Mês de aniversário, quando os amigos lembram, é
sempre uma felicidade. Mas o que não tem preço mesmo é quando os adversários
lembram.
Mesmo que não fosse essa a intenção, é assim que
devem ser encaradas as agressivas referências que José Dirceu faz acerca da
Articulação de Esquerda, no recém-lançado volume I de suas Memórias.
Acerca do livro como um todo, escrevi uma resenha
para a revista Teoria e Debate, disponível aqui:
Como se tratava de uma resenha para o público em
geral, preferi deixar para outros textos uma análise dos inúmeros problemas que
o livro de Dirceu tem, quando se dedica a descrever e a analisar a história do
Partido.
É o que busquei fazer numa série de oito pequenos
textos, que agora eu reúno num único.
Aproveito para solicitar que eventuais erros,
imprecisões ou lacunas me sejam comunicadas.
I)
Nesta parte, abordarei as referências que Dirceu
faz a atuação da Articulação de Esquerda no período 1993-1995.
Mais exatamente, vou me limitar a corrigir o que
considero imprecisões ou erros factuais. Noutros textos, abordarei outros
períodos e também farei a crítica da interpretação feita por Dirceu.
Salvo engano, a primeira referência de Dirceu à
Articulação de Esquerda aparece na página 235:
“(...)
perdi a liderança para Vladimir Palmeira, meu amigo, irmão e companheiro. Seria
uma das muitas contendas difíceis entre nós. Essa, marcada pelo confronto
interno. Erroneamente, segmentos à esquerda que, depois constituiriam a
corrente Hora da Verdade, que juntamente com a Articulação de Esquerda, se
aliaram com a Democracia Socialista (DS), Força Socialista (FS) e aos
parlamentares ligados ao Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) e
me derrotaram por um voto.”
A disputa pela liderança entre Dirceu e Palmeira
ocorreu em dezembro de 1992.
O manifesto “A hora da verdade” foi divulgado em
fevereiro de 1993.
A Articulação de Esquerda seria fundada em setembro
de 1993, pelos que foram signatários do referido manifesto.
Portanto, o que de fato ocorreu em dezembro de 1992
foi que deputados e deputadas ligados a Articulação dos 113 optaram
por votar em Vladimir Palmeira.
Entre estes deputados da Articulação dos 113,
estavam alguns que tinham vínculos com o MST e que futuramente assinariam o
manifesto “A hora da Verdade” e participariam da fundação da Articulação de
Esquerda.
A segunda referência feita por José Dirceu a Articulação
de Esquerda está em dois trechos da página 257 e depois na página 258:
“Como
era esperado, o 8º Encontro, realizado em Brasilia, concretizou a divisão da
Articulação, com o surgimento da Hora da Verdade, depois Articulação de
Esquerda”.
(...)
“Uma
recaída vanguardista em contraposição a um partido real, cada vez mais
parlamentar e de governo. Operava-se um descolamento entre a nova maioria e a
própria base social do PT, sindical e popular, majoritariamente alinhada com
Lula e a [Articulação] Unidade e Luta. Era uma vanguarda de quadros oriundos da
esquerda organizada e da Articulação: Rui Falcão, David Capistrano, Valter
Pomar, Candido Vaccarezza, José Mentor e José Américo. Sob a liderança de Rui
Falcão e Valter Pomar que rompeu a aliança que deu origem à Articulação e
dirigiu o PT por dez anos: esquerda, sindicalistas e lideranças católicas
populares”.
O curioso é que esta “nova maioria” ganhou o 8º
Encontro de 1993, ganhou o 9º Encontro de 1994 e perdeu por apenas dois votos o
10º Encontro em 1995.
E, conforme o próprio Dirceu explicará mais adiante
em suas Memórias, a diferença de dois votos foi possível
porque alguns delegados romperam com a Articulação de Esquerda e votaram na
chapa encabeçada por Dirceu.
Sendo assim, há duas hipóteses:
a) ou bem as regras vigentes na época distorciam a
representação da base social nos congressos;
b) ou bem não é adequado falar em “fosso”, pois a
maioria de esquerda que dirigiu o PT entre 1993 e 1995 tinha base real.
Esta segunda hipótese pode ser comprovada nos
encontros e congressos seguintes, todos muito disputados.
Outra curiosidade: ao contrário do que diz Dirceu,
José Américo nunca foi da Articulação de Esquerda, nem do Hora da Verdade.
Pelo contrário, em 1993 ele foi o candidato da
Articulação Unidade Na Luta à presidência do PT São Paulo, derrotado por
Arlindo Chinaglia candidato da Hora da Verdade.
Uma terceira curiosidade: todos os nomes citados
por Dirceu são paulistas.
Mas fora de São Paulo, o manifesto a Hora da
Verdade teria grande adesão por exemplo em lideranças petistas no Rio Grande do
Sul, em Santa Catarina, no Rio de Janeiro, no Pará, para ficar apenas nestes
exemplos.
E mesmo em São Paulo havia lideranças muito mais
importantes do que a deste escrevinhador, a começar por Sílvio Pereira, pessoa
que era extremamente ligado a José Dirceu e que ele praticamente excluiu de
suas Memórias, exceto uma única referência relativa a sua
desfiliação do Partido, em 2005.
Na página 259, Dirceu volta a falar da Articulação
de Esquerda:
“Note-se
que a dissidência dentro da Articulação se voltou, em grande medida, contra meu
papel na direção partidária e na Articulação. A pressão para barrar minha
eleição como líder da bancada era parte desse movimento. Após a criação da Hora
da Verdade e da Nova Esquerda, meus ex-companheiros de décadas, no caso Rui
Falcão e mesmo Valter Pomar, praticamente vetaram meu nome e me excluíram, como
um “traidor”, de toda participação. Com violência verbal e agressividade
política, uniram-se ao grupo de David Capistrano – que eu trouxera para a
legenda – para me combater pessoalmente. Um grau de sectarismo ainda não
presente no PT.”
Comecemos por uma imprecisão: a “Nova Esquerda” foi
criada antes do 1º Congresso do PT, por egressos do Partido Revolucionário
Comunista.
Isto é explicado por Dirceu nas páginas 240 e 241
de suas Memórias.
Portanto, no trecho acima citado, retirado da
página 259, Dirceu deve estar querendo referir-se a Articulação de Esquerda,
fundada como já se disse em setembro de 1993.
O mesmo erro é cometido na página 257, onde se poder ler o seguinte:
O mesmo erro é cometido na página 257, onde se poder ler o seguinte:
"[no
oitavo encontro] a Nova Esquerda assumiu a maioria do partido, mas não sua
direção real."
Em segundo lugar: desde o início, a expectativa de
parte importante dos que criaram o Hora da Verdade era a de que José Dirceu
fizesse parte do movimento e, mais ainda, que fosse nosso candidato à
presidência nacional do Partido.
Até porque Dirceu estava sendo, como ele próprio
reconhece em suas Memórias, hostilizado pela direita da
Articulação.
Foi Dirceu que escolheu não assinar o manifesto
Hora da Verdade.
Que ele não lembre disto ou recorde de outro jeito,
vá lá.
Que ele trate Rui Falcão como “ex-companheiro”, que
se há de fazer.
Mas que ele reclame de “agressividade verbal”,
“violência política” e um grau de sectarismo “ainda não presente no PT”,
buenas: esta vitimização não condiz com os fatos, nem fica bem na boca do
personagem em questão.
Quanto a mim, em 1993 não tinha nem mesmo idade
para ser companheiro de “décadas” de Dirceu, o que revela que estou na frase
apenas para fazer companhia a Rui Falcão, este sim o verdadeiro e neste caso
totalmente imerecido alvo do ataque.
Dirceu volta a citar a Articulação de Esquerda na
página 264, quando fala de sua candidatura ao governo do estado de São Paulo:
“Minha
candidatura foi um erro e um fracasso. Não pela candidatura em si, mais pelo
cenário e as circunstâncias. Primeiro, disputei uma prévia dura, expressão do
confronto entre a Hora da Verdade e a Articulação, mas, especificamente, contra
a minha candidatura e liderança no PT. A disputa dividiu a base do partido, mas
não as lideranças. Tive o apoio da maioria dos parlamentares e prefeitos e da
Articulação. Mas não da Hora da Verdade e da categoria dos bancários, que
tinham o maior sindicato depois dos metalúrgicos do ABC e contra quem
batalhavam pela liderança da CUT.”
Aqui há outra imprecisão: a maior parte da Hora da
Verdade, já então intitulada nacionalmente de Articulação de Esquerda, apoiou
nas prévias a candidatura de Dirceu.
A principal exceção foi David Capistrano, sobre
quem voltaremos a falar em seguida.
Já Telma de Souza era uma militante da Articulação
Unidade na Luta.
Aliás, por se tratar de uma prévia entre duas
lideranças da Unidade na Luta, algumas poucas pessoas (eu inclusive) optamos por
não apoiar, nas prévias, nenhuma das candidaturas.
Por qual motivo o grupo majoritário no Sindicato
dos Bancários, liderado por Gushiken, apoiou Telma?
Porque havia uma minoria naquele sindicato, minoria
que tinha entre seus líderes Lucas Buzato, minoria que fazia parte da Hora da
Verdade e que na disputa do sindicato tinha o apoio de Dirceu.
Portanto, Dirceu esquece:
a) que sua candidatura nas prévias foi apoiada por
grande parte dos paulistas do movimento Hora da Verdade;
b) que seus principais oponentes eram da
Articulação Unidade na Luta, seja os sindicalistas bancários liderados por
Gushiken, seja a própria Telma de Souza.
Vejamos agora o que Dirceu fala de David
Capistrano, na página 264:
“Davi (...) chegou a me propor um acordo: eu reconheceria
a vitória da Telma e eles me apoiariam para deputado, solução típica do PCB e
da Hora da Verdade”.
Nunca ouvi falar desta proposta e Capistrano não
está mais entre nós.
Seja como for, é uma distorção afirmar ser “típica”
do “PCB e da Hora da Verdade” uma proposta que teria sido feita em nome de uma
candidatura que não era da Hora da Verdade, nem era apoiada pela maioria dos
integrantes da Hora da Verdade.
Aliás, Vaccareza e Rui Falcão apoiaram Dirceu e eu,
pelos motivos já explicados, não apoiei ninguém.
Agrego ao que foi dito até agora
algumas lembranças do então presidente estadual do PT São Paulo, o hoje
deputado federal Arlindo Chinaglia:
“quando da candidatura do ZD ao governo e nas prévias eu presidia o PT.
Ele ganhou as prévias especialmente pelo resultado de Diadema, que a Telma quis
anular e não permitimos. Eu seria o coordenador de campanha dele por ser
presidente. Mas sendo candidato a deputado, indiquei o Vaccareza para tal
função. Zé Dirceu estava de acordo”.
As lembranças acima confirmam o que vem sendo dito
aqui, a saber, que as lembranças de Zé Dirceu sobre o papel da Articulação de
Esquerda nas prévias para governador de São Paulo em 1994 contém lacunas,
imprecisões e erros gravíssimos.
Dirceu volta a falar da Articulação de Esquerda nas
páginas 273 e 274, quando trata de sua tática para vencer o 10º encontro
nacional do PT, realizado em 1995:
“era
apostar numa derrota certa, a não ser que, além de compor com o Na Luta PT,
fizéssemos uma aliança, depois na presidência, com a DR e os dissidentes da AE,
da corrente Velhos Sonhos, Novos Desafios”.
“O
desgaste da Unidade na Luta só não era maior do que o da AE. Carregávamos a
imagem do 1º Congresso, da ‘aliança’ com o PSDB, enquanto a AE arcara com o
ônus do ‘Fora Itamar’ e, principalmente, da campanha desastrada e desastrosa de
1994. Com a incapacidade de dirigir o PT, avessa às alianças, sem políticas
para os governos, cada vez mais voltada para a luta interna e suas
dissidências, a AE não era mais uma alternativa. Tivera sua chance e
fracassara. Mas não me enganei ao avaliar os obstáculos para articular a mínima
unidade entre forças tão díspares como a DR, Na Luta PT e Velhos Sonhos”.
“Um
ponto unia a todos: a falta de legitimidade e capacidade de dirigir da aliança
liderada por Rui Falcão, Vacarezza e Capistrano, apoiada por Vladimir Palmeira,
Jaques Wagner e Tilden Santiago e reforçada pela determinação de Valter Pomar,
contando também com o respaldo implícito do MST, então discreto, mas presente.
Plínio de Arruda Sampaio já se bandeava para as hostes ‘esquerdistas’ e, como
‘cristão novo’, era dos mais sectários e ambiciosos. Sob a capa aristocrática
de intelectual, era o pré-candidato a presidente pela AE. Certo da vitória,
chegou a me propor a retirada do meu nome da eleição para que pudesse ser
indicado por acordo”.
Para começo de conversa, o Encontro de Guarapari
foi disputado por quatro chapas.
Na votação feita ao final do encontro, a chapa da
Articulação Unidade na Luta teve 165 votos. A chapa da Democracia
Radical teve 31 votos. A chapa Velhos sonhos, Novos desafios teve 24 votos. Já
a esquerda apresentou uma chapa única, intitulada Socialismo e democracia,
reunindo Na Luta PT e Opção de Esquerda, onde estava a Articulação de Esquerda.
Esta chapa Socialismo e democracia teve 189 votos. Ao todo havia 414 delegados.
Já na disputa da presidência, Dirceu recebeu 215
votos, Hamiltom Pereira recebeu 183 votos e registraram-se 16 votos em branco.
A diferença de dois votos a favor da chapa de
Dirceu se deu na disputa da tese guia, que foi feito no início do encontro, em
plenário, com crachá levantado.
Os números podem ser interpretados de várias
maneiras, mas está claro que a vitória de Dirceu e de sua chapa não estão relacionados ao Na Luta PT
(que apoiou Hamilton e a chapa Socialismo e Democracia), mas sim ao apoio da
chapa Velhos sonhos, novos desafios.
E quem era esta chapa? Em sua maioria, era composta
por delegados vinculados ao movimento Hora da Verdade do estado de São Paulo, a
começar por Rui Falcão e Vaccarezza.
Sendo assim, chega a ser bizarro dizer que um ponto
que “unia a todos” – incluindo neste “todos” a chapa Velhos Sonhos
-- seria a “falta de legitimidade e capacidade de dirigir da aliança
liderada” exatamente por Rui Falcão e Vacarezza.
Outro ponto: a chapa da esquerda petista analisou
várias alternativas de candidatura. Plínio de Arruda Sampaio foi uma delas, mas
ele não era o candidato especificamente “da AE”. Aliás, a relação de Plínio com
a AE nunca foi tranquila, como Dirceu certamente sabe.
Na mesma página 274, Dirceu o seguinte:
“a derrota da AE ocorreria por sua incapacidade de
estruturar novas políticas e estratégias para a legenda. Era só uma
nova tentações direitistas da Articulação e da DR. A campanha de
Lula desmascarara a AE. Era o colapso de uma ilusão.”
(...)
“era o esgotamento de uma direção
esquizofrênica, sem votos, sem representatividade e, com raras exceções,
descolada das lideranças sindicais, populares e parlamentares, incapaz de
governar com os governos petistas”.
Como se pode confirmar pelas linhas acima, Dirceu
não tem nada de positivo a falar sobre a Articulação de Esquerda do biênio
1993-1995.
O curioso, como já dissemos, é que sua chapa e
candidatura venceram a disputa graças ao apoio recebido pelos delegados liderados
por Rui Falcão, Candido Vaccarezza, José Mentor e Sílvio Pereira, exatamente os
líderes paulistas e em alguns casos nacionais do tal HV que ele desanca sem dó
nem piedade.
A contradição não fica totalmente evidente, porque
ele confunde o leitor falando do apoio do Na Luta PT (apoio que não existiu) e
do Velhos Sonhos (que era uma chapa composta majoritariamente por delegados do
HV de São Paulo).
O mais chocante é que a tendência que Dirceu
desqualifica com tanto dureza foi capaz de organizar uma chapa que teve mais
votos que a sua; uma chapa que poderia ter vencido o 10º Encontro, não fosse
pela dissidência já citada; uma chapa que lançou como candidato Hamilton
Pereira, a quem ele cobre de elogios e que recebeu 45% dos votos.
Dirceu também se refere, na página 275, ao
seguinte:
“o
nível de radicalização no Encontro ficou marcado pela ´denúncia´contra mim, de
um dos membros da AE. Segundo ele, eu teria recebido doações da Odebrecht, o
que era verdade, mas a doação era legal e declarada à Justiça Eleitoral”.
O fato ocorreu, mas Dirceu deveria contar não
apenas o milagre, mas também o santo: o delegado em questão era César
Benjamin.
Naquele momento Benjamim era membro do Diretório
Nacional do PT, eleito pela chapa da Articulação de Esquerda. E foi indicado
pela Articulação de Esquerda para falar em defesa da candidatura de Hamilton
Pereira. Portanto, a responsabilidade política pelo que ele disse, sem sombra
de dúvida, cabe em primeiro lugar à AE.
Mas Dirceu sabe muito bem que o discurso de
Benjamin foi um “improviso” deste cidadão, que não foi discutido previamente
com ninguém. Aliás, dias depois César Benjamin desfiliou-se do PT.
O que chama a atenção, nesta e em outras passagens,
não são apenas os erros factuais, que poderiam ser corrigidos com uma adequada
revisão.
O que chama a atenção é que Dirceu às vezes relata
os fatos do passado tal e qual ele os viveu e percebeu naquela época, sem
nenhuma mediação, sem nenhum comentário, sem nenhuma “nota de rodapé”, às vezes
com o mesmo sectarismo da época, sectarismo que ele atribui apenas aos outros.
Com isso, ele perde a chance de fazer uma análise
retrospectiva mais equilibrada das razões e desrazões de cada um dos
protagonistas daquela época.
O curioso é que em várias passagens das MemóriasDirceu
consegue fazer isto. Mas em alguns casos, como neste da Articulação de
Esquerda, ele parece ter um bloqueio.
Noutro texto voltarei a este tema, assim como
falarei da versão que Dirceu apresenta acerca do que antecedeu e acerca do que
sucedeu o curto período de dois anos em que a Articulação de Esquerda dirigiu o
Diretório Nacional do PT.
II
Nesta parte, abordarei a versão de Dirceu acerca de
alguns episódios que antecederam o curto período de dois anos (meados de 1993 a
meados de 1995) em que a Articulação de Esquerda fez parte da maioria do
Diretório Nacional do PT.
No capítulo 14, Dirceu trata de vários assuntos,
entre os quais a constituição da Articulação dos 113, da vitória da Articulação
dos 113 no Encontro Estadual do PT SP no ano de 1983, de sua atuação como
secretário de formação política e depois como secretário-geral do PT paulista.
Neste capítulo Dirceu também fala da Campanha das
Diretas Já e apresenta a crítica programática, estratégica e organizativa que a
Articulação dos 113 fazia contra as chamadas “tendências organizadas” do PT.
Parte desta crítica seria sistematizada em um textoassinado por
Wladimir Pomar e José Dirceu, texto que pode ser lido no seguinte endereço:
No capítulo 14 das Memórias Dirceu
aborda a postura do PT frente ao Colégio Eleitoral, a campanha de Suplicy para
a prefeitura de São Paulo capital em 1985 e a campanha de Dirceu para deputado
estadual em 1986
Nas páginas 206 e 207, duas preciosidades:
a) a primeira é a relação que Dirceu estabelece entre as pressões contra a candidatura de Suplicy em 1985, com a posterior “ladainha para apoiar o PSDB contra a direita”;
b) a segunda é a crítica que Dirceu faz ao “ovo da serpente que envenenaria o PT nos próximos trinta anos: o marketing político”.
a) a primeira é a relação que Dirceu estabelece entre as pressões contra a candidatura de Suplicy em 1985, com a posterior “ladainha para apoiar o PSDB contra a direita”;
b) a segunda é a crítica que Dirceu faz ao “ovo da serpente que envenenaria o PT nos próximos trinta anos: o marketing político”.
Também neste capítulo, na página 211, se afirma que:
“algo de muito errado acontecia em nossos
governos (...) o PT se recusara a associar-se com o governo e a governar. Era
aí, síndrome do voluntarismo e do vanguardismo. Impunha-se não só chegar ao
poder como aprender a governar”.
A afirmação pode ou não ser correta. Mas as
experiências do PT em governos, até este momento, podiam ser contadas nos dedos
de uma mão.
Em seguida, Dirceu resume suas lembranças do 5º
encontro nacional do PT:
“Realizado
no começo de 1987, o 5º Encontro ‘centralizou’, como se dizia, as tendências.
Algumas estavam no PT de passagem. O partido era transitório, o ‘tático’, na
linguagem cifrada da esquerda. Não passaria de uma frente parlamentar. Essa
definição política e estratégica seria depois consolidada pelo 7º Encontro em
1990, mas o 5º Encontro avançou na definição, decisiva, da estratégia para
construir e não assaltar o poder. Afirmou o socialismo como objetivo dessa luta
por hegemonia contra as classes dominantes. A conquista do poder pelo voto,
pacífica, era o caminho da luta pelo socialismo.”
Virei e revirei a resolução do 5º e mesmo do 7º
encontro do PT, e não encontrei esta definição segundo a qual “a
conquista do poder pelo voto, pacífica, era o caminho da luta pelo socialismo”.
Arrisco dizer que em 1987 o próprio Dirceu não
acreditava nisto, se é que acredita nisto hoje.
Dirceu nos conta, na página 213, que Lula o
convidou para assumir a secretaria-geral nacional do PT:
“com
a expectativa de que eu reproduzisse nacionalmente o trabalho de articulação,
organização partidária, direção e orientação política que havíamos realizado em
São Paulo. O problema é que, em São Paulo, existia um núcleo dirigente coeso e
plural, disciplinado e formado na direção colegiada, coletiva, no movimento
sindical e na esquerda. No país, não obstante todos os esforços nesse sentido,
somente em 1995 conseguiríamos eleger uma direção sob uma orientação política
comum e com metas políticas definidas.”
Confesso que a afirmação me causa espanto.
Faziam parte da executiva nacional do PT, naquela
ocasião, além do próprio Dirceu, as seguintes pessoas: Olívio Dutra, Djalma
Bom, Jacó Bittar, Hélio Bicudo, Paulo Delgado, Perseu Abramo, Geraldo Magela,
Marcelo Deda, Luis Dulci, Wladimir Pomar, Luis Eduardo Greenhalgh, Luiz
Gushiken, Hamilton Pereira, Eurides Mescoloto, César Alvarez, José Genoíno,
João Machado e Gilberto Carvalho.
Que Zé Dirceu faça uma avaliação daquele tipo
acerca deste colegiado dirigente é algo bem revelador.
No capítulo 16, Dirceu trata do tema da Constituição
de 1988, explicando a posição do PT: não votar, mas assinar. E reclama da
tentativa de revisão constitucional, feita pela direita em 1993, omitindo que
setores do Partido também defendiam esta revisão.
Outro tema abordado neste capítulo são as eleições
de 1988, introduzidas assim:
“Ascendia
um poderoso ciclo de embates sociais e o PT crescia como produto e motor dessas
lutas. Não era impossível chegar ao governo provocando uma ruptura, risco de
difícil avaliação, que não podíamos correr. Havíamos optado pelo caminho da
luta social e institucional e nos preparamos para disputar as eleições
municipais de 1988.”
O parágrafo acima, localizado na página 219, é bem
típico de um modo de pensar que, por suas limitações, contribuiu para nosso
impasse atual: a incapacidade de enquadrar num mesmo pensamento estratégico
luta social, luta institucional e ruptura.
O curioso é que as resoluções do 5º e depois do 6º
encontro nacional do PT tratam disto.
Acerca das eleições de 1988, Dirceu cita as prévias
entre Plínio e Erundina, vencidas por esta última. Reconhece que a cúpula da
Articulação estava errada ao considerar Erundina uma “opção inviável
eleitoralmente. Estávamos redondamente enganados e o eleitorado popular nos
mostraria o equívoco”.
O episódio, infelizmente, não ocupa mais que um
parágrafo das Memórias. Como no caso do plebiscito sobre
sistema de governo, Dirceu reconhece o erro, mas não se aprofunda nas
razões pelas quais o erro foi cometido.
Aliás, o governo de Erundina não foi esquerdista,
muito pelo contrário.
Caberia ao Diretório Municipal do PT de São Paulo,
sob a gestão de Rui Falcão, o papel de combater o “administrativismo” da
gestão, termo que equivale ao atual “republicanismo”.
E foi exatamente aí que começaram muitas das
divergências que resultariam na cisão da Articulação, em 1993.
Dirceu faz uma avaliação positiva do governo de
Erundina. Sua crítica mais dura é a seguinte: “Pecou por isolar-se com sua
corrente, o PT Vivo, e por tender às decisões pessoais e de grupo”. E o na
época dramático rompimento com Luiz Eduardo Greenhalgh é resumido assim: “sem
sucessor, rompido com seu vice”.
Acontece que Dirceu, na análise dos governos, está
mais preocupado com os desvios de esquerda do que com os desvios de direita.
Nas suas palavras, na página 229:
“Ficaram
a experiência e a necessidade de superar a tendência de setores importantes do
PT que se recusaram a governar e viam o acesso aos cargos eletivos mais como
instrumentos apenas para fomentar e organizar a luta política. Nesse processo
enfrentamos, embora em menor escala, mas ainda danosa, a atitude de alguns
setores ao recusarem o ônus de ser governo. Inúmeras vezes, o próprio PT era o
principal opositor aos nossos governos, produzindo crises gravíssimas com os
governadores Vitor Buaiz, Zeca do PT e Cristovam Buarque.”
Podemos concordar ou discordar pontualmente acerca
do balanço deste ou daquele governo. Mas depois de 36 anos de experiências de
governo, alguém acha que é possível insistir que nosso problema principal sejam
os desvios de esquerda?
Escrevendo a respeito no ano de 2017, Dirceu chega
a dizer o seguinte, na página 229:
“Era,
e é natural, a tensão no debate das políticas relacionadas ao funcionalismo
público, importante base do partido e de parlamentares de esquerda. Mas era preciso
distinguir. Governo e partido são ambas instâncias do Estado, mas partem de
universos diferentes. O governo representa o interesse da sociedade, de
classes, é verdade, enquanto o PT exprime interesse do coletivo, da maioria
partidária e de nossa base social, os trabalhadores e excluídos.”
A definição segundo a qual partidos e os governos
são instâncias do Estado é uma definição tipicamente
socialdemocrata.
Esta definição está na base do republicanismo, que
tanto contribuiu para a criminalização de Dirceu, Lula e do PT.
Aceita esta definição que transforma o partido em
instância estatal, é praticamente impossível dar uma solução positiva para
aquilo que Dirceu defende no parágrafo seguinte da mesma página 229:
“Saber
defender dentro do governo os interesses que representamos sem confundir o
governo com o partido e vice-versa, é o x da questão. A questão envolve a forma
de ampliar e consolidar, centro da gestão, o interesse do partido e de sua
representação social. Mas se opor ao governo para não assumir ônus, só bônus, é
a pior solução. Uma coisa é contestar decisões abertamente contrárias ao nosso
programa. Outra é refugar a solidariedade com o governo na crise e na disputa
com os adversários que, como sabemos, se comportam como inimigos.”
A impossibilidade é simples: se ambos, partido e
governo, são instâncias estatais, o governo é mais amplo e,
portanto, seus interesses supostamente maiores subordinarão os interesses
supostamente menores do partido.
Noutras palavras, a correta e acaciana ideia segundo
a qual o Partido deve defender o governo que elegeu, cede na prática seu lugar
para a noção segundo a qual o partido deve ser uma correia de transmissão do
governo.
O capítulo 17 termina falando introduzindo o tema
das eleições de 1989. Aqui comete-se um dos muitos pequenos erros que uma
revisão mais atenta evitaria:
“o
cenário [das eleições de 1989] não era dos melhores para o PT, pela pressão e
exploração da mídia. Viviam-se os momentos finais da União Soviética e havia a
queda do Muro de Berlim. Ocorrera o massacre da Praça da Paz Celestial, em
Pequim. Os sandinistas haviam sido derrotados eleitoralmente na Nicarágua e
agravara-se a crise em Cuba. Uma época se encerrava, a das revoluções
proletárias.”
Os sandinistas, como sabemos, foram derrotados em fevereiro
de 1990, portanto depois das eleições de 1989.
Mas o que chama atenção na passagem acima é a
maneira como se despacha o chamado socialismo real. Segundo Dirceu:
“a
legenda não tinha compromisso com o chamado socialismo real e tampouco se portava
como sua herdeira. Ao contrário, formara-se na solidariedade internacional aos
trabalhadores e depositária dos ideiais socialistas, mas avessa ao
autoritarismo dentro e fora do Brasil. Apoiara as lideranças do sindicato
polonês Solidariedade e opusera-se à repressão na China, embora com retórica
diversa da política agressiva dos EUA.”
Certamente este é mais ou menos o discurso oficial
que o Partido adotou na época, especialmente nas resoluções do 7º encontro
nacional.
Mas depois de que tanta água passou por debaixo da
ponte, e vindo de alguém como Dirceu, que faz uma defesa firme de Cuba, a
impressão que fica é que falta mais reflexão.
Especialmente porque, como Dirceu mesmo alerta,
“por trás do discurso adversário, tentava-se influir no partido e na avaliação
que fazia daquela catástrofe política e ideológica. Outros interesses
trabalhavam para domesticar o PT”.
A expressão “domesticação”, vejam que ironia, é
central no manifesto Hora da Verdade.
O capítulo 18 trata das eleições de 1989.
Já observamos, na resenha publicada na revista Teoria
e Debate, a curiosa ausência de qualquer menção a Wladimir Pomar, que foi
coordenador geral da campanha Lula e secretário nacional de formação política
do PT entre 1986 e 1989.
Os interessados na análise de Wladimir acerca da
eleição de 1989 podem ler o livro Quase lá, disponível no seguinte
endereço:
Neste livro, Wladimir Pomar apresenta uma versão
diferente acerca de pelo menos dois episódios citados nas Memórias de Dirceu: a
escolha do vice (Gabeira ou Bisol?) e a postura da maioria do Diretório
Nacional frente às chances de vitória de Lula.
Na página 239 de suas memórias, Dirceu diz o
seguinte:
“Mas
fica a pergunta: será que não foi melhor perdermos e só ganharmos em 2002,
treze anos depois. Digo que não. Nunca se chega ao governo ou poder porque se
quer. Nunca todas as condições estão ou estarão criadas. O triunfo de Lula em
1989 desencadearia uma sucessão de fatos, acontecimentos imprevisíveis e de
mudanças em todos os sentidos. Teríamos evitado a tragédia dos anos Collor e o
Brasil não seria o mesmo.”
Folgo em ler isto, pois contradiz frontalmente a
lembrança que tenho de uma rápida conversa com Dirceu no comitê da campanha, em
1989.
Claro, é só uma lembrança, e como acontece com
algumas do próprio Dirceu, pode estar totalmente errada.
Encerrado seu relato sobre a campanha de 1989,
Dirceu fala da reciclagem ocorrida em algumas tendências petistas (o PRC em
Nova Esquerda, o Poposo em Vertente Socialista, o PT Vivo, “era a direita do PT
se consolidando, com uma crítica radical a eles próprios, ao esquerdismo do
passado recente, à ditadura do proletariado, ao socialismo real, à revolução
armada”); cita de passagem o 7º Encontro Nacional, trata do Primeiro Congresso
do Partido e dos primeiros passos do governo Collor de Melo.
O capítulo seguinte, de número 19, começa falando
da campanha de Dirceu a deputado federal, em 1990.
Esta campanha, segundo ele, é afetada por “uma luta
subterrânea” que eclodira na Articulação:
“Não
havia mais unidade no núcleo duro da Articulação. Gushiken e Mercadante se
aproximaram das teses e posições de Genoíno e Eduardo Jorge. Florescia a
posição de ‘dissolução das tendências’, de partido de interlocução, de
refundação e de aproximação com o PSDB. Teses às quais eu me opunha e com as
quais não concordava em hipótese alguma.”
O curioso é que os adversários de Dirceu, neste
momento, serão seus aliados contra a esquerda petista entre 1993 e 1995 e nos
anos seguintes. E, ao contrário, seus aliados em 1990 serão mais adiante
tratados por Dirceu como inimigos.
Para além da curiosidade, há uma questão de fundo:
quem prevaleceu?
Dirceu escapa de responder esta questão, que está
no fundo da cisão da Articulação dos 113.
As posições que o PT e o próprio Dirceu passaram a
defender depois de 1995 são diferentes das que prevaleciam até 1990; e são
posições mais parecidas com essas que Dirceu combateu no Primeiro Congresso do
PT.
Uma das provas disso apareceria, uma década depois,
quando Dirceu perde a batalha para Palocci acerca de quem, e de qual política,
hegemonizará o primeiro mandato do governo Lula.
Entre 1990 e 1993, a direita da Articulação dos 113
considerava Dirceu um de seus principais inimigos. Ao contrário, boa parte da
esquerda da Articulação dos 113 via em Dirceu um aliado.
Para surpresa nossa, e talvez também para surpresa
do outro lado, Dirceu escolheu não marchar com a esquerda.
Se isto tivesse ocorrido, o que teria mudado na
história do PT nos anos 1990? Nunca saberemos. Mas o esforço que Dirceu faz
para desqualificar a Articulação de Esquerda é, num plano estritamente
psicológico, muito revelador.
Também é revelador o fato das Memórias não falarem
praticamente nada acerca do 7º encontro nacional do Partido, em 1990. Nem das
polêmicas acerca da aprovação do Fora Collor. Nem do seu papel e de suas
opiniões acerca da expulsão da Convergência Socialista, em 1992. Assim como não
falará nada ou quase nada acerca do governo Marta e de seus conflitos com o núcleo
dirigente daquele governo.
Toda memória é seletiva e uma autobiografia escrita
na cadeia tem limitações que devemos compreender. Mas uma vez que estamos
diante de uma obra pública, ela passa a fazer parte da luta de ideias e merece
ser criticada pelo que diz e pelo que não diz.
Por exemplo: no capítulo 20, o mesmo em que
reconhece (embora não analise as causas) o erro cometido em defender o
parlamentarismo no plebiscito sobre sistema de governo, Dirceu reclama da
decisão aprovada por 26 a 25, no Diretório Nacional do PT, acerca do governo
Itamar.
Dirceu afirma que teria dito a Lula, nesta ocasião:
“perdemos
aqui, hoje, a eleição de 1994. Como era admissível o PT, responsável pelo
impeachment, lavar as mãos? Pior, colocar-se na ‘ilegalidade’. Era um risco se
nossos adversários quisessem explorar aquilo. Ademais, a proposta estava
absolutamente fora da realidade, como os fatos de 1993 e 1994 cabalmente
provariam.”
O Diretório Nacional de 1992, é bom lembrar, foi
aquele eleito pelo 7º Encontro Nacional do PT.
A chapa da Articulação tinha 56% dos votos,
portanto 46 membros. A chapa da “direita” partidária tinha 17% dos votos,
portanto 14 membros. As duas chapas da esquerda tinham, somadas, 27% ou 22
integrantes do DN. Segundo Dirceu, votaram 51 pessoas, de um total de 82. Quem
exatamente votou nesta resolução? Não sabemos, Dirceu não diz, não há que eu
saiba registro disto.
Mas sabemos qual era o pano de fundo da discussão.
Havia um setor do Partido que acreditava que o
governo Itamar seria uma espécie de “transição” entre Collor e Lula. Outro
setor percebia, embora nem de longe vislumbrasse o tamanho da encrenca, que
nossa chance de vitória dependia do governo Itamar não se estabilizar.
Os fatos de 1993 e 1994 mostraram que o governo
Itamar foi a incubadora do governo FHC. Podemos divergir acerca de qual tática
poderia/deveria ter sido adotada frente a isto, mas considerar que Lula teria
perdido as eleições de 1994 quando o PT aprovou uma resolução dura contra o
governo Itamar é uma visão que vai na exata contramão dos fatos.
Aliás, Dirceu mesmo reconhece que “as relações de
Lula com o governo Itamar Franco não tinham nada a ver com a posição ‘oficial’
do PT e do Diretório Nacional”. Mas Dirceu não liga lé com cré, não percebe que
a atitude complacente frente ao governo Itamar contribuiu para que, dentro
dele, os neoliberais articulassem o plano Real e a candidatura FHC.
Sobre o plano real, Dirceu afirma que “não sabíamos
o que fazer, Nosso discurso oscilou da condenação ao desconhecimento e, depois,
ao apoio envergonhado”.
Dirceu chega a dizer o seguinte:
“Mercadante,
deputado federal, vice presidente do PT, economista, líder sindical na PUC,
assessor da CUT e de Lula, ocupou um espaço especial na campanha, como vice e
porta-voz de Lula diante do Real. Sem entrarmos, por enquanto, no mérito, foi
um desastre político e de comunicação. Não se sustentou e confundiu ainda mais
o partido com relação à nova moeda, levando mais balbúrdia do que
esclarecimento às campanhas estaduais.”
Pena que Dirceu não entre no mérito aqui, algo que
ele só fará nas páginas 266 a 268. Pois a verdade é que no debate sobre o plano
Real, as posições que previam desastre imediato vieram exatamente de quadros da
Unidade na Luta, enquanto economistas da esquerda foram mais cautelosos na
análise e alertaram para a possibilidade do plano “dar certo” no curto prazo.
Claro, reconhecer isto hoje, assim como reconhecer
isto na época, não contribui para a narrativa segundo a qual a derrota nas
eleições de 1994 deveu-se aos erros da esquerda petista, então majoritária no
Diretório Nacional.
Do ponto de vista político, quem é maioria na
direção paga pelos erros cometidos. Mas 24 anos depois, é plenamente possível
fazer um balanço mais equilibrado do que ocorreu. Dirceu prefere, entretanto,
repetir a mesma (pego empregado dele o termo) ladainha.
Mesmo que a ladainha não se sustente na descrição
que ele mesmo faz de sua campanha para governador, onde o problema principal
vinha do seguinte:
“Lula
e seu entorno – Gushiken, Clara Ant, Vannuchi, Mercadante – viviam de ilusões
sobre o PSDB e Covas e, na prática, “apoiaram” Covas, deixando claro que minha
candidatura era um estorvo e prejudicava Lula.
Na
imprensa e dentro do PT, Genoíno, Eduardo Jorge, Tarso Genro, Plínio (então
covista) e com apoio de Roberto Freire, do PPS, defenderam o apoio a Covas e a
retirada de minha candidatura.
(...)
A campanha para o governo estadual estava ferida de orte e eu abandonado à
própria sorte, com manifesta e pública oposição da ala do bunker de Lula e dele
próprio, apesar das aparências. Não seria a primeira vez que Lula, por razões
políticas – não se trata de um juízo moral – me deixaria ‘falando sozinho’.”
Como se vê, alguns dos muitos problemas reais
enfrentados por Dirceu em 1994 não vinham da esquerda petista que ele tanto
ataca. Vieram dos setores com os quais ele se aliaria para derrotar a esquerda
petista.
Concluo esta terceira parte da análise das Memórias,
citando o parágrafo da página 266 em que Dirceu faz um balanço das eleições de
1994:
“Era
possível vencer em 1994? Não. Perdemos por causa do Real? Não. Perdemos antes
da eleição, na decisão “Fora Itamar”, na divisão interna, na eleição da Nova
Maioria, na coordenação tripartite da campanha na TV e no Rádio, nas ilusões
sobre Covas e o PSDB. Tratava-se da pior derrota e merecia uma resposta à
altura da nossa parte.”
É a primeira vez que eu leio, em algum lugar, esta
subestimação acerca do Real. Trata-se de uma posição insustentável no plano dos
argumentos. Todo mundo sabe que o impacto eleitoral do Real foi colossal. Os
demais fatores podem ter contribuído mais ou menos. Mas subestimar o peso do
Real faz sentido, para quem precisava imputar à esquerda petista, majoritária
no DN, a responsabilidade pela derrota.
(E por falar em ilusões sobre o PSDB, vale lembrar
que um encontro extraordinário do PT em SP decidiu, por maioria, apoiar Covas
no segundo turno das eleições estaduais. A posição majoritária foi apoiada por
Dirceu. E por David Capistrano, entre muitos outros dirigentes do Hora da
Verdade/Articulação de Esquerda. Prevaleceu, sob orientação de Dirceu, a
"ladainha" de que devíamos apoiar o PSDB contra a direita.)
A partir daqui começou, para Dirceu e para o PT,
uma nova fase: a de preparar a derrota da esquerda petista no Encontro de
Guarapari, em 1995.
As opções feitas naquele ano contribuíram para a
vitória de 2002, mas também contribuíram para o que ocorreria em 2005.
Mas isto fica para a próxima parte deste texto.
III)
III)
Na página 276, Dirceu explica como foi composta a
executiva nacional do PT depois de sua vitória em Guarapari. E informa o
seguinte:
“Vaccarezza,
militante contra a ditadura, oriundo da Força Socialista, meu amigo pessoal, um
dos fundadores da AE mais próximos de nós na política de alianças e na
estratégia para eleger Lula presidente, assumiu a secretária-geral.”
Curiosamente, Dirceu não menciona nada acerca da
crise aberta no Partido com a indicação de Vaccarezza. A saber: no Encontro da
Guarapari, a chapa da esquerda petista teve, como já dissemos, mais votos que a
chapa da Unidade na Luta e muito mais votos que a chapa integrada por
Vaccarezza.
Assim sendo, esta chapa reivindicou a secretaria
geral nacional do PT.
A nova maioria dirigida por Dirceu blocou e manteve
o nome de Vaccarezza.
Em função disto, durante um bom tempo a esquerda
petista recusou fazer parte da CEN. Durante este período, o grupo liderado por
Dirceu teve uma liberdade de atuação que foi muito útil para sua consolidação
posterior, facilitada ademais pela introdução do fundo partidário, que garantiu
um fluxo estável de recursos que mudou hábitos e costumes no PT.
Posteriormente Vaccarezza seria afastado da CEN,
devido a denúncia confirmada de que ele era comissionado no gabinete do vereador
Brasil Vita.
Dirceu fala da nomeação de Vaccareza para a
secretaria geral, mas omite qualquer informação sobre a crise e sobre a
posterior demissão.
Como no caso de Sílvio Pereira, já comentado, é uma
reveladora falta de lembrança.
Não disponho de documentos que comprovem, mas como
estamos no terreno das “lembranças”, apenas registro que me surpreenderam os
rasgados elogios feitos por Dirceu a Rochinha e Clara Ant.
E, no segundo caso, sinto falta de algum comentário
mais detalhado sobre algo que teve muita importância: a vinda de
importantes quadros de O Trabalho para a Articulação, entre eles Glauco Arbix e
Favre. Dirceu cita, mas não aprofunda.
Neste capítulo 21 das Memórias,
Dirceu retoma seus comentários acerca do modo petista de governar e sua crítica
aos “pequenos agrupamentos que defendiam a orientação extrema, sintetizada na
palavra de ordem: ‘não importa quem governa. Somos oposição’.”
A frase acima, entre aspas, é obviamente uma
invenção de Dirceu.
Não conheço nenhuma tendência petista capaz de
aprovar uma resolução dizendo isto. Mas que Dirceu a cite e além do mais com
aspas é revelador do estado de ânimo com que aborda o assunto: o da caricatura.
É uma pena, pois de todos os dirigentes petistas,
ele é o que tem mais elementos de vivência para tentar equacionar teoricamente
a relação partido/governo/Estado.
Até porque, como ele próprio diz, “meu primeiro ano
como presidente do PT (...) consumiu-se na mediação e intermediação das crises
entre nossos governos e o PT”.
Mas uma abordagem mais profunda do tema é
dificultada, por um lado por sua “teoria” acerca do Partido como parte
integrante do Estado; por outro lado por sua tendência a caricatura.
Resulta disto que seus comentários sobre os
governos Zeca, Cristovam e Buaiz são “jornalísticos”. Salvo engano da minha
parte, ele não trata do governo Olívio (1999-2002).
Neste capítulo é feita uma referência importante ao
governo FHC, inclusive às denúncias de corrupção contra seus integrantes, como
é o caso de Mendonção, absolvido em 2009 “pela justiça federal das acusações de
improbidade administrativa” na privatização da Telebrás.
Pois bem: Dirceu reclama do fato que o Juiz Moacir
Ferreira Ramos tenha registrado o fato de que os denunciantes não tenham,
quando viraram governo a partir de 2003, feito “a fundo, a investigação das
denúncias” contra Mendonção.
Diz Dirceu na página 284:
“Ou
seja, a responsabilidade pela apuração não era da Polícia Federal e do
Ministério Público e sim do governo Lula, uma prova da parcialidade, se não
prevaricação da justiça no caso”.
A reclamação de Dirceu é assaz curiosa. Pois o que
está em jogo não é Mendonção, mas sim a atitude geral do nosso governo a partir
de 2003 frente aos crimes cometidos pelo governo anterior.
Esta atitude foi deixar nas mãos das instituições a
investigação.
Ora, como estas instituições são o que são, o
resultado foi o que foi. Como reclamar disto? E como não vincular nossa atitude
no caso, com o que viria depois?
Também neste capítulo, na página 287 e seguintes,
se aborda o caso Cpem. Sobre ele, Dirceu afirma:
“Paguei
caro dentro do PT pela constituição da comissão e por seu relatório. Nunca me
arrependi. Era preciso provar para a mídia – quando se trata do PT, o ônus da
prova é sempre do acusado – que Lula nada tinha a ver com os contratos da Cpem
com as prefeituras, como ficou demonstrado.”
O argumento faz sentido, concordemos ou não. Mas é
importante dizer que, em 2005, Dirceu recusaria para si mesmo o procedimento
que em 1997 julgou válido para Lula.
Outro tema abordado no capítulo 21 é a decisão de
Lula ser candidato às eleições de 1998. Sobre isto, num único parágrafo da
página 290, separado por uma única frase, Dirceu informa que “Lula persistia em
não se colocar como candidato” e “Lula decidiu-se e lançamos sua candidatura”.
Entre uma coisa e outra ocorreu o Encontro do PT no
Hotel Glória, fato que na minha opinião foi decisivo para explicar a mudança na
atitude de Lula. Mas isto não é citado neste capítulo.
O capítulo 22, na página 293, traz vários e
merecidos elogios ao Movimento Sem Terra e uma neutra referência à Consulta
Popular.
Este caso é um bom exemplo dos “dois estilos” que
Dirceu adota, nas suas Memórias:
a) em alguns casos cita fatos passados,
reproduzindo de maneira bastante fiel o que ele pensava na época, sem fazer
nenhuma mediação com os fatos posteriores;
b) noutros casos ele transporta para a época seu
ponto de vista atual ou simplesmente omite o que pensava na época.
O caso da Consulta, por exemplo, é curioso. Na
época eu era terceiro vice-presidente nacional do PT e recebi uma carta de
Dirceu, reclamando duramente do que eu teria dito e de minha participação numa
reunião da Consulta. Respondi que o “Valter” em questão, citado num texto da
Consulta, não era eu, até porque minha opinião sobre a Consulta e sobre seu (na
época) principal ideólogo, César Benjamin, era muito crítica.
Cito isto como um de vários exemplos de que a
relação entre Dirceu e este setor da esquerda não era, na época, aquilo que
transparece nas Memórias.
Outro exemplo dos “dois estilos”: as lembranças de
Dirceu acerca do plebiscito da dívida externa omitem as diferenças de opinião
que havia a respeito (ver páginas 304 e 305).
Ainda neste capítulo, repete-se a obsessão de
Dirceu com a Articulação de Esquerda. Na página 294 ele afirma o seguinte:
“No
PT realizamos o 11º Congresso no Hotel Glória, no Rio de Janeiro, em agosto
daquele ano. Um ensaio de 1998 e consolidação da minha presidência, com o
começo do fim da Articulação de Esquerda, já diluída em uma frente de esquerda.
Fui reeleito presidente do partido com 52,59% dos votos.”
Não sei exatamente o que significa “consolidação”
para Dirceu, mas em 1995 ele recebeu 54,02% dos votos e em 1998 ele recebeu
52,59% dos votos.
Quanto as chapas, cinco foram inscritas no final do
11º Encontro (e não Congresso, Dirceu se equivoca quanto a nomenclatura usada
pelo partido neste momento).
A chapa Luta Socialista (da qual fazia parte a AE)
teve 37,82% dos votos; a chapa Unida de na Luta, da qual Dirceu fazia parte,
teve 34,73% dos votos; a chapa Democracia Radical, de que Genoíno fazia parte,
teve 11,82% dos votos; a chapa Socialismo e liberdade, de Jaques Wagner e
Tilden Santiago, teve 11,09% dos votos; e a chapa Nova Democracia, de Paulo
Teixeira e Rui Falcão, teve 4,55% dos votos.
A Articulação de Esquerda, nos encontros de que
participou entre 1993 e 1997, sempre fez parte de chapas com outras tendências
da esquerda petista. O “diluída” portanto é por conta de Dirceu e o “começo do
fim” é, como já disse, sinal de uma preocupação obsessiva, cujas razões
comentarei noutro momento.
Também neste capítulo, Dirceu trata da intervenção
no Rio de Janeiro, para destituir a candidatura de Vladimir Palmeira e impor a
aliança com Brizola e Anthony Garotinho.
Ficamos sabendo, na página 296, que Dirceu se
“encantava” com o “método de análise e de decisão” de Brizola.
Ficamos sabendo, também, na página 298, o seguinte:
“hoje
avalio que o preço político que pagamos pelo respaldo a Garotinho não compensou
a aliança com Brizola. Isso, porém, é agora. Em 1998, eu não só estava
convencido, mas também decidido. Sem minha posição firme e clara não haveria
aliança. Fiz por Lula e pelo PT.”
Como já observamos em outro momento, Dirceu às
vezes faz autocríticas diretas e retas (caso do parlamentarismo, este caso do
Garotinho), mas é uma autocrítica curiosa, como se ele dissesse deu
errado, mas faria tudo outra vez.
Isto está ligado, penso eu, a opção de não fazer
uma reflexão de fundo sobre a política adotada e, no lugar disso, exaltar o bom
desempenho na execução da política adotada. Algo como: ok, errei,
mas cumpri meu dever. O tal imperativo que aparece no início de
suas Memórias, quando se avalia a luta armada.
Na página 299, Dirceu fala que:
“com
a crise presente na bolsa e no ataque ao Real, o PT e nosso programa – e mesmo
Lula – não foram capazes de explicar o quadro e conquistar o eleitor popular e
desempregado. Nem mesmo o pacote de setembro, com juros de 49,75%, aumento de
impostos, corte de gastos, ocultando e evitando o principal, a desvalorização
do real, conseguiu abalar a maioria favorável a FHC. ”
Compare-se o que é dito neste parágrafo acima, com
o balanço no parágrafo da página 266 em que Dirceu faz um balanço das eleições
de 1994:
“Era
possível vencer em 1994? Não. Perdemos por causa do Real? Não. Perdemos antes
da eleição, na decisão “Fora Itamar”, na divisão interna, na eleição da Nova
Maioria, na coordenação tripartite da campanha na TV e no Rádio, nas ilusões
sobre Covas e o PSDB. Tratava-se da pior derrota e merecia uma resposta à
altura da nossa parte.”
É impossível não perceber os dois pesos e as duas
medidas, quando se analisa a derrota sob a sua presidência e sob a presidência
da esquerda (no caso, de Rui Falcão).
Mais adiante, na página 300, Dirceu dirá que:
“nunca
tive ilusões com 1998. O ciclo de FHC não acabara e a hegemonia política e
cultural das ideias neoliberais persistia. Após as derrotas de 1989, 1994 e
agora de 1998, era o PT que precisava mudar.”
Curiosa conclusão, vinda de quem presidia, de
maneira “consolidada”, o PT desde 1995. Mais curioso ainda é que, na página
301, Dirceu nos informa o seguinte:
“em
1999, Lula articularia minha saída da presidência do PT. À esquerda, com o
apoio de Tarso Genro e Ricardo Berzoini, entre outros , surgia a proposta do
“Fora FHC”, a ser decidida no 2º Congresso, em Belo Horizonte.
Mal
começara o ano [1999] e a casa caiu. O real seria desvalorizado e a crise
econômica se mesclaria com a de governo. O caminho para 2002 estava aberto.
Lula, no entanto, propôs meu afastamento da presidência do PT. Exatamente
quando era a ocasião de robustecer a nova maioria e propor mudanças drásticas
para mudar as relações internas no partido, preparando-o para a disputa de
2002.
Lula
nunca me disse o motivo de sua decisão, mas avalio que foi em função do
fracasso da aliança com o PDT e da campanha. Acatei e me preparei para exercer
plenamente meu mandato de deputado e de dirigente, mas eis que a vida e a
realidade se impuseram. Primeiro, a crise econômica, segundo o “Fora FHC” e o
2º Congresso, depois a crise da candidatura Tarso Genro à presidência do PT.”
Esta passagem revela, mais uma vez, que os
principais antagonistas de Dirceu no Partido não estão apenas na chamada
esquerda. Mas também fica claro que a “esquerda” funciona as vezes como
espantalho, em nome do qual seus serviços são úteis para seus aliados
moderados.
No capítulo 23, página 306, Dirceu diz o seguinte:
“Lula
fizera um movimento arriscado ao sugerir o nome de Tarso Genro para presidir a
legenda. De fato, um terceiro mandato para mim seria inusitado e, nossa cultura
indicava, nada recomendável.
De
outra parte, não era essa a percepção da maioria do partido, especialmente da
Articulação. Parecia algo inesperado e contraditório a substituição naquele
momento de ascensão da oposição e robustecimento da minha liderança.”
Aquilo que Dirceu chama de “inusitado” e “nada
recomendável”, foi feito: Dirceu será reeleito presidente duas vezes em
encontro (1995 e 1997), uma vezes em congresso (1999) e uma quarta vez em
eleição direta (2001). Infelizmente, ele não reflete acerca da contradição
entre sua percepção de que isto seria algo “nada recomendável” e seus gestos.
O atenuante, claro, é a “percepção da maioria do
Partido” e da “Articulação”. Óbvio: não há maioria no mundo que não busque,
consciente ou inconscientemente, adotar regras e práticas com o objetivo de se
perpetuar.
Mas de que “maioria” estamos falando? Dirceu nos
diz que a Articulação obteve 43,64% dos votos, portanto não se tratava de uma
maioria absoluta. Dependia dos votos da Democracia Radical de Genoíno, que
obteve segundo Dirceu 8% dos votos.
Dirceu não informa, mas segundo a imprensa ele
obteve 54% dos votos na disputa da presidência no 2º Congresso. Portanto, 3% a
mais do que a soma das chapas que compunham a maioria.
E no primeiro PED, Dirceu venceu por 55% dos votos.
Portanto, seja pelo voto direto, seja pelo voto dos delegados, a maioria obtida
pela Articulação Unidade na Luta e por Dirceu sempre dependeu de duas coisas:
unidade interna na Unidade na Luta e alianças.
Na minha opinião, é isto que explica que, pouco a
pouco, a Unidade na Luta tenha assumido um funcionamento de “partido dentro do
partido”, com centralismo democrático de fato.
Contradizendo o discurso da Articulação dos 113,
criada nos anos 1980. Sem centralismo interno, a maioria estaria ameaçada. Mas
com centralismo interno, o que estaria ameaçado é o funcionamento do Partido,
pois na prática 22% do Partido poderia impor sua vontade sobre 78%.
Dirceu tem alguma noção disto? Óbvio. Fala algo a
respeito: pelo menos no primeiro volume das suas Memórias, não fala nada.
Voltaremos ao assunto na quarta parte deste texto.
IV)
Interrompemos
a parte anterior, com as reflexões de Dirceu na véspera do 2º Congresso do
Partido. Segundo ele, na página 306:
“Eu tinha convicção de só
alcançaria outro mandato com eleição direta, legitimando e cimentando uma
maioria partidária. Seria importante superar as amarras da disputa e das
eleições restritas, cada vez mais às tendências, inclusive à Articulação.”
“Persuadido do erro do 1º
Congresso, com suas teses de partido de interlocução, e da necessidade de criar
um ‘campo majoritário’ claramente sob nossa liderança, radicalizei: além de me
opor ao ‘Fora FHC’, propus a eleição direta e a formação da nova aliança que,
de certa forma, ‘distendia’ a Articulação.”
“A Articulação dos 113
exercera a maioria até então, mas estava evidente que sem uma aliança com
outras forças, sozinhos, não venceríamos, daí a ideia da criação do ‘campo
majoritário’ com outras tendências à esquerda e mesmo ao centro do espectro
ideológico e programático do PT.”
As
“lembranças” acima são muito curiosas. Se consultarmos a imprensa,
encontraremos Dirceu dizendo na época exatamente o contrário do que diz em
suas Memórias:
“vou trabalhar para
desbloquear o PT e acabar com essa história de campo majoritário e minoritário”
(a citação foi retirada de um texto publicado no dia seguinte a eleição de
Dirceu no 2º Congresso e por ser lida aqui: https://www1.folha.uol.com.br/fsp/brasil/fc2911199914.htm)
E,
forçando minhas lembranças, lembro que este discurso de “desbloquear” foi
utilizado à época com o objetivo de dividir a minoria, que no 2º Congresso se
dividiu em duas candidaturas: Milton Temer (32,7%) e Arlindo Chinaglia (12%).
Mas
as Memórias dizem que o objetivo real era compor um campo majoritário ainda
mais forte e ampliado. Objetivo que efetivamente se realizaria no futuro, com
desdobramentos que não foram saudáveis para o Partido.
Outra
curiosidade é que Dirceu fala da Articulação dos 113, não da Articulação
Unidade na Luta. Não é um detalhe, evidentemente: trata-se de uma
tentativa consciente ou inconsciente de legitimar, com base no passado, as
ações do presente.
A
questão é: no caso específico, falar da Articulação dos 113 serve para encobrir
uma diferença profunda entre a atitude da maioria partidária nos anos 1980 e a
atitude da maioria partidária que vai se consolidar sob a direção de Dirceu.
A
diferença, na minha opinião, reside no seguinte: o “campo majoritário” vai
adotar, pouco a pouco, uma dinâmica de partido-dentro-do-partido. Em
1999 os problemas decorrentes disto podiam ser apenas uma hipótese; hoje, em
2018, os problemas decorrentes disto estão no centro da crise vivida pelo PT.
Voltemos
a Dirceu, na página 306:
“Tarso assumiu a
candidatura como um corpo estranho (...) para a maioria das lideranças e à
militância. Aos poucos isso foi ficando claro e os incidentes foram aumentando
à medida que ele dava declarações e se articulava.
Ocorreu uma rebelião
espontânea e depois articulada em favor da minha permanência. Algo revelador da
artificialidade da pré-candidatura de Tarso e do despropósito de me substituir.
Sem que isso signifique que Tarso não tivesse legitimidade ou o direito de
pleiteá-la, mas não com o apoio da Articulação.”
Confesso
que não tenho lembrança disto que Dirceu fala, mas lembro muito bem do recuo de
Tarso na defesa do “Fora FHC”.
Entretanto,
se é verdade o que diz Dirceu, que a candidatura de Tarso foi articulada
originalmente por Lula, caberia uma reflexão mais sistemática sobre as relações
entre Lula, Dirceu e a Articulação. Mas esta reflexão não aparece,
curiosamente.
Na
mesma linha das curiosidades, Dirceu omite uma referência que julgo importante,
acerca do envolvimento direto de Cristovam Buarque na proposta de eleições
diretas para a presidência nacional do PT.
Seja
como for, fica claro que o objetivo das “diretas” era consolidar o poder do
grupo dirigente do Partido; “arejar o partido” (308), a democratização da vida
interna, era um argumento, mas não o objetivo real.
Na
página 307, em mais uma demonstração da obsessão (insisto na palavra) de Dirceu
com a Articulação de Esquerda, ele informa:
“Enfraquecida, a
Articulação de Esquerda obteve 20,85% e a Democracia Socialista, 9,86%. Era a
retomada da hegemonia da Articulação, que ainda dialogava e se aliava em questões
centrais com o Movimento PT (12,7%) e PTLM (2,85%).”
Note
que Dirceu não “monitora” o fortalecimento ou enfraquecimento de
nenhuma outra tendência, salvo a sua própria e a AE.
Mas
o mais importante deste capítulo, sem dúvida, é a reflexão de Dirceu sobre o
“Fora FHC”. Segundo ele, nas páginas 307 e 308, a agenda oculta dos que
propunham isto era:
“derrubar o governo
FHC nas ruas. Mas essa tática nunca foi colocada e, além de inviável, seria uma
irresponsabilidade e uma aventura que poderia custar ao PT e ao país uma ou
duas décadas de retrocesso democrático”.
É
curioso ler isto, em 2018. Independente da discussão sobre o que propunha, de
fato, os que defendiam o Fora FHC, é evidente que há um fio de continuidade
entre a postura de Dirceu frente ao governo FHC, a postura que o governo
Lula adotaria diante da herança maldita que recebera e o espaço que o PSDB teve
para se rearticular, fazer oposição e finalmente dirigir o golpe contra nós em
2016.
Aliás,
sobre o tema da hegemonia tucana, Dirceu dá opiniões totalmente dispares.
Na
página 300, Dirceu dirá em 1998 “o ciclo de FHC não acabara e a hegemonia
política e cultural das ideias neoliberais persistia”.
Já na
página 309 ele diz que:
“a despeito de todo
o alarido da mídia e da maioria situacionista no Congresso, o governo FHC nunca
hegemonizou – com sua doutrina da globalização dependente, versão tupiniquim
para o neoliberalismo—a maioria da sociedade, cuja memória histórica é
amplamente democrática, nacionalista e por um estado de bem estar-social”.
Nesta
questão, como em outros temas (o da luta armada, por exemplo), Dirceu faz
afirmações absolutamente contraditórias. Não se trata, a meu ver, de um
problema de revisão, nem apenas de inconsistências pontuais. Tem relação com
algo, falando do Partido Comunista, um autor chamou de “duas almas”.
É
isso que permite a Dirceu, sem dar-se conta da contradição, ziguezaguear de
afirmações recuadas até frases do tipo:
“Desde 1998, meu sonho
era eleger Lula presidente e fazer do PT um partido nacional, de trabalhadores
e excluídos, alternativa de governo, aberto às alianças e com um programa de
ruptura do neoliberalismo. Além de democrático e popular, capaz de pagar a
dívida social histórica e abrir caminho por reformas estruturais, a razão de
ser e de luta de minha geração.”
Ainda
neste capítulo, nas páginas 311 e 312, Dirceu fala brevemente sobre o
assassinato de Toninho e Celso Daniel. Sobre Toninho, ele afirma que “foi
executado por motivos políticos claros”. Quais? Não diz.
Em
seguida fala do “bárbaro assassinato” de Celso Daniel e conclui ser “muita
coincidência, quase inverossímil que, em quatro meses, dois dos principais
prefeitos do PT tenham sido mortos”.
Vale
insistir nisto: de 2002 até 2016, o PT esteve na presidência da República.
Dirceu lá esteve até 2005. Que esforços foram feitos para esclarecer ambos
episódios e o que foi descoberto?
Em
seguida o texto trata da sucessão de FHC, do PED e do encontro nacional do PT
em Recife. Notem que, como é natural em se tratando de lembranças, a sequência
dos temas não corresponde a cronologia dos fatos. Toninho estava vivo quando do
PED e Daniel foi ativo no encontro de Recife. Para quem lê as Memórias,
esta é uma dificuldade a ser levada em conta.
Na
página 314 Dirceu apresenta um relato e um balanço do PED. Diz que chegou a
“defender que simpatizantes do PT votassem, um exagero só como força de
expressão”. Registra, desta vez sem comentários, que Júlio Quadros
da Articulação de Esquerda, obteve 15,17% dos votos. E arremata assim:
“Era uma reviravolta na
dinâmica das tendências e no debate petista, criticado por coincidir o debate
das teses com a eleição direta e de levar-nos a copiar o sufrágio universal. O
PED, processo de eleição direta, não só democratizou a disputa como também deu
voz ao filiado sem tendência. Os vícios apontados no PED, deficiência no debate
e abuso do poder, seja dos mandatos, seja do aparelho partidário, seja
financeiro, já existiam e poderiam acontecer tanto na eleição direta como na
indireta, assim como a deficiência e a ausência de debate, vícios a serem
combatidos independentemente da forma da eleição do presidente. A verdade nua e
crua residia no seguinte: as tendências se opunham e se opõem à eleição direta
porque perderam o poder de restringir o PT a um partido exclusivo de
militantes, congelando e ossificando a vida partidária. Era a concepção, sempre
presente, de partido de vanguarda.”
Certas
hábitos de linguagem são perdoáveis quando se trata de lembranças, de memórias,
de uma autobiografia.
Por exemplo, falar das "tendências", como se as tendências fossem os outros e quem fala, falasse em nome do partido como um todo.
Outro exemplo, falar de "verdade nua e crua", sem preocupar-se em provar a afirmação.
Por exemplo, falar das "tendências", como se as tendências fossem os outros e quem fala, falasse em nome do partido como um todo.
Outro exemplo, falar de "verdade nua e crua", sem preocupar-se em provar a afirmação.
Vejamos:
-para
enfrentar o golpe de 2016, nos fez imensa falta um partido mais organizado, com
uma estrutura militante capaz de mobilizar a sociedade. Esta falta não teria
relação direta com o PED?
-observando
o que ocorreu desde 2001 até agora, não seria verdade que o PED reduziu o poder
do filiado a votar uma vez a cada X anos?
-não
seria verdade que o PED aumentou o poder das cúpulas das tendências, afinal são
elas que montam as chapas, são elas que decidem quem fará parte das direções e
das delegações?
-finalmente,
por acaso as direções resultantes do PED são superiores as que resultavam dos
encontros partidários? E a resposta para esta questão não teria alguma relação
com o método de eleição?
-o
modelo de que o presidente do Partido é eleito em votação separada criou uma
instância (“a presidência do Partido”). Esta instância a parte certamente foi
funcional para Dirceu gerenciar o PT e lidar com Lula. Mas quando Dirceu deixou
de ser presidente do Partido, o modelo institucional do presidente eleito à parte
não teria se convertido num problema inclusive para os que o criaram?
Voltaremos
ao assunto na quinta parte deste texto.
V)
O
capítulo 24 das Memórias de José Dirceu começa tratando
das eleições presidenciais de 2002: Lula candidato, Alencar na vice e Duda
Mendonça na campanha.
Sobre
Duda Mendonça, um episódio interessante é, salvo engano, omitido no livro: o
primeiro programa de TV, com grávidas e bandeiras brancas, que gerou uma
disputa entre Dirceu e Ozeas Duarte, então secretário nacional de comunicação
do PT, além de mostrar todos os riscos embutidos na contratação de um
marqueteiro como Duda. Aliás, a polêmica ocorrida a respeito não merece
destaque nas Memórias, isto apesar do deprimente papel que
este senhor desempenhou contra Lula na CPI em 2005.
As
duas primeiras páginas falam da operação da Polícia Federal (grupo Serra)
contra Roseana Sarney, com direito a uma rápida e nada esclarecedora menção ao
caso dos “aloprados” de 2006.
Em
seguida temos José Alencar, ocupação da fazenda de FHC pelo MST e a relação de
“convivência de respeito” (sic) com Roseana Sarney e seu pai.
Segundo
Dirceu, na página 320:
“Era complicado sustentar
tal atitude no PT e eu não me arrependo, o tempo me deu razão. Sarney não
faltou com Lula e seus governos. Sem ele, jamais teríamos maioria no Senado”.
Depois
se fala da montagem da coordenação de campanha, especialmente sobre Gushiken; e
sobre o encontro nacional do PT, realizado em junho de 2002, quando foi
aprovado o nome de José Alencar para vice de Lula.
O
capítulo 25 fala da “Carta ao povo brasileiro”. Dada a lenda que foi criada a
respeito deste texto, as lembranças de Dirceu são extremamente interessantes.
Diz
na página 325 que Palocci e Gushiken foram “seus maiores defensores” e que
Mercadante “se apressou em apoiar a ideia”, mas que Dirceu e Lula ficaram “com
um pé atrás”.
Na
página 326, Dirceu diz que leu e não gostou da primeira versão, escrita por
Palocci e Mercadante. Teria deixado claros os riscos: “não me opunha à carta,
mas a temia”. E agrega o seguinte, na página 326:
“Sinceramente, até hoje
não dou à carta a importância que muita gente atribui. Lula venceu com ela, mas
venceria sem ela. Não houve nenhuma virada nas pesquisas de opinião por causa
da mensagem e nem cessaram a especulação e as pressões dos mercados. Era mais
uma carta de intenções para início de governo. Não poderia esgotar o que era e seriam
nosso governo e seu programa.”
“Era um freio a muitas
políticas viáveis no primeiro momento e um passe livre para a estabilidade, a
qualquer preço, e para a garantia de prioridade ao equilíbrio fiscal com
superávit.”
“Eu preferia o anúncio de
uma nova política de desenvolvimento. E Lula iniciaria o governo, percebendo a
armadilha do ajuste fiscal a seco, priorizando a luta contra a pobreza, o Fome
Zero, a valorização do salário mínimo e da Previdência.”
“Nosso problema não era o
‘mercado’, mas Ciro Gomes, Anthony Garotinho, José Serra e a campanha. No
fundo, subestimávamos o cansaço do PSDB e do seu discurso. Serra não era FHC e
nem tinha o real, o PFL, o PMDB, o PTB. Lula e o PT eram uma força nova em
crescimento, sintonizada com a memória histórica e com a vontade da maioria dos
trabalhadores. De toda forma, a carta desempenhou seu papel e tirou o discurso
do adversário.”
Acredito
que Dirceu possa ter pensado isto, na época. Mas observando de agora, não é
possível subestimar o papel negativo que a Carta aos Brasileiros teve ao
limitar a ação do governo. E se for verdade o que diz Dirceu, então a conclusão
é que fizemos um sacrifício maior do que o necessário. E se levarmos em conta o
êxito obtido entre 2006 e 2010, a conclusão é que as limitações auto-impostas
pela Carta nos custaram 2003, 2004 e 2005. Portanto, não é algo menor, como de
certa maneira Dirceu tenta nos fazer crer.
Em
seguida, Dirceu relata em quatro páginas a viagem que ele fez aos Estados
Unidos, assunto acerca do qual ele próprio remete para a leitura do livro de
Matias Spektor: 18 dias: Quando Lula e FHC se uniram para conquistar o
apoio de Bush.
Há
passagens divertidas, que revelam menos sobre os fatos e mais sobre o
personagem. Cito algumas:
(...) “não falo inglês.
Sou da geração em que o francês era a língua universal e aprendi espanhol em
Cuba”
(...) ”minha viagem durou
apenas quadro dias – mas foram quadro dias de surpreendente sucesso”
(...) “os americanos
ficaram realmente perplexos. Não esperavam ouvir o que um ex-guerrilheiro de
esquerda estava falando.”
(...) “o silêncio foi
quebrado pelo deputado republicano, que perguntou: ‘Mas ficou mais bonito
depois da plástica, ou não?’”
Esta
última frase foi dita, é bom dizer, noutra viagem de Dirceu aos Estados Unidos,
em 2005.
Outra
passagem do capítulo é dedicada a relação de Dirceu com FHC, resumida assim na
página 331:
“Respeitoso comigo, quase
carinhoso, atencioso e educado, firme nas convicções, consciente de minhas
opções e de nossas diferenças, mas sem arrogância. Sou grato a ele pelo
respeito, que era recíproco. A luta política depois nos colocaria em extremos,
mas a história ainda não está concluída.”
Ao
ler passagens como essa, recordo-me de uma biografia que li acerca de Salvador
Allende, em que o autor comenta como a convivência de socialistas e comunistas
no parlamento, com líderes da direita chilena, fez a esquerda baixar a guarda e
achar que seus adversários não passariam de determinados limites.
O
próprio Dirceu relata, nas páginas 332 e 333, um exemplo de ultrapassagem de
limites, quando o então presidente do PT foi acusado como responsável por uma
agressão a então governador de São Paulo Mário Covas. Diz ele: ficou a “mágoa”
pela “manipulação de um episódio que não teve rigorosamente nada a ver com a
agressão sofrida pelo governador”. O termo “mágoa” só reforça o que disse no
parágrafo anterior.
O
capítulo termina com uma nova reflexão sobre a Carta ao Povo Brasileiro, desta
vez menos condescendente. Depois de falar do assalto praticado pelo capital
financeiro contra a economia nacional e o povo brasileiro, Dirceu
afirma na página 334 o seguinte:
“Esse desafio estava
colocado na Carta ao Povo Brasileiro. De algum modo, a chantagem e o terror
funcionaram contra nós. Frente ao terrorismo midiático e financeiro, reagimos
com a aplicação de uma vacina que foi, justamente, a ‘carta compromisso’,
quando nosso comprometimento era com a reforma social e econômica.”
“A questão era: vamos dar
um passo atrás? Ou seja, a Carta ao Povo Brasileiro, o ajuste fiscal, os juros
altos e o superávit, até lograrmos as condições para as reformas estruturais?
Vamos trilhar o mesmo caminho que FHC e Malan? Essa será a linha divisória
entre nós no primeiro governo Lula, anda que o tema das reformas e do caminho
não dependesse só da nossa decisão política.(...) Como Lula reagiria a esse
dilema? E nós que éramos o núcleo do governo, a coordenação política, a maioria
do PT? Seríamos capazes de assobiar e chupar cana ao mesmo tempo?”
Como
em outros temas abordados no livro, Dirceu emite opiniões bastante díspares
sobre a relevância prática da Carta aos Brasileiros.
É
particularmente interessante ler o seguinte:
“Vamos trilhar o mesmo
caminho que FHC e Malan? Essa será a linha divisória entre nós no primeiro
governo Lula.”
Ora,
esta era exatamente a crítica que a esquerda do PT fazia. Como em outros
episódios, Dirceu verbaliza críticas que, quando feitas pela boca de terceiros,
ele ataca.
É
como se ele dissesse que no governo esta poderia ser a linha divisória entre
nós, mas no partido todos deveriam estar alinhados. Consequência prática da
lógica segundo a qual o partido e o governo são ambos parte do Estado.
Na
próxima parte, trataremos dos capítulos das Memórias que
abordam o período 2002 a 2005.
VI)
O
capítulo 26 das Memórias de José Dirceu inicia falando
do que antecedeu a posse de Lula.
Há
várias passagens interessantes acerca dos conflitos abertos e velados entre
Lula, Dirceu, Palocci, Berzoini e outros personagens.
Por
exemplo, a “primeira grande decepção com Lula”, que foi este ter indicado
Genoíno para discursar na comemoração da vitória em São Paulo, dia 27 de
outubro de 2002; e de ter informado Dirceu que ele não falaria, através de
Favre, então marido de Marta Suplicy.
Uma
das passagens que considero mais reveladoras acerca do papel que Dirceu
cumpriria no governo, malgré lui ou não. Está na página
339:
“Lula sabia que a dose
era cavalar: Henrique Meirelles, deputado do PSDB, banqueiro do Bank Boston.
Então me indicou no mesmo dia. Havia um simbolismo na nomeação. Situava o
partido no centro do governo ao lado do presidente. Representava, de certa
forma, a militância petista, a esquerda, os movimentos sociais. Afirmava o
comprometimento com o partido e com minha história e com a luta pré-PT e de uma
herança de luta pelo socialismo. Pelo menos era o que se esperava de
mim.”
A
ironia é que durante o período em que esteve no governo, a política de Palocci
foi hegemônica. E depois que Dirceu caiu do governo, a política de Palocci
perderia peso até ser substituída por outra, mais próxima daquela defendida
pelo Partido.
Portanto,
na prática, Dirceu foi mais “simbólico” e Meirelles foi, digamos, mais efetivo.
Há
uma série de outros episódios, impossível resumir aqui, acerca da composição do
primeiro ministério, acerca de como e porque Genoíno assumiu a presidência do
Partido, acerca do acúmulo de funções por parte de Dirceu no governo, acerca da
relação com o PCdoB e, principalmente, acerca da negociação com o PMDB.
Para
além dos argumentos políticos utilizados à época, retrospectivamente Dirceu
considera que (página 347) “a farsa do Mensalão teria sido evitada com a
aliança prioritária com o PMDB”.
Depois
de relatar a posse, ele detalha sua equipe no governo. Elogia José Antonio Dias
Toffoli: “sólida formação”, “não vasta experiência junto ao PT”, “não poderia
ter feito escolha melhor”, “nunca me faltou”, “competência e capacidade de
trabalho”. E explica a origem de Waldomiro Diniz, que “seria alvo do primeiro
escândalo do nosso governo e também da primeira tentativa de me tirar do
poder”.
Fala
também de seus colegas de ministério. Dedica a Palocci o seguinte elogio, nas
páginas 353 e 354:
“franco, paciente,
excelente gestor, Palocci é, antes de mais nada um político. Médico, tornou-se,
pela exigência do cargo, um economista autodidata. E dos bons, bem assessorado,
com uma equipe de primeira, e evidentemente com suas ideias das quais eu
geralmente divergia e buscava tensionar sem passar a fronteira da ‘ordem
presidencial’.”
Não
duvido que Dirceu pensasse isso sobre ambos, na época. Mas não há como não
sentir estranheza, ao ler isto hoje, depois de tudo o que ocorreu, depois de
Toffoli e de Palocci terem mudado de lado de maneira brutal.
No
capítulo 27, Dirceu relata seu conflito com Palocci, que teria sido arbitrado
por Lula em favor do segundo.
Ao
chegarmos aqui, uma pergunta surge, sobre a qual não há nenhum sinal no livro:
não teria sido melhor, para o Partido e para o governo, se Dirceu ficasse como
presidente do Partido e, por exemplo, assumisse a presidência da Câmara dos
Deputados?
Voltando
ao livro, Dirceu relata uma conversa dele com Palocci, na presença de Lula,
onde “o pau comeu”. Está na página 360:
“uma dura discussão com
queixas e acusações mútuas. Palocci, magoado comigo, alegando que eu usara
‘argumento sigilosos, em discussão pública’. No fundo, acusava-me de
‘desonestidade intelectual’, um nome educado, como ele, para ‘traição’ ou
‘sabotagem’. No fundo era sua insistência no sigilo e sua obsessão por decisões
monocráticas que fossem tomadas por ele e sua equipe, como se fossem os únicos
qualificados para tanto. Do outro lado, o velho método de discutir a forma e
não o conteúdo da questão e da divergência, que terminou abafado pelo modo como
a discussão se dera, pública e envolvendo temas em tese sigilosos, na verdade
nem sempre.”
Este
relato é deveras interessante.
Primeiro,
por uma questão menor: Dirceu reclama do “velho método de discutir a forma e
não o conteúdo”, que é exatamente o que ele faz em seu livro, ao reclamar da
suposta violência verbal que David Capistrano e outros lhe dedicaram em 1993.
Segundo:
embora as Memórias estejam obviamente corretas ao
informar que Lula, naquele momento, arbitrou em favor de Palocci, é preciso
explicitar algo que, salvo engano, as Memórias não explicitam com o destaque
que pelo menos eu penso ser necessário. A saber: ao decidir ficar no governo,
Dirceu se tornou corresponsável pela política defendida por Palocci e avalizada
por Lula. Aliás, isto nos foi de certa forma dito por ele, em
reunião mantida em seu gabinete, na minha presença e de Iriny Lopes e Luciano
Zica: o que ele buscava era uma inflexão progressista nos marcos de uma
política conservadora.
Terceiro,
uma questão maior: as divergências de fundo sobre a política econômica eram
dirimidas e neutralizadas no ambiente do governo. No partido, na bancada e nos
movimentos sociais, as críticas eram algumas vezes atacadas como lesa pátria.
Esta atitude resulta da concepção expressa por Dirceu mesmo, quando fala da
relação entre governo e partido, ambos instituições de Estado.
O
restante do capítulo é consumido por um relato sobre o que foi feito de
positivo no governo, apesar das limitações.
O
capítulo 28 também aborda as realizações do governo. Chama a atenção a defesa
da reforma da previdência, feita nas Memórias com a mesma ênfase com que foi
defendida, por Dirceu e muitos outros, em 2003. Segundo ele, “Lula fez a
reforma na medida exata”.
Os
argumentos são os conhecidos: ataque aos privilégios. Podemos concordar ou
discordar deste argumento. Mas como estamos em 2018, não há como debater o tema
sem perguntar: politicamente falando, valeu a pena? Valeu a pena inaugurar o
governo Lula com esta batalha? Ela era mesmo necessária? Ou fazia parte das
decorrências implícitas na Carta aos Brasileiros? Estas perguntas não são
feitas.
Mas
de alguma forma Dirceu responde a questão, quando afirma, na página 372, o
seguinte:
“durante esses embates –
com forte oposição interna e com seu uso para a luta interna e na sociedade
contra nós, a maioria que conduzira e elegera Lula – fiquei convencido da
necessidade de elaborarmos uma narrativa para nosso governo e levá-la ao PT, a
sua militância, ao primeiro e segundo escalões do governo, à sociedade.
Impunha-se um projeto de desenvolvimento nacional e capaz de retomar o
crescimento, mas com distribuição de renda”.
Recomendo
que leiam de novo o parágrafo anterior. O problema apontado não é de
“narrativa”, mas sim da necessidade de “outra política”. E quando se fala de
lutar interna contra “a maioria que conduzira e elegera Lula”, está reafirmada
a narrativa que só um setor do Partido tinha o direito legítimo de reivindicar
as vitórias e avanços. Motivo pelo qual um setor do Partido tinha o direito de
fazer críticas; as mesmas críticas, noutras bocas, eram apenas “luta interna”.
Este jeito com o qual Dirceu raciocina está na origem de muitos dos graves
problemas que tivemos/teríamos.
VII)
Na
página 373 das Memórias, José Dirceu diz o seguinte:
“Dentro do PT, do
governo, da esquerda, com os aliados e na disputa na sociedade, assumi o papel
de traduzir esse projeto e defende-lo – e que faço até hoje – contestando duas
versões: 1) éramos uma continuidade de FHC mais o social; 2) ou a visão
interna, segundo a qual nossa política e objetivos estavam hegemonizados pela
burguesia, sua ideologia e interesses. Era a percepção da esquerda do partido
e, depois, a do PSOL e do PSTU.”
Este
parágrafo tem enorme importância para compreender como Dirceu vê a si mesmo e
como vê seus antagonistas.
Vamos
por partes: ele assume o papel de traduzir e defender “esse projeto”, “dentro
do PT”, dentro “do governo”, dentro “da esquerda”, “com os aliados e na disputa
na sociedade”.
Convenhamos,
para alguém que reclama nas Memórias estar assoberbado
de trabalho, trata-se de uma tarefa titânica.
Mas
o problema não é apenas do volume de trabalho. A questão é: um indivíduo que se
propõe a cumprir todos estes papéis está chamando para si, pessoa física, o
papel de um partido político.
Em
segundo lugar: “esse projeto” que Dirceu se propõe a defender não é aquele que
ele expos na página 311 (um programa de ruptura do neoliberalismo, democrático
e popular, capaz de pagar a dívida social histórica e abrir caminho por
reformas estruturais). “Esse projeto” que Dirceu se propõe a defender é
uma mediação com a Carta aos Brasileiros, com Palocci.
Que
Dirceu o defenda, é uma opção dele. Mas seria preciso deixar claro que não se
trata da “ruptura do neoliberalismo”. E, portanto, ter maior nível de
tolerância com as críticas vindas da esquerda.
Aliás,
Dirceu que se considera um não stalinista, deveria perceber melhor a
importância de administrar com paciência as tensões entre o que a correlação de
força permite fazer e o que são os objetivos de médio e longo prazo.
Voltemos
ao que é dito na página 373, onde Dirceu se propõe a contestar duas versões:
“1) éramos uma
continuidade de FHC mais o social;”
“2) ou a visão interna,
segundo a qual nossa política e objetivos estavam hegemonizados pela burguesia,
sua ideologia e interesses. Era a percepção da esquerda do partido e, depois, a
do PSOL e do PSTU.”
Suponho
que a primeira versão é a sustentada por setores do PSDB e da mídia. Versão
esta que muitas vezes se apoiou na continuidade da política monetária e nas
inesquecíveis declarações de Palocci em Comandatuba.
Já a
segunda versão, segundo Dirceu, é a “percepção da esquerda do partido e,
depois, a do PSOL e do PSTU”.
A
maldade do argumento é explícita: coloca no mesmo saco a esquerda petista e,
“depois”, as posições do PSOL e do PSTU.
Além
de maldoso, o argumento é falso. Em primeiro lugar, embora seja comum falar da
“esquerda petista”, basta olhar os encontros e congressos partidários, as
politicas implementadas nos governos e nas bancadas, bem como os documentos e
resoluções, para saber que na verdade há várias esquerdas.
Em
segundo lugar, o PSTU foi fundado em 1994. Apoiou a candidatura de Lula em 1998
e, se a memória não falha, no segundo turno de 2002. Desde então fez oposição
radical aos governos Lula e Dilma, considerando instrumentos do imperialismo e
do capital. Posições que não tem absolutamente nada que ver com as críticas da
esquerda petista.
Já o
PSOL foi fundado em 2004. Lançou candidaturas próprias em 2006, 2010 e 2014,
que no segundo turno recusaram apoiar as candidaturas do PT.
Nas
eleições de 2018 o PSOL lançou um candidato recém-filiado, Boulos, que adotou
um discurso mais matizado em relação aos governos Lula e Dilma. Mas mesmo
Boulos disse, há não muito tempo, que o petismo não era de esquerda. O que isso
tem que ver com as críticas da esquerda petista??
A
minha impressão é que Dirceu adota uma técnica retórica (“a baleia vive no mar,
falemos no mar”) que, ao associar a esquerda petista com PSOL e PSTU, deixa
apenas para ele o direito de criticar (as vezes com os mesmos argumentos da
esquerda petista) os erros dos governos Lula e Dilma.
Agora
vamos ao mérito: Dirceu diz que a esquerda petista defende que “nossa política
e objetivos estavam hegemonizados pela burguesia, sua ideologia e interesses”.
Voltemos
atrás no livro de Dirceu e vejamos o que ele mesmo diz na página 334 acerca da
Carta aos Brasileiros:
“Vamos trilhar o mesmo
caminho que FHC e Malan? Essa será a linha divisória entre nós no primeiro
governo Lula.”
Isto
que Dirceu afirma equivale a dizer que um setor do PT, continuando a ser do PT,
continuando a representar os trabalhadores, estava admitindo implementar uma
política que expressa os interesses da burguesia. Noutras palavras: “estavam
hegemonizados pela burguesia, sua ideologia e interesses”.
Noutros
termos: a segunda posição, que Dirceu atribui a esquerda petista (o que é
verdade), ao PSOL e ao PSTU (o que não é verdade), é a mesmíssima posição que
ele mesmo explicitou em seu livro.
Aqui
vai ficando claro, na minha opinião, por qual motivo Dirceu tem verdadeira
obsessão com e contra a Articulação de Esquerda.
Para
encerrar esta parte dos comentários, cito uma passagem do livro do próprio
Dirceu, em que fica mais claro o que estamos querendo dizer.
Na
página 373, ao falar da batalha do salário mínimo, ele diz que nossa
administração defendia 300 reais, Palocci e equipe discordavam e, “no final das
contas, chegou-se aos R$ 260,00, produto de acordo entre Lula e Palocci.”
Notem
a frase: produto de acordo entre Lula e Palocci. Entre
o presidente eleito e um ministro nomeado. Este é um bom exemplo da “hegemonia
da burguesia, sua ideologia e seus interesses” no governo.
Palocci
foi, durante muito tempo, o instrumento de outra classe em nosso meio. Esta foi
sua traição.
Dirceu
abre o capítulo 29 de seu livro dizendo o seguinte:
“Minha angústia crescia
em 2004. Os rigores do ajuste, do contingenciamento, explodiam em crises aqui e
ali. Eram oportunidades perdidas e o tempo político corria contra nós. Após
dezoito meses, era imprescindível destravar a economia, o crédito e reduzir os
juros. Preocupava-se com a política, essa senhora do destino. Expressei isto
numa cerimônia, abandonando o discurso por escrito. O que fiz com boa intenção
e um pouco para mobilizar meus apoios e meu público.”
Não
sei que discurso é esse, onde e quando foi feito. E suponho que o “preocupava-se”
é um erro de digitação, assim como uma passagem neste capítulo em Dirceu fala
de si mesmo em terceira pessoa (página 384).
O
importante, penso, é que o parágrafo acima deixa claro aquilo que dissemos
antes: “esse projeto” defendido por Dirceu é o mesmo que fazia crescer a sua
“angústia”. Portanto, Dirceu mesmo reconhece que algumas das críticas da
chamada esquerda do Partido faziam sentido e não eram coisa do PSTU nem do
PSOL.
A
partir daí, o livro relata a CPI do Banestado e desemboca na seguinte frase: “o
maior erro que cometi nos trinta meses de governo” foi ter acumulado a Casa
Civil e a Articulação Política.
Esta
é a opinião de Dirceu. Pessoalmente, acho que ele deve ter cometido erros muito
maiores que esse. Mas que ele localize neste tema seu “maior erro” em trinta meses
revela uma certa visão de mundo.
Diz
ele na página 382 que ao acumular as duas funções:
“subestimou a importância
da articulação política, principalmente a relação com os partidos, líderes, e
com os deputados e senadores” (...) “No fundo o que me movia era a angústia de
ver a consolidação de uma política conservadora na Fazenda e o rumo geral do
governo e da relação com o PT”.
Mais
uma vez a tese que Dirceu expulsou pela porta, voltou pela janela.
A
política conservadora na Fazenda contaminava todo o governo; esta política
beneficiava o setor financeiro; e portanto correspondia a hegemonia do setor
financeiro por sobre o governo. Exatamente a tese que, como citamos antes,
Dirceu se dispunha a combater.
A
pergunta é: isto podia ser resolvido no âmbito da articulação política?
Óbvio
que não. O máximo que se podia obter neste terreno era apoio à política que
vinha sendo executada, não uma mudança de política.
Portanto,
o que Dirceu na verdade está dizendo é que a aplicação da política conservadora
na Fazenda estava fazendo o governo perder apoios no PT e fora do PT. Problema
que podia ser minorado, mas não resolvido no âmbito da articulação política.
Donde,
acho eu, seu “maior erro” não foi ter acumulado funções, mas sim ter aceito ser
defensor dentro e fora do Partido, no governo e na sociedade, de uma política
que, ao menos em parte, correspondia a interesses que não eram os nossos e que,
portanto, precisava ser combatida para ser alterada.
Ou
seja: era preciso que o PT fosse a esquerda da coligação de centro-esquerda e
agisse como tal. A atitude de Dirceu contribuiu para bloquear isto. É
paradoxal, mas tudo indica que este é a “verdade nua e crua”.
Mas,
ao mesmo tempo, Dirceu era visto como alguém que poderia ameaçar a continuidade
daquela política conservadora. Para exagerar o que estou querendo dizer, é como
se por um lado Dirceu tivesse minado os apoios que poderia ter na esquerda; e,
por outro lado, não tinha os apoios suficientes e necessários na direita.
Este
era o cenário. De onde viria o tiro, é um detalhe, penso eu. O tiro, como
sabemos e Dirceu relata, envolveu primeiro Waldomiro Diniz, num episódio que
as Memórias analisam detalhadamente.
Dirceu
conclui o capítulo 29 falando e criticando Aldo Rebelo como ministro da
Articulação Política. E afirmando que havia “sinais de crise no ar”.
No
capítulo 30, Dirceu dá sua versão sobre a divisão do PT na eleição do
presidente da Câmara dos Deputados, sobre a eleição de Severino Cavalcanti, uma
rápida opinião sobre a questão das obras de infraestrutura, além de várias
páginas sobre os arquivos da ditadura e a relação com as forças armadas.
O
capítulo termina na página 404, com um longo parágrafo que reproduzo a seguir:
“Nos trinta meses em que
permaneci no governo, sempre me coloquei na posição de petista. Sabia da
expectativa e da minha responsabilidade com os petistas e, mais do que com
eles, com os eleitores do PT e de Lula. Colocava-me também na condição de
militante da esquerda socialista, internacionalista e revolucionária, e de
sobrevivente da luta armada de resistência à tirania e herdeiro dos sonhos dos
que haviam caído em combate. De minha formação política e cultural, de nossa
história de nação e povo, trazia o sentimento e o compromisso com os
explorados, os deserdados e com os trabalhadores.”
Acho
que compreendo os sentimentos que movem Dirceu a escrever isto.
Mas
o fato relevante está no parágrafo anterior a este, na mesma página 404. Nas
palavras de Dirceu: no tema dos arquivos da ditadura e da punição de seus
crimes, “continuamos na contramão da história”.
O
capítulo 31 trata da defesa nacional, do combate ao narcotráfico e ao crime
organizado, da relação entre as forças armadas na América do Sul, do
judiciário, da relação com Márcio Thomas Bastos, dos contatos políticos de
Dirceu com diversos personagens políticos, da política internacional do PT, da
presença de Dirceu no enterro de Arafat, nas negociações da Alca, do Haiti e de
Cuba.
Já o
capítulo 32 trata do chamado mensalão. Começa na página 420 com a seguinte
afirmação:
“No final de 2004, ainda
tomado por uma mistura de cansaço, decepção e angústia, comecei a me indagar se
não serviria melhor ao governo como deputado e militante, percorrendo o Brasil
e mobilizando a militância. Minha intuição detectava que estávamos expostos e
divididos, que faltava mobilização para sustentar o governo, por demais
dependente de uma base parlamentar de centro-direita e altamente instável.”
Como
já foi dito antes, pelo próprio Dirceu, a origem do problema estava na política
econômica liderada pela Fazenda. Portanto, a solução do problema dependia de
mudar esta política. Sem isto, qualquer mobilização giraria em falso.
Entretanto,
se este era o problema, então a indagação feita por Dirceu caberia ter sido
feita em 2002. Como deputado, líder da bancada, presidente da Câmara e do
Partido, ele poderia ter cumprindo um duplo papel: defender e empurrar o
governo, no sentido de mudar de política.
Por
razões que só ele pode explicar, mas que eu suponho estarem ligadas a visão que
ele tinha sobre o papel do partido e do governo, ele aparentemente não
considerou esta hipótese. Com isso, se viu diante de uma armadilha: ser o representante
impotente da ala esquerda do governo e no governo.
Na
mesma página 420, Dirceu diz o seguinte sobre a situação:
“vinha se agravando, seja
pela política econômica, para além do necessário monetarista e conservadora,
seja pela reforma da Previdência, caso típico da miopia da nossa esquerda,
defendendo privilégios da alta cúpula do setor público.”
As
frases acima são típicas do raciocínio que Dirceu fazia na época:
a)a
política econômica podia ser monetarista e conservadora, o erro estava em ser
“além do necessário”;
b)os
danos da reforma da previdência deviam-se a miopia da esquerda, e não a falta
de sendo de iniciar um governo de esquerda travando uma batalha contra uma
parte de seu eleitorado e base social.
Dirceu
era, como fica claro acima, prisioneiro dos limites da política implementada
pelo governo. Política que não era a dele, mas que ele aceitou voluntariamente
defender. Política que ele queria mudar, mas não através do combate explícito,
público e partidário. No âmbito psicológico, o resultado deste melê só podia
mesmo ser cansaço, decepção e angústia. No âmbito político, seria uma
verdadeira tragédia grega.
E as
razões de fundo da tragédia são expostas pelo próprio Dirceu, na mesma página
420:
“Havia – e ainda há – um
erro estratégico de avaliação: a suposição de que a oposição –e não só a
partidária – aceitava a vitória de Lula em 2002 e respeitaria as regras
democráticas e a alternância de poder. Pior , subestimávamos o uso pelos
oposicionistas –PSDB a frente—do aparato policial e judicial, o que ocorria de
forma ilegal e “legal”. Contudo, nosso mais sério engano versava sobre o papel
da mídia na formação do “clamor popular”, a opinião pública – e não a opinião
pública – modelando a “pressão popular”.
A
pergunta é: de quem era esse “erro estratégico de avaliação”?
Era
um erro de todo o partido? Ou era um erro de um setor do partido?
Ademais,
será que a base do tal erro estratégico não estaria em afirmações como aquela
interpretação que Dirceu faz acerca das resoluções do 5º encontro nacional, por
exemplo a afirmação de que “a conquista do poder pelo voto, pacífica, era o
caminho da luta pelo socialismo”?
Entre
minhas lembranças de Dirceu, está uma vez em que o entrevistei para o jornal Brasil
Agora. Durante a conversa que mantivemos, ele apresentou uma hipótese:
a de que teríamos governos progressistas, sucessivamente mais avançados, até
que tivéssemos um governo democrático e popular etc.
Pode
ser que minha lembrança não seja exata, mas esta teoria bizarra acerca de “governos
cada vez mais progressistas até que” tem relação com os erros cometidos, pelo
seguinte: não se leva em conta que o outro lado não vai aceitar e, antes que se
ultrapasse o limite do não retorno, vai operar para colocar as coisas de volta
no lugar.
É
exatamente por isto que um governo popular é obrigado a arriscar, a tentar
fazer coisas que estejam um pouco além dos limites da correlação de força, a
contar com a iniciativa e o fator surpresa, a não se deixar conter pelo
rame-rame administrativo, a não cair nas ilusões republicanas. Pois no limite,
uma vez chegados no governo, o tempo não corre a nosso
favor.
Mas
voltemos ao capítulo 32 das Memórias. Depois de falar de Roberto Jefferson,
Dirceu diz que a guerra do “mensalão” começou com nossa derrota na primeira e
decisiva batalha: a instalação da CPI dos Correios.
Dirceu
faz questão de citar o nome dos quatorze deputados e deputadas do PT que
assinaram a CPI dos correios. A lista está na página 425. Nenhum é/era da
Articulação de Esquerda...
Dirceu
relata de maneira panorâmica sua versão dos fatos, até o dia 15 de junho
(página 427), quando vai ao encontro de Lula para pedir demissão, sendo que
Lula:
“também já se decidira
pelo meu afastamento. Não me pediu para ficar, não me propôs nenhuma outra
tarefa, simplesmente me demitiu. Foi melancólico e simbólico, como se tudo já
tivesse sido decidido, poucas palavras, monossílabas, uma cena um tanto
derrotista e pequena para os protagonistas, para nossa história de luta.
Depois, no Planalto, numa pequena reunião com Lula, Mercadante, se não me
engano, Gilberto e Gushiken, talvez Palocci, eu me emocionei e chorei”.
Na
página 428 ele agrega:
“Como era possível que
companheiros e companheiras, de tantos anos no PT, simplesmente me
abandonassem, sem mais nem menos? Na verdade, fui abandonado à minha própria
sorte. Não havia nenhuma proposta sobre meu futuro. Eu teria que me defender
sozinho e contar, como sempre, com a solidariedade e apoio da militância, de
parlamentares e dirigentes do PT, já que o governo e a direção do PT não
conseguiam sequer se defender. Que contraste, que abismo entre meus camaradas
de armas e agora de alguns, muitos, de meus companheiros do PT”
Na
página 429 ele diz:
“Não havia uma linha de
resistência, uma trincheira, um plano de luta, nem no governo e, muito menos,
no PT. Era como se as denúncias fossem apenas, e tão somente, uma questão
ética, de caixa dois, de financiamento de campanha e total responsabilidade de
Delúbio Soares, Sílvio Pereira e José Genoíno e, na prática, minha, avalizando
assim a acusação de Roberto Jefferson”.
Como
se pode ver acima, é aqui (na página 429) que Dirceu cita pela primeira vez
Sílvio Perreira. Portanto, ao contrário do que eu afirmei na resenha publicada
na Teoria e Debate, Sílvio Pereira é citado duas vezes nas Memórias de Dirceu,
e não apenas uma. Isto posto, é revelador que um secretário-geral nacional do
PT, que só chegou a este posto por seus vínculos com Dirceu, seja tratado desta
maneira nas Memórias de seu “padrinho” político.
Feito
este registro, não vou aqui repisar o que disse e escrevi em 2005 e que está
disponível em inúmeros textos e entrevistas. Em resumo, acho que Dirceu faz uma
interpretação incorreta dos acontecimentos e de sua responsabilidade neles.
Exemplo
disso é a seguinte passagem, na página 428 e 429:
“Mais decepcionante era a
situação interna do partido, sua absoluta incapacidade de reconstruir uma
maioria e uma direção, com um gabinete de crise, para enfrenta-la e superá-la.
Em lugar disso, a imediata e rápida decisão de se livrar dos acusados,
culpa-los, expulsá-los. Em atitude oportunista e covarde – quase uma corrida –
vários grupos e tendências do PT passaram a se isentar mutuamente e a acusar a
maioria, o Campo Majoritário, pelos fatos. Esses, aliás, ainda em processo de
apuração por uma CPI e a Polícia Federal”.
Espero
que algum dia, alguém faça um relato sistemático e documentado, em ordem
cronológica, do que foi dito e escrito nas reuniões do Diretório e da executiva
nacional do PT acerca do tema. Há muita lenda, muita confusão, muita
desinformação a respeito.
Por
exemplo: simplesmente não é verdade que tenha havia “imediata e rápida decisão
de se livrar dos acusados”. Muito menos de “expulsá-los”.
Aliás,
expulso pelo DN só houve um: Delúbio Soares. Sílvio Pereira pediu desfiliação.
Outros dirigentes pediram demissão de seus cargos.
Onde
estas decisões de desfiliação e demissão foram tomadas? Posso garantir que não
foi em nenhuma reunião de instância.
Nas
reuniões do DN, por diversas vezes, eu defendi que houvesse comissão de ética.
Meus argumentos eram similares aos adotados pelo José Dirceu, no caso de Cpem.
Para
quem não lembra, na página 289 Dirceu afirma (os grifos são meus):
“Paguei caro dentro do PT
pela constituição da comissão e por seu relatório. Nunca me arrependi. Era
preciso provar para a mídia – quando se trata do PT, o ônus da prova é sempre
do acusado – que Lula nada tinha a ver com os contratos da Cpem
com as prefeituras, como ficu demonstrado.”
Este
foi o critério aplicado por Dirceu, quando se tratava de Lula. Por qual motivo
não seria o melhor, no caso de Dirceu e outros?
Havia
um argumento, usado na época e reproduzido parcialmente por Dirceu: o processo
de apuração por uma CPI e pela Polícia Federal.
Disse
na época e repito aqui: o PT devia formar uma opinião própria sobre os fatos.
Infelizmente,
prevaleceu a ideia de que na justiça as denúncias não dariam em nada. E que,
portanto, uma comissão de ética poderia ser até mesmo prejudicial para os
acusados.
A
vida, na minha opinião, demonstrou o contrário. Teria sido melhor esclarecer os
fatos internamente e criar melhores condições para fazer uma defesa externa.
Faz
parte das coisas estranhas do texto de Dirceu a seguinte passagem (428-429):
“vários grupos e tendências
do PT passaram a se isentar mutuamente e a acusar a maioria, o Campo
Majoritário, pelos fatos”.
De
fato, houve de tudo um pouco no DN. Inclusive dirigentes muito importantes do
próprio campo majoritário, que faziam questão de dizer que não tinham a menor
ideia acerca do que estava ocorrendo, das acusações e tudo o mais.
Vale
lembrar que o Diretório Nacional que enfrentou a crise de 2005 havia sido
eleito no PED de 2001. Portanto, é o mesmo Diretório que de maneira triunfante
venceu as eleições de 2002. Aquele que era encabeçado pelo flamante Dirceu e no
qual havia uma folgada maioria que, em alguns casos, beirava os 70%.
Portanto,
caberia antes de mais nada a Dirceu explicar como aquilo deu nisso de
que ele reclama.
Por
outro lado, Dirceu reclama da solidariedade da minoria, mas ele deveria se
perguntar como esta minoria foi tratada pela maioria, se havia compartilhamento
de informações, se a destinação dos recursos era deliberada democraticamente e
assim por diante.
Por
mais que pudesse haver oportunismo e covardia de alguns, inclusive de
integrantes do campo majoritário, a postura de imputar ao grupo majoritário a
responsabilidade pelos problemas era em alguma medida o reflexo da postura
deste mesmo grupo majoritário, de imputar apenas a si mesmo os êxitos, os
bônus, os sucessos.
Sobre
tudo isso que escrevi antes, cabe polêmica e contraditório. Mas na página 429,
Dirceu faz uma afirmação que merece correção:
“Diante do panorama
desolador, as correntes minoritárias se aproveitaram da crise, articulando-se
para derrotar Genoíno, cujo mandato terminava em 2005”.
A expressão
“correntes minoritárias” inclui a Articulação de Esquerda, e posso garantir que
a Articulação de Esquerda não adotou esta postura.
Aliás,
no meu caso (que era candidato a presidência nacional do PT em nome da
Articulação de Esquerda), fui um dos que foi a público, acho que inclusive no
Jornal Nacional, defender o Genoíno.
Em
segundo lugar, é preciso lembrar que Genoíno assumiu a presidência do lugar de
Dirceu, que se licenciou para assumir o governo. O mandato não terminava em
2005, terminava antes. Contra nosso voto, o PED foi adiado.
Dirceu
afirma que “aumentava a pressão pela sua (de Genoíno) renúncia, mesmo que isso
representasse um prejulgamento, tomado como confissão de culpa”.
Buenas,
tal pressão houve, mas Dirceu deveria se perguntar se as correntes minoritárias tinham
força para tal. Ou se a pressão pela renúncia de Genoíno envolveu outros
setores do Partido, com muito mais peso do que as minorias.
Dirceu
acrescenta na página 429:
“não se tratava de
uma resposta organizada, dirigida à militância com uma nova proposta de defesa
do PT e do governo. Era simplesmente um acerto de contas, desespero, a
incapacidade de compreender o momento e de definir estratégias.”
Esta
afirmação, posta deste jeito, é falsa. Havia um setor do partido que queria
adiar ou cancelar a eleição de uma nova direção. Prevaleceu a posição
contrária. E o PED de 2005 foi um dos fatores que salvou o PT. E quem
participou dele sabe que havia sim diferentes propostas de defesa do PT e do
governo. E defesa de Lula, diga-se.
Dirceu
relata, na página 430, que ele participou da reunião em que se debateu a
substituição de Genoíno.
Como
ele próprio afirma, foi uma reunião do campo majoritário.
Ele
não conta, curiosamente, qual a decisão nem quem a tomou.
Mas
no dia da renúncia de Genoíno cada uma das tendências do Partido foi chamada
para uma reunião com representantes do campo majoritário, onde foi-nos
informado que este mesmo campo majoritário havia decidido por indicar o nome de
Tarso Genro.
Ao
menos nós da Articulação de Esquerda dissemos, na reunião convocada para este
fim, na qual estavam presentes Aloizio Mercadante e Luiz Dulci, que a indicação
de Tarso Genro era um grave erro.
Por
tudo isto, é bizarro ver Dirceu escrever, na página 431, o seguinte:
“A esquerda do Partido se
divide e o nome de Tarso Genro enfrenta resistência como candidato único das
correntes minoritárias”.
Tarso
Genro virou presidente provisório do PT por decisão do campo majoritário. Nunca
existiu a possibilidade dele ser candidato único das correntes minoritárias. No
caso da Articulação de Esquerda, por exemplo, considerávamos Tarso como um
integrante do campo majoritário.
Há
outros detalhes no capítulo 33, sobre Sílvio Pereira, Delcidio Amaral, Marcos
Valerio etc, sobre os quais eu já escrevi muito, em 2005.
Meu
único comentário é o seguinte: o relato de Dirceu sobre tudo isto é vazado em
tom de desabafo, cheio de lacunas e atravessado pelos rancores da época. Como
pessoa, compreendo sua dificuldade em tratar destes assuntos e desta época. Mas
se ele decidiu publicar um livro a respeito, seus erros, imprecisões e lacunas
tornam-se parte da luta política e precisam ser – a palavra é esta – apontados e,
em alguns casos, desmascarados.
No
capítulo 33, Dirceu faz duros ataques a Aloizio Mercadante, por sua atuação na
CPI. Critica Luciana Genro, Babá e Heloísa Helena por seu comportamento em
2005, quando eles já não eram do PT, expulsos que foram em 2003, num episódio
que salvo engano não é relatado nas Memórias. E acusa Raul Pont e outros
deputados da Democracia Socialista de terem exigido sua expulsão e terem votado
por sua cassação.
No
capítulo 34 acusa doze deputados do PT de terem votado pela sua cassação. Mas
não diz quem foram.
Neste
mesmo capítulo, na página 448, trata das indicações feitas por Lula para o STF.
Diz que “parece simples, majestático, o presidente querer e indicar os
ministros das cortes superiores, mas, na prática, na vida real, não é assim”.
Admitamos
que não é assim, mas é preciso reconhecer que conseguimos uma proeza e tanto
nas indicações... O próprio Dirceu acaba reconhecendo, na página 450, que
“erramos nas indicações”. Mas insiste em perguntar: “tínhamos forças e
condições de indicar ministros alinhados com nosso governo e programa”?
A
pergunta é malandra! Afinal, na época em que foram feitas estas indicações, se
dizia de muitos dos indicados que eles seriam alinhados com nosso governo. E
isso não se verificou. Neste caso, um problema, portanto, não é saber se
tínhamos ou não força; o problema é saber por quais motivos nos enganamos tanto,
por qual motivo dissemos ao Partido e à sociedade que os nomeados eram gente
fina e boa.
Epílogo do presente de Dirceu
Chegamos, por fim, ao
epílogo das Memórias, um capítulo de número 35, onde Dirceu se
propõe a fazer “um balanço dos anos que vivi no governo e do período que se
encerrou em 2016”.
Neste
epílogo, Dirceu começa o balanço dizendo que a “era Lula e o petismo recebem
avaliações aterradoras da direita e da esquerda”.
Vou
pular o que Dirceu fala contra a direita e passo direto ao que ele fala da
esquerda. Segundo ele, na página 454:
“À esquerda, uma facção
rompeu com o PT ainda na reforma da previdência, ancorada no corporativismo e
nos privilégios dos servidores públicos (...) Essa esquerda – PSOL e PSTU – sem
base social e eleitoral, condenou o governo Lula sem mediações nem tréguas.”
Já
na página 455, ele acrescenta:
“A segunda frente de
‘oposição’ ao PT, desde antes da vitória de Lula e mesmo de sua quarta
candidatura, veio e vinha de dentro do PT e remonta à sua própria fundação e
criação do partido”.
A
isto seguem vários parágrafos tratando dos grupos de esquerda que vieram para o
PT, dos grupos que existiam de forma organizada dentro do PT nos anos 80,
versus o papel que a Articulação dos 113 jogou em defesa do petismo.
Na
página 456 Dirceu explica por que faz isso:
“Qual a importância
de rememorar a criação do PT? Toda, porque explica as divergências, as
diferenças existentes até hoje, explica as várias estratégias para sua
construção e luta pelo poder com um elemento fundamental: Lula e sua liderança,
seu carisma e seu papel na história recente do Brasil e do PT”.
Isto
é verdade? Não, não é. As divergências atualmente existentes dentro do PT não
são as mesmas que existiam entre 1980 e 1989. Podemos dizer que há um
parentesco distante, que há questões de fundo que estavam presentes lá e que
estão presentes agora. Mas simplesmente não é sério reduzir o debate atual ao
debate travado nos anos 1980.
Por
qual motivo Dirceu adota este caminho? Na minha opinião, porque desqualificando
alguns críticos, Dirceu garante para outros (ele próprio, inclusive) o
monopólio das críticas aceitáveis.
E
para que isto seja possível, ele constrói uma narrativa onde as tendências da
atual esquerda petista são equiparadas aos partidos dentro do partido que
existiam nos anos 1980. E se por acaso há uma tendência que não se enquadra
nesta narrativa, neste caso ela precisa ser estigmatizada a ferro e fogo.
A
verdade é que Dirceu não se considera stalinista, mas ele adota uma clássica
postura stalinista quando assume a lógica segundo a qual o PT é plural, pode
ter tendências, mas se voce não concordar com a posição que é majoritária num
determinado momento, voce é catalogado como ...“oposição ao PT”!!!
Quero
insistir nisto: é inaceitável, não existe outro termo, que se trate como
“oposição ao PT” – mesmo que com aspas, mesmo que por demagogia retórica --
quem faz críticas à orientação majoritária do Partido. É o equivalente aos que
afirmavam que a esquerda era “oposição ao Brasil”.
Outro
problema na postura de Dirceu é que ele trata as tendências da esquerda petista
como se fossem uma coisa só. Além disso, ele desconsidera o fato de que existe
um amplo setor do petismo que não faz parte de nenhuma tendência, mas que faz
críticas aos rumos seguidos pelo PT, em diferentes momentos e de diferentes
formas, especialmente no período em que Palocci (e não Dirceu) era hegemônico
no governo.
Feitas
estas preliminares, vejamos o que se pode extrair do que Dirceu diz. Por
exemplo, na página 457:
“Qual é a régua para
medir o governo Lula em junho de 2005, quando deixei a Casa Civil e perdi meu
mandato de deputado federal? Qual é a medida para um militante com quarenta
anos de luta como eu?
“Devemos aceitar que
traímos o PT e a esquerda por causa do mensalão, que chegamos ao governo e nos
curvamos a conciliações com a burguesia e adotamos seus métodos como avaliam
hoje – 2018 – e já avaliavam em 2005 setores do PT que se autointitulam de
esquerda ou “a esquerda” do PT?”
Ao
ler estas perguntas, me dou conta que Dirceu incorre algumas vezes em posição
parecida com a manifesta por diversos líderes do antigo campo majoritário, para
os quais “conciliação” é igual a “traição”. E, portanto, tomam como ofensa
mortal quando se diz a eles que foi adotada uma estratégia de conciliação.
Quem
tiver interesse de ler a respeito, sugiro este texto:
Mas
o que realmente me chama a atenção no epílogo são as duas almas que nele se
manifestam.
Para
esclarecer do que estou falando, vejamos o que diz Dirceu nas página 459-460:
“Uma coisa é reconhecer
nossos erros (...) outra é atribuir a esses erros nossa derrota ou condenar
nossos governos, atribuindo ao governo e ao PT, e às suas ‘maiorias’, uma
traição ou abandono de nossos objetivos programáticos que não era, diga-se de
passagem, fazer um governo socialista, muito menos na concepção da “esquerda”
do PT de socialismo, jamais aceita ou construída pelo PT.”
Notem
a frase: “atribuir a esses erros nossa derrota”. Se entendi
direito, Dirceu acha que não devemos atribuir nossa derrota a nossos erros. Mas
então devemos atribuir ao quê? Aos inimigos?
Acontece
que nossos inimigos não vencem sempre. As vezes nós também vencemos, porque
acertamos mais do que eles, porque erramos menos do que eles. E a recíproca é
verdadeira: quando eles vencem, é porque acertaram mais do que nós, porque
erramos mais do que eles.
Portanto,
noves fora, faz sentido localizar nossos erros e, certas vezes, são esses erros
as principais causas de nossas derrotas. No caso concreto do golpe de 2016,
considero que opções estratégicas feitas em 1995 e radicalizadas em 2003 têm parte
importante da responsabilidade.
Notem
também a frase: nosso objetivo programático não era fazer um governo
socialista, muito menos na concepção de socialismo da “esquerda” do PT.
Aguardarei
que Dirceu nos diga qual é a concepção de socialismo da “esquerda” do PT. Minha
impressão é que não existe uma única. Além do mais, para os fins deste debate,
é mais do que suficiente a concepção de socialismo tal e qual expressa nas
resoluções sobre estratégia e programa do sexto congresso do Partido.
A
questão é: nossos governos, nossa ação nas bancadas, nossa ação nos movimentos,
nossa ação no partido, nossa ação no debate de ideias tem que ter relação com
nosso objetivo programático, tal e qual está nas resoluções do 6º Congresso.
Feitas
estas ressalvas ao que Dirceu diz nas páginas 459-460, demarcando com o que ele
acha que pensa a esquerda petista, pulo agora para o que ele fala na página
466:
“é preciso ir ao povo
trabalhador e organizar sua luta social e política. Responder à radicalização
da direita com luta política e social e um programa, como eles fazem, que vá à
raiz da questão nacional, democrática e social. Fazer a revolução brasileira
inconclusa, retomar o conceito de revolução social e política”.
Como
se vê, Dirceu transita de um extremo a outro, da moderação ao radicalismo.
Tenho
várias hipóteses para este comportamento político; uma destas hipóteses
aproveita sugestão que me foi feita por Marco Aurélio Garcia, misturando
Dirceu, a geração de 68 e as Ilusões Perdidas de Balzac.
Mas
decifrar a personalidade de Dirceu é tarefa acima de minhas capacidades e,
principalmente, algo distante dos meus interesses.
O
que realmente me interessa, e quem sabe ele consiga isso no volume dois de suas
Memórias, é uma reflexão sobre a estratégia, que ao menos tente superar este
ziguezague das duas almas, que no caso concreto se traduziram em moderação
no governo, radicalismo na oposição.
No
fundo, sigo pensando basicamente o mesmo que escrevi em dezembro de 2005, num
artigo publicado no portal do PT, exatamente sobre a cassação de Dirceu, artigo
que reproduzo abaixo:
A cassação de Dirceu
A cassação de José Dirceu
é o grande assunto do noticiário, nesta virada de novembro para dezembro.
Pena: muito mais
importante é o desempenho do Produto Interno Bruto, que demonstra, mais uma
vez, quais as decorrências de uma política de juros altos e superávit primário
escorchante.
Aliás, quem assistiu ao
discurso do líder do Partido da Frente Liberal (PFL), feito durante a sessão da
Câmara que cassou o mandato de José Dirceu, deve ter pensado que o mundo está
de ponta-cabeça: um Maia acusando de conservadora a política econômica do
governo Lula. Pior: dizendo que esta política privilegia o capital
financeiro!!!
Neste contexto, o espaço
dado para a cassação de José Dirceu é mais um sinal de que o PT e o governo
saíram das cordas, mas continuam na defensiva. Pois enquanto seguimos às voltas
com esta e outras possíveis cassações, a direita ensaia o discurso com o qual
pretende nos impor uma derrota eleitoral, política e ideológica nas eleições de
2006.
Se não houver uma mudança
urgente na política & na política econômica, corremos o risco de sermos
derrotados sob a acusação de termos aplicado um programa conservador,
utilizando para isto métodos também conservadores! E teremos o desgosto de ver,
na campanha de 2006, partidos de centro-direita fazendo, contra nós, um
discurso supostamente progressista.
Isto posto, é óbvio que
há uma enorme relação disto com aquilo, da situação política geral com a
cassação de José Dirceu. Pois como já se disse repetidas vezes, José Dirceu é
um dos grandes responsáveis pela "estratégia de centro-esquerda", que
nos colocou nesta enrascada.
É evidente que os
deputados da direita votaram pela cassação de José Dirceu, com o objetivo de
golpear o PT e o governo. Mas é preciso perguntar por quais motivos eles
tiveram êxito nessa votação em particular. Afinal, nesta mesma Câmara dos
Deputados o governo e o PT já colheram algumas vitórias.
A resposta é óbvia, mas
tem sido esquecida por alguns analistas: a direita teve êxito em cassar José
Dirceu, devido a erros cometidos pelo Partido, pelo governo e pelo próprio
Dirceu. Foram estes erros que criaram um ambiente propício para que a direita
nos atacasse, nos colocasse na defensiva e, agora, tirasse o mandato de um
importante deputado do PT.
O Partido ainda não fez
um balanço completo acerca desses erros. É bom que o faça e rápido, sob pena
deles continuarem produzindo mais vítimas.
Na minha opinião, o erro
fundamental é de estratégia: a política de "centro-esquerda" que
aparentemente ajudou a fazer de Lula presidente da República, não está dando
conta dos desafios de governar e mudar o país. Pois suas premissas nos impedem
de romper com a hegemonia do capital financeiro, bloqueiam as reformas
estruturais que o país precisa, contém nosso crescimento eleitoral, dificultam
nossas relações com os movimentos sociais e com os partidos de esquerda.
Deste ponto de vista, a
cassação de José Dirceu tem um componente trágico. Afinal, ele foi um dos
principais formuladores e certamente o grande operador da política que, em
última análise, conduziu o governo ao impasse estratégico, o PT ao fundo do
poço e ele próprio à guilhotina.
Para fazer o Partido
aceitar a política de centro-esquerda, José Dirceu fez uso, muitas e repetidas
vezes, do carisma e da mística que lhe são atribuídos. Para ser mais exato, ele
construiu uma imagem pública que serviu para aplainar resistências,
especialmente na esquerda. Muitos e muitos militantes do Partido aceitaram a
implementação desta política, por confiar em José Dirceu, não propriamente por
confiança na política.
É claro que há uma
distância entre a vida real e o mito criado. Os que refletiram sobre 1968,
Ibiúna, Cuba, Molipo e outros episódios sabem disso. Mas o fato politicamente
relevante é que, na campanha contra a cassação de Dirceu, o velho, seus amigos
apelaram seguidas vezes para os feitos de Dirceu, o novo. Neste ponto, a
tragédia incorporou um elemento de farsa: o deputado que conduziu nosso Partido
para o reino do pragmatismo institucional apela, em sua defesa, para a mística
do revolucionário.
Para alguns, isto talvez
confirme a tese de Tarso Genro, segundo a qual as peripécias delubianas revelam
a sobrevivência do "bolchevismo" entre nós. Na verdade, não há nada
mais distante do bolchevismo do que José Dirceu e sua política. Prova disto é
que Tarso Genro, um ex-comunista convicto, defendia e defende até hoje a mesma
política, embora como tantos outros esteja, agora, enfrentando certa
dificuldade para conviver com suas consequências.
O grande desafio do PT
tem a ver com isto: perceber que a cassação de José Dirceu, assim como todo o
resto da crise que se abate sobre nós, é consequência de uma linha política,
que precisa ser alterada, de cima a baixo. Se não tivermos êxito nisto, vamos
girar em falso.
Qual papel Dirceu terá
neste debate? Manterá as mesmas posições que antes? Reconhecerá seus erros
políticos e ajudará na reorientação do Partido, inclusive no combate frontal
contra Palocci? Ou irá para a ultra-esquerda, como fez o também mítico Carlos
Marighella, depois do golpe de 1964?
O tempo dirá. O
fundamental é que o Partido, se quiser sobreviver, precisa fazer a crítica
teórica e prática do edifício político e organizativo montado por José Dirceu:
o abandono do socialismo e da revolução como norte programático e estratégico;
a principalidade conferida à disputa eleitoral-institucional; o pragmatismo nas
alianças; o centralismo burocrático; a transformação da direção nacional numa
máquina com baixa capacidade de formulação; as finanças dependentes de
contribuições empresariais. Tudo isto e muito mais precisa ser detalhadamente
destrinchado e criticado, pois foi isso que nos trouxe aonde estamos agora. E é
isso que precisamos criticar, se quisermos dar a volta por cima.
Como
sabemos todos, a partir de 2005 o partido fez balanços, reconheceu erros,
promoveu inflexões na política, venceu as eleições de 2006, 2010 e 2014, mas
não promoveu uma reorientação completa na sua estratégia.
Pelo
contrário, as vitórias obtidas no período, especialmente no segundo mandato de
Lula, fizeram muita gente pensar que bastava uma inflexão, não sendo necessária
uma revisão completa na estratégia.
Os
efeitos disto, estamos sofrendo desde 2015. Continua sendo necessário
construir, na teoria e principalmente na prática, uma reorientação estratégica
para o PT.
As
decisões que estão sendo tornadas públicas no dia em que concluo a revisão
deste texto, comprovam uma vez mais que tal reorientação estratégica devia ter
sido feita há muito.
Deste
ponto de vista, do ponto de vista da reorientação da estratégia do Partido, o
primeiro volume das Memórias de Dirceu mais confunde
que esclarece. O presente de Dirceu continua sendo demasiado governado pelo seu
passado. Oxalá o segundo volume seja diferente.
Valter
Pomar, 11 de setembro de 2018
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