sexta-feira, 7 de setembro de 2018

quinta parte de O presente de Dirceu


O capítulo 24 das Memórias de José Dirceu começa tratando das eleições presidenciais de 2002: Lula candidato, Alencar na vice e Duda Mendonça na campanha.

Sobre Duda Mendonça, um episódio interessante é, salvo engano, omitido no livro: o primeiro programa de TV, com grávidas e bandeiras brancas, que gerou uma disputa entre Dirceu e Ozeas Duarte, então secretário nacional de comunicação do PT, além de mostrar todos os riscos embutidos na contratação de um marqueteiro como Duda. Aliás, a polêmica ocorrida a respeito não merece destaque nas Memórias, isto apesar do deprimente papel que este senhor desempenhou contra Lula na CPI em 2005.

As duas primeiras páginas falam da operação da Polícia Federal (grupo Serra) contra Roseana Sarney, com direito a uma rápida e nada esclarecedora menção ao caso dos “aloprados” de 2006.

Em seguida temos José Alencar, ocupação da fazenda de FHC pelo MST e a relação de “convivência de respeito” (sic) com Roseana Sarney e seu pai. 

Segundo Dirceu, na página 320:
“Era complicado sustentar tal atitude no PT e eu não me arrependo, o tempo me deu razão. Sarney não faltou com Lula e seus governos. Sem ele, jamais teríamos maioria no Senado”.

Depois se fala da montagem da coordenação de campanha, especialmente sobre Gushiken; e sobre o encontro nacional do PT, realizado em junho de 2002, quando foi aprovado o nome de José Alencar para vice de Lula.

O capítulo 25 fala da “Carta ao povo brasileiro”. Dada a lenda que foi criada a respeito deste texto, as lembranças de Dirceu são extremamente interessantes.

Diz na página 325 que Palocci e Gushiken foram “seus maiores defensores” e que Mercadante “se apressou em apoiar a ideia”, mas que Dirceu e Lula ficaram “com um pé atrás”.

Na página 326, Dirceu diz que leu e não gostou da primeira versão, escrita por Palocci e Mercadante. Teria deixado claros os riscos: “não me opunha à carta, mas a temia”. E agrega o seguinte, na página 326:
“Sinceramente, até hoje não dou à carta a importância que muita gente atribui. Lula venceu com ela, mas venceria sem ela. Não houve nenhuma virada nas pesquisas de opinião por causa da mensagem e nem cessaram a especulação e as pressões dos mercados. Era mais uma carta de intenções para início de governo. Não poderia esgotar o que era e seriam nosso governo e seu programa.”
“Era um freio a muitas políticas viáveis no primeiro momento e um passe livre para a estabilidade, a qualquer preço, e para a garantia de prioridade ao equilíbrio fiscal com superávit.”
“Eu preferia o anúncio de uma nova política de desenvolvimento. E Lula iniciaria o governo, percebendo a armadilha do ajuste fiscal a seco, priorizando a luta contra a pobreza, o Fome Zero, a valorização do salário mínimo e da Previdência.”
“Nosso problema não era o ‘mercado’, mas Ciro Gomes, Anthony Garotinho, José Serra e a campanha. No fundo, subestimávamos o cansaço do PSDB e do seu discurso. Serra não era FHC e nem tinha o real, o PFL, o PMDB, o PTB. Lula e o PT eram uma força nova em crescimento, sintonizada com a memória histórica e com a vontade da maioria dos trabalhadores. De toda forma, a carta desempenhou seu papel e tirou o discurso do adversário.”

Acredito que Dirceu possa ter pensado isto, na época. Mas observando de agora, não é possível subestimar o papel negativo que a Carta aos Brasileiros teve ao limitar a ação do governo. E se for verdade o que diz Dirceu, então a conclusão é que fizemos um sacrifício maior do que o necessário. E se levarmos em conta o êxito obtido entre 2006 e 2010, a conclusão é que as limitações auto-impostas pela Carta nos custaram 2003, 2004 e 2005. Portanto, não é algo menor, como de certa maneira Dirceu tenta nos fazer crer.

Em seguida, Dirceu relata em quatro páginas a viagem que ele fez aos Estados Unidos, assunto acerca do qual ele próprio remete para a leitura do livro de Matias Spektor: 18 dias: Quando Lula e FHC se uniram para conquistar o apoio de Bush

Há passagens divertidas, que revelam menos sobre os fatos e mais sobre o personagem. Cito algumas:
(...) “não falo inglês. Sou da geração em que o francês era a língua universal e aprendi espanhol em Cuba”
(...) ”minha viagem durou apenas quadro dias – mas foram quadro dias de surpreendente sucesso”
(...) “os americanos ficaram realmente perplexos. Não esperavam ouvir o que um ex-guerrilheiro de esquerda estava falando.”
(...) “o silêncio foi quebrado pelo deputado republicano, que perguntou: ‘Mas ficou mais bonito depois da plástica, ou não?’”

Esta última frase foi dita, é bom dizer, noutra viagem de Dirceu aos Estados Unidos, em 2005.

Outra passagem do capítulo é dedicada a relação de Dirceu com FHC, resumida assim na página 331:
“Respeitoso comigo, quase carinhoso, atencioso e educado, firme nas convicções, consciente de minhas opções e de nossas diferenças, mas sem arrogância. Sou grato a ele pelo respeito, que era recíproco. A luta política depois nos colocaria em extremos, mas a história ainda não está concluída.”

Ao ler passagens como essa, recordo-me de uma biografia que li acerca de Salvador Allende, em que o autor comenta como a convivência de socialistas e comunistas no parlamento, com líderes da direita chilena, fez a esquerda baixar a guarda e achar que seus adversários não passariam de determinados limites.

O próprio Dirceu relata, nas páginas 332 e 333, um exemplo de ultrapassagem de limites, quando o então presidente do PT foi acusado como responsável por uma agressão a então governador de São Paulo Mário Covas. Diz ele: ficou a “mágoa” pela “manipulação de um episódio que não teve rigorosamente nada a ver com a agressão sofrida pelo governador”. O termo “mágoa” só reforça o que disse no parágrafo anterior.

O capítulo termina com uma nova reflexão sobre a Carta ao Povo Brasileiro, desta vez menos condescendente. Depois de falar do assalto praticado pelo capital financeiro contra a economia nacional e  o povo brasileiro, Dirceu afirma na página 334 o seguinte:
“Esse desafio estava colocado na Carta ao Povo Brasileiro. De algum modo, a chantagem e o terror funcionaram contra nós. Frente ao terrorismo midiático e financeiro, reagimos com a aplicação de uma vacina que foi, justamente, a ‘carta compromisso’, quando nosso comprometimento era com a reforma social e econômica.”
“A questão era: vamos dar um passo atrás? Ou seja, a Carta ao Povo Brasileiro, o ajuste fiscal, os juros altos e o superávit, até lograrmos as condições para as reformas estruturais? Vamos trilhar o mesmo caminho que FHC e Malan? Essa será a linha divisória entre nós no primeiro governo Lula, anda que o tema das reformas e do caminho não dependesse só da nossa decisão política.(...) Como Lula reagiria a esse dilema? E nós que éramos o núcleo do governo, a coordenação política, a maioria do PT? Seríamos capazes de assobiar e chupar cana ao mesmo tempo?”

Como em outros temas abordados no livro, Dirceu emite opiniões bastante díspares sobre a relevância prática da Carta aos Brasileiros.

É particularmente interessante ler o seguinte: “Vamos trilhar o mesmo caminho que FHC e Malan? Essa será a linha divisória entre nós no primeiro governo Lula.”

Ora, esta era exatamente a crítica que a esquerda do PT fazia. Como em outros episódios, Dirceu verbaliza críticas que, quando feitas pela boca de terceiros, ele ataca. 

É como se ele dissesse que no governo esta poderia ser a linha divisória entre nós, mas no partido todos deveriam estar alinhados. Consequência prática da lógica segundo a qual o partido e o governo são ambos parte do Estado.

Na próxima parte, trataremos dos capítulos das Memórias que abordam o período 2002 a 2005.

(Sem revisão. Agradeço a quem se disponha a indicar eventuais erros de digitação ou mesmo informações equivocadas.)








                                                                                             




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