sábado, 8 de setembro de 2018

Epílogo do presente de Dirceu


Chegamos, por fim, ao epílogo das Memórias, um capítulo de número 35, onde Dirceu se propõe a fazer “um balanço dos anos que vivi no governo e do período que se encerrou em 2016”.

Quem tiver interesse em ler a análise dos 34 capítulos anteriores, veja a relação de endereços ao final deste texto. 

Quem tiver interesse numa resenha breve, pode encontrar uma no seguinte endereço: https://teoriaedebate.org.br/estante/as-lembrancas-de-dirceu/

No epílogo, Dirceu começa o balanço dizendo que a “era Lula e o petismo recebem avaliações aterradoras da direita e da esquerda”.

Vou pular o que Dirceu fala contra a direita e passo direto ao que ele fala da esquerda. Segundo ele, na página 454:

“À esquerda, uma facção rompeu com o PT ainda na reforma da previdência, ancorada no corporativismo e nos privilégios dos servidores públicos (...) Essa esquerda – PSOL e PSTU – sem base social e eleitoral, condenou o governo Lula sem mediações nem tréguas.”

Já na página 455, ele acrescenta:
“A segunda frente de ‘oposição’ ao PT, desde antes da vitória de Lula e mesmo de sua quarta candidatura, veio e vinha de dentro do PT e remonta à sua própria fundação e criação do partido”.

A isto seguem vários parágrafos tratando dos grupos de esquerda que vieram para o PT, dos grupos que existiam de forma organizada dentro do PT nos anos 80, versus o papel que a Articulação dos 113 jogou em defesa do petismo.

Na página 456 Dirceu explica por que faz isso:
 “Qual a importância de rememorar a criação do PT? Toda, porque explica as divergências, as diferenças existentes até hoje, explica as várias estratégias para sua construção e luta pelo poder com um elemento fundamental: Lula e sua liderança, seu carisma e seu papel na história recente do Brasil e do PT”.

Isto é verdade? Não, não é. As divergências atualmente existentes dentro do PT não são as mesmas que existiam entre 1980 e 1989. Podemos dizer que há um parentesco distante, que há questões de fundo que estavam presentes lá e que estão presentes agora. Mas simplesmente não é sério reduzir o debate atual ao debate travado nos anos 1980.

Por qual motivo Dirceu adota este caminho? Na minha opinião, porque desqualificando alguns críticos, Dirceu garante para outros (ele próprio, inclusive) o monopólio das críticas aceitáveis.

E para que isto seja possível, ele constrói uma narrativa onde as tendências da atual esquerda petista são equiparadas aos partidos dentro do partido que existiam nos anos 1980. E se por acaso há uma tendência que não se enquadra nesta narrativa, neste caso ela precisa ser estigmatizada a ferro e fogo.

A verdade é que Dirceu não se considera stalinista, mas ele adota uma clássica postura stalinista quando assume a lógica segundo a qual o PT é plural, pode ter tendências, mas se voce não concordar com a posição que é majoritária num determinado momento, voce é catalogado como ...“oposição ao PT”!!!

Quero insistir nisto: é inaceitável, não existe outro termo, que se trate como “oposição ao PT” – mesmo que com aspas, mesmo que por demagogia retórica -- quem faz críticas à orientação majoritária do Partido. É o equivalente aos que afirmavam que a esquerda era “oposição ao Brasil”.

Outro problema na postura de Dirceu é que ele trata as tendências da esquerda petista como se fossem uma coisa só. Além disso, ele desconsidera o fato de que existe um amplo setor do petismo que não faz parte de nenhuma tendência, mas que faz críticas aos rumos seguidos pelo PT, em diferentes momentos e de diferentes formas, especialmente no período em que Palocci (e não Dirceu) era hegemônico no governo.

Feitas estas preliminares, vejamos o que se pode extrair do que Dirceu diz. Por exemplo, na página 457:
“Qual é a régua para medir o governo Lula em junho de 2005, quando deixei a Casa Civil e perdi meu mandato de deputado federal? Qual é a medida para um militante com quarenta anos de luta como eu?
“Devemos aceitar que traímos o PT e a esquerda por causa do mensalão, que chegamos ao governo e nos curvamos a conciliações com a burguesia e adotamos seus métodos como avaliam hoje – 2018 – e já avaliavam em 2005 setores do PT que se autointitulam de esquerda ou “a esquerda” do PT?”

Ao ler estas perguntas, me dou conta que Dirceu incorre algumas vezes em posição parecida com a manifesta por diversos líderes do antigo campo majoritário, para os quais “conciliação” é igual a “traição”. E, portanto, tomam como ofensa mortal quando se diz a eles que foi adotada uma estratégia de conciliação.

Quem tiver interesse de ler a respeito, sugiro este texto:

Mas o que realmente me chama a atenção no epílogo são as duas almas que nele se manifestam.

Para esclarecer do que estou falando, vejamos o que diz Dirceu nas página 459-460:
“Uma coisa é reconhecer nossos erros (...) outra é atribuir a esses erros nossa derrota ou condenar nossos governos, atribuindo ao governo e ao PT, e às suas ‘maiorias’, uma traição ou abandono de nossos objetivos programáticos que não era, diga-se de passagem, fazer um governo socialista, muito menos na concepção da “esquerda” do PT de socialismo, jamais aceita ou construída pelo PT.”

Notem a frase: “atribuir a esses erros nossa derrota”. Se entendi direito, Dirceu acha que não devemos atribuir nossa derrota a nossos erros. Mas então devemos atribuir ao quê? Aos inimigos?

Acontece que nossos inimigos não vencem sempre. As vezes nós também vencemos, porque acertamos mais do que eles, porque erramos menos do que eles. E a recíproca é verdadeira: quando eles vencem, é porque acertaram mais do que nós, porque erramos mais do que eles. 

Portanto, noves fora, faz sentido localizar nossos erros e, certas vezes, são esses erros as principais causas de nossas derrotas. No caso concreto do golpe de 2016, considero que opções estratégicas feitas em 1995 e radicalizadas em 2003 têm parte importante da responsabilidade.


Notem também a frase: nosso objetivo programático não era fazer um governo socialista, muito menos na concepção de socialismo da “esquerda” do PT.

Aguardarei que Dirceu nos diga qual é a concepção de socialismo da “esquerda” do PT. Minha impressão é que não existe uma única. Além do mais, para os fins deste debate, é mais do que suficiente a concepção de socialismo tal e qual expressa nas resoluções sobre estratégia e programa do sexto congresso do Partido.

A questão é: nossos governos, nossa ação nas bancadas, nossa ação nos movimentos, nossa ação no partido, nossa ação no debate de ideias tem que ter relação com nosso objetivo programático, tal e qual está nas resoluções do 6º Congresso.

Feitas estas ressalvas ao que Dirceu diz nas páginas 459-460, demarcando com o que ele acha que pensa a esquerda petista, pulo agora para o que ele fala na página 466:
“é preciso ir ao povo trabalhador e organizar sua luta social e política. Responder à radicalização da direita com luta política e social e um programa, como eles fazem, que vá à raiz da questão nacional, democrática e social. Fazer a revolução brasileira inconclusa, retomar o conceito de revolução social e política”.

Como se vê, Dirceu transita de um extremo a outro, da moderação ao radicalismo.

Tenho várias hipóteses para este comportamento político; uma destas hipóteses aproveita sugestão que me foi feita por Marco Aurélio Garcia, misturando Dirceu, a geração de 68 e as Ilusões Perdidas de Balzac.

Mas decifrar a personalidade de Dirceu é tarefa acima de minhas capacidades e, principalmente, algo distante dos meus interesses. O que realmente me interessa, e quem sabe ele consiga isso no volume dois de suas Memórias, é uma reflexão sobre a estratégia, que ao menos tente superar este ziguezague das duas almas, que no caso concreto se traduziram em moderação no governo, radicalismo na oposição.

No fundo, sigo pensando basicamente o mesmo que escrevi em dezembro de 2005, num artigo publicado no portal do PT, exatamente sobre a cassação de Dirceu:

SEXTA-FEIRA, DEZEMBRO 02, 2005

A cassação de Dirceu

A cassação de José Dirceu é o grande assunto do noticiário, nesta virada de novembro para dezembro.
Pena: muito mais importante é o desempenho do Produto Interno Bruto, que demonstra, mais uma vez, quais as decorrências de uma política de juros altos e superávit primário escorchante.
Aliás, quem assistiu ao discurso do líder do Partido da Frente Liberal (PFL), feito durante a sessão da Câmara que cassou o mandato de José Dirceu, deve ter pensado que o mundo está de ponta-cabeça: um Maia acusando de conservadora a política econômica do governo Lula. Pior: dizendo que esta política privilegia o capital financeiro!!!
Neste contexto, o espaço dado para a cassação de José Dirceu é mais um sinal de que o PT e o governo saíram das cordas, mas continuam na defensiva. Pois enquanto seguimos às voltas com esta e outras possíveis cassações, a direita ensaia o discurso com o qual pretende nos impor uma derrota eleitoral, política e ideológica nas eleições de 2006.
Se não houver uma mudança urgente na política & na política econômica, corremos o risco de sermos derrotados sob a acusação de termos aplicado um programa conservador, utilizando para isto métodos também conservadores! E teremos o desgosto de ver, na campanha de 2006, partidos de centro-direita fazendo, contra nós, um discurso supostamente progressista.
Isto posto, é óbvio que há uma enorme relação disto com aquilo, da situação política geral com a cassação de José Dirceu. Pois como já se disse repetidas vezes, José Dirceu é um dos grandes responsáveis pela "estratégia de centro-esquerda", que nos colocou nesta enrascada.
É evidente que os deputados da direita votaram pela cassação de José Dirceu, com o objetivo de golpear o PT e o governo. Mas é preciso perguntar por quais motivos eles tiveram êxito nessa votação em particular. Afinal, nesta mesma Câmara dos Deputados o governo e o PT já colheram algumas vitórias.
A resposta é óbvia, mas tem sido esquecida por alguns analistas: a direita teve êxito em cassar José Dirceu, devido a erros cometidos pelo Partido, pelo governo e pelo próprio Dirceu. Foram estes erros que criaram um ambiente propício para que a direita nos atacasse, nos colocasse na defensiva e, agora, tirasse o mandato de um importante deputado do PT.
O Partido ainda não fez um balanço completo acerca desses erros. É bom que o faça e rápido, sob pena deles continuarem produzindo mais vítimas.
Na minha opinião, o erro fundamental é de estratégia: a política de "centro-esquerda" que aparentemente ajudou a fazer de Lula presidente da República, não está dando conta dos desafios de governar e mudar o país. Pois suas premissas nos impedem de romper com a hegemonia do capital financeiro, bloqueiam as reformas estruturais que o país precisa, contém nosso crescimento eleitoral, dificultam nossas relações com os movimentos sociais e com os partidos de esquerda.
Deste ponto de vista, a cassação de José Dirceu tem um componente trágico. Afinal, ele foi um dos principais formuladores e certamente o grande operador da política que, em última análise, conduziu o governo ao impasse estratégico, o PT ao fundo do poço e ele próprio à guilhotina.
Para fazer o Partido aceitar a política de centro-esquerda, José Dirceu fez uso, muitas e repetidas vezes, do carisma e da mística que lhe são atribuídos. Para ser mais exato, ele construiu uma imagem pública que serviu para aplainar resistências, especialmente na esquerda. Muitos e muitos militantes do Partido aceitaram a implementação desta política, por confiar em José Dirceu, não propriamente por confiança na política.
É claro que há uma distância entre a vida real e o mito criado. Os que refletiram sobre 1968, Ibiúna, Cuba, Molipo e outros episódios sabem disso. Mas o fato politicamente relevante é que, na campanha contra a cassação de Dirceu, o velho, seus amigos apelaram seguidas vezes para os feitos de Dirceu, o novo. Neste ponto, a tragédia incorporou um elemento de farsa: o deputado que conduziu nosso Partido para o reino do pragmatismo institucional apela, em sua defesa, para a mística do revolucionário.
Para alguns, isto talvez confirme a tese de Tarso Genro, segundo a qual as peripécias delubianas revelam a sobrevivência do "bolchevismo" entre nós. Na verdade, não há nada mais distante do bolchevismo do que José Dirceu e sua política. Prova disto é que Tarso Genro, um ex-comunista convicto, defendia e defende até hoje a mesma política, embora como tantos outros esteja, agora, enfrentando certa dificuldade para conviver com suas consequências.
O grande desafio do PT tem a ver com isto: perceber que a cassação de José Dirceu, assim como todo o resto da crise que se abate sobre nós, é consequência de uma linha política, que precisa ser alterada, de cima a baixo. Se não tivermos êxito nisto, vamos girar em falso.
Qual papel Dirceu terá neste debate? Manterá as mesmas posições que antes? Reconhecerá seus erros políticos e ajudará na reorientação do Partido, inclusive no combate frontal contra Palocci? Ou irá para a ultra-esquerda, como fez o também mítico Carlos Marighella, depois do golpe de 1964?
O tempo dirá. O fundamental é que o Partido, se quiser sobreviver, precisa fazer a crítica teórica e prática do edifício político e organizativo montado por José Dirceu: o abandono do socialismo e da revolução como norte programático e estratégico; a principalidade conferida à disputa eleitoral-institucional; o pragmatismo nas alianças; o centralismo burocrático; a transformação da direção nacional numa máquina com baixa capacidade de formulação; as finanças dependentes de contribuições empresariais. Tudo isto e muito mais precisa ser detalhadamente destrinchado e criticado, pois foi isso que nos trouxe aonde estamos agora. E é isso que precisamos criticar, se quisermos dar a volta por cima.

Como sabemos todos, a partir de 2005 o partido fez balanços, reconheceu erros, promoveu inflexões na política, venceu as eleições de 2006, 2010 e 2014, mas não promoveu uma reorientação completa na sua estratégia.

Pelo contrário, as vitórias obtidas no período, especialmente no segundo mandato de Lula, fizeram muita gente pensar que bastava uma inflexão, não sendo necessária uma revisão completa na estratégia.

Os efeitos disto, estamos sofrendo desde 2015. Continua sendo necessário construir, na teoria e principalmente na prática, uma reorientação estratégica para o PT. 

Deste ponto de vista, o primeiro volume das Memórias de Dirceu mais confunde que esclarece. O presente de Dirceu continua sendo demasiado governado pelo seu passado. Oxalá o segundo volume seja diferente.

Abaixo os endereços das 7 partes anteriores deste comentário sobre as as Memórias de Dirceu:


 (Sem revisão. Agradeço a quem se disponha a indicar eventuais erros de digitação ou mesmo informações equivocadas.)




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