segunda-feira, 31 de dezembro de 2018

Novamente Cid Benjamin

O Cid Benjamin respondeu o seguinte a minhas críticas a seu texto

Caro Valter, não vou me alongar. 
Apenas registro algumas coisas rapidamente, até porque não considero essa questão - estar presente ou não à posse formal de B - tão relevante assim. 
1. Não se trata de estender a mão a B. Aliás, sabemos bem que não foi o PSol que tentou aplacar a direita tentando agradar e dando poder a direitistas. Agora, situação normal ou não, a questão é outra: saber que política e que comportamento nos ajudam a reverter a situação em que estamos. Penso que é aí que o debate deve se situar, e não em quanto B é isso ou aquilo. E - menos, Valter - é clara forçação de barra dizer que estar presente à posse formal, organizada pelo TSE, seria "começar o governo num ambiente de convívio amigável". 
2. Depois daquela última resolução do DN do PT (não vou adjetivá-la), você vem dizer que Dilma fez autocrítica do estelionato eleitoral? Numa reunião fechada? Menos, Valter.
3. Releia meu post. Não disse que o PT se recusou a assinar a Constituição de 88. Eu me referi à polêmica aberta no partido sobre assinar ou não. Ou você não se lembra que ela existiu? Menos, Valter.
Fico por aqui, te mandando um abraço com a certeza de que estaremos lado a lado nas próximas trincheiras. 
Cid Benjamin

Começo pelo ponto 3. Acho que não sou eu que preciso reler a postagem, mas o próprio Cid. O que eu disse: que Cid conta apenas uma parte da questão (a assinatura), mas não conta a outra parte (o voto). Sobre a parte da assinatura, eu não tenho reparo ao que Cid disse. Não sei de onde ele tirou que eu acusei ele de ter dito que o PT se recusou a assinar. Meu reparo foi sobre a segunda parte, mais exatamente sobre o fato de ele não ter lembrado a decisão de votar contra. Na minha opinião, esta segunda parte do ocorrido tem importância para o momento atual, pois tratava-se também de uma questão formal (voto simbólico de aprovação da Constituição) e o PT optou por não votar a favor. Mostrando o óbvio: que certas formalidades são politicamente relevantes. Portanto. eu não entendi a reclamação de Cid, concluída com um "menos".

Passo ao ponto 2. Eu apenas relatei um fato: Dilma reconheceu, pela primeira vez que eu saiba, que a política do Levy foi neoliberal. Este fato pode ser ou não relevante. Na minha opinião, tem relevância para o debate proposto pelo Maringoni, não para o debate proposto pelo Cid. O Maringoni fez uma agressão ao PT, dizendo que nossa posição de não ir na posse seria "birra" e vinculou isto ao fato de Levy ter participado de governos petistas e agora estar escalado para o governo Bolsonaro. Eu apenas usei o exemplo da Dilma, mas poderia ter usado outros, para deixar claro que um tema não tem nada que ver com outro. Infelizmente, Cid resolveu assumir para si o tema, que -- reitero -- só apareceu na roda porque Maringoni resolveu usar um termo totalmente insólito ("birra"). Portanto, tampouco entendo por qual razão Cid pede "menos".

Agora ao ponto 1. Nessa polêmica, eu defendo a posição do PSOL e a posição do PT. Nessa polêmica, Cid ataca a posição do PT e a do PSOL, que é seu partido. Talvez por isso, tanto ele quanto Maringoni preferem criticar o PT, para atacar por tabela a posição do PSOL. Direito deles. Cada um faz a luta interna como acha melhor. Mas como sei que é isso, não vou responder a frase segundo a qual "sabemos bem que não foi o PSol que tentou aplacar a direita tentando agradar e dando poder a direitistas". Ela faz parte de um estilo de luta interna que não agrega, só desagrega. Quanto ao mérito, meu ponto é o mesmo de Cid, a saber: como reverter a situação em que estamos. E eu acho que ajuda na reversão ter posição clara. Por isso não acho que seja forçação de barra dizer que estar presente à posse formal, organizada pelo TSE, seria "começar o governo num ambiente de convívio amigável". Melhor dizendo: seria forçação de barra, mas num sentido diferente do  criticado por Cid. Pois mesmo que o PT quisesse começar num ambiente amigável, Bolsonaro não permitiria.

Por fim: menos a parte, não acho que o tema da posse seja menor. Por isso fico muito satisfeito que a esquerda marche unida nesta questão. É agindo assim que conseguirmos estar juntos nas trincheiras presentes e futuras.

Cid Benjamin, Maringoni e a birra do PT


Motivo não falta, mas por razões profissionais evito polemizar com o Gilberto Maringoni.

Infelizmente, não há espírito natalino capaz de suportar quieto o que diz Maringoni, em sua postagem de apoio ao Cid Benjamin.

O que diz Cid Benjamin?

Que não considera acertada “a posição do PT, depois acompanhada pelo PSol, de que seus parlamentares não estejam presentes na posse oficial de Bolsonaro na Presidência”.

A crítica de Cid Benjamin seria totalmente correta, se estivéssemos enfrentando uma situação normal, se estivéssemos diante de um governo que respeita as liberdades democráticas.

Mas não estamos.

Vide os assassinatos durante e depois da campanha eleitoral. Vide o que ocorreu na diplomação, em vários estados, com agressões aos parlamentares de esquerda. Vide as posições adotadas pelo STF e pelo TSE. Vide a campanha de fake news. Vide o tratamento dado ao caso Queiroz. Vide..

O fato é que não vivemos uma situação normal.

Por qual motivo, então, deveríamos adotar uma postura normal?

Sendo assim, acho perfeitamente defensável e correta a posição do meu partido (PT) e a posição do partido de Cid Benjamin (PSOL), de não comparecerem à posse de Bolsonaro.

Cid Benjamin diz que “não será um ato festivo (e aí, sim, se justificaria a ausência), mas uma formalidade de posse ao vencedor da eleição”.

Realmente não será um ato festivo, pelo menos não para nós.

Mas alguém tem alguma dúvida acerca do que ocorrerá no dia 1 de janeiro de 2019? Alguém espera que não ocorram provocações? Devemos fingir que Brasília não está em situação de semi-sítio?

Cid Benjamin acentua que se trata apenas de uma “formalidade de posse”. 

Pois bem, pergunto: por qual motivo nós devemos respeitar esta formalidade, especificamente?

Cid Benjamin argumenta que “por pior que seja o eleito, os demais partidos participaram da disputa. Esta foi marcada por distorções, é verdade. Mas um questionamento à sua legitimidade teria que ser feito antes”.

Não acho que estamos diante de “distorções” apenas. Cid Benjamin deve lembrar que o PT fez vários questionamentos acerca do processo eleitoral. Foram todos desconsiderados.

Não me refiro apenas aos protestos contra a interdição de Lula, o que constitui o caso mais claro de fraude. Refiro-me também às ações impetradas junto ao TSE, contra os crimes cometidos pela campanha de Bolsonaro.

Frente à postura parcial da justiça, temos ou não o direito de subir o tom de nosso protesto?

Ou devemos aceitar que estamos numa situação normal, que nossos questionamentos foram acatados e que a decisão do Judiciário é justa?

Cid coloca entre parêntesis a seguinte frase: “não se sustenta a posição defendida por alguns petistas: ‘eleição sem Lula é fraude’, se depois se participa da eleição sem a presença de Lula”.

Podemos discutir longamente a respeito disto, mas não é isto o que está em questão. 

O que está em questão é: o governo de Bolsonaro não é um governo que respeite as liberdades democráticas e, por isso, os democratas têm o direito de não respeitar certas formalidades.

Entretanto, concordo com Cid Benjamin que “esta não é só uma questão formal”.

Corretamente, Cid afirma que “com a aplicação do programa de Bolsonaro, parte de sua base eleitoral vai começar a se descolar dele. E teremos que dialogar com essa base, sob pena de não revertermos a situação de sermos minoria”.

Se entendi direito, Cid acha que este diálogo ficaria “dificultado” pela atitude de “participar da eleição e questionar sua legitimidade depois de perdê-la”.

Segundo ele, dificultaria “o diálogo com quem votou no vencedor, talvez com quem não votou em ninguém mas quer esperar o que vem por aí ou mesmo em parcela dos que votaram em Haddad no segundo turno, mas que reconhecem que Bolsonaro ganhou e tem o direito de começar seu governo”.

Eu não acho que este argumento seja despropositado, longe disso. Mas eu sugiro desenvolver a lógica contida no argumento de Cid, para ver onde ela vai dar.

Nós participamos da eleição. A eleição foi marcada por “distorções”. Estas "distorções" influíram de maneira decisiva no resultado final. O presidente eleito dá todos os sinais de que vai continuar lançando mão de “distorções” semelhantes, com a vantagem de ter na sua mão a “legalidade” e a “legitimidade”. O que devemos fazer frente a isso? Agir como uma “oposição leal”, que admite que o presidente tem o direito de fazer o que está fazendo? Ou devemos também questionar a “legalidade” e a “legitimidade”?

Como se vê, quando se desenvolve o pressuposto da crítica de Cid Benjamin, chegamos numa postura tática que seria acertada no caso do PSOL fazendo oposição ao PT, ou (com ressalvas) no caso do PT fazendo oposição ao PSDB. Mas que não considero uma postura acertada, no caso da esquerda fazendo oposição a um governo como o de Bolsonaro.

Não é por coincidência, aliás, que Cid Benjamin inclua, neste momento de seu post, a seguinte lembrança: “Esse caso agora me lembrou o debate havido no PT em 1988 (na época eu estava no partido), sobre assinar ou não a Constituição aprovada. Ora, os parlamentares petistas tinham participado ativamente da elaboração da Carta e foram decisivos para a aprovação de alguns de seus pontos. Só porque não conseguiram emplacar outros, seria o caso de não assinarem sua versão final? Alguém questionava a legitimidade do processo?”

Cid poderia ter falado a história inteira: o PT de fato assinou a Constituição de 1988. Mas o PT também decidiu fazer um gesto formal: na última votação, aquela em que todos os constituintes votam SIM ao texto final, a bancada do PT votou contra. Era mera formalidade. Mas aquela mera formalidade tinha um enorme simbolismo, que junto com outros – por exemplo, não comparecer ao Colégio Eleitoral – ajudaram o PT a se consolidar como força oposicionista.

Cid conclui seu post dizendo que “participar do jogo institucional implica conviver num mesmo espaço com bandidos ou com direitistas (o que não significa conviver amigavelmente ou mesmo deixar de combatê-los com firmeza)”.

É curioso ouvir isto de alguém que foi para o PSOL. Confirma uma blague acerca da comparação entre o PT e o PSOL, que em respeito ao Natal não vou citar aqui. Até porque o que interessa é: ao não comparecer à posse formal de Bolsonaro, a esquerda está mandando um recado, o de que vamos “combater com firmeza” a direita bandida. 

O que Cid propõe seria, exatamente, começar o governo num ambiente de convívio amigável.

Até aqui comentei o que disse Cid Benjamin.

Agora vou falar do que disse Gilberto Maringoni.

Maringoni elogia o “corajoso post de Cid Benjamin”, reconhece que “pode” (!!!???) ser “montada alguma provocação” contra a esquerda durante a posse e acrescenta que “a posse se dá no Congresso e é um ato de Estado e não de governo”.

Maringoni, como Cid Benjamin, dá aqui um sinal de não ter percebido que as regras mudaram.

Foi o Estado brasileiro quem operou para derrotar a esquerda.

O fato da posse ser um “ato de Estado” e não “de governo” não possui, hoje, o significado que tinha no período 1989-2014.

Neste ponto, Maringoni esquece do PSOL (seu partido) e passa a atacar "abaixo da linha da cintura" o PT.

Reproduzo aqui a frase: “De resto, para um partido, como o PT, que subestimou o perigo fascista, que não atacou Bolsonauro no primeiro turno e que o considerava o adversário preferencial no segundo, o gesto nada tem de corajoso ou radical. É birra pura. Ainda mais levando-se em conta que o governo B. conta com um dos principais quadros dos governos petistas - Joaquim Levy - em posto de comando da nova gestão. Não é um filiado do PT, mas sua presença no novo governo expõe sérias contradições nas gestões do partido”.

Vamos lá, ponto a ponto.

O PT subestimou o perigo fascista!

O PT não atacou Bolsonaro no primeiro turno!

O PT considerava Bolsonaro o adversário preferencial no segundo turno!

Vamos supor, apenas para facilitar a conversa, que tudo isso fosse verdade. 

Pergunto: esses supostos erros maculam, para todo o sempre, tudo o que o PT fizer?

Ou o PT pode ter errado ontem e pode estar acertando hoje?

O gesto do PT “nada tem de corajoso ou radical”!

Vamos supor, também apenas para facilitar a conversa, que isto também seja verdade.

Até porque o gesto de não comparecer a posse de um cavernícola pode ser, apenas e tão somente, um sinal de apreço pelas liberdades democráticas. 

Não é preciso ser radical para fazer isto, basta ser coerente.

Além disso, os atos políticos não precisam ser sempre e necessariamente “corajosos”. A luta política não é roteiro de história em quadrinhos. 

Ademais, se coragem é um atributo que muitas vezes pode ser decisivo, inteligência, decência, coerência, honestidade, consciência de classe, fidelidade a certos princípios e senso de ridículo também são importantes.

E é sobre senso de ridículo que quero falar, para terminar.

Maringoni diz que a decisão do PT, em não comparecer a posse, é “birra pura. Ainda mais levando-se em conta que o governo B. conta com um dos principais quadros dos governos petistas - Joaquim Levy - em posto de comando da nova gestão. Não é um filiado do PT, mas sua presença no novo governo expõe sérias contradições nas gestões do partido”.

Quanto as tais contradições, Maringoni está arrombando porta aberta há muito tempo. 

Para ficar em exemplo recente, no dia 31 de novembro de 2018 a presidenta Dilma Rousseff reconheceu, em sua fala ao Diretório Nacional do PT, o caráter neoliberal da política monetária adotada em 2015.

Mas a questão é: o que uma coisa tem que ver com a outra?

Qual a relação que existe entre a presença de Levy no governo Bolsonaro e a decisão do PT de não comparecer a posse do cavernícola?

Birra?

Lula está preso, e a atitude do PT é birra??

Um cavernícola foi eleito presidente, e a atitude do PT é birra??

Birra???

Suponhamos que o PT esteja errado. Que o correto fosse fazer o que Cid diz. Ainda assim, porque qualificar a atitude do PT de "birra"???

O termo é tão insólito que me lembrei de um comentário que ouvi de um velho comunista, acerca do macarthismo: era uma época de ataque generalizado contra a classe, contra a esquerda, contra o partido. Éramos atacados por leões, lobos e urubus. Mas chato mesmo era suportar algumas hienas.

Demorei para entender a "birra" dele com "algumas" hienas. Até entender porque algumas riem mais do que as outras. Aí tudo fez sentido.

Aqui estão os textos comentados: https://www.facebook.com/100006008748448/posts/961589207384695/

Sobre a risada de algumas hienas, ver no final: https://www.bbc.com/portuguese/ciencia/2009/05/090512_hiena_risada_mv


domingo, 30 de dezembro de 2018

A esquerda que sabe quem é: resposta a Eliane Brum


No dia 19 de dezembro de 2018, El País publicou um artigo intitulado “A esquerda que não sabe quem é”, assinado pela escritora, repórter e documentarista Eliane Brum.

Concordo com Eliane Brum, no que diz respeito à necessidade da oposição a Bolsonaro se mover “com consistência, estratégia e propósito”. Mas discordo de quase todo o resto do que é dito, pelos motivos expostos a seguir.

Antes, um comentário: reagir não é suficiente, mas reagir é muito importante.  A ausência de reação, especialmente frente a governos como o de Bolsonaro, não é apenas um erro tático ou estratégico, é uma indecência moral.

Voltando ao texto da Eliane Brum: ela começa afirmando que “a esquerda foi demonizada pela turma do Bolsonaro, do MBL (Movimento Brasil Livre), do Olavo de Carvalho e outras. Para uma parte da população, virou tudo o que não presta, seja lá o que for. Às vezes esquerda e comunismo e marxismo viram uma coisa só no discurso repetitivo e feito para a repetição. E essa coisa que viram pode ser qualquer coisa que alguém diz que é ruim. A reação daqueles que se identificam com a esquerda é acusar os que estimulam esse desentendimento, aqui no sentido de não entender mesmo do que tratam os conceitos, de manipuladores e de desonestos. E com frequência é isso mesmo que são. Mas se fosse só isso seria mais fácil”.

E?

E “o problema é que está muito difícil saber o que a esquerda é. E o que a esquerda propõe que seja claramente diferente da direita. O PT se corrompeu no poder. É um fato. Pode se discutir bastante se o PT é um partido de esquerda. Eu, pessoalmente, acho que foi de esquerda só até a Carta ao Povo Brasileiro, durante a campanha de 2002. Outros encontram marcos anteriores de rompimento com um ideário de esquerda”.

Reproduzi na íntegra os dois parágrafos de Eliane Brum (o texto completo pode ser acessado no endereço https://brasil.elpais.com/brasil/2018/12/19/opinion/1545240940_077902.html?fbclid=IwAR2Foj7W0aSlYKQ2Jmv-Az5Pk1eE_u7MO_65Z76e2H4dkxkPP2H1Yp4tNhA) porque eles são ilustrativos de um “jeito de pensar” que começa criticando com ressalvas a direita -- que “com frequência” seria mesmo manipuladora e desonesta -- para terminar criticando a esquerda, muitas vezes sem ressalvas, mais especificamente criticando o PT “que se corrompeu no poder”.

E a direita? E os ataques que Bolsonaro já está fazendo? Deduzo que vale aqui o que já foi explicado no início por Brum, a saber, que não bastaria reagir, é preciso “consistência, estratégia e propósito” e, para isto seria preciso fazer a famosa autocrítica. Que, como está implícito, inclui aceitar que “com frequência” a direita é manipuladora e desonesta, “mas se fosse só isso seria mais fácil”, ou seja, parte do que a direita diz seria verdade ou, pelo menos, teria algum fundo de verdade.

Será mesmo?

Segundo Brum, “o problema é que está muito difícil saber o que a esquerda é. E o que a esquerda propõe que seja claramente diferente da direita”.
Brum acha isso. Mas a direita acha isso?

Direita e esquerda são termos que têm uma longa história, e volta e meia há batalhas teóricas e políticas acerca de como devem ser conceituados.
No que me diz respeito, tratam-se de termos relacionados entre si, não apenas conceitualmente, mas na luta política e social real.

E neste terreno – o da realidade atual, no Brasil desta virada de ano de 2018 para 2019 – talvez o melhor jeito de descobrir quem é a esquerda, seja olhando quem é o alvo principal dos ataques de Bolsonaro,  do MBL e de Olavo de Carvalho.

Brum obviamente não concorda com este critério, pois já que para ela “o PT se corrompeu no poder. É um fato. Pode se discutir bastante se o PT é um partido de esquerda. Eu, pessoalmente, acho que foi de esquerda só até a Carta ao Povo Brasileiro, durante a campanha de 2002. Outros encontram marcos anteriores de rompimento com um ideário de esquerda”.

Voltaremos ao tema da “corrupção” logo a seguir. Antes, um comentário: eu sou do PT desde os anos 1980. Era do Diretório Nacional do PT em 2002. Votei contra a aprovação da Carta ao Povo Brasileiro. Achava e continuo achando que foi um erro, que nos custou muito caro. Esclarecido este detalhe pessoal, não concordo com a opinião de Brum, por dois motivos, um menos e outro mais importante.

O motivo menos importante é que a Carta ao Povo Brasileiro não substituiu o “ideário” socialista do PT por um ideário “social-liberal”. A aprovação daquela Carta, pelo voto da maioria do Diretório Nacional do PT em 2002, reforçou elementos social-liberais que já vinham se mesclando ao ideário socialista do PT, desde pelo menos 1995. Mas não houve substituição, ou seja, do ponto de vista ideológico o PT não se converteu num partido de centro-esquerda ou de centro.

O motivo mais importante é que o critério para considerar se alguém é ou não de esquerda não pode ser apenas o “ideário”. Pois se fosse assim, os únicos partidos de esquerda realmente de esquerda seriam os de laboratório, aqueles que não precisam enfrentar as contradições da vida real, fazer concessões, fazer acordos, negociar soluções intermediárias. 

Em minha opinião, é preciso incluir na balança outro critério, o da prática. No caso, é preciso perguntar: os governos Lula e Dilma contribuíram para melhorar ou para piorar a vida da imensa maioria do povo? Pois no limite é isso que faz alguém ser ou não ser de esquerda, não do meu ponto de vista, não do ponto de vista de Brum, mas do único ponto de vista que pode ser decisivo nesta polêmica, a saber: o ponto de vista das classes trabalhadoras e o ponto de vista dos grandes capitalistas.

A resposta a esta questão (“contribuíram para melhorar ou para piorar?”) pode não ser unânime, pode não ser definitiva, pode incluir ressalvas, pode ser contraditória, mas olhando de conjunto os 14 anos dos governos Lula e Dilma, os dados objetivos indicam que a presença do PT na Presidência da República contribuiu para melhorar a vida da maioria do povo e, por isso mesmo, os capitalistas adotaram o caminho da reação.

É por isso que, em minha opinião e também no senso comum de grande parte das pessoas, o PT continua sendo um partido de esquerda, mesmo que seu ideário tenha se enfraquecido, mesmo que a Carta ao Povo Brasileiro tenha sido um erro etc.

Agora quero voltar ao tema da corrupção. Segundo Brum, “o PT se corrompeu no poder. É um fato”.  Ela diz também que “negar que o PT se corrompeu no poder é quase tão delirante quanto negar o aquecimento global provocado por ação humana.”

Brum talvez não perceba, mas sua maneira de tratar do tema está mais para teológica, do que para política. O que é um sinal dos tempos, uma demonstração de que a visão de mundo fundamentalista está ganhando adeptos fora da seara bolsonarista.

O viés teológico aparece não apenas no descarte ameaçador contra quem pensa diferente (a corrupção seria um “fato” não reconhecido apenas por quem é “delirante” ou “mau caráter”), mas principalmente na afinidade que existe entre sua noção de “corrupção” e a transformação sofrida quando se abandona o plano paradisíaco do “ideário”.

Antes, um detalhe: o PT nunca chegou “ao poder”. O poder real neste país continuou nas mãos de quem já o dominava, em 2002. O PT chegou ao governo federal, elegeu um presidente, controlava malemale uma parte da burocracia estatal, parte do Congresso Nacional, parte dos governos estaduais e prefeituras municipais e tinha influência em outros espaços e instituições. Mas o poder continuou nas mãos da classe dominante.

Mas admitamos que é isto que Brum quis dizer: que o PT se corrompeu “no governo”. Isto é mesmo um “fato”?

Naquele sentido “teológico”, é. Afinal, todo partido de oposição, ao vencer, se converte em partido de governo. Esta mudança não é um detalhe. Altera seu lugar na sociedade, como se é percebido pelos demais, como se percebem os problemas, como se atua etc. E, o que é mais grave, uma vez governo, o antigo partido de oposição é chamado a implementar seu programa. E ao fazê-lo, se depara com inúmeras dificuldades. É obrigado, inevitavelmente, a fazer mediações, concessões. Parte de suas bases e parte de seus adversários dizem que estas mediações são uma traição dos princípios originais. E acusam: o partido “se corrompeu no poder”.

A questão é: isto que descrevemos acima aconteceu com absolutamente todos os partidos de esquerda, tanto os que chegaram ao poder, quanto os que chegaram ao governo, durante todo o século XX e início do século XXI. E acontecerá novamente no futuro. Portanto, se adotarmos um ponto de vista maximalista a respeito, a conclusão é que a esquerda deve ficar eternamente na oposição, assim ela não se “corrompe”.

Mas para aqueles que querem transformar a sociedade, e que sabem que para isso é preciso construir e conquistar o poder (não apenas governos), a questão não pode ser posta neste plano genérico.

A questão tem que ser posta no plano concreto: de que “corrupção” estamos falando? Noutras palavras: a chegada do PT ao governo federal causou que tipo e que quantidade de “corrupção”? E esta “corrupção” foi tanta, que alterou a natureza social e política do Partido? A quantidade se converteu em qualidade? O PT deixou de ser de esquerda, deixou de ser um instrumento útil para a classe trabalhadora?

Registro que estou empregando o termo “corrupção” aqui, quando poderia estar falando de transformação ou metamorfose, para respeitar a escolha feita por Brum. Mas longe de mim achar que esta escolha seja a melhor.
Pelo contrário, acho que trata-se de uma escolha que dialoga com os “piores instintos” dos setores médios, de esquerda ou de direita.

Brum afirma que, para o “senso comum, porém, o PT é um partido de esquerda. Não só é como foi a principal experiência de um partido de esquerda no poder da história da democracia brasileira. Logo, não se corromper no poder, fazer diferente da velha política conservadora, já não é uma diferença da esquerda para a população. Negar que o PT se corrompeu no poder é quase tão delirante — ou mau caráter — quanto negar o aquecimento global provocado por ação humana”.

Portanto, “não se corromper” seria “fazer diferente da velha política conservadora”. Logo, se o PT se corrompeu, é porque ele estaria fazendo a “velha política conservadora”.

Pergunto: esta acusação se baseia em quais fatos, exatamente? Perdão a quem possa achar que isso é mau caratismo ou atitude delirante, mas repito a pergunta: com base em quê o conjunto do PT, de sua militância, de seus parlamentares, de seus governantes, de suas lideranças e intelectuais podem ser acusados de estar fazendo a “velha política conservadora”??

No fundo, eu acho graça neste tipo de truque retórico adotado por Brum: “falar alto” (dizer é um fato, acusar quem não concorda de ser delirante ou mau caráter) simplesmente para ocultar que certas afirmações sobre o PT se tornaram “verdades” não por serem verdadeiras, mas pelo fato de serem repetidas milhares de vezes.

Aqui vale a pena destacar outro detalhe retórico muito interessante: Brum diz que o “para o senso comum” o PT “é um partido de esquerda”, apesar dele ter se corrompido, logo “não se corromper no poder (...) já não é uma diferença da esquerda para a população”. Ou seja: o PT não teria corrompido apenas a si mesmo, teria corrompido também a população.
Noto que esta foi uma acusação lançada contra o PT, entre 2006 e 2014: ter corrompido parcelas da população, através de determinadas políticas sociais. Mas aqui a acusação aparece num “plano” retórico mais elevado.
De toda forma, se é assim, por qual motivo então o senso comum acha que o PT é de esquerda?

Brum não responde a questão. Pelo contrário, ela faz uma lista do que ela considera terem “ações e omissões” que não “podem ser relacionadas com um ideário de esquerda, pelo menos de uma esquerda que mereça esse nome”. A lista inclui: “o desemprego voltou a crescer e os direitos do trabalhador começaram a ser cortados já no governo de Dilma Rousseff”; a “reforma agrária (...) não avançou de forma significativa no governo de esquerda”; “o MST (...) se domesticou quando o PT estava no poder. O mesmo aconteceu com grande parte dos movimentos sociais, que viraram governo em vez de continuar sendo movimentos sociais”; “nos governos do PT foram fortalecidos os laços com a bancada ruralista”; “se iniciou um claro projeto de desmantelamento da Funai (Fundação Nacional do Índio)”; Lula teria dito, em 2006, que “os ambientalistas, os indígenas, os quilombolas e o Ministério Público eram entraves para o crescimento do país”; Dilma sancionou a lei antiterrorista; as hidrelétricas na Amazônia; “comunidades urbanas pobres foram expulsas de suas casas para as obras superfaturadas da Copa e da Olimpíada, assim como povos da floresta foram arrancados de suas ilhas e beiradões para a construção de hidrelétricas”; “a Força Nacional foi usada para reprimir greve de trabalhadores na construção de Belo Monte e também reprimir protestos da população atingida contra a hidrelétrica”; “além de acentuar o horror do sistema prisional brasileiro, ainda fortaleceu a desastrosa política de “guerra às drogas”, comprovadamente falida”; no final do governo de Dilma Rousseff, até mesmo os melhores projetos construídos nos governos do PT, os claramente de esquerda, como na área da saúde mental, começaram a ser desmanteladas”.

Ufa.

Aos que chegaram vivos até este ponto, Brum afirma o seguinte: “A lista pode continuar. Mas acredito que já está de bom tamanho para expor aquilo que acho importante afirmar se quisermos compreender esse momento tão delicado. De forma nenhuma eu entendo que o governo do PT foi igual aos anteriores, muito menos que seja parecido com o governo de extrema direita que já começou”.

Digamos, para facilitar a conversa, que tudo o que Brum disse fosse verdade. Pergunto: por qual motivo, então, o senso comum segue achando que o PT é de esquerda???

Ela lista, desta vez sem apresentar senões, “o avanço nas cotas raciais, a ampliação do acesso ao ensino superior, a expansão do Bolsa Família, o aumento real do salário mínimo, a consequente redução da miséria e da pobreza”, que “mudaram o país”.

Mas diz que “não é permitido desviar das contradições. É necessário caminhar com elas e enfrentar as complexidades se a esquerda quiser se mover — e não apenas reagir e reagir. E reagir de novo”.

Verdade: não nos é permitido desviar das “contradições”. Mas a noção de “contradição” consiste exatamente em “ser” e “não ser”. Logo, se estamos no plano da análise das “contradições”, o correto seria dizer que o PT é de esquerda, continua sendo, mas ao chegar ao governo implementou políticas contraditórias entre si e consigo mesmo.  Como já vimos, entretanto, não é isto que Brum pensa. Ela acha que o PT deixou de ser de esquerda desde 2002. Portanto, a conclusão é encaminhada (embora não afirmada) para o seguinte desfecho: as políticas de direita cometidas durante os governos Lula e Dilma são de responsabilidade do PT, as políticas de esquerda são de responsabilidade... do Espírito Santo?

Deixemos de lado a minha interpretação e passemos à análise das palavras dela: “o que afirmo é que a última — e em certa medida única — experiência de esquerda que marca a memória da população foi construída pelos governos do PT. E que as diferenças não são suficientes para que a população possa compreender um projeto de esquerda. Como o cérebro humano em geral recorda e torna totalizante o que vem por último, a diferença de um governo de esquerda para qualquer outro fica ainda mais nebulosa. É possível que, no futuro, quando for um passado mais distante, os anos de Lula ganhem os tons da nostalgia”.

No parágrafo acima tem três palavras que, no contexto, se tornam curiosas: “compreender”, “população” e “cérebro".

A população brasileira é composta por cerca de 200 milhões de pessoas, com mais de 135 milhões de eleitores. Recentemente tivemos uma eleição que funciona como uma pesquisa de opinião acerca do que pensa esta população. No segundo turno, cerca de 31 milhões não escolheram ninguém, 47 milhões foram de Haddad e 57 milhões foram de Bolsonaro. 

Portanto, primeira conclusão: a “população” brasileira é heterogênea e, portanto, não há como ela “compreender” da mesma forma os fenômenos. Segunda conclusão: o “cérebro” não forma sua opinião acerca dos fenômenos políticos e sociais, de forma similar a que registra os fenômenos circunvizinhos. Não se trata de um fenômeno apenas biológico ou neurológico, é um fenômeno psico-social muito complexo.

Prova disso? A “prova”, entre aspas, é que havia uma maioria do eleitorado pesquisado disposto a votar em Lula, apesar de haver uma maioria relativa com críticas ao que fora o governo Dilma. O “cérebro” da “população” não teria sabido “compreender” um “projeto de esquerda”? Ou a consciência de uma parte das classes trabalhadoras é esperta o suficiente para saber diferenciar amigos, contradições incluídas, de inimigos?

Para deixar mais claro onde quero chegar: Brum está no seu direito de apontar todas as contradições, erros, omissões e inclusive traições que ela julgue tenham sido cometidas pelo PT. E o PT tem o dever de debater cada uma dessas questões, não por conta de Brum pessoa física, mas por conta de que parte da nossa base social acredita ou tem dúvidas a respeito. Isto posto, Brum, na minha opinião, erra feio quando nega ao PT a condição de partido de esquerda (recentemente Mangabeira Unger fez o mesmo, em entrevista concedida à Folha de S. Paulo).

Sigamos adiante: Brum diz que “os anos de melhoria de vida determinadas por políticas públicas vão sendo apagados pelas dificuldades imediatas num país formado em sua maioria por sobreviventes com medo de perder o que ainda têm. A vitória de Fernando Haddad (PT) sobre Bolsonaro no Nordeste mostra justamente que, nos estados mais pobres do país, a maioria entendia muito claramente qual era a diferença. Mas essa diferença, marcada por políticas públicas como o Bolsa Família, não teve o mesmo impacto nas demais regiões de um país gigante, desigual e culturalmente diverso”.

A primeira parte do raciocínio acima, dedicada ao futuro, é algo que pode ou não se confirmar, a depender da luta política. Da mesma forma como os momentos ruins do final do governo Dilma não apagaram os anos bons do segundo governo Lula, os momentos péssimos que virão com Bolsonaro não apagarão os momentos positivos dos governos petistas... a não ser que o PT seja destruído, ou tão desmoralizado, que o esquecimento se imponha porque o PT deixou de reagir e até mesmo de existir.

Aqui é o ponto que me parece mais grave: há determinado tipo de crítica ao PT que, no fundo, nega ao partido o direito de existir no presente e no futuro. Pois seu passado é reescrito de tal forma que ter feito parte dessa história começa a ser apresentado como algo vergonhoso. De certa forma foi o que se tentou fazer com a tradição marxista, comunista e revolucionária do século XX. Não tiveram êxito e, faço votos e luto por isto, não terão êxito no que tentam fazer com o PT.

Passo agora ao segundo trecho do parágrafo que reproduzi acima: “A vitória de Fernando Haddad (PT) sobre Bolsonaro no Nordeste mostra justamente que, nos estados mais pobres do país, a maioria entendia muito claramente qual era a diferença. Mas essa diferença, marcada por políticas públicas como o Bolsa Família, não teve o mesmo impacto nas demais regiões de um país gigante, desigual e culturalmente diverso”.

Como apontei antes, Brum as vezes recicla argumentos que saíram de um “ideário” conservador. É o caso da afirmação segundo a qual a Bolsa Família teria sido o fator essencial do voto em Haddad “no Nordeste”. E para que não sobrem dúvidas sobre o que estou querendo dizer, recomendo ler o que vem logo a seguir no texto de Brum: “Uma das chaves para compreender por que Lula ocupava um primeiro lugar folgado nas pesquisas pré-eleitorais para a presidência, em 2018, antes de sua candidatura ser impedida pelo judiciário, também aponta para algo importante. O Brasil cheio de potência da primeira década do século está intimamente ligado à figura de Lula, que terminou o segundo mandato com quase 90% de aprovação — e não está ligado ao PT e à esquerda, ou está muito menos ligado ao PT e à esquerda. Também nisso não se fez diferente da extrema direita populista”.

As palavras são mais educadas, as frases são mais bem construídas, mas no fundo lembra o raciocínio da direita: os populistas compraram o voto dos pobres.

O que mais me incomoda neste raciocínio não é a falta de lógica, mas sim o preconceito de classe. A votação do PT, no país como um todo e em cada região em particular, tem muitas motivações e explicações. A ênfase em uma explicação, em um fator causante, está ligada a afirmação de uma narrativa. E, neste caso, esta narrativa se estrutura em torno de um preconceito de classe e regional: o Brasil é “um país gigante, desigual e culturalmente diverso”, portanto o que vale para o “Nordeste”, não valeria para o resto do país.

Afirmo tratar-se de um preconceito, por dois motivos. Primeiro, porque não se pergunta quais foram os motivos dos eleitores de Bolsonaro. A pergunta é apenas sobre os motivos de quem votou em Haddad e, claro, estes votaram em troca de algo!!!

Segundo, porque não se pergunta em quem votaram todos os eleitores que recebem Bolsa Família. A maioria votou em Haddad? Ou é provável que tenha ocorrido uma distribuição de votos similar ao do eleitorado nacional? E, nesse caso, não seria o caso de perguntar por outras motivações de voto, que não o recebimento da bolsa família?

Seria um exagero a acusação de preconceito? Não, infelizmente não é. Pelo menos é o que eu deduzo da frase a seguir: “O tratamento de eleitores como adultos infantilizados – e não como cidadãos emancipados – é uma conta alta que o PT e toda a esquerda estão pagando agora.”

Novamente, esta acusação não é nova e pode ser encontrada na caixa de ferramentas do PSDB e de uma parte da direita. Mas chega a ser patético que esta acusação seja lançada contra o PT, levando em conta o que foi e que recursos utilizou a campanha de fake news desenvolvida por Bolsonaro. Depois das mamadeiras, acusar o PT de tratar os eleitores como adultos infantilizados é o que há de despropósito.

Neste ponto, o alvo de Brum passa a ser não apenas o PT, mas também Lula. Atrás já perguntei: se “as políticas de direita cometidas durante os governos Lula e Dilma são de responsabilidade do PT, as políticas de esquerda são de responsabilidade... do Espírito Santo?”

Repito mais uma vez um trecho de Brum a respeito: “o Brasil cheio de potência da primeira década do século está intimamente ligado à figura de Lula, que terminou o segundo mandato com quase 90% de aprovação — e não está ligado ao PT e à esquerda, ou está muito menos ligado ao PT e à esquerda”.

A frase é um pouco vacilante (primeiro ela afirma que “não” está ligado, depois ela diz que está “muito menos ligado” ao PT e à esquerda), mas a vacilação desaparece no que toca ao papel de Lula: ele seria central, não importa qual tenha sido o papel do PT e da esquerda.

E o que Brum nos diz sobre Lula? Que sua relação “com os eleitores, em especial a partir do segundo mandato, foi populista e paternalista. Os eleitores não eram tratados como cidadãos autônomos, que conferiam ao governante um mandato de poder temporário, que seria rigorosamente fiscalizado por eles, mas sim filhos a quem um pai afetuoso concedia agrados. Foi também como “mãe do PAC” ou “mãe dos pobres” que Dilma foi apresentada na primeira eleição, embora não tenha funcionado graças ao desconforto louvável que ela sentia com o figurino”.

Aqui outro comentário pessoal: não faço parte da tendência de Lula, não sou nem nunca fui “lulista”, não aprecio determinados recursos de retórica, nem acho que por estar injustamente preso ele não possa ser criticado. Isto posto, acho que a crítica de Brum confunde retórica com conteúdo.

É verdade que, num certo sentido, Lula é “paternalista”, tanto quanto foram Fidel Castro e Hugo Chavez. Mas o que é melhor, do ponto de vista do povo? Ter um presidente que tenha afeição e preocupação real pelas condições de vida do povo? Ou ter um presidente incapaz de empatia pelos sofrimentos do cidadão comum? Incapaz seja porque não viveu nada parecido com estes sofrimentos ou incapaz porque foi treinado, em alguma academia, a achar que ser “paternalista” é feio, bonito é ser “científico”?

É verdade, também, que num certo sentido Lula é “populista”. Ele faz parte de uma corrente da esquerda latino-americana que buscou construir uma aliança entre as classes trabalhadoras e parte do empresariado. Como antes em nossa história, a classe dominante primeiro se opõe, depois tolera e tenta cooptar, depois rejeita e tenta destruir este tipo de “populismo”.

O referido “populismo” tem muitos defeitos. Mas não é correto, no sentido de não ser aderente aos fatos, acusar este populismo de não tratar os “eleitores” como “cidadãos autônomos, que conferiam ao governante um mandato de poder temporário, que seria rigorosamente fiscalizado por eles, mas sim filhos a quem um pai afetuoso concedia agrados”.

Não me refiro a retórica, me refiro aos fatos: os momentos em que houve maior ampliação das liberdades democráticas para as classes trabalhadoras, no Brasil e na América Latina, foram exatamente aqueles momentos em que o “populismo de esquerda” esteve no governo.

Por exemplo: posso me incomodar com a retórica segundo a qual Evita era a “mãe dos pobres”, mas não posso desconhecer que tenha sido no governo Perón que os trabalhadores em geral e as mulheres em particular ganharam mais direitos políticos e sociais.

Brum diz que “o PT tem grande responsabilidade em converter direitos em concessões ou favores no imaginário popular, o que marca o pior da política”. Acontece que, tirante momentos retóricos, não foi isto o que ocorreu. Pelo contrário! A maior parte da população beneficiada por políticas de transferência de renda nos governos Lula e Dilma atribuiu sua melhoria social a Deus, ao apoio da família e a seu próprio esforço pessoal. Portanto, das duas, uma: ou o PT tentou e não conseguiu; ou o PT não tentou fazer isto de que Brum nos acusa.

O grave é que esta acusação contra o PT tem como objetivo declarado “passar o pano” na direita, como se pode conferir no seguinte trecho: “Não me parece, portanto, que a demonização da esquerda seja apenas conferida pela manipulação articulada pela extrema direita e também resultado da ignorância de grande parte da população sobre conceitos básicos. Em parte, sim. Mas há algo concreto, factual e legítimo, embora nem sempre claro, na reação de parte da população contra a esquerda. Se você não consegue ver a diferença entre os projetos e a sua vida está ruim, o culpado é quem estava no governo. E o PT esteve no governo por mais de 13 anos. Se você não consegue ver diferença, esquerda é o nome de tudo o que você odeia”.

Ou seja: a culpa é do PT.

Não sei do que nós, petistas, reclamamos. Afinal, a culpa é sempre nossa.
Mas, mesmo correndo o risco de ser acusado de “delirante”, proponho analisar com carinho o raciocínio de Brum. Para fazer isso mais facilmente, tomei a liberdade de reescrever por minha conta e risco sua frase, mas usando o raciocínio direto.

Ficaria assim: A demonização da esquerda é em parte conferida pela manipulação articulada pela extrema direita e em parte resultado da ignorância de grande parte da população sobre conceitos básicos. [Mas também] Há algo concreto, factual e legítimo, embora nem sempre claro, na reação de parte da população contra a esquerda. O PT esteve no governo por mais de 13 anos. Se você não consegue ver a diferença entre os projetos e a sua vida está ruim, o culpado é quem estava no governo. Se você não consegue ver diferença, esquerda é o nome de tudo o que você odeia.

Vamos por partes, começando pelo início. No Brasil, desde que se introduziram os processos eleitorais para escolha de governantes, a classe dominante teve que aprender a operar para “manipular” parte das classes trabalhadoras. Isto não é uma novidade introduzida por Bolsonaro, é da natureza do sistema eleitoral no capitalismo em geral e no brasileiro em particular. A exceção ocorre exatamente quando a esquerda convence a maioria dos trabalhadores a votar nos seus próprios representantes de classe.
Portanto, a questão central não é a manipulação em si. Nem é o fato da manipulação de 2018 ter se baseado em fatos reais.  Afinal, toda e qualquer manipulação só funciona quando se apoia em algo real. Mas não é comum ver intelectuais democratas fazendo “mediações” com o nazismo por conta disso.

A questão central consiste em responder uma sequência de questões: a) primeiro, por qual motivo parte do eleitorado que votava no PT deixou de votar ou se absteve; b) segundo, saber por qual motivo a candidatura preferida pela classe dominante foi Bolsonaro e não outra, mais polida; c) em terceiro lugar, quais foram os meios e os argumentos utilizados pela candidatura Bolsonaro.

Não é possível explicar a vitória de Bolsonaro, sem considerar as três questões. Até porque Bolsonaro não convenceu a maioria da população, nem convenceu a maioria do eleitorado. Se Haddad tivesse conquistado mais 5 milhões de votos, talvez tivesse vencido a eleição. E se Lula tivesse sido candidato, Bolsonaro não teria vencido.

Noutras palavras, a vitória de Bolsonaro não foi obtida através de “argumentos”. A vitória de Bolsonaro foi obtida, antes de mais nada, através do golpe contra Dilma e através da interdição da  candidatura de Lula. Omitir estes dois detalhes e discutir os “argumentos” é omitir aspectos essenciais da história.

Isto posto, vamos nos focar no detalhe: os argumentos. Segundo Brum, “a eleição de Bolsonaro mostrou que a esquerda não convenceu a maioria dos eleitores de que pode mudar sua vida para melhor. Então muita gente preferiu tentar algo extremo, porque o desamparo é grande. E como a vida no Brasil está ruim mesmo, é catártico poder culpar alguém por todas as merdas que acontecem no seu dia, assim como pela imensa sensação de fracasso e de insegurança. A esquerda — ou o comunismo ou o marxismo — virou esse nome para tudo o que não presta, já que não dá para saber o que ela é e o que propõe de fato”.

Minha dificuldade em aceitar este raciocínio é sua excessiva generalidade. Volto aos números: 57, 47, 31. Bolsonaro não conseguiu convencer a maioria dos eleitores. Convenceu a maioria dos que foram votar. Parte do eleitorado de Bolsonaro votou em favor de seus interesses: são capitalistas ou parte dos setores médios tradicionais, que tinham motivos muito concretos para votar contra o PT. Outra parte do eleitorado de Bolsonaro é composta por trabalhadores que já votavam tradicionalmente contra o PT. Fizeram isso em 2002, 2006, 2010 e 2014. Portanto, a novidade não é que tenham votado contra o PT, a novidade é que tenham visto em Bolsonaro (e não em tucanos) uma alternativa. Uma terceira parte do eleitorado de Bolsonaro é composta por gente que votou no PT nas últimas eleições. Neste caso, estamos diante de uma dupla novidade: não apenas deixaram de votar no PT, mas como também passaram a votar num inimigo declarado do PT.

Sendo assim, voltemos ao raciocínio de Brum, segundo o qual “a eleição de Bolsonaro mostrou que a esquerda não convenceu a maioria dos eleitores de que pode mudar sua vida para melhor”. Como demonstramos, este argumento não cabe para uma parte do eleitorado de Bolsonaro, que nunca poderá ser convencido de que o PT pode mudar sua vida para melhor. Também não cabe para outra parte do eleitorado de Bolsonaro, porque são setores da classe trabalhadora que nunca foram convencidos a votar no PT. Resta assim uma terceira parte, para a qual o raciocínio de Brum valeria desde que fosse assim ajustado: “a eleição de Bolsonaro mostrou que a esquerda perdeu o apoio de uma parte dos eleitores a quem antes havia convencido de que podia mudar sua vida para melhor”.

E a pergunta a ser respondida é: por quê?

É neste momento que Brum introduz o famoso tema da autocrítica. Suas palavras são: “Quando se exige uma autocrítica do PT é exatamente porque sem ela não é só o PT que não avança, mas todo o campo da esquerda que foi identificado com o PT, com ou sem razão. Como o PT usa inúmeras justificativas para não fazer autocrítica, o que me parece não só desrespeito aos eleitores, mas também um tremendo equívoco político, nada avança. Se você não pode falar sobre o que errou, e que todo mundo viu que errou, como alguém vai acreditar em seus acertos?”

Eu não sei se Brum teve a oportunidade de ler as resoluções do PT, desde 2005 até 2018. Se o fez, verá inúmeras autocríticas. Pode não ser as que ela gostaria, pode não ser as que eu gostaria, mas sem dúvida estão lá. Assim, a pergunta é: do que exatamente estamos falando?

Eu por exemplo gostaria que o PT fizesse uma autocrítica acerca de sua estratégia política. No meu vocabulário, isto quer dizer: fazer uma crítica da política adotada e adotar outra, que seja capaz de construir e conquistar o poder para as classes trabalhadoras, na perspectiva de construir o socialismo no Brasil.

Brum estaria pedindo uma autocrítica deste tipo? Penso que não. Pois para ela, “quando insisto na autocrítica do PT não estou preocupada com o futuro do partido, mas sim com a necessidade de a esquerda ser capaz de criar um projeto que mostre a sua diferença. Como o PT é a experiência de esquerda que a população viveu, a autocrítica é fundamental para que a esquerda possa construir um outro projeto. Autocrítica não como expiação cristã, mas como dever democrático, compromisso público com o público”.

Embora fale que não quer uma “expiação cristã”, Brum é honesta o suficiente para deixar claro que deseja que a esquerda construa “um outro projeto". E querer que o PT faça autocrítica para contribuir com sua própria superação, é exigir algo mais adequado a santos, não a partidos políticos. Sem falar do gosto amargo que provoca a invectiva, exatamente num momento em que a direita está operando para destruir o PT, com ou sem autocrítica.

Vou pular a parte do texto de Brum que fala de Daniel Ortega, Rosario Murillo e Nicolás Maduro. Passo direto para a frase acerca “dessa esquerda apodrecida, que morre abraçada com ditadores e não consegue admitir que se corrompeu, precisa ser superada. Essa esquerda que já não é está atrapalhando a esquerda que quer ser”.

Não é dito, mas na minha opinião está implícito: o PT está atrapalhando. Por acaso, esta a mesma opinião da extrema-direita.

A pergunta é: esta esquerda "que quer ser", caso mereça o posto, precisa lutar por ele. E conquistá-lo por mérito próprio, não por ter sido ajuda por uma "autocrítica" do PT, nem por ter sido ajudada pelos ataques da extrema direita contra o PT. 

E o PT? Bom, espero, faço votos e luto para que continuemos existindo, como principal partido de esquerda do Brasil, como representante da maioria dos trabalhadores e das trabalhadoras conscientes, como defensores da soberania nacional, da integração regional, das liberdades democráticas, do bem estar e do socialismo.

Brum termina seu artigo da maneira mais politicamente correta possível: defendendo que a esquerda continua sendo necessária, e que precisa dar à mudança climática o lugar central que ela tem na realidade.

Como ela, acredito que a única maneira totalmente coerente de enfrentar a mudança climática, é a partir de princípios de esquerda. No meu caso, com isto quero dizer: a partir de princípios e de políticas anticapitalistas.

Pois do ponto de vista histórico, uma esquerda que sabe quem é, é aquela que sabe contra o quê e contra quem luta. 

Quem se acha de esquerda, mas faz do PT seu alvo principal, perdeu o rumo.





segunda-feira, 24 de dezembro de 2018

Sem final feliz

https://teoriaedebate.org.br/estante/%EF%BB%BFsem-final-feliz/

A Editora Expressão Popular, a Fundação Perseu Abramo e a Fundação Rosa Luxemburgo acabam de traduzir e publicar, pela primeira vez em português, o livro A Revolução Alemã (1918-1919), de Sebastian Haffner, aliás Raimundo Pretzel (1907-1991).

Existem outras obras, traduções ou escritas originalmente em português abordando o mesmo tema, envolto em muitas polêmicas, algumas das quais abordadas nos textos escritos por Gerhard Dilger e Dainis Karepovs como introdução ao livro de Haffner-Pretzel.

A Revolução Alemã de 1918-1919 é muito pouco estudada pela esquerda brasileira, diferente da Revolução Russa de 1917, da Revolução Chinesa de 1949, da Revolução Cubana de 1959 e da Revolução Nicaraguense de 1979, que fazem parte do programa de formação política de oito em cada dez organizações de esquerda.

Quando comparece nos currículos de nossas escolas, a Revolução Alemã de 1918-1919 é geralmente citada brevemente como parte dos fatores que contribuíram para os caminhos e descaminhos do socialismo soviético, como prova cabal de que a social-democracia “traiu o socialismo”, como cenário do assassinato de Rosa Luxemburgo e ambiente no qual se gestaram alguns dos elementos que posteriormente cristalizariam no nazismo. E pouco mais se diz. É exatamente esse “pouco mais” que pode ser encontrado no livro de Haffner-Pretzel.

É importante lembrar: depois da derrota da Comuna de Paris (1871), as expectativas de um triunfo da classe trabalhadora se transferiram da França para a Alemanha. O Partido Social-Democrata alemão (SPD), fundado em 1875, se converteu na principal referência do movimento socialista internacional. Dentro desse partido conviviam posições de “direita”, “centro” e “esquerda”. Mesmo que a “direita” fosse cada vez mais predominante, esperava-se que a Social-Democracia alemã lutasse até o fim contra a guerra. A expectativa era tão grande que até mesmo Lenin, ao receber a notícia de que a bancada do SPD dera seu voto unânime, no dia 4 de agosto de 1914, a favor dos “créditos de guerra”, acreditou tratar-se de uma falsificação difundida pelo governo imperial alemão para confundir o movimento socialista. Mas, como sabemos, a notícia era verdadeira.

O apoio de fato à guerra aprofundou a cisão entre as diferentes tendências do SPD. Parte da esquerda do partido, liderada por Rosa Luxemburgo, Karl Liebknecht, Franz Mehring e Clara Zetckin, organizou em dezembro de 1914 uma tendência semiclandestina chamada Espartaquista. Em abril de 1917, o centro e a esquerda do partido formam o Partido Social-Democrata Independente (USPD). Os espartaquistas inicialmente participam do USPD, mas em janeiro de 1919 contribuem para a criação do Partido Comunista da Alemanha (KPD). Por fora do SPD, na base da classe trabalhadora e também nas Forças Armadas, desenvolve-se uma oposição popular de esquerda contra as posições majoritárias na social-democracia.

O livro de Haffner-Pretzel dá uma boa ideia acerca de como cada uma dessas organizações se movimentou, entre 9 de novembro de 1918 e 11 de agosto de 1919, ou seja, entre a dissolução do Império Alemão e a proclamação da República de Weimar.

O livro mostra, também, como os capitalistas alemães e a cúpula das Forças Armadas articularam com parte da social-democracia para impor limites e, no limite, derrotar política e militarmente os setores mais radicais da classe trabalhadora. Relata o envolvimento de líderes do SPD, a começar por Ebert, no assassinato de Rosa Luxemburgo. E demonstra como as tendências de esquerda (USPD, espartaquistas-comunistas e conselhistas) não conseguiram superar suas debilidades políticas e organizativas. O resultado disso foi uma república construída a partir da derrota da revolução, o que ajuda a entender o triunfo do nazismo quinze anos depois, bem como a profunda cisão entre social-democratas e comunistas.

Enfim, a história contada pelo livro de Haffner-Pretzel não tem final feliz, tampouco heróis triunfantes cujas teorias supostamente foram confirmadas pela prática. Mas, por isso mesmo, trata-se de uma história que deve ser estudada com extrema atenção, especialmente por nós da esquerda brasileira e latino-americana, nessa virada de ano de 2018 para 2019.




sexta-feira, 21 de dezembro de 2018

Congresso, plebiscito e direção

De Jandyra Uehara e Valter Pomar

Escrevemos este texto no dia 19 de dezembro de 2018. Faltam poucos dias para a posse do novo presidente da República. Se as liberdades democráticas estivessem plenamente vigentes, o presidente que tomaria posse seria Lula. Como as liberdades democráticas estão sob custódia, Lula está preso e quem vai tomar posse é Jair Messias Bolsonaro.
 
Visto de perto ou visto de longe, Bolsonaro tem todos os traços de um cavernícola. E seu ministério está à altura do presidente. Isso tem sido demonstrado, dia após dia, por cada gesto e por cada fala do presidente e de seus escolhidos para desgovernar o país. Mas atenção: não nos iludamos. A história do Brasil e do mundo tem muitos exemplos de governos encabeçados por cavernícolas, que duraram muitos anos e causaram muito estrago. A estupidez de Bolsonaro não quer dizer que ele vai cair amanhã, quer dizer apenas que ele vai agir de forma estupidamente truculenta contra o povo, a classe trabalhadora e a esquerda.
 
Bolsonaro era o homem certo, na hora e no lugar certos, para coroar a operação golpista que o PSDB desencadeou no dia seguinte ao segundo turno de 2014. Claro que o PSDB imaginava que o resultado seria outro. Claro, também, que muita gente de esquerda imaginava que o resultado seria outro. E poderia efetivamente ter sido outro, se as forças democráticas, populares e socialistas não estivessem tomadas de ilusões.
 
Ilusões em que não haveria golpe, ilusões em que não condenariam Lula, ilusões em que não prenderiam Lula, ilusões em que não interditariam a candidatura de Lula, ilusões em que a cúpula das FFAA não apoiaria o capitão, ilusões em que a cúpula do poder judiciário não iria compactuar com as ilegalidades de Moro, ilusões em que o TSE iria barrar a campanha suja de Bolsonaro, ilusões em que o empresariado iria rejeitar o ultraliberalismo selvagem de Guedes, ilusões em que os setores de centro iriam apoiar Haddad no segundo turno, ilusões....
 
A ilusão da vez é que o governo Bolsonaro será parecido aos governos Sarney, Collor e FHC. Apenas um pouco pior, mas parecido. Portanto, um governo ao qual faremos oposição e com o qual disputaremos nas eleições de 2020 e 2022.
 
Mas não será. O governo Bolsonaro não vai apenas tentar implementar um programa ultraliberal e de submissão aos EUA. O governo Bolsonaro vai operar um plano sistemático de destruição das liberdades democráticas, ou seja, de todos os espaços, organizações e leis que permitiram que -- desde 1989 até 2014 -- a esquerda brasileira fosse alternativa de governo. 
 
Estão na mira deste governo: os sindicatos e as centrais, os movimentos sociais, os partidos de esquerda, especialmente o PT; os direitos de mobilização e luta; as próprias ideias de esquerda, que estão sendo estigmatizadas, perseguidas e criminalizadas; e, ninguém se iluda, estão na mira a vida e a liberdade dos militantes da esquerda. Pois mesmo que o governo Bolsonaro não faça nada diretamente — e ele fará, sua mera existência cria um ambiente que favorecerá a atuação de grupos paramilitares e de lobos solitários. 

Confirmam isto o show de horrores estrelado pela direita durante a diplomação dos petistas eleitos, os ataques de generais contra o ministro do STF que teve a coragem de determinar o cumprimento da Constituição e, principalmente, os assassinatos de lideranças populares ocorridas recentemente.
 
Dizendo a mesma coisa em linguagem mais "sofisticada": as eleições de 2018 abriram caminho para uma mudança de regime político. E o principal inimigo do novo regime é o Partido dos Trabalhadores, porque ele foi de 1989 até 2018 — e segue sendo hoje — o principal protagonista das forças de esquerda, democráticas e populares.
 
Portanto, desde o final de outubro de 2018, o desafio posto para o conjunto da esquerda brasileira é qualitativamente diferente daquele que enfrentamos pelo menos desde 1989.
 
É isso que torna urgente, inadiável e incontornável a realização de um Congresso nacional do PT. Noutros palavras, precisamos de um congresso para debater qual deve ser a nossa estratégia, nosso caminho para ser governo & poder, neste novo período histórico.
 
Há setores do Partido que não querem fazer Congresso. Acham que isto nos obrigaria a gastar tempo em “luta interna”, num momento em que precisamos concentrar nossas energias em fazer luta contra o inimigo.
 
Acontece que toda hora é hora de concentrar nossas energias contra o inimigo. Portanto, se este fosse o único argumento, não deveríamos fazer congresso nunca. Aliás, não deveríamos gastar tempo debatendo nada, apenas lutando, mesmo que cegamente.
 
Mas, como sabemos todos, há momentos em que o Partido está dividido em relação a COMO fazer a luta contra nosso inimigo. Este é o nosso caso, hoje. Há diferentes opiniões acerca de como fazer a luta. E o único jeito DEMOCRÁTICO de resolver isto é fazendo um congresso partidário.
 
Por outro lado, um congresso partidário não precisa nem deve ser um evento internista. Pelo contrário, defendemos que nosso congresso seja um processo público de debate dos grandes temas nacionais e internacionais, coroado por um grande evento de massas, que reúna milhares de delegados e delegadas.
 
Propomos que em junho de 2019 todos os filiados e filiadas ao PT possam eleger, nos seus municípios, delegados e delegadas ao congresso nacional. E que o 7º Congresso ocorra em julho de 2019. Façamos um congresso de massa, com hospedagem solidária, com a plenária ocorrendo por exemplo num ginásio de esportes, algo militante e auto-financiado.
 
Feito desta forma, poderemos dar conta ao mesmo tempo de três necessidades: a principal, que é a definição da linha política; em segundo lugar, cumprir a decisão adotada por unanimidade pelo 6º Congresso, de realizar um plebiscito para decidir a forma de eleição das direções partidárias; e, em terceiro lugar, renovar imediatamente as direções municipais.
 
Para dar conta destas três tarefas, basta que no mesmo dia em que as bases vão eleger as delegações ao congresso nacional, elas elejam também a nova direção municipal e votem no plebiscito.
 
Assim, em julho de 2019, quando se reunir o 7º Congresso Nacional, já teremos as novas direções municipais eleitas e já saberemos como será eleita a nova direção nacional e as novas direções estaduais.
 
Esta é a nossa proposta de método. As propostas de conteúdo, ou seja, que estratégia defendemos para o novo período histórico, apresentaremos em outro texto, que esperamos divulgar proximamente.
 
Jandyra Uehara é da executiva nacional da CUT e do Diretório Nacional do PT.

Valter Pomar é militante do PT Campinas.