segunda-feira, 10 de setembro de 2018

Os mercados pensam com o fígado?

O jornal Valor desta segunda feira 10 de setembro publica uma entrevista com o economista Guilherme Mello.

Mello participava ativamente das reuniões do grupo de conjuntura da Fundação Perseu Abramo, ainda durante o governo Dilma, nos tempos em que ele e muitos outros defendiam que estava tudo bem, contra (se bem me recordo) uma “minoria de três”que dizia que não era nada disso. Bom, o final da história todo mundo sabe.

Mello também foi muito ativo na luta contra o golpe. Com a mesma consistência de antes, mas agora na linha justa.

Entretanto, como nada que é bom dura para sempre, sua entrevista ao Valor ressuscita a mentalidade que estava na base de seu raciocínio otimista acerca do governo Dilma.

Refiro-me a inclinação, presente em muitos economistas e quetais, a dar lições aos “mercados”. Ou a explicar como a classe dominante deveria se comportar, para proteger os interesses dela mesma.

Segundo o Valor, Mello teria dito que o mercado financeiro vem reagindo de forma irracional às chances eleitorais do PT, pensando com o fígado em vez de usar a cabeça.

Como não está entre aspas, e como a imprensa burguesa (pois é disto que se trata) muitas vezes deforma o que é dito por seus inimigos e adversários, sempre pode ser que Mello não tenha dito exatamente isto.

Feita esta ressalva, o fato é: espero que o mercado financeiro tenha motivos para estar preocupado com as chances eleitorais do PT. 

Pois espero que nosso Partido dos Trabalhadores, se conseguirmos voltar ao governo, tente mesmo destruir a ditadura que o capital financeiro mantém sobre a economia nacional. 

Se nosso PT não estiver disposto a fazer isto, então as propostas contidas em nosso programa não serão cumpridas. 

Infelizmente, Mello adota na entrevista a linha de “dar garantias aos adversários”. 

Este método deve ser utilizado apenas em uma circunstância: quando nosso lado tem tamanha superioridade sobre o inimigo, que torna-se possível dar ao inimigo a alternativa de baixar as armas antes da batalha. 

Evidentemente, este não é o nosso caso. 

Portanto, ao “dar garantias aos adversários”, Mello adota uma atitude que não condiz com o momento atual, que exige dar garantias ao nosso povo de que vale a pena lutar com todas as energias para que possamos vencer as batalhas.

Antes que alguém lembre que é uma entrevista ao Valor, que talvez ele tenha falado desse jeito apenas para dialogar com o lado de lá etc etc, digo: lembrai-vos de 2015, lembrai-vos de 2015!!!

Ainda segundo o Valor, Mello teria dito que não há porque ficar temeroso sobre o compromisso de Lula e Haddad com a sustentabilidade fiscal, estabilidade monetária, cumprimento dos contratos; defendido modernização do regime de metas de inflação; afirmado que eventual derrubada do teto de gastos criado pelo governo Temer não significa que o país ficará sem uma regra fiscal.

Até aqui, trata-se de afirmações genéricas, algumas das quais constam -- contextualizadas -- do nosso programa.

Mas segundo o Valor, Mello também teria dito que a fixação de um objetivo dual não limitaria a autonomia do BC, pois a instituição ficaria responsável por determinar que objetivo iria priorizar ao longo do tempo. E também teria afirmado que não seria definida nenhuma meta numérica de emprego.

Se for verdade a primeira afirmação, Mello acaba de trazer pela janela o que queremos expulsar pela porta, a saber: segundo ele, caberia ao próprio Banco Central (que mesmo nos nossos governos foi o representante dos interesses do mercado financeiro) definir qual parte do seu futuro mandato dual seria prioridade.

Se for verdade a segunda afirmação, que não se baseia em nenhuma resolução que eu conheça, Mello acaba de sugerir uma maneira de tornar inútil o significado de um “mandato dual”. 

Aliás, é uma graça reveladora ver como economistas capazes de acreditar na lógica de números mágicos com vírgula e centésimos nas metas de inflação, taxas de juro e quetais, afastem como se fosse charlatanismo a definição de metas numéricas de emprego.

O Valor atribui a Mello, também, a seguinte afirmação: “é evidente que o objetivo básico dos bancos centrais é a estabilidade monetária e financeira, são os objetivos clássicos”.

É assim nos manuais, mas vejamos o caso do Banco Central brasileiro: podemos falar em “estabilidade” como objetivo, se um dos mecanismos para buscar esta “estabilidade” é uma taxa de juros que desestabiliza de forma permanente o restante da economia?

A quem interessa reproduzir como “evidente” e “clássica” uma cortina de fumaça retórica que é usada para disfarçar a finalidade real do Banco Central brasileiro, que é facilitar a ditadura do capital financeiro sobre a economia nacional?

Não seria melhor falar para os “mercados” a verdade, a saber, que defendemos mudar profundamente o eixo que estrutura a economia do país?

Lendo o texto publicado pelo Valor, que reiteramos pode ter introduzido uma inflexão nas opiniões de Mello, a impressão que fica é a de que devemos pedir desculpas por introduzir ideias que podem afetar a estabilidade das contas públicas.

Quando a verdade é exatamente o oposto disto. 

A Emenda Constitucional nº 95, a Lei de Responsabilidade Fiscal, a regra de ouro, a meta de superávit primário não garantem a sustentabilidade das contas públicas.

Entre aspas, Valor atribui a Mello o seguinte: “O equacionamento da questão fiscal passa necessariamente pela perspectiva de estabilidade e redução da dívida pública”; “Vai ficar sem regra? Não”; “existe a regra da Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF), que é a meta de superávit primário, existe a regra de ouro. Nada impede o novo governo de discutir o conjunto de regras fiscais, atualizá-las para o padrão das regras fiscais de segunda geração”.

Essa maneira de colocar o problema está na contramão das necessidades. 

Nosso problema é o desenvolvimento, o crescimento, a reindustrialização, a elevação da qualidade de vida do povo etc. 

As “regras”, a estabilidade, a dívida, o setor financeiro precisam se adequar a isto.

Mas a lógica da entrevista, se o Valor não a deturpou, é outra. Vejam o seguinte trecho:

Mello diz que o programa do PT defende a realização de alguns gastos com efeito multiplicador sobre a economia, como a retomada de investimentos públicos (sobretudo habitação popular) e ampliação do Bolsa Família. Essa despesa adicional seria compensada com cortes em outras áreas. “A gente não está fechado para rediscutir gastos”, afirma.

É assustador.

Caso tenha sido sugerido que a despesa adicional seria compensada com cortes em outras áreas, é assustador.

Seria como dizer que tudo ficará como antes no quartel de Abrantes.

Num momento em que os quartéis de verdade estão em rebuliço, o lado de cá precisa de menos domesticação mental e de mais disposição de mudar as regras do jogo.

E para isso é preciso entender, de uma vez por todas, que o mercado financeiro não pensa nem com a cabeça, nem com o fígado. Pensa com o bolso.


E nada mais justo do que fazer este bolso pagar a conta.


Ps1. Numa lista de discussão da qual eu não faço parte, Guilherme Mello postou a seguinte resposta às minhas críticas:

Gilberto e amigos, vou responder aqui aos comentários do Valter, que respeito mto, mas acredito que esteja equivocado nas críticas. A ideia de que o programa de 2018 repetirá 2015 é fruto de uma incompreensão básica: o que foi feito em 2015 nunca foi nosso programa! Foi uma tentativas desastrada e desastrosa de implementar o programa adversário, buscando uma sobrevida política que não veio. O programa de 2018 é celebrado por quase todo o PT como um dos mais ousados que já fizemos desde que começamos a governar. Trata de temas espinhosos, como tributação, bancos, mídia, judiciário, estado... Mais que isso, fala explicitamente em mudar a condução da política macroeconômica, que foi o alvo dessa matéria. Acho que a crítica de que estamos tentando agradar o mercado ao dizer, por exemplo, que tem gastos a serem cortados, é injusta e injustificável. Ou alguém acha que não se deve cortar os gastos com auxílio moradia de juiz com casa? Ou de auxílio paletó? Ou vários dos gastos tributários que fizemos? O mesmo vale pra política monetária: quando falamos em atualizar, melhorar a institucionalidade, vem a crítica de que não assumimos uma postura de ruptura total. Acho as críticas válidas, mas caso o partido resolvesse seguir essa linha, correria o risco de repetir 2015: ganhar com um discurso e governar com outro. Particularmente, acho nosso programa mto avançado e, melhor que tudo, factível! Só haverá um novo 2015 se prometermos oq sabidamente não conseguiremos entregar. Felizmente, 2018 não é 2015!

Ps2. Pedi que enviassem, para a mesma lista de discussão já citada, a seguinte tréplica:

Prezados/as

Maringoni me enviou a resposta de Guilherme.

Como não faço parte desta lista, pedi ao Maringoni que enviasse para vocês a seguinte resposta.

Eu não acho, nem escrevi, que “o programa de 2018 repetirá 2015”.

Aliás, estive na reunião do DN que aprovou o programa e como integrante do DN, votei nele.

O que eu disse e escrevi e reitero é que algumas das respostas de Guilherme ao Valor apontam num sentido que vai dar em 2015.

E se Guilherme acha que o que ele disse ao Valor corresponde fielmente ao programa aprovado, então temos um grande problema.

Concordo com Guilherme quando ele diz “que o (que) foi feito em 2015 nunca foi nosso programa!”

Mas o mesmo vale para algumas das respostas de Guilherme ao Valor.

Concordo com Guilherme, também, que “o programa de 2018 é celebrado por quase todo o PT como um dos mais ousados que já fizemos desde que começamos a governar”.

Aliás, como já disse acima, votei a favor do programa. Que, é bom dizer, ficou muito melhor graças ao debate. 

A versão inicial, especialmente na área da economia, continha ideias exóticas, que foram deletadas e que pelo visto continuam vivas para Guilherme.

Minha crítica sobre “agradar o mercado ao dizer, por exemplo, que tem gastos a serem cortados” é confirmada, indiretamente, pela explicação dada por Guilherme.

Afinal, é pura demagogia tentar justificar a correção daquele argumento falando de “gastos com auxílio moradia de juiz com casa” ou de “auxílio paletó”, quando qualquer um sabe que o debate real sobre os “gastos” que afetam a economia do país estão relacionados OU com a dívida pública e os juros, OU com a seguridade social e quetais.

Guilherme parece estar convencido de que ele fala pelo partido neste debate. 

Nesta linha, ele afirma que “quando falamos em atualizar, melhorar a institucionalidade, vem a crítica de que não assumimos uma postura de ruptura total. Acho as críticas válidas, mas caso o partido resolvesse seguir essa linha, correria o risco de repetir 2015”.

Aqui há uma mistura total de assuntos. 

Um assunto é: nosso governo vai ser fiscalmente responsável? A resposta é: óbvio.

Outro assunto é: quais serão os indicadores disto? A resposta é: serão outros, diferentes dos atuais. 

E aí começam as diferenças, pois Guilherme —leiam a entrevista— aponta no sentido de validar alguns dos indicadores atuais. 

O que ele fala no caso do mandato do BC é o exemplo mais claro do que estou dizendo. 

Aliás, pergunto: o que ele fala sobre o BC decidir qual dos mandatos vale a cada momento está escrito no programa aprovado pelo DN? 

O terceiro assunto é discutir o que aconteceria caso ganhássemos com um discurso e governassemos com outro. 

Eu acho que daria 2015, ele também.

Mas divergimos quanto ao que isso quer dizer.

Guilherme diz que “só haverá um novo 2015 se prometermos oq sabidamente não conseguiremos entregar.” 

Ou seja: ele insinua que Dilma prometeu em 2014 o que não conseguiria entregar!!! 

Portanto, hoje temos que prometer o que dá para entregar.

Sobre 2014-15, esta “explicação” está errada, é falsa. 

E sobre 2018-19, esta tese desautoriza Guilherme. 

Porque será impossível entregar o que prometemos no programa e ao mesmo tempo “dar garantias” ao sistema financeiro.

Em 2015 fomos derrubados porque fomos para a direita, para a ortodoxia. Não porque fomos para a esquerda.

Em 2015 aplicou-se um programa que não era o do PT. O que estou criticando na entrevista de Mello é centralmente isso: ele está emitindo sinais de paz para o mercado financeiro. Nosso programa aponta no sentido oposto!

Abraços









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