quinta-feira, 26 de outubro de 2017

José Dirceu e o nacionalismo

Não estou de acordo com a abordagem feita no texto de José Dirceu sobre o nacionalismo (ver tal texto ao final, em vermelho).

Obviamente concordo em criticar o “nacionalismo” das elites.

Assim como concordo em criticar o “globalismo”, que na verdade expressa os interesses do nacionalismo das grandes potências.

Onde divirjo?

Acho um erro contrapor, ao “globalismo” e ao “nacionalismo” das elites, um nacionalismo “genérico”.

Mais adiante explicarei porque considero “genérico” o nacionalismo defendido por Dirceu.

Mas antecipo que não é por acaso que ele termina dando como exemplos o Curdistão, a Catalunha, a Escócia.

Casos profundamente distintos do tipo de “nacionalismo” que precisamos ter no Brasil.

Dirceu afirma que “no fundo, o substrato de toda a fundamentação, há décadas da avalanche da globalização, está no bordão do fim. Não da história, mas do conceito de nação e de sua própria existência, pelo menos como ente estatal, já que seria muita pretensão desconhecer as nações”.

Não concordo com esta afirmação. Ela confunde um discurso proposto para exportação com a prática real.

A classe dominante dos EUA — para ficar nesse exemplo — nunca enfraqueceu o seu Estado. Seu discurso criticava e propunha o enfraquecimento dos estados e das nações ... dos concorrentes.

Portanto, o “substrato” real do discurso da globalização era a ampliação ao limite máximo da hegemonia das nações capitalistas centrais.

Também não concordo com a afirmação de que nossas elites “nunca ... – a não ser para usurpar o poder – conviveram ou aderiram ao nacionalismo”.

Primeiro, não faz sentido falar que nossas elites precisavam fazer algo para “usurpar o poder”.

Usurpar o poder de quem???? Elas nunca o perderam, porque deveriam usurpá-lo??

Segundo, é simplesmente falso — historicamente falando, factualmente falando— que nossas elites nunca “conviveram ou aderiram” ao nacionalismo.

A afirmação só faria sentido se por “nacionalismo” compreendêssemos apenas um nacionalismo popular.

Mas nosso tipo de nacionalismo não é o único que existe. Assim como nossa visão sobre democracia não é a única que existe.

É provável que Dirceu tenha querido dizer que o “nacionalismo” hegemônico nas elites econômicas, culturais e políticas era e segue sendo submisso ao interesse dos imperialismos; e, além disso, talvez tenha querido dizer que o “nacionalismo” das elites não considerava nem considera os interesses do conjunto do povo.

Qual a diferença?

Simples: na “fórmula” desenvolvida no parágrafo anterior a abordagem deixa de ser “nacionalistas” versus “não nacionalistas”; a equação passa a incluir imperialismo, capitalismo e luta de classes; e reconhece de maneira adequada existirem diferenças no interior das elites.

Dirceu diz que as “elites” foram “sempre inimigas mortais dos governos dito nacionalistas, seja Getúlio, JK, Jânio com sua política externa independente, Jango e, pasmem, Geisel.”

Realmente, pasmem. Pois Getúlio, JK, Jânio, Jango e Geisel eram parte das elites. E em determinado momento expressaram um setor politicamente hegemônico nas elites.

Dizer que “as elites” eram “inimigas mortais” de todos estes, é não apenas falso, como pode gerar a conclusão politicamente equivocada de que inimigo de meu inimigo é meu amigo.

Dirceu está tão entusiasmado que chega a afirmar que “o sentimento nacionalista” guia “nossa construção nacional, nossa aventura de construir, nos trópicos, uma civilização”.

Perdão, mas não foi o “sentimento nacionalista” que “guiou” o desenvolvimento da sociedade brasileira. E a “aventura” dos “homens de grossa aventura” — a elite da época colonial— incluía tráfico de escravos, destruição dos povos indígenas etc.

A defesa de um nacionalismo popular precisa “extrair sua poesia do futuro”, não repetir má poesia ao estilo de “porque me ufano de meu país”.

E o que diz Dirceu do futuro? Diz que precisamos impor, defender ou construir “uma força política, econômica, cultural e militar, que também molde e organize o poder mundial”.

E em seguida faz digressões sobre o pensamento militar.

Noutro texto pretendo comentar mais extensamente a opinião de Dirceu sobre a “questão militar”.

Mas de imediato acho incorreta a maneira como ele relaciona a vertente do pensamento militar nacionalista com a criação da Petrobras, Eletrobrás, Telebrás, BNDES etc.

Claro que havia diferentes vertentes entre os militares. Mas não havia apenas entreguistas e nacionalistas. Havia esquerda, democratas e fascistas. Portanto, havia fascistas & nacionalistas & estatistas; assim como havia fascistas & entreguistas.

Simplificar, resumindo a equação a nacionalistas versus entreguistas, é o que conduziu recentemente setores da esquerda nacionalista a cogitar a existência de aspectos positivos numa eventual intervenção militar.

Além disso, é preciso identificar corretamente as diferentes conexões existentes entre os militares, o empresariado capitalista nacional e internacional, e os interesses do imperialismo.

Por exemplo: o fracasso do “projeto nacional autoritário e conservador” dos militares ocorreu porque ele era “sem inclusão do povo”?? Ou porque este “projeto” já não atendia aos interesses do capital??

As elites e seus projetos não fracassam ou vencem porque incluam ou não incluam o povo.

As elites “incluem” o povo através da opressão, da exploração, da dominação.

Os êxitos e fracassos das “elites” dependem de como se combinam, a cada momento, a competição inter-capitalista e a resistência popular.

Por isso é falso dizer que “nenhuma política de crescimento econômico numa nação continental como a nossa (...) terá sucesso se não se afirmar como nacional e a partir dos interesses do povo e não apenas da elite econômica e política”.

Pois “sucesso” para as elites pode significar e geralmente significa ir contra os interesses do povo.

Portanto, a questão é outra: uma política de desenvolvimento precisa ser feita em benefício das elites ou em benefício da maioria do povo. E a “perigosa ilusão” que sempre ameaça à esquerda brasileira é achar possível construir um caminho baseado na conciliação de classe.

Deste ponto de vista, sigo aguardando de Dirceu uma autocrítica acerca da estratégia que ele ajudou a construir. E que explica parte de nossa derrota recente.

No lugar disso, neste texto Dirceu reitera uma das premissas da análise de classes que está na base da estratégia adotada pelo PT a partir de 1995.

Refiro-me ao seguinte raciocínio: “grande parte da elite – inclusive a industrial, na ânsia de retomar o controle total sobre o poder – se submete ao capital financeiro e principalmente aos donos da informação e da formação da notícia e da opinião pública.”

A verdade é outra. Eles não precisam retomar o pode: nunca o perderam. E a hegemonia do capital financeiro instalou-se nos anos 1990. Portanto, equivoca-se agora e equivocou-se antes quem enxergava uma postura autônoma na “elite industrial”.

A questão portanto não está em que “não é possível – e nunca será – fazer com que 200 milhões de brasileiros alcancem o bem-estar social e cultural numa economia agro mineral exportadora, submetida às finanças internacionais e aos interesses da banca mundial, tendo eles mesmos – a nossa elite – como sócios menores”.

A questão é outra: estes 200 milhões não terão bem estar, nem poder político, enquanto o Brasil for um país capitalista. E não haverá “soberania” de tipo nacional- popular enquanto o Brasil for um país capitalista.

Por isso não basta exaltar a “memória nacionalista”. Por isso é preciso colocar o socialismo como alternativa. Por isso a Escócia, o Curdistão e a Catalunha são parte de outro debate. E por isso nossa defesa da soberania nacional precisa estar combinada com a defesa da integração regional, tema que salvo engano não é mencionado no texto aqui criticado.

Pós-escrito

Cinco comentários adicionais, feitos com base em opiniões que me foram dadas após a leitura do texto acima.

Primeiro: para usar um vocabulário antigo, o que estamos debatendo aqui são as "tarefas". As tarefas definem de forma sintética aquilo que o programa define de maneira detalhada.

Segundo: há um acordo em que as tarefas são três: democráticas, nacionais e sociais. A polêmica está em como combinar as tarefas. Na minha opinião e também na opinião de Dirceu, não dá para colocar em segundo plano, nem dá para tratar superficialmente, as tarefas sociais. A diferença está no seguinte: qual a radicalidade das tarefas sociais? Na minha opinião, a radicalidade deve ser a maior possível, nas atuais condições históricas. A saber: colocar sob controle estatal, público, social, o pólo dinâmico da economia. Por exemplo: o setor financeiro. O nome disto? Socialismo.

Terceiro: por qual motivo é assim? Pelo mesmo motivo que Cuba, Vietnã, China e Rússia precisaram do socialismo para conseguir níveis de soberania, democracia e bem-estar social que em outros países foram compatíveis com o capitalismo. A saber: o nosso lugar no capitalismo mundial. Lugar que, na literatura especializada, recebeu vários nomes: dependente, tardio, subalterno, periférico etc.

Quarto: a definição das tarefas/programa se articula com outra discussão, a da estratégia. Ou seja, como construir/conquistar o poder necessário para implementar o programa. Acerca disso, o texto de Dirceu não fala --nem precisaria obrigatoriamente falar, já que seu artigo versa sobre o nacionalismo -- exceto de maneira indireta, na passagem que critico acerca das classes sociais; e exceto, também, por seu silêncio acerca da integração regional.

Quinto: o tema da integração é onde a abordagem "genérica" sobre o nacionalismo revela sua debilidade. Pois a chance de viabilizar a soberania nacional, o bem estar social e a democratização profunda de um país como o Brasil exige um programa (e uma estratégia) de integração regional.

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Segue o texto do Dirceu:


Estaria o nacionalismo condenado e viveríamos um mundo sem fronteiras nacionais, regido pela globalização, pela abertura dos mercados – principalmente financeiros – a caminho de um governo mundial?

Pode parecer piada de mau gosto, mas, no fundo, o substrato de toda a fundamentação, há décadas da avalanche da globalização, está no bordão do fim. Não da história, mas do conceito de nação e de sua própria existência, pelo menos como ente estatal, já que seria muita pretensão desconhecer as nações. Seria como se voltássemos e regredíssemos à Idade Média.

No nosso caso, nunca nossas elites – a não ser para usurpar o poder – conviveram ou aderiram ao nacionalismo. E, muito menos, à nação. Só o fazem para exercer ou tentar a hegemonia cultural, impondo sua visão do que seja a nação, sempre a partir de seus interesses e visão do mundo. Sempre foram inimigas mortais dos governos dito nacionalistas, seja Getúlio, JK, Jânio com sua política externa independente, Jango e, pasmem, Geisel.

Mas nunca conseguiram apagar da memória nacional o sentimento nacionalista, que guia nossa construção nacional, nossa aventura de construir, nos trópicos, uma civilização.

Fizeram de tudo, até mesmo negar que tínhamos condições históricas, humanas e culturais de nos tornarmos uma nação. Foi com muita luta política, social e cultural que, década após década, construímos o sentimento que hoje, de novo, se impôs como um fato histórico indiscutível e indestrutível: somos uma nação soberana e independente, somos uma cultura, um povo com presença no mundo. Somos assim reconhecidos.

Mas não basta. Uma nação só se caracteriza quando impõe, defende ou constrói poderes para defender seus interesses e fazer parte do mundo, não apenas como membro do concerto das nações, mas como uma força política, econômica, cultural e militar, que também molda e organiza o poder mundial.

O pensamento militar nunca foi único ou consolidado na nossa história. Pelo contrário, até 64 debatia-se entre visões entreguistas e nacionalistas. Sob a ótica entreguista, vamos recordar que, durante quase meio século, nossas elites rurais e seus porta-vozes na imprensa e na política defendiam que o Brasil jamais se industrializaria e não seria uma potência. Estávamos “destinados” a ser um país agrário-exportador, cópia cultural da Europa. Hoje, cópia dos Estados Unidos e igualmente exportador – de minerais, energia, alimentos. Nada muito diferente do passado.

A vertente nacionalista nos deu condições para a criação da Petrobras, Eletrobrás, Telebrás, BNDES, que são as bases do Brasil que existe hoje.

Não foi por nada, ou apenas por Geisel, que o estamento militar e interesses empresariais construíram o II Plano Nacional de Desenvolvimento, que consolidou nossa indústria de base, a ciência e a tecnologia – temas indispensáveis para se falar em desenvolvimento nacional. Era um imperativo, inclusive, para a sobrevivência da ditadura militar e de seu projeto nacional autoritário e conservador. Sem inclusão do povo e, por isso, fracassado.

Sem o povo não há nação e sem a nação não há Brasil e sua presença no mundo. Nenhuma política de crescimento econômico numa nação continental como a nossa, com mais de duzentos milhões de habitantes, com os recursos e as riquezas naturais que temos e nosso nível de desenvolvimento tecnológico, terá sucesso se não se afirmar como nacional e a partir dos interesses do povo e não apenas da elite econômica e política.

O povo trabalhador se constitui em sujeito, ator da história do país e isso acontece de formas e maneiras totalmente diversas, personificando seus interesses e sonhos em ideias, forças, lideranças, partidos, movimentos, revoltas ou rebeliões. É por isso que se trata de uma perigosa ilusão qualquer tentativa de fazer uma nação sem o povo. Não há caminho para construir poderes nacionais, sejam eles políticos, econômicos, culturais ou militares, sem o povo.

Mesmo uma força militar, sem o apoio popular, não tem sobrevida estratégica no longo prazo. Acaba desaguando em algum conflito militar, como a história nos ensina.

Apesar de todas as evidências do caminho errado, voltamos ao passado e, mais uma vez, querem porque querem descontinuar a nação. Sob o silêncio cúmplice ou imposto, os militares se calam, como manda a Constituição.

Grande parte da elite – inclusive a industrial, na ânsia de retomar o controle total sobre o poder – se submete ao capital financeiro e principalmente aos donos da informação e da formação da notícia e da opinião pública.

Os usurpadores do poder usam e abusam do poder judicial/policial, rasgam o pacto político e social de 1988 e voltam a pregar abertamente a entrega do país a preços vis ao capital internacional, cujas premissas de atuação foram extremamente nocivas a muitos países, como mostra a última crise global de 2008-2009.

Para eles, o Brasil não tem saída a não ser se integrar no mundo norte-americano, sob sua hegemonia – inclusive a cultural. Não bastasse a já nefasta dominação que exercem sobre o país via monopólio da informação, agora tentam partidarizar a educação com suas ideias e conceitos sobre a vida e a nação.

Irresponsáveis e ignorantes das lições da história, acreditam que podem, a partir da força e do controle da informação, dominar o povo brasileiro, seu destino e futuro como nação. Não cabe em seu projeto de poder e de país um povo como o brasileiro.

Estão profundamente enganados. Tal pensamento e desejo são uma vã ilusão, que logo lhes custará caro. Porque não é possível – e nunca será – fazer com que 200 milhões de brasileiros alcancem o bem-estar social e cultural numa economia agro mineral exportadora, submetida às finanças internacionais e aos interesses da banca mundial, tendo eles mesmos – a nossa elite – como sócios menores.

A minoria rica – menos de 1% da população – e os 10% dos que participam de seu banquete acreditam que podem iludir o povo brasileiro e sua classe trabalhadora.

Nada aprenderam com a história e não se dão conta que a memória nacionalista está mais viva do que nunca e retomará o protagonismo de sempre na busca de justiça social e liberdade.

Estão aí a Escócia, o Curdistão e a Catalunha a provarem quão presente é o nacionalismo quando a opressão e a tirania se impõem sobre um povo, colocando em risco sua identidade nacional, sua cultura, língua, riquezas, patrimônio e seu bem-estar social. Nada, nenhuma força no mundo consegue oprimir e dominar um povo em busca de sua nação e de seu destino.

José Dirceu de Oliveira e Silva
Ex-ministro chefe da casa civil


quarta-feira, 18 de outubro de 2017

Tariq Ali, o PT e Lula

Circula na internet uma longa entrevista concedida por Tariq Ali para a jornalista Camila Costa.
Não sei se Tariq Ali revisou a entrevista. E mesmo que tenha revisado, uma entrevista envolve circunstâncias e limites que devem ser considerados. Isto posto, o que ele afirma na entrevista acerca do Partido dos Trabalhadores é bem revelador acerca dos cacoetes e limites de certo “esquerdismo acadêmico”.
Tariq começa afirmando que não considera que o PT e Lula tenham feito uma autocrítica. Diz que isto pode estar relacionado ao golpe, que obrigou o PT a concentrar-se no combate aos inimigos. Mas considera que isto é um grande erro.
Em seguida diz o seguinte: “Podiam fazer até agora, chamar uma convenção do partido em que todos os membros do partido possam ir e ter uma discussão aberta sobre o que deu errado. Isso seria o caminho da salvação deles. Mas pode ser tarde demais agora. Fico com muita raiva, porque essa é a única chance que o Brasil teve por algum tempo.
Interessante não? Tariq Ali talvez não perceba, mas sua postura – ensinar aos bárbaros, aos selvagens, aos colonizados, que talvez fosse o caso de fazer uma “convenção” --  não é apenas ignorante, é arrogante. Pois desde 2005 até hoje, o PT fez inúmeros congressos. Acabamos de realizar um congresso agora. Aprovamos inúmeras deliberações. Elas podem estar certas ou erradas, elas podem expressar melhor ou pior as opiniões da base petista. Mas a opinião de Tariq Ali revela que ele simplesmente desconhece o assunto sobre o qual está opinando. O que não me dá raiva, me dá pena.
O mais interessante da opinião acima transcrita é sua afirmação de que “isso seria o caminho da salvação deles. Mas pode ser tarde demais agora”. Isso o quê? Tarde para o quê? Segundo entendi, isso seria “pedir desculpas para a população”. Ou seja: sofremos um golpe, o governo golpista está destruindo conquistas sociais e liberdades democráticas, o PT está sofrendo uma operação de certo e aniquilamento, apesar disso Lula lidera as pesquisas... e o caminho da salvação (sic!!!) estaria em “pedir desculpas para a população”.
Sou totalmente a favor de fazer autocrítica dos erros cometidos. E acho que a autocrítica deve ser pública. Mas é uma ilusão quase religiosa acreditar que uma autocrítica – seja feita ontem, hoje ou amanhã – terá papel decisivo no enfrentamento ao golpe. Assim como é uma ilusão reduzir a autocrítica a um “pedido de desculpas”. Por exemplo: a autocrítica que devemos fazer em relação a depender do financiamento empresarial privado consiste em criar um sistema de autofinanciamento militante. Isto demanda tempo, esforço, capacidade organizativa.
Acontece que – nesta entrevista -- Tariq Ali não pensa politicamente. Como boa parte do esquerdismo acadêmico, ele opera noutra frequência de rádio, sensível ao sofrimento das classes trabalhadoras, alerta para a brutalidade das classes dominantes, mas desatento às condições e mediações reais da luta política.
Exemplo dessa desatenção: Tariq Ali afirma que aesquerda brasileira está muito frágil no momentoE lamenta que a única chance que eles têm é Lula conseguir se eleger em 2018. O futuro é desanimador.
A entrevistadora pergunta: Mas um ano atrás você disse que não achava a candidatura de Lula uma boa ideia.
Ali responde: Isso era o que eu pensava na época, mas hoje a esquerda não tem outra oportunidade. Ainda não é uma ideia ótima. O que isso mostra é a total falência do partido, que não conseguiu produzir uma nova geração de líderes que possa tomar a frente e fazer coisas melhores. Eles dependem do velho líder de São Paulo. Mas se (a candidatura de Lula) for feita de uma forma não apenas para se vingar, mas para reconstruir a política e fazer coisas boas, quem sabe?
Ou seja: Lula é a única oportunidade. Mas isto não seria uma idéia ótima. E mais: isso mostra a total falência do partido. Estas afirmações seriam simplesmente engraçadas – mistura de lugares comuns, alguma confusão e ingenuidade -- não fosse o fato do mesmo Tariq Ali dizer, noutra parte da entrevista, que se Lênin tivesse vivido mais cinco anos, a situação teria sido muito diferente no partido e no país. Ou seja, na Rússia revolucionária uma personalidade singular pode ter um papel destacado. Mas aqui, neste mundo selvagem, isto não parece uma ideia ótima....
E o que dizer da referência à nova geração de líderes que possa tomar a frente e fazer coisas melhoresNeste raciocínio o problema da linha política e das concepções sai de cena. No lugar entra o senso comum da renovação. Não sei como Tariq Ali aplica este critério a casos como o de Jeremy Corbin. Mas, claro, Corbin é do Labour, inglês, talvez lá seja diferente.
Também lamentável é a seguinte frase: se (a candidatura de Lula) for feita de uma forma não apenas para se vingar, mas para reconstruir a política e fazer coisas boas, quem sabe?
Não é maravilhoso? Quem sabe possa ser Lula, desde que sua candidatura seja feita de uma forma “não apenas para se vingar!!! Se eu fosse marqueteiro da direita, adotaria este mote: não deixe que volte o velho vingativo. Novamente, não tenho raiva, tenho pena de que alguém tão badalado e ouvido como Tariq Ali seja capaz de dizer este tipo de coisa. Claro, sempre supondo que a entrevista corresponda ao que foi efetivamente dito.
Outro trecho lamentável: mesmo que Lula seja inocentado, se candidate e ganhe, ele só ganharia porque a oposição aqui também está falida
Notaram o detalhe? Lula só ganharia porque “a oposição aqui também está falida”. Oposição? Será um lapso? E falida por qual motivo? Pasmem, mas porque “não há muitas pessoas na direita nem no centro que você pode dizer que são honestas, mesmo se discordar com elas. Ou seja: ao menos nesta resposta, Tariq Ali se demonstra prisioneiro do discurso segundo o qual o tema central do Brasil é a corrupção, não a desigualdade.

Mesmo quando admite em tese que o PT possa estar certo, Tariq coloca sob suspeição as motivações do Partido. Por exemplo, o trecho em que ele diz: Há ocasiões em que se pode boicotar uma eleição, então, em princípio, não tenhonada contra. É uma escolha tática que se faz. A questão é: por que estão fazendo essa escolha? Por que acham que as eleições serão realmente corruptas ou porque não há ninguém mais no seu partido que seja tão popular como Lula?
Ora, é óbvio que não há no PT ninguém tão popular quanto Lula. Assim como não há, no Brasil, alguém tão popular quanto Lula. Portanto, impedir que Lula concorra às eleições não pode ser tratado como um detalhe, como algo que possa ser reduzido aos interesses menores ou maiores do PT. Ou que possa ser remediado por algo “algo construtivo e positivo, a saber, se o PT apoiasse outro candidato da esquerda, que não fosse necessariamente do partido.
Dito de outra forma, o que interessa a Tariq Ali, o que lhe parece algo construtivo e positivo, é o PT aderir a um plano B. Denunciar e impedir a violência contra as liberdades democráticas, isto é secundário. Talvez porque, no fundo, ele ache que o PT fez por merecer... e não fez a devida autocrítica... portanto merece ser punido. 
Como todo bom “esquerdista acadêmico”, o pensamento de Tariq Ali não está organizado em torno de como derrotar a classe dominante, adireita, os inimigos. Por isso ele não entende o papel que a candidatura Lula cumpre. Por isso, também, quando ele fala que o mais importante agora é unir a esquerda brasileira, ele está defendendo uma tese abstrata, não uma operação que visa criar forças para derrotar a direita. Por isso não pode unir em torno de algo que seja muito específico do PT. Por isso seria interessante chegar a um acordo sobre um candidato de esquerda que não seja Lula, e que o PT possa apoiar.
Trata-se de uma tese vazia, pois não existe nenhuma candidatura que, fora de Lula e fora do PT, tenha capacidade de derrotar a direita. Mas mesmo sendo uma tese vazia, não é uma tese inofensiva.
Como não é inofensivo o que Tariq Ali fala da Venezuela. Ao mesmo tempo que elogia Chavez, Tariq Ali diz que não concorda com a criação da Assembleia Constituinte. E afirma, também, que violência da oposição não justifica de forma alguma a violência do governo. Ou seja: seriam coisas equiparáveis. Fico imaginando como agiria a oposição fascista da Venezuela, se soubesse que o governo não iria se defender.
Aqui e ali, Tariq Ali faz afirmações corretas. Mas ele adota um ponto de vista externo ao processo. Por exemplo, quando fala o seguinte da esquerda que chegou a vários governos na América Latina: “todos esses partidos falharam na hora de implementar reformas estruturais profundas em uma sociedade capitalista. Eles não romperam com o sistema. Chávez até tentou em seus primeiros anos, Lula nem isso. A resposta para lutar contra a burguesia tradicional venezuelana não era criar uma burguesia bolivariana. Ou uma burguesia do PT, no caso do Brasil. Isso não funciona.
Deixando de lado a besteira acerca da “burguesia do PT”, o núcleo da argumentação está em que a esquerda que chegou ao governo na região não “rompeu com o sistema”. Por um lado isto é uma obviedade, por outro lado é uma tolice. É uma obviedade, no sentido de que não vivemos uma revolução que expropriasse a classe dominante. É uma tolice, porque mesmo sem “romper com o sistema”, o sistema reage e faz de tudo para romper a esquerda. Logo, o debate não está neste nível genérico, mas sim no plano concreto. Por exemplo: como eleger Lula, convocar uma Constituinte, revogar as medidas dos golpistas etc. Por exemplo: como defender Maduro, convocar uma Constituinte, ganhar as eleições estaduais etc. 
Mas quando chega neste terreno concreto, Tariq Ali mostra seus limites, que são os limites do esquerdismo acadêmico. Por exemplo: Tariq Ali eleogia Cuba, mas acrescenta que “a criatividade política do povo cubano nunca foi estimulada. Eles criaram um Estado de partido único com monopólio da informação. Isso não foi bom para Cuba. Típica afirmação de laboratório, não uma análise da vida real. 

Segue abaixo a entrevista comentada
Insistência na candidatura Lula 'mostra a total falência do PT', diz escritor Tariq Ali, referência da esquerda internacional
Camilla Costa Em visita ao Brasil, intelectual da esquerda britânica diz que Revolução Russa tem lições positivas sobre democracia
Há 100 anos, em outubro de 1917, acontecia a revolução que estabeleceria um Estado socialista na Rússia e em outros países do leste europeu - e fortaleceria a esquerda política em todo o mundo. Mas 74 anos depois, em 1991, esse Estado entrava em colapso.
Em 2017, no entanto, um dos principais intelectuais de esquerda do Reino Unido, o escritor Tariq Ali, acha que os partidos de esquerda ainda têm o que aprender com revolucionários russos como Lênin - especialmente sobre como fazer autocrítica e admitir seus erros.
"Antes de morrer, Lênin pediu desculpas à classe operária russa. E ele também disse 'nós não sabíamos de nada'. Quando foi que um político da esquerda ou da direita disse isso de novo?", indaga.
O escritor ainda defende posições polêmicas, como a de que o socialismo implantado por Hugo Chávez foi um sistema "extremamente democrático" em seus primeiros anos.
Ali admite, no entanto, que o autoritarismo soviético foi o legado "terrível" de 1917 para o socialismo. E afirma que a admiração ao ex-líder Josef Stálin não deveria estar presente na esquerda atual.
"Ser socialista hoje significa querer um sistema muito mais democrático do que jamais existiria no capitalismo. Com democracia em todos os níveis."
Em São Paulo para lançar uma nova edição dos principais textos da Revolução Russa no seminário "1917 - o ano que abalou o mundo", da editora Boitempo, o britânico faz duras críticas ao PT e diz que o partido escolheu não aproveitar o momento de crise, após o envolvimento em escândalos de corrupção, para se renovar.
"Fico com muita raiva, porque essa é a única chance que o Brasil teve por algum tempo", afirma.
Luta pela vida, reforço da desigualdade ou gasto desenfreado? A díficil equação da judicializaçãoda saúde
Veja os principais trechos da entrevista.
BBC Brasil - Em 2016, você disse que seria necessário uma autocrítica de Lula e do PT. Há indícios, na sua opinião, de que ela tenha acontecido?
Ali - Não, eu não vejo. Também acho que não acontece por causa da maneira como a direita orquestrou o golpe constitucional - porque, até onde sei, Dilma foi removida sem nenhuma justificativa. Isso foi interessante para as pessoas dentro do PT que queriam dizer: "estamos cercados de inimigos, não podemos fazer muita autocrítica agora, é preciso nos unirmos para enfrentá-los". Esse tipo de situação isola o debate.

É um erro tão grande o que eles estão cometendo. Podiam fazer até agora, chamar uma convenção do partido em que todos os membros do partido possam ir e ter uma discussão aberta sobre o que deu errado. Isso seria o caminho da salvação deles. Mas pode ser tarde demais agora. Fico com muita raiva, porque essa é a única chance que o Brasil teve por algum tempo.
BBC Brasil - Há um ano você disse que o impeachment da presidente Dilma Rousseff era "inevitável". Como vê hoje a situação da esquerda brasileira?
Ali - A esquerda brasileira está muito frágil no momento. Acho que a elite política queria se ver livre do PT. E sem dúvida o impeachment de Dilma foi algo horrível. Mas não é só por causa disso. É porque o PT não fez nenhum debate, não pediu desculpas para a população. E porque agora a única chance que eles têm é Lula conseguir se eleger em 2018. O futuro é desanimador.
BBC Brasil - Mas um ano atrás você disse que não achava a candidatura de Lula uma boa ideia.
Ali - Isso era o que eu pensava na época, mas hoje a esquerda não tem outra oportunidade. Ainda não é uma ideia ótima. O que isso mostra é a total falência do partido, que não conseguiu produzir uma nova geração de líderes que possa tomar a frente e fazer coisas melhores. Eles dependem do velho líder de São Paulo. Mas se (a candidatura de Lula) for feita de uma forma não apenas para se vingar, mas para reconstruir a política e fazercoisas boas, quem sabe?
Mas mesmo que Lula seja inocentado, se candidate e ganhe - e são três coisas diferentes - ele só ganharia porque a oposição aqui também está falida. Não há muitas pessoas na direita nem no centro que você pode dizer que são honestas, mesmo se discordar com elas.
BBC Brasil - Como lidar com o fato de que o atual presidente Michel Temer, que você critica por considerar de direita, era o vice-presidente de Dilma Rousseff e pertence ao partido que era o principal alicerce do PT no Congresso?
Ali - (Ri) Não sei. Assim é o Brasil. Essa é uma prova terrível de como o sistema político e eleitoral funcionam aqui. Quando Lula ganhou o primeiro mandato, com muita esperança das pessoas, ele poderia ter feito uma Assembleia Constituinte e colocado uma nova Constituição para referendo popular, como se fez na Bolívia e na Venezuela. Mas ele não fez isso. Ele não queria incomodar ninguém "importante". E se você não faz isso, sua escolha é trabalhar com os partidos corruptos no Congresso.
BBC Brasil - O PT tem falado em boicotar as eleições, caso Lula seja impedido de concorrer. O que acha disso?
Ali - Há ocasiões em que se pode boicotar uma eleição, então, em princípio, não tenho nada contra. É uma escolha tática que se faz. A questão é: por que estão fazendo essa escolha? Por que acham que as eleições serão realmente corruptas ou porque não há ninguém mais no seu partido que seja tão popular como Lula? Algo construtivo e positivo seria se o PT apoiasse outro candidato da esquerda, que não fosse necessariamente do partido.
BBC Brasil - Há outras opções para a esquerda no Brasil? Quais seriam?
Ali - Acho que não há. Os dissidentes que saíram do PT e criaram o PSOL fizeram isso cedo demais - e muitos deles agora são meus amigos. Mas não funcionou. O mais importante agora é a unir a esquerda brasileira. E você não pode uni-los em torno de algo que seja muito específico do PT. Por isso seria interessante chegar a um acordo sobre um candidato de esquerda que não seja Lula, e que o PT possa apoiar.
BBC Brasil - Você já disse que o modelo bolivariano da Venezuela, que teve início com o governo de Hugo Chávez, poderia trazer alternativas para o socialismo. Como vê hoje a situação do país ?
Ali - Olha, eu ainda acho que o governo de Chávez, especialmente em seus primeiros anos, foi muito democrático e que a constituição feita naquela época é muito democrática. E muitas das coisas ditas sobre o governo de Chávez na época em jornais de todo o mundo eram simplesmente falsas.
BBC Brasil - E quais eram coisas ruins que eram verdadeiras a respeito do regime de Chávez?
Ali - Honestamente acho que uma das coisas que se tornaram fora de controle nos últimos anos do governo Chávez foi a corrupção. Ele se opunha pessoalmente a ela, mas não fez muito a respeito, porque envolvia o Exército.
BBC Brasil - O que acha do governo de Nicolás Maduro?
Ali - O governo Maduro está numa situação muito diferente, enfrentando uma crise enorme criada pela queda dos preços do petróleo, que dificultou todos os seus programas sociais. Eles cometeram erros ao se recusarem a fazer reformas monetárias, o que resultou num enorme mercado clandestino e aumentou a corrupção. O regime não recebeu bons conselhos econômicos, e quem tentou dar bons conselhos foi ignorado.
BBC Brasil - E na política? Maduro criou uma Assembleia Constituinte que não foi reconhecida pelo Parlamento, de maioria oposicionista, e que agora funciona paralelamente a ele. O Parlamento, por sua vez, diz que suas decisões são anuladas pelo governo. O presidente também é acusado de responder com violações de direitos humanos e violência excessiva aos protestos.
Ali - Eu não concordo com isso (com a criação da Assembleia Constituinte). A Constituição de Chávez era boa para a Venezuela. Acho que o grande erro dos bolivarianos, mesmo com Chávez, era não ter um sistema político proporcional. Se tivessem, a diferença entre a oposição e os chavistas não seria tão grande. A população continua muito dividida. Sabemos que a oposição também está usando violência, mas isso não justifica de forma alguma a violência do governo.

BBC Brasil - Para onde aponta o futuro dos partidos de esquerda latino-americanos, depois destes grandes escândalos de corrupção? A impressão é a de que esses partidos não passaram no "teste do governo".
Ali - É normal que, depois de algum tempo, as pessoas se cansem de um partido no poder e tenham críticas. Isso não significa falhar. Não acho que eles necessariamente falharam, apesar de terem cometidos muitos erros. Mas o Equador e a Bolívia, por exemplo, estão indo razoavelmente bem. Na Venezuela, a crise tomou um caminho mais extremo. Mas não acho que a esquerda nesses países vai desaparecer. As pesquisas de opinião ainda revelam que há apoio da população à esquerda. Mas eles certamente vão continuar sofrendo eleitoralmente por causa dos seus erros.
Todos esses partidos falharam na hora de implementar reformas estruturais profundas em uma sociedade capitalista. Eles não romperam com o sistema. Chávez até tentou em seus primeiros anos, Lula nem isso. A resposta para lutar contra a burguesia tradicional venezuelana não era criar uma burguesia bolivariana. Ou uma burguesia do PT, no caso do Brasil. Isso não funciona.
BBC Brasil - Você veio ao Brasil para falar sobre os 100 anos da Revolução Russa. Por que é importante falar disso ainda hoje?
Ali - É importante falar da Revolução Russa principalmente por duas razões. Primeiro, todas as três revoluções europeias - a britânica, a francesa e a russa - levaram o mundo para a frente, mesmo que tenham feito coisas excessivas. A revolução inglesa atacou o coração do feudalismo, criando um mundo dominado pela burguesia e uma aliança dela com a aristocracia feudal que criou as bases da revolução industrial. O mesmo ocorreu na França. Eles destruíram a monarquia, os aristocratas, transformaram o território, criaram um novo código legal, etc.
A Revolução Russa de 1917 mostrou que o capitalismo poderia ser atacado em suas necessidades culturais, sociais e econômicas. Houve um período muito criativo, de grandes transformações arquitetônicas, por exemplo, que tentavam mudar a exploração da mulher e a divisão de tarefas domésticas. Até os anos 1930, os apartamentos de trabalhadores tinham arquitetura voltadas para isso. A Revolução Russa trouxe muitas coisas que ainda podemos aprender.
BBC Brasil - Mas a revolução socialista falhou, no fim das contas.
Ali - Mas veja, o socialismo falhou uma vez. E todos dizem: "ok, você já teve sua chance e não fez direito, tchau". O capitalismo já falhou pelo menos oito ou nove vezes nos últimos 200 anos e não se fala disso.
BBC Brasil - Mas muitos também consideram que Cuba também foi uma falha do socialismo, assim como a China, a Venezuela...
Ali - A China ainda é uma história em progresso, na minha opinião. Mas a revolução chinesa abriu espaço para muito do desenvolvimento deles, porque se criou uma população educada. Eles educaram os trabalhadores, os camponeses, e têm uma enorme reserva de cientistas, matemáticos, etc.

BBC Brasil - Mas o país se abriu para o capitalismo...
Ali - O capitalismo chinês é muito diferente. Não que ele não explore, explora. Mas é diferente porque o Estado tem uma grande participação na maior parte dos investimentos importantes e pode retomá-los, se quiser.
E no caso de Cuba, acho que o que fizeram é incrível em termos de necessidades básicas. É a população mais bem educada do mundo, seus médicos viajam o mundo todo. O maior problema da Revolução Cubana foi que ela se enfraqueceu junto com a queda da União Soviética nos anos 1990. A criatividade política do povo cubano nunca foi estimulada. Eles criaram um Estado de partido único com monopólio da informação. Isso não foi bom para Cuba.
BBC Brasil - E as liberdades civis? Você já disse que "o capitalismo não se importa com as liberdades civis de verdade". Mas, se o socialismo se importa, por que todos esses regimes foram autoritários ou ligados, de alguma forma, a práticas autoritárias, falta de liberdade de expressão, perseguições políticas?
Ali - Eu acho que isso é indefensável. Não há nada inerente ao socialismo que diga que o autoritarismo é necessário. O próprio Lênin escreveu isso de maneira muito clara. Mas a maioria dos países seguiu o modelo da União Soviética. E porque existiu de fato uma tentativa, em todos esses países, de acabar com essas revoluções, há uma certa paranoia: "se dermos liberdades, eles vão acabar conosco. Eles têm mais dinheiro, mais recursos". O argumento é esse.
Acho que, na Rússia, uma vez que a guerra civil acabou, eles deveriam ter permitido a volta dos partidos, ao menos os que, em geral, apoiavam o governo. Isso teria sido muito bom para a saúde da revolução, mas aí já havia uma certaarrogância política. Lênin lamentou muito isso e alertou contra isso. Contra Stálin, inclusive. As coisas que ele fez foram terríveis. Se Lênin tivesse vivido mais cinco anos, a situação teria sido muito diferente no partido e no país.
BBC Brasil - Se o stalinismo "sequestrou" outros modelos mais democráticos de socialismo, para quais modelos a esquerda deveria estar olhando hoje?
Ali - Sequestrou mesmo, porque muitas pessoas até hoje igualam o socialismo a este tipo de governo. Não deveria ser o caso, mas essa é a realidade. Muitas pessoas nos partidos comunistas nos anos 1930 e 1940, especialmente durante a guerra, adoravam Stálin. Mas há muitos outros modelos.
Por exemplo, o que começou a ser criado na Tchecoslováquia em 1968: socialismo humanitário, democrático, com muitos direitos e liberdades. A imprensa se tornou a mais livre na Europa. Foi por isso que os russos invadiram o país. Porque não queriam que esse modelo se espalhasse pelo bloco. Na época, o Ocidente também não achou essa invasão ruim. Os jornais da ONU na época mostravam admiração pela rapidez com a qual os tanques soviéticos tomaram Praga.

BBC Brasil - Mas vemos que Stálin, um líder totalitário, ainda é tido como referência para alguns grupos da esquerda atual. Ele deveria ser uma referência?
Ali - Não deveria ser. Mas acho que não são tantos grupos assim que o têm como referência. E insisto que não se deve usar as idiotices que existem nas redes socialistas para pensar que há um enorme movimento pró-Stálin escondido esperando para atacar.
Assim como não acho que as idiotices do outro lado são prova de que há um grande movimento fascista. O fascismo cresceu na Europa nos anos 1930 como uma resposta final de uma burguesia muito assustada, que preferiu ter sua própria versão de "soldados capitalistas" do que os marxistas no poder.
Mas o capitalismo não é ameaçado por nenhuma força hoje. Então esse tipo de fascismo já foi. Os partidos de extrema-direita europeus hoje são influenciados por essas ideologias fascistas, mas dificilmente vão tomar o poder por meios extraparlamentares.
BBC Brasil - Qual o principal legado positivo da Revolução Russa que o mundo esqueceu? E qual o pior legado que foi mantido?
Ali - Em seus primeiros 10 anos, a Revolução Russa foi muito criativa e educou as população, que era 90% analfabeta. Eles descriminalizaram a homossexualidade, deram direitos às mulheres muito antes de que o Ocidente fizesse isso. Eles tentaram criar uma sociedade em que a prioridade eram os trabalhadores. E, em certo sentido, conseguiram. E precisaremos relembrar essas coisas se os países querem andar para a frente.
Mas o legado profundamente ruim, que só foi discutido muito tempo depois, é o Estado de um só partido e a falta de divisão entre partido e Estado. Quando o partido decidiu banir todos asfacções dissidentes dentro dele, teve que banir todo o resto fora também. Isso foi uma tragédia enorme para a Revolução Russa, porque estabeleceu um modelo autoritário que os chineses seguiram, os cubanos seguiram, os vietnamitas seguiram e muitos países africanos no processo de se libertar do colonialismo também seguiram.
BBC Brasil - Você disse que, "precisamos de mais alguns Lênins", apesar de que muitos historiadores hoje se recusariam a estudá-lo, por considerar que ele foi um "assassino". Por que exatamente precisamos de pessoas como Lênin?
Ali - Vejo Lênin como o que ele era: um homem que tinha muito claro no que acreditava. Em seu último texto, que não foi terminado, ele defendia uma União Soviética com democracia e com prestação de contas à população. Eu não o vejo como um assassino. Ninguém chama Abraham Lincoln de assassino, e ele liderou uma guerra civil brutal nos Estados Unidos, quando cidades inteiras foram destruídas pelos soldados da União. As pessoas idolatram Lincoln apesar disso.
Lênin destruiu o czarismo, a autocracia e criou, com a ajuda de outras pessoas, um Estado que ele esperava que se tornasse um Estado modelo. Quando ele morreu, era muito crítico a si mesmo e aos outros revolucionários. Ele escreveu: "Devo desculpas à classe operária russa. Eu os decepcionei". E ele também disse "nós não sabíamos de nada". Quando foi que um político da esquerda ou da direita disse isso de novo?
É isso o que quero dizer quando digo que precisamos de mais Lênins. Não pessoas que vão fazer exatamente o que ele fez. Aquela situação já passou há muito tempo e vivemos num mundo completamente diferente. Mas pessoas que tenham a coragem de admitir erros.