o alvo maior desta campanha é o principal partido da esquerda brasileira, o Partido dos Trabalhadores, que completou no dia 10 de fevereiro de 2020 seus 40 anos de idade.

Como muita gente, acompanhei direta e pessoalmente a maior parte desta trajetória. Meu primeiro ato efetivo de militância petista foi na campanha eleitoral de 1982. A filiação propriamente dita ao Partido ocorreu apenas em 1985. Desde então, já fiz de tudo um pouco: militei em núcleo de base, fiz parte de diretório zonal, diretório municipal e diretório estadual. Assumi em 1993 a secretaria de Comunicação do PT São Paulo, a direção da revista Teoria e Debate e do boletim Linha Direta. Também atuei na área de formação política do Partido, especialmente no Instituto Cajamar, entre 1987 e 1991. Em 1997 ingressei no diretório nacional, fui eleito para uma das vice-presidências e, em 2005, para a secretaria de Relações Internacionais do PT (até 2010) e para a secretaria executiva do Foro de São Paulo (até 2013).

Dentro do Partido, militei na Articulação dos 113 e, em 1993, participei da criação da Articulação de Esquerda, tendência de que faço parte até hoje e em nome da qual disputei a presidência nacional do PT em 2005, 2007, 2013 e 2019.

Vale dizer que nunca fui parlamentar, nem mesmo candidato. Minha experiência governamental resumiu-se a assessorar, entre 1995 e 1996, o então prefeito de Santos (SP), David Capistrano; e a ser secretário de Cultura, Esportes em Turismo na gestão de Izalene Tiene, em Campinas (SP), entre dezembro de 2001 e dezembro de 2004.

Antes de militar no PT, participei por breve período como militante da “base secundarista” da chamada esquerda do Partido Comunista do Brasil, por onde também passaram, entre muitos outros, José Genoíno, Tarso Genro, Wladimir Pomar, Ozeas Duarte, Carlos Eduardo de Carvalho, Maurício Faria, Humberto Cunha, Alon Feuerwerker, Igor Fuser, Celeste Dantas e Maria Luiza Fontenelle.

Vários desses saíram do PCdoB para criar o Partido Revolucionário Comunista, a partir do qual atuaram no PT e também no PMDB. Outros optaram desde o início por construir diretamente o PT, recusando a proposta de ter um “partido dentro do partido”.

Naquela época, minha decisão de militar no PT teve dois motivos fundamentais: a) o PT construía, na prática, uma alternativa à estratégia defendida pelos dois partidos oficialmente comunistas (PCdoB e PCB); b) o PT abrigava a maior parte da militância que dirigia as grandes lutas operárias e populares do final dos anos 1970 e início dos anos 1980.

O primeiro de meus motivos fundamentais para ingressar no PT continuou quase que totalmente válido até 1995. Entretanto, desde então o Partido veio mudando de linha política, aproximando-se mais e mais das posições que, nos anos 1980, eram defendidas pelos partidos comunistas oficiais e por organizações assemelhadas. Ou seja, a defesa de uma aliança estratégica com um setor dos capitalistas brasileiros, aliança traduzida em um programa que pretendia combinar uma etapa de desenvolvimento capitalista, com elevação dos níveis de democracia, bem estar social e soberania nacional.

Àquelas ideias, nos anos 1990 o PT acrescentou outra: a de que nossos objetivos poderiam ser alcançados mediante governos eleitos através das regras do jogo. Esta acréscimo constituía uma metamorfose da noção original, defendida pelo próprio PT ainda nos anos 1980, segunda a qual a construção e a conquista do poder incluíam a disputa de eleições e o exercício de mandatos institucionais, combinados com a luta social, a organização da classe e o fortalecimento de uma cultura socialista de massas.

Desde 1995, a defesa da estratégia original do PT continuou a ser feita por algumas tendências, mas não mais pela maioria do Partido. Algumas dessas tendências continuam no PT até hoje; outras desistiram do PT e contribuíram para o surgimento do PSTU, da Consulta Popular e do PSOL. Mas nenhuma dessas organizações (nem o PCO, surgido antes) conseguiu escapar da força gravitacional do petismo, nem do ponto de vista político, nem do ponto de vista ideológico.

Por outro lado, a mudança na linha política do PT, a partir de 1995, converteu ao petismo muitos militantes que defendiam a tal aliança estratégica com setores da classe capitalista e/ou que viam a luta eleitoral e a ação institucional como os limites máximos da ação político partidária.
A citada conversão foi muito facilitada pela ofensiva neoliberal, que trouxe de volta dilemas dos anos 1930, mas também pelo colapso do socialismo soviético, que muitos consideraram como o fim de todo socialismo, pelo menos daquele baseado em uma estratégia revolucionária de conquista do poder.

A aposta eleitoral e a aliança estratégica com um setor da classe capitalista pareceram dar seus melhores frutos entre 2006 e 2010. Mas o “lado B” daquela linha política mostrou toda sua força durante a fase final do governo Dilma Rousseff, no golpe de 2016, na condenação e prisão de Lula, na fraude que elegeu Bolsonaro.

Rebaixar o objetivo estratégico (substituir o anticapitalismo socialista pelo discurso antineoliberal e confundir a luta pelo poder com a conquista eleitoral de governos) trouxe, como efeitos colaterais, a renúncia prática de tentar realizar as chamadas reformas estruturais, a crença no compromisso democrático da classe dominante, a aposta no “republicanismo”, a dependência crescente frente ao financiamento estatal e empresarial, o enfraquecimento da organicidade militante e a subordinação do Partido (e movimentos) aos governos.

Isto tudo, mais a guinada dada em 2015, quando a presidenta Dilma Rousseff convocou Levy para ser ministro da Fazenda, tornaram impossível ao PT prevenir, resistir e derrotar o golpe. Tudo poderia ter sido diferente, mas o fato é que poucos setores do Partido perceberam que havíamos entrado em “tempos de guerra”. Aliás, para um grande número de próceres petistas, demorou a “cair a ficha” de que o Congresso aprovaria o “impeachment”, de que o Judiciário condenaria e prenderia Lula, de que as elites apoiariam Bolsonaro; e mesmo em 2018, nosso candidato Fernando Haddad achou ser o caso de elogiar aspectos supostamente positivos do trabalho de Moro e da Lava Jato.

No 6º Congresso nacional do PT (2017), o petismo ensaiou uma autocrítica da estratégia adotada desde 1995, em particular dos erros cometidos a partir de 2003. Mas, na campanha de Fernando Haddad e no 7º Congresso nacional (2019), ficou evidente que uma parcela significativa do Partido simplesmente não consegue visualizar a possibilidade de adotar outra estratégia, que não aquela já adotada contra os governos tucanos de Fernando Henrique Cardoso. É este o motivo real de alguns que, contra todas as evidências, seguem recusando fazer autocrítica da estratégia adotada desde 1995: o temor dos desdobramentos práticos que advirão do reconhecimento de que foi errada a política de “conciliação de classe”.
Caso a parcela moderada do petismo tenha razão, mais cedo ou mais tarde a história se repetirá, ganharemos as eleições, voltaremos ao governo federal e poderemos, então, implementar políticas públicas que, novamente, vão melhorar a vida do povo, ampliar as liberdades democráticas e reconstruir as bases da soberania nacional. E o golpismo terá sido apenas um hiato, um ponto fora da curva.

Vale dizer que, caso este cenário se converta em realidade, estará dada a justificativa para que o PT conclua sua metamorfose, deixando de ser um partido socialista (que luta pela superação do capitalismo) e se convertendo em um partido democrático (que luta apenas pela “democratização do capitalismo”). Isto porque o referido cenário demonstraria algo que, como já expliquei, considero muito improvável: que o capitalismo contemporâneo, especialmente o brasileiro, seria capaz de conviver democraticamente com políticas reformistas estruturais e de longa duração. Neste caso, a luta pelo socialismo se metamorfosearia na luta por reformar o capitalismo. E minha colega de almoço teria, no final das contas, toda razão em se espantar com a existência de “comunistas-petistas”.

Mas se a parcela moderada do petismo não tiver razão, se o golpismo não for um hiato, mas uma tara; se o capitalismo brasileiro em particular e o capitalismo contemporâneo em geral não forem capazes de conviver e assimilar políticas reformistas fortes (como as propostas por Jeremy Corbins e Bernie Sanders, por exemplo), então quem insistir numa estratégia testada e superada, estará contribuindo para o prolongamento da derrota sofrida entre 2016 e 2018, derrota aprofundada ao longo de 2019.
Vale lembrar que esta derrota não foi apenas do PT, nem apenas do conjunto dos partidos de esquerda. Foi de toda a classe trabalhadora e pode ser medida objetivamente pela piora nas condições de vida, pela redução nas liberdades e na soberania.

Frente a esta derrota, cada setor do PT e o petismo como um todo são chamados a escolher uma, dentre três alternativas fundamentais: a) ou reorientar completamente a estratégia, em condições cada vez mais difíceis e com cada vez menos chance de êxito; b) ou se adaptar cada vez mais, rebaixando os horizontes e as práticas ao nível da degeneração; c) e/ou viver derrotas em série, até que, mais cedo ou mais tarde, surja um partido que nos superará pela esquerda, como o próprio PT fez com os partidos de esquerda pré-existentes.

Detalhe: que partido seria este, capaz de, na pior das alternativas citadas, superar o petismo? Muito provavelmente, nenhum dos que estão aí se candidatando ao posto. Primeiro, porque uma destruição catastrófica do petismo criaria uma nuvem tóxica que sufocaria todas as organizações de esquerda, por muito tempo. Segundo, porque para surgir um partido que substitua o PT, seria necessário um tsunami de lutas sociais, similar ao dos anos 1970 e 1980. O Partido dos Trabalhadores, é bom lembrar, surgiu muitos anos depois da grande derrota sofrida pelo PCB e pelo PTB, num ambiente de ascenso da luta de massas.

Portanto, os problemas estratégicos que o PT enfrenta são imensos. Não admira que muitas pessoas não queiram pensar a respeito. Não admira, também, que outras simplesmente pirem, desistam, capitulem, cansem de “dar murro em ponta de faca”, abandonem a militância ativa. Assim como não admira que alguns hipotequem sua alma a um cargo em comissão (ou similar) e deixem “a vida levar”, movidos pela crença inercial de que contra Bolsonaro dará certo o que fizemos contra FHC.

Como reação pessoal, é compreensível e, em muitos casos, inevitável, embora em alguns casos não seja agradável de ver, muito menos de cheirar, como é o caso de alguns personagens absolutamente irrecuperáveis, que poderiam contribuir fazendo como Vaccarezza, Palocci e outros, saindo formalmente de um Partido ao qual já não pertencem de fato.

Mas do ponto de vista político, nenhuma das atitudes citadas anteriormente contribui para enfrentar e solucionar o problema estratégico posto. Assim como tampouco contribui sair do PT em busca de uma utópica e inexistente bolha sem problemas, atitude adotada por muitos que não percebem que os problemas do PT não são problemas apenas do PT, mas sim os problemas da imensa maioria da vanguarda da classe trabalhadora brasileira. Motivo pelo qual muitas pessoas saem do PT, mas o PT não sai delas; motivo pelo qual muitos partidos de esquerda atuam, na prática, como se fossem “tendências externas” do petismo.

Uma coisa é certa: a classe trabalhadora vai dar a volta por cima, mais cedo ou mais tarde. E se queremos que isto ocorra o mais rápido possível, se não queremos que se repita um cenário como o de 1964/1980, então é preciso trabalhar para evitar a destruição catastrófica do petismo.

Este é um dos motivos pelos quais, 40 anos depois, continuo apostando no PT. Esse é, também, o motivo pelo qual alguns dos que apostaram noutros projetos partidários, visando superar o PT, hoje estão mudando de linha e reaproximando do petismo.

Falando noutros termos: só sob a liderança da esquerda, a classe trabalhadora será capaz de derrotar o neofascismo e o ultraliberalismo; e até onde a vista alcança, não há como a esquerda fazer isso, sem o PT ou contra o PT. Mas se isto é verdade, também é verdade que o PT só conseguirá contribuir neste sentido, se mudar sua orientação política e, principalmente, se conseguir materializar esta nova linha política, em uma nova prática política. Pois não será a golpe de selfies e tuítes que conseguiremos recuperar maioria política e organicidade militante, para as posições de esquerda, na classe trabalhadora.

Isso me remete para o outro dos motivos pelos quais ingressei no PT, nos anos 1980, motivo que continua válido até hoje. Em 2010, ao completar 30 anos, o PT não era apenas o Partido no qual militava a maior parte da vanguarda da classe trabalhadora brasileira; era também o Partido preferido pela maior parte da classe trabalhadora brasileira.

Hoje, dez anos depois, a situação se alterou em dois sentidos: cresceu bastante o número de militantes que não são petistas; e também cresceu bastante a parcela da classe trabalhadora que não vota no PT, muito antes pelo contrário. Entretanto, todas as pesquisas formais e informais indicam que o petismo continua sendo a opção da maior parte dos trabalhadores e trabalhadoras conscientes. 

Além disso, mesmo nas cidades e estados onde o PT se enfraqueceu muito, e por isto está sendo superado eleitoralmente por concorrentes de esquerda, estes partidos supostamente alternativos ao PT já incorrem em muitos dos defeitos do petismo, algumas vezes (infelizmente) sem incorrer nas qualidades.

Dito de outra forma, mesmo onde a estrutura formal do PT e sua força eleitoral estão em mal estado, a maior parte da vanguarda da classe trabalhadora segue sendo “petista”. E para conquistar esta base social, os partidos que surgiram fazendo a crítica ao PT acabam adotando posições (e atitudes) que mimetizam as do PT. Com isso, alguns (e, às vezes, vários) dos problemas que enfraqueceram o PT continuam presentes nas suas supostas alternativas. Um dos exemplos disto é o que vemos, por exemplo, no Rio de Janeiro: o PSOL superou o PT eleitoralmente, mas o conjunto da esquerda é menor hoje do que era antes, motivo pelo qual a direita vem até agora nadando de braçada.

Este é, portanto, outro dos motivos pelos quais continua sendo necessário disputar os rumos do PT. Pois se o PT não conseguir superar seus próprios problemas e limitações, o conjunto da esquerda e o conjunto da classe trabalhadora pagarão muito caro por isto; e, se após um tempo mais ou menos prolongado de derrota, surgir uma alternativa, esta alternativa enfrentará muitos dos mesmos dilemas que o PT enfrenta hoje; e se o PT não tiver conseguido enfrentar e superar estes dilemas, será muito mais difícil que nossos eventuais sucessores tenham êxito. Evitar um “loop infinito” como o citado é outro dos motivos pelos quais, 40 anos depois, considero necessário permanecer no PT.

E aqui voltamos ao ponto de partida deste texto: boa parte da força gravitacional do PT, nos anos 1980, vinha da convicção de que era possível e necessário construir um partido revolucionário de massas. Ou seja, engajar dezenas de milhões de pessoas em um movimento político e cultural contra tudo isso que está aí, num curso anticapitalista, anti-imperialista, socialista, revolucionário, capaz de virar o Brasil de ponta cabeça.

Ainda não demonstramos que isto é possível. O Brasil de 2020 é, em vários aspectos, pior do que o Brasil de 1980. Mas, seja naquilo que tivemos êxito parcial (melhorar relativamente a vida do povo), quanto naquilo em que ainda não tivemos êxito (mudar as estruturas do país, derrotar a classe dominante e impedir seu movimento reacionário), em todo caso ficou confirmada a necessidade inescapável de um movimento organizado de dezenas de milhões de trabalhadores e de trabalhadoras, dispostas a lutar radicalmente contra o status quo.

Também neste sentido, os motivos que nos levaram a apostar a vida na construção do petismo seguem plenamente válidos. E aos que estão inundados por aquele pessimismo derrotista tão típico de épocas de reação política, só posso dizer que se o bolsonarismo demonstrou que é possível converter milhões de pessoas em favor de posições reacionárias, absolutamente desprezíveis e criminosas, por qual motivo seria impossível ganhar milhões de pessoas para posições revolucionárias, em favor da mais ampla felicidade e igualdade?

Não se trata de acreditar na influência dos ventos alísios na menstruação da borboleta azul, mas simplesmente de lutar. Estudar, lutar, organizar, reconquistar maioria na classe trabalhadora: este é o caminho para superar a “crise dos 40” do nosso Partido dos Trabalhadores. E das trabalhadoras.


terça-feira, 3 de março de 2020

José Dirceu debate as “frentes”


Acompanho sempre o que escreve José Dirceu, não porque concorde, mas porque considero um “marcador” importante.

Explico: Dirceu e Lula tiveram papel destacado em três momentos diferentes da história do PT: a década heroica dos 1980; o reposicionamento entre 1990 e 2002; e no governo federal a partir de 2003.

Devido a esse papel destacado, ambos converteram-se em alvo prioritário da Operação Lava Jato; e não apenas politicamente, mas também no terreno pessoal, pagaram muito caro pelo que fizeram de positivo em favor da classe trabalhadora, mas também pelas ilusões e equívocos que cometeram no trato com o grande capital, o aparato de Estado e as forças de direita.

Ninguém melhor do que eles, portanto, para fazer um balanço crítico e autocrítico, não apenas da experiência de 40 anos de PT, mas principalmente do que fizemos de 2003 até hoje.

Dos dois, o que está melhor posicionado para fazer este balanço é, sem dúvida, José Dirceu. Lula tem uma dificuldade, proveniente do seu “tamanho” político: nem sempre pode falar, pública e expressamente, tudo que pensa. Já Dirceu, embora siga influente, tem maior margem de manobra para expressar seu ponto de vista sobre temas delicados.

É fato que o “tomo primeiro” das Memórias que Dirceu vem lançando por todo o Brasil, não corresponde a tal expectativa: http://valterpomar.blogspot.com/2018/09/o-presente-de-dirceu-versao-integral.html

Mas como a esperança, além de vermelha, é paciente, fomos conferir o que Dirceu diz em artigo publicado no dia 3 de março, no endereço https://www.metropoles.com/colunas-blogs/jose-dirceu/antes-de-qualquer-frente-as-esquerdas-precisam-se-entender

Logo no início, Dirceu afirma que “Frente de Esquerda, na prática mais simples, torna-se mais difícil hoje. Estamos falando de aliança entre PT, PDT, PSB, PSol e PC do B. Tudo indica que não há acordo entre esses partidos sobre 2022, embora estejam do mesmo lado na oposição a Bolsonaro e concordem com os riscos que ele representa”.

Será verdade que estamos “do mesmo lado” e concordamos com “os riscos” que Bolsonaro representa?

Vale lembrar que o PSB não marchou conosco no primeiro turno de 2018, o PDT de Ciro Gomes fez o que não fez no segundo turno e a postura de ambos partidos na reforma da previdência deixou a desejar. Aliás, não faz muito tempo que Ciro Gomes afirmou que Bolsonaro não era um risco para a democracia, como se pode confirmar aqui: 

https://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/politica/2018/11/20/interna_politica,720426/bolsonaro-nao-e-um-risco-para-a-democracia-afirma-ciro-gomes.shtml

Se formos para o âmbito dos estados e municípios, também encontraremos grandes diferenças entre o PT, PDT, PSB, PSOL e PCdoB.

É também por isso que “tudo indica que não há acordo entre esses partidos sobre 2022”. E como as esquerdas não estão unidas, fica muito mais difícil construir uma frente mais ampla. Salvo, é claro, que a direção desta frente esteja na mão do centro-direita. Centro-direita, que como Dirceu lembra bem, apoia a “politica econômica do governo levada a cabo por Guedes e a política capitaneada por Moro e sua cruzada, acima da lei e da Constituição”.

Na opinião de “alguns” – suponho que Dirceu refira-se aos setores hegemônicos no PCdoB, no PDT e no PSB—isto não seria necessariamente um problema, já que o “principal é enfrentar a ameaça autoritária; depois, veremos o que fazer no fronte econômico”. Mas como Dirceu bem lembra, “a política de desmonte do Estado nacional e de bem-estar e a convivência e tolerância com as milícias, quando não o apoio a elas e ao aparato policial judicial da Lava Jato, são igualmente atentados à democracia”.

Ao que Dirceu afirma, caberia acrescentar, um Estado de mal-estar social transforma toda questão social em caso de polícia. O problema, portanto, não está “apenas” na Lava Jato, nas PMs e nas milícias; o problema é que o ultraliberalismo alimenta o neofascismo.

Assim, mesmo que possamos e devamos fazer “frentes amplas” em torno de questões “pontuais” (Dirceu cita várias, realizadas em épocas e dimensões diferentes), a questão chave é construir uma frente de esquerda. 

Nesse ponto seria essencial que Dirceu analisasse o que fizemos ou deixamos de fazer, a esse respeito, durante o período em que estivemos no governo federal. Aguardemos o segundo tomo das Memórias.

Seguramente, não haverá uma “frente de esquerda” sem o PT. E, portanto, Dirceu diz que cabe ao PT agir sem “hegemonismos e patriotismo de partido”. 

Penso que há que levar em conta os russos! Afinal o PT é alvo de uma duríssima campanha orquestrada por nossos inimigos e de uma forte concorrência por parte de nossos, digamos, amigos (mesmo que potenciais). Não enfrentaremos esta situação sem, vamos falar assim, um pouquinho de patriotismo de partido.

Por exemplo: Dirceu diz que “nas eleições municipais deste ano teremos uma prova importante de nossa disposição frentista”. Verdade. Mas também é verdade que, se nas eleições de 2020 o PT não aproveitar para se defender, ninguém o fará pelo PT.

O mesmo pode ser dito sobre 2022. Uma parte dos nossos potenciais aliados trabalha, desde já, com a perspectiva de ter candidatura própria ou de construir alianças sem o PT. Não se trata propriamente de uma questão programática, mas sim de uma visão estratégica que eles têm acerca do PT.

Portanto, se é verdade (e é mesmo) que “a unidade das esquerdas é mais do que necessária” e que “sem ela, seremos apenas coadjuvantes na luta contra Bolsonaro”, também é verdade que para ter a tal frente de esquerda, será necessário fortalecer o PT. E muito.

Segue o texto comentado:

Antes de qualquer Frente, as esquerdas precisam se entender
03/03/2020 5:30,ATUALIZADO 03/03/2020 12:25
Está na boca do povo, nos jornalões, nas redes, o debate sobre frentes, seja Democrática, Ampla ou de Esquerda. Parte-se do pressuposto de que a Frente, qual seja ela, é imprescindível diante da ameaça real de autoritarismo e obscurantismo, de retrocesso nas liberdades democráticas conquistadas na luta contra a ditadura militar e consagradas na Constituição de 1988. As diferentes forças políticas e sociais devem se unir para impedir o avanço do autoritarismo do governo Bolsonaro.
Frente de Esquerda, na prática mais simples, torna-se mais difícil hoje. Estamos falando de aliança entre PT, PDT, PSB, PSol e PC do B. Tudo indica que não há acordo entre esses partidos sobre 2022, embora estejam do mesmo lado na oposição a Bolsonaro e concordem com os riscos que ele representa.
Por que o acordo sobre as próximas eleições presidenciais é tão difícil? Ao analisar a posição política de cada um desses partidos, vemos o PDT com Ciro Gomes numa postura anti-PT e anti-Lula; o PC do B, frente às dificuldades que enfrenta, por não ter atingido a cláusula de barreira em 2018, faz um forte movimento para se reformar com o “movimento 65″ e dos “Comuns” em direção ao “centro democrático”; o PSB está em processo de autorreforma; e o PSol passa por uma mudança ao se aliar ao PT no Parlamento, nas eleições em segundo turno em 2018 e, agora, em importantes cidades.
De resto, qualquer frente mais ampla exige que as esquerdas, no sentido amplo, estejam unidas, condição para que uma frente contra Bolsonaro não seja dirigida pelos setores que na prática apoiam toda politica econômica do governo levada a cabo por Guedes e a política capitaneada por Moro e sua cruzada, acima da lei e da Constituição.
Na opinião de alguns, o principal é enfrentar a ameaça autoritária; depois, veremos o que fazer no fronte econômico. Acontece que a política de desmonte do Estado nacional e de bem-estar e a convivência e tolerância com as milícias, quando não o apoio a elas e ao aparato policial judicial da Lava Jato, são igualmente atentados à democracia.
Assim, para além da divergência principal com os liberais em torno do programa econômico ultraliberal e de direita, temos uma ameaça autoritária também na Lava Jato, nas PMs e nas milícias, com a qual não podemos compactuar.
Opções de alianças
Frentes amplas, não só o PT, mas todos os partidos de esquerda, sempre fizemos quando necessário – e continuaremos fazendo. No passado, na campanha das Diretas e no impeachment de Collor, nas eleições presidenciais e nos governos estaduais e municipais em todo o país.
Frente de Esquerda já fazemos no Parlamento em Brasília, na proposta inovadora e justa de reforma tributaria, na luta contra a reforma da Previdência e contra o pacote anticrime, no embate em defesa do meio ambiente, contra a censura, em defesa da autonomia das universidades, nos bairros e ruas de todo o Brasil em defesa dos direitos dos trabalhadores, das mulheres, dos negros, dos indígenas e da democracia.
Temos uma longa e duradoura experiência de Frentes de Esquerda no país, que devem ser construídas de baixo para cima, não como tarefa ou função apenas das lideranças nacionais dos partidos, mas da militância e dos cidadãos que apoiam e votam nos partidos de esquerda.
O momento histórico exige de nós a renúncia de hegemonismos e patriotismo de partido. O que está em risco são nossa liberdade e soberania nacional, nossos direitos políticos e sociais conquistados após quatro décadas de luta por gerações de lutadores e pelo novo povo trabalhador.
Testes
É nosso dever assumir em cada espaço de luta e nas relações políticas uma postura de unidade e construção de uma Frente de Esquerda com um programa que retome o fio de nossa história e garanta avanços na luta contra a desigualdade e a pobreza, na construção de uma nação justa e igualitária, democrática e com voz ativa e presença no mundo. Nas eleições municipais deste ano teremos uma prova importante de nossa disposição frentista.
Sabemos que a direita liberal apoia Guedes, fala em combater a desigualdade, busca nos atrair para uma aliança apenas para procurar o poder. Até aí tudo faz parte da disputa eleitoral. Mas devemos ter consciência dessa realidade antes de qualquer decisão sobre alianças.
O desafio das esquerdas é primeiro se entender para enfrentar o inimigo e as ameaças à democracia. Sem isso, seremos fracos em qualquer Frente, ou mesmo sem Frentes quando da alternância do poder.
O segundo desafio para as esquerdas é mobilizar a sociedade, ir para as ruas, sem medo e unidas, contra o autoritarismo, contra a politica econômica que causa tantos estragos e só fará aumentar a precarização do trabalho, a desigualdade e a pobreza.
Vamos estar juntos na luta, nas manifestações das mulheres no dia 8 de Março; no dia 14, em memória de Marielle, em protesto pelos dois anos de seu bárbaro e covarde assassinato ainda não esclarecido, impune. E no dia 18 em defesa da democracia e contra os retrocessos do governo Bolsonaro e as ameaças às liberdades democráticas e aos direitos sociais.
Nós estaremos sempre alinhados com todos os que se opõem ao autoritarismo e ao obscurantismo.
Mas Frente para disputar as eleições presidenciais no primeiro turno, visto que no segundo a expectativa é de que estaremos inevitavelmente contra Bolsonaro, coloca uma questão central: com quem e com qual programa vamos nos aliar? A unidade das esquerdas é mais do que necessária. Sem ela, seremos apenas coadjuvantes na luta contra Bolsonaro.


segunda-feira, 2 de março de 2020

Fernando Henrique Cardoso: “passando o pano” na tutela militar


Recomendo fortemente a leitura do artigo “Hora de convergir”, assinado por Fernando Henrique Cardoso e publicado pelo jornal O Estado de S. Paulo no dia 1 de março de 2020.

Neste artigo, FHC afirma que “falar de impeachment (...) seria, no mínimo, arriscado”. Ou seja: ele não questiona se a hipótese é ou não “cabível”; FHC está preocupado é com as consequências.

E quais seriam?

Segundo FHC: “desgasta os Poderes e deixa mágoas de difícil superação. Mais ainda: por trás da votação no Congresso e das alegações jurídicas, no impeachment existe sempre um movimento popular, que não se vê no momento. Melhor nem cogitar, prematuramente, de tal movimento.”

De que “movimento popular” FHC está falando?

Da direita? Da esquerda? De ambos? Nenhum dos anteriores??

Segundo FHC, do que precisamos é de “tranquilidade”, para enfrentar “dois enormes desafios”: a ameaça do coronavírus (claro, pois com a dengue, o sarampo e assemelhados estamos lidando bem) e o “arrastado crescimento da economia”.

Ainda segundo FHC, “um país que está inseguro – insegurança agravada pelo temor de uma eventual pandemia – e tem desemprego tão alto” precisa urgentemente de “sensatez e de coordenação”.

E por quais motivos o país estaria “inseguro”? FHC dá a entender que o motivo é o próprio presidente Bolsonaro, alguém que ele descreve como desastrado no falar, quando não no agir, que acirra em vez de desanuviar, que produz “turbulência a partir de um impulso de confronto incompatível com o bom funcionamento das instituições e potencialmente perturbador da ordem democrática”?

Mas se for esta a causa da insegurança, de onde viria a “sensatez” e a “coordenação”??

FHC diz que “felizmente, os chefes dos outros Poderes, especialmente o da Câmara, percebem a situação e não lançam mais lenha na fogueira”. Mas se é assim, então a fogueira continua queimando. 

Portanto, temos uma situação problemática, que – segundo FHC – leva os militares a assumirem cada vez mais protagonismo no governo Bolsonaro.

Motivo de preocupação? 

Não, segundo FHC. Afinal, “não é para ‘dar um golpe’ que os militares aceitam participar” do governo Bolsonaro. Os militares “sentem sinceramente que cumprem uma missão, diante da dificuldade ou incapacidade do governo de recrutar maior número de bons quadros em outros setores da sociedade”.

Ou seja: a presença de militares no governo Bolsonaro seria um fator de... “sensatez” e de “coordenação”.

Mas isto não seria um risco para a democracia? FHC diz que o risco, “para a democracia e para as próprias Forças Armadas como instituição permanente”, é que se “borre a fronteira entre os quartéis e a política”.

Mas isto já não teria ocorrido várias vezes, desde 2016? Por exemplo, quando vários comandantes pressionaram o Supremo, para que não concedesse em 2018 o habeas corpus a que Lula tinha direito, como se comprovou em novembro de 2019?? Ou quando setores importantes da ativa e da reserva se engajaram na campanha de Bolsonaro e em seu governo, inclusive fazendo declarações das mais provocadoras contra a democracia??

Os fatos são tão evidentes, que cabe pensar por quais motivo FHC insiste nesta “narrativa”, que além de tudo silencia sobre a relação de causa-e-efeito entre o “arrastado crescimento da economia” e a política econômica de Guedes&Bolsonaro.  

A única explicação que encontro é que FHC considera que vivemos uma situação tão perigosa, que as Forças Armadas (ou pelo menos parte delas) seriam uma espécie de última linha de proteção da democracia contra “tentações populistas de índole autoritária”. 

Esta impressão fica ainda mais forte ao lermos, na parte final do artigo de FHC, um amontoado de chavões que servem de paspatur para a seguinte frase: “Precisamos... de liderança: temos a que o povo escolheu. Mas o voto não é um cheque em branco e acima de qualquer mandatário está a Constituição.”

Tirante o cinismo de culpar "o povo" e a hipocrisia acerca da "escolha", a impressão é que FHC está passando um recibo público de apoio àqueles que acreditam que o Palácio do Planalto está precisando de uma operação de GLO. 

Se isto for verdade, o artigo de FHC poderia ser resumido assim: Bolsonaro é um fio desencapado, mas seu impeachment produziria inconsequências imprevisíveis, logo a única solução é ampliar a tutela militar. 

Vindo de FHC, não surpreende este tipo de raciocínio.

Só a entrada em cena do povo pode impedir que a política brasileira continue prisioneira deste tipo de falsas alternativas, todas cúmplices de um programa ultraliberal, de medidas que restringem as liberdades democráticas, que destroem os direitos sociais e inviabilizam qualquer coisa que possa ser chamada de desenvolvimento.

A íntegra do artigo do "príncipe dos sociólogos" pode ser lida aqui: 
 https://opiniao.estadao.com.br/noticias/espaco-aberto,hora-de-convergir,70003215332








Lula e o "crime de responsabilidade"


O UOL divulgou, no dia 1 de março, uma entrevista concedida pelo presidente Lula ao portal e ao jornal suíço Les Temps.

Não ouvi o áudio da entrevista, portanto não tenho como checar se há diferenças entre o que foi dito e o que foi publicado.

Isto posto, quero comentar dois trechos da entrevista publicada, um que achei extremamente positivo, o outro extremamente equivocado.

O extremamente positivo é o destaque dado à desigualdade. Sobre isso falarei noutro texto.

O extremamente equivocado é a opinião dada acerca do crime de responsabilidade. Sobre isto falarei aqui.

Podemos avaliar que não há mobilização popular em favor do impeachment.

Podemos constatar que não há correlação de forças no Congresso para aprovar o impeachment.

Podemos achar que não basta afastar Bolsonaro, pois há Mourão, Guedes, Moro e toda a corja neofascista e ultraliberal.

Podemos cobrar do Congresso e do STF que tomem a atitude prevista na Constituição.

Podemos deixar que quem pariu Mateus, o embale.

Podemos muitas coisas.

Podemos até achar que é melhor ter paciência por 4 anos. E depois mais 4, quem sabe, restando saber nesta toada que país teremos em 2022 ou em 2026.

O que não podemos é negar (ou colocar na condicional, como uma hipótese futura) algo que até mesmo setores da direita reconhecem: o presidente Bolsonaro é uma fábrica de crimes de responsabilidade.

Dito de outro jeito: o que “acaba com a democracia” não é reconhecer que Bolsonaro cometeu crimes de responsabilidade, para os quais uma solução prevista em lei é o impeachment.

O que "acaba com a democracia" é ter um neofascista e amigo de milicianos na presidência da República.

A entrevista citada está disponível aqui:
https://noticias.uol.com.br/colunas/jamil-chade/2020/03/01/a-esquerda-perdeu-o-discurso-e-tera-de-reconstrui-lo-diz-lula.htm