quinta-feira, 3 de setembro de 2020

Roteiro da aula 4

NADA ABAIXO FOI REVISADO


Boa noite a todos.

Boa noite a todas.

Boa noite a quem aqui na sala zoom.

Boa noite a quem está nos acompanhando on-line através do youtube.

Cumprimento, também, a quem venha nos assistir noutro momento.

Meu nome é Valter Pomar.

Sou professor de relações internacionais na Universidade Federal do ABC.

E faço parte da equipe de professores voluntários da Escola Latinoamericana de História e Política, a ELAHP.

Hoje vamos dar continuidade ao curso de “Leitura dirigida de O Capital”.

Este curso está planejado para durar 16 aulas, das quais já fizemos três.

No dia 14 falamos do “capitalismo, história e teorias: por que estudar O Capital? A história da elaboração de O Capital”.

No dia 21 de agosto falamos da obra Contribuição à Crítica da Economia Política. E voltamos a falar um pouco da história da elaboração de O Capital.

No dia 28 de agosto, começamos a discutir o capítulo 1 de O Capital, intitulado A MERCADORIA.

Hoje, quarta aula, dia 4 de setembro, vamos concluir a discussão do capítulo 2 e trataremos dos capítulos 2 e 3. 

Pode acontecer de parte disso ficar para a próxima aula e procederemos conforme combinado, ou seja, seguiremos tocando e se ao final for necessário acrescentar mais aulas, o faremos, pois nosso objetivo aqui é tratar do conjunto do livro 1. 

Deixando para 2021 os livros 2 e 3.

Lembro uma vez mais que nosso  procedimento aqui é: eu faço uma descrição e comentários acerca do conteúdo do capítulo.

Havendo tempo, responderei perguntas aqui mesmo. Não havendo tempo, responderei perguntas feitas por email.

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O que ficou pendente do capítulo 1 foi o ponto 4, a saber: O caráter fetichista da mercadoria e seu segredo 

Os três primeiros itens do capítulo 1 foram tratados na aula e, também, em roteiros de aula que devem ter sido enviados para vocês.

Se por acaso alguém não recebem, avise no chat, para que o Emilio providencie o envio.

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È importante, antes que entremos no capítulo 1 propriamente, situarmos mais uma vez o plano da obra.

O Capital livro 1 O processo de produção do capital tem sete seções.

Seção I Mercadoria e dinheiro 

Seção II A transformação do dinheiro em capital 

Seção III A produção do mais-valor absoluto 

Seção IV A produção do mais-valor relativo 

Seção V A produção do mais-valor absoluto e relativo 

Seção VI O salário [único claramente subsumível]

Seção VII O processo de acumulação do capital 

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Agora vejamos a estrutura da Seção 1

Capítulo 1 - A mercadoria 

Capítulo 2 - O processo de troca 

Capítulo 3 - O dinheiro ou a circulação de mercadorias 

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Agora vejamos a estrutura interna desses capítulos

Capítulo 1 - A mercadoria 

1. Os dois fatores da mercadoria: valor de uso e valor (substância do valor, grandeza do valor) 

2. O duplo caráter do trabalho representado nas mercadorias 

3. A forma de valor [Wertform] ou o valor de troca 

A) A forma de valor simples, individual ou ocasional 

B) A forma de valor total ou desdobrada 

C) A forma de valor universal 

D) A forma-dinheiro 

4. O caráter fetichista da mercadoria e seu segredo 

Capítulo 2 - O processo de troca [SUBSUMÍVEL NO ITEM 4]

Capítulo 3 - O dinheiro ou a circulação de mercadorias 

1. Medida dos valores 

2. O meio de circulação 

a) A metamorfose das mercadorias 

b) O curso do dinheiro 

c) A moeda. O signo do valor 

3. Dinheiro 

a) Entesouramento 

b) Meio de pagamento 

c) O dinheiro mundial 


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4. O caráter fetichista da mercadoria e seu segredo 

Uma mercadoria aparenta ser, à primeira vista, uma coisa óbvia, trivial. Sua análise resulta em que ela é uma coisa muito intricada, plena de sutilezas metafísicas e melindres teológicos. Quando é valor de uso, nela não há nada de misterioso, quer eu a considere do ponto de vista de que satisfaz necessidades humanas por meio de suas propriedades, quer do ponto de vista de que ela só recebe essas propriedades como produto do trabalho humano. É evidente que o homem, por meio de sua atividade, altera as formas das matérias naturais de um modo que lhe é útil. Por exemplo, a forma da madeira é alterada quando dela se faz uma mesa. No entanto, a mesa continua sendo madeira, uma coisa sensível e banal. Mas tão logo aparece como mercadoria, ela se transforma numa coisa sensível-suprassensível. Ela não só se mantém com os pés no chão, mas põe-se de cabeça para baixo diante de todas as outras mercadorias, e em sua cabeça de madeira nascem minhocas que nos assombram muito mais do que se ela começasse a dançar por vontade própria. 

O caráter místico da mercadoria não resulta, portanto, de seu valor de uso. Tampouco resulta do conteúdo das determinações de valor, pois, em primeiro lugar, por mais distintos que possam ser os trabalhos úteis ou as atividades produtivas, é uma verdade fisiológica que eles constituem funções do organismo humano e que cada uma dessas funções, seja qual for seu conteúdo e sua forma, é essencialmente dispêndio de cérebro, nervos, músculos e órgãos sensoriais humanos etc. Em segundo lugar, no que diz respeito àquilo que se encontra na base da determinação da grandeza de valor – a duração desse dispêndio ou a quantidade do trabalho –, a quantidade é claramente diferenciável da qualidade do trabalho. Sob quaisquer condições sociais, o tempo de trabalho requerido para a produção dos meios de subsistência havia de interessar aos homens, embora não na mesma medida em diferentes estágios de desenvolvimento. Por fim, tão logo os homens trabalham uns para os outros de algum modo, seu trabalho também assume uma forma social. 

De onde surge, portanto, o caráter enigmático do produto do trabalho, assim que ele assume a forma-mercadoria? Evidentemente, ele surge dessa própria forma. A igualdade dos trabalhos humanos assume a forma material da igual objetividade de valor dos produtos do trabalho; a medida do dispêndio de força humana de trabalho por meio de sua duração assume a forma da grandeza de valor dos produtos do trabalho; finalmente, as relações entre os produtores, nas quais se efetivam aquelas determinações sociais de seu trabalho, assumem a forma de uma relação social entre os produtos do trabalho. 

O caráter misterioso da forma-mercadoria consiste, portanto, simplesmente no fato de que ela reflete aos homens os caracteres sociais de seu próprio trabalho como caracteres objetivos dos próprios produtos do trabalho, como propriedades sociais que são naturais a essas coisas e, por isso, reflete também a relação social dos produtores com o trabalho total como uma relação social entre os objetos, existente à margem dos produtores. É por meio desse quiproquó que os produtos do trabalho se tornam mercadorias, coisas sensíveis-suprassensíveis ou sociais. A impressão luminosa de uma coisa sobre o nervo óptico não se apresenta, pois, como um estímulo subjetivo do próprio nervo óptico, mas como forma objetiva de uma coisa que está fora do olho. No ato de ver, porém, a luz de uma coisa, de um objeto externo, é efetivamente lançada sobre outra coisa, o olho. Trata-se de uma relação física entre coisas físicas. Já a forma mercadoria e a relação de valor dos produtos do trabalho em que ela se representa não tem, ao contrário, absolutamente nada a ver com sua natureza física e com as relações materiais [dinglichen] que dela resultam. É apenas uma relação social determinada entre os próprios homens que aqui assume, para eles, a forma fantasmagórica de uma relação entre coisas. Desse modo, para encontrarmos uma analogia, temos de nos refugiar na região nebulosa do mundo religioso. Aqui, os produtos do cérebro humano parecem dotados de vida própria, como figuras independentes que travam relação umas com as outras e com os homens. Assim se apresentam, no mundo das mercadorias, os produtos da mão humana. A isso eu chamo de fetichismo, que se cola aos produtos do trabalho tão logo eles são produzidos como mercadorias e que, por isso, é inseparável da produção de mercadorias. 

Esse caráter fetichista do mundo das mercadorias surge, como a análise anterior já mostrou, do caráter social peculiar do trabalho que produz mercadorias. 

Os objetos de uso só se tornam mercadorias porque são produtos de trabalhos privados realizados independentemente uns dos outros. O conjunto desses trabalhos privados constitui o trabalho social total. Como os produtores só travam contato social mediante a troca de seus produtos do trabalho, os caracteres especificamente sociais de seus trabalhos privados aparecem apenas no âmbito dessa troca. Ou, dito de outro modo, os trabalhos privados só atuam efetivamente como elos do trabalho social total por meio das relações que a troca estabelece entre os produtos do trabalho e, por meio destes, também entre os produtores. A estes últimos, as relações sociais entre seus trabalhos privados aparecem como aquilo que elas são, isto é, não como relações diretamente sociais entre pessoas em seus próprios trabalhos, mas como relações reificadas entre pessoas e relações sociais entre coisas.

-tradução x traição (ver nota na p148, como ao substituir material por reificada o tradutor dá vazão a sua interpretação)

 Somente no interior de sua troca os produtos do trabalho adquirem uma objetividade de valor socialmente igual, separada de sua objetividade de uso, sensivelmente distinta. Essa cisão do produto do trabalho em coisa útil e coisa de valor só se realiza na prática quando a troca já conquistou um alcance e uma importância suficientes para que se produzam coisas úteis destinadas à troca e, portanto, o caráter de valor das coisas passou a ser considerado no próprio ato de sua produção. A partir desse momento, os trabalhos privados dos produtores assumem, de fato, um duplo caráter social. Por um lado, como trabalhos úteis determinados, eles têm de satisfazer uma determinada necessidade social e, desse modo, conservar a si mesmos como elos do trabalho total, do sistema natural-espontâneo da divisão social do trabalho. Por outro lado, eles só satisfazem as múltiplas necessidades de seus próprios produtores na medida em que cada trabalho privado e útil particular é permutável por qualquer outro tipo útil de trabalho privado, portanto, na medida em que lhe é equivalente. A igualdade toto coelo [plena] dos diferentes trabalhos só pode consistir numa abstração de sua desigualdade real, na redução desses trabalhos ao seu caráter comum como dispêndio de força humana de trabalho, como trabalho humano abstrato. O cérebro dos produtores privados reflete esse duplo caráter social de seus trabalhos privados apenas nas formas em que se manifestam no intercâmbio prático, na troca dos produtos: o caráter socialmente útil de seus trabalhos privados na forma de que o produto do trabalho tem de ser útil, e precisamente para outrem; o caráter social da igualdade dos trabalhos de diferentes tipos na forma do caráter de valor comum a essas coisas materialmente distintas, os produtos do trabalho. 

Portanto, os homens não relacionam entre si seus produtos do trabalho como valores por considerarem essas coisas meros invólucros materiais de trabalho humano de mesmo tipo. Ao contrário. Porque equiparam entre si seus produtos de diferentes tipos na troca, como valores, eles equiparam entre si seus diferentes trabalhos como trabalho humano. Eles não sabem disso, mas o fazem. Por isso, na testa do valor não está escrito o que ele é. O valor converte, antes, todo produto do trabalho num hieróglifo social. Mais tarde, os homens tentam decifrar o sentido desse hieróglifo, desvelar o segredo de seu próprio produto social, pois a determinação dos objetos de uso como valores é seu produto social tanto quanto a linguagem. A descoberta científica tardia de que os produtos do trabalho, como valores, são meras expressões materiais do trabalho humano despendido em sua produção fez época na história do desenvolvimento da humanidade, mas de modo algum elimina a aparência objetiva do caráter social do trabalho. O que é válido apenas para essa forma particular de produção, a produção de mercadorias – isto é, o fato de que o caráter especificamente social dos trabalhos privados, independentes entre si, consiste em sua igualdade como trabalho humano e assume a forma do caráter de valor dos produtos do trabalho –, continua a aparecer, para aqueles que se encontram no interior das relações de produção das mercadorias, como algo definitivo, mesmo depois daquela descoberta, do mesmo modo como a decomposição científica do ar em seus elementos deixou intacta a forma do ar como forma física corpórea. 

O que, na prática, interessa imediatamente aos agentes da troca de produtos é a questão de quantos produtos alheios eles obtêm em troca por seu próprio produto, ou seja, em que proporções os produtos são trocados. Assim que essas proporções alcançam uma certa solidez habitual, elas aparentam derivar da natureza dos produtos do trabalho, como se, por exemplo, 1 tonelada de ferro e 2 onças de ouro tivessem o mesmo valor do mesmo modo como 1 libra de ouro e 1 libra de ferro têm o mesmo peso, apesar de suas diferentes propriedades físicas e químicas. Na verdade, o caráter de valor dos produtos do trabalho se fixa apenas por meio de sua atuação como grandezas de valor. Estas variam constantemente, independentemente da vontade, da previsão e da ação daqueles que realizam a troca. Seu próprio movimento social possui, para eles, a forma de um movimento de coisas, sob cujo controle se encontram, em vez de eles as controlarem. É preciso que a produção de mercadorias esteja plenamente desenvolvida antes que da própria experiência emerja a noção científica de que os trabalhos privados, executados independentemente uns dos outros, porém universalmente interdependentes como elos naturais-espontâneos da divisão social do trabalho, são constantemente reduzidos à sua medida socialmente proporcional, porque, nas relações de troca contingentes e sempre oscilantes de seus produtos, o tempo de trabalho socialmente necessário à sua produção se impõe com a força de uma lei natural reguladora, assim como a lei da gravidade se impõe quando uma casa desaba sobre a cabeça de alguém. A determinação da grandeza de valor por meio do tempo de trabalho é, portanto, um segredo que se esconde sob os movimentos manifestos dos valores relativos das mercadorias. Sua descoberta elimina dos produtos do trabalho a aparência da determinação meramente contingente das grandezas de valor, mas não elimina em absoluto sua forma reificada [sachlich]. 

A reflexão sobre as formas da vida humana, e, assim, também sua análise científica, percorre um caminho contrário ao do desenvolvimento real. Ela começa post festum [muito tarde, após a festa] e, por conseguinte, com os resultados prontos do processo de desenvolvimento. As formas que rotulam os produtos do trabalho como mercadorias, e, portanto, são pressupostas à circulação das mercadorias, já possuem a solidez de formas naturais da vida social antes que os homens procurem esclarecer-se não sobre o caráter histórico dessas formas – que eles, antes, já consideram imutáveis  –, mas sobre seu conteúdo. Assim, somente a análise dos preços das mercadorias conduziu à determinação da grandeza do valor, e somente a expressão monetária comum das mercadorias conduziu à fixação de seu caráter de valor. Porém, é justamente essa forma acabada – a forma-dinheiro – do mundo das mercadorias que vela materialmente [sachlich], em vez de revelar, o caráter social dos trabalhos privados e, com isso, as relações sociais entre os trabalhadores privados. Quando digo que o casaco, a bota etc. se relacionam com o linho sob a forma da incorporação geral de trabalho humano abstrato, salta aos olhos a sandice dessa expressão. Mas quando os produtores de casaco, bota etc. relacionam essas mercadorias ao linho – ou com o ouro e a prata, o que não altera em nada a questão – como equivalente universal, a relação de seus trabalhos privados com seu trabalho social total lhes aparece exatamente nessa forma insana. 

Ora, são justamente essas formas que constituem as categorias da economia burguesa. Trata-se de formas de pensamento socialmente válidas e, portanto, dotadas de objetividade para as relações de produção desse modo social de produção historicamente determinado, a produção de mercadorias. Por isso, todo o misticismo do mundo das mercadorias, toda a mágica e a assombração que anuviam os produtos do trabalho na base da produção de mercadorias desaparecem imediatamente, tão logo nos refugiemos em outras formas de produção. 

Como a economia política ama robinsonadas, lancemos um olhar sobre Robinson em sua ilha. Apesar de seu caráter modesto, ele tem diferentes necessidades a satisfazer e, por isso, tem de realizar trabalhos úteis de diferentes tipos, fazer ferramentas, fabricar móveis, domesticar lhamas, pescar, caçar etc. Não mencionamos orar e outras coisas do tipo, pois nosso Robinson encontra grande prazer nessas atividades e as considera uma recreação. Apesar da variedade de suas funções produtivas, ele tem consciência de que elas são apenas diferentes formas de atividade do mesmo Robinson e, portanto, apenas diferentes formas de trabalho humano. A própria necessidade o obriga a distribuir seu tempo com exatidão entre suas diferentes funções. Se uma ocupa mais espaço e outra menos em sua atividade total depende da maior ou menor dificuldade que se tem de superar para a obtenção do efeito útil visado. A experiência lhe ensina isso, e eis que nosso Robinson, que entre os destroços do navio salvou relógio, livro comercial, tinta e pena, põe-se logo, como bom inglês, a fazer a contabilidade de si mesmo. Seu inventário contém uma relação dos objetos de uso que ele possui, das diversas operações requeridas para sua produção e, por fim, do tempo de trabalho que lhe custa, em média, a obtenção de determinadas quantidades desses diferentes produtos. Aqui, todas as relações entre Robinson e as coisas que formam sua riqueza, por ele mesmo criada, são tão simples que até mesmo o sr. M. Wirthr poderia compreendê-las sem maior esforço intelectual. E, no entanto, nelas já estão contidas todas as determinações essenciais do valor. 

Saltemos, então, da iluminada ilha de Robinson para a sombria Idade Média europeia. Em vez do homem independente, aqui só encontramos homens dependentes – servos e senhores feudais, vassalos e suseranos, leigos e clérigos. A dependência pessoal caracteriza tanto as relações sociais da produção material quanto as esferas da vida erguidas sobre elas. Mas é justamente porque as relações pessoais de dependência constituem a base social dada que os trabalhos e seus produtos não precisam assumir uma forma fantástica distinta de sua realidade. Eles entram na engrenagem social como serviços e prestações in natura. A forma natural do trabalho, sua particularidade – e não, como na base da produção de mercadorias, sua universalidade – é aqui sua forma imediatamente social. A corveia é medida pelo tempo tanto quanto o é o trabalho que produz mercadorias, mas cada servo sabe que o que ele despende a serviço de seu senhor é uma quantidade determinada de sua força pessoal de trabalho. O dízimo a ser pago ao padre é mais claro do que a bênção do padre. Julguem-se como se queiram as máscaras atrás das quais os homens aqui se confrontam, o fato é que as relações sociais das pessoas em seus trabalhos aparecem como suas próprias relações pessoais e não se encontram travestidas em relações sociais entre coisas, entre produtos de trabalho. 

Para a consideração do trabalho coletivo, isto é, imediatamente socializado, não precisamos remontar à sua forma natural-espontânea, que encontramos no limiar histórico de todos os povos civilizados. Um exemplo mais próximo é o da indústria rural e patriarcal de uma família camponesa que, para seu próprio sustento, produz cereais, gado, fio, linho, peças de roupa etc. Essas coisas diversas se defrontam com a família como diferentes produtos de seu trabalho familiar, mas não umas com as outras como mercadorias. Os diferentes trabalhos que criam esses produtos, a lavoura, a pecuária, a fiação, a tecelagem, a alfaiataria etc. são, em sua forma natural, funções sociais, por serem funções da família, que, do mesmo modo como a produção de mercadorias, possui sua própria divisão natural-espontânea do trabalho. As diferenças de sexo e idade, assim como das condições naturais do trabalho, variáveis de acordo com as estações do ano, regulam a distribuição do trabalho na família e do tempo de trabalho entre seus membros individuais. Aqui, no entanto, o dispêndio das forças individuais de trabalho, medido por sua duração, aparece desde o início como determinação social dos próprios trabalhos, uma vez que as forças de trabalho individuais atuam, desde o início, apenas como órgãos da força comum de trabalho da família. 

Por fim, imaginemos uma associação de homens livres, que trabalham com meios de produção coletivos e que conscientemente despendem suas forças de trabalho individuais como uma única força social de trabalho. Todas as determinações do trabalho de Robinson reaparecem aqui, mas agora social, e não individualmente. Todos os produtos de Robinson eram seus produtos pessoais exclusivos e, por isso, imediatamente objetos de uso para ele. O produto total da associação é um produto social, e parte desse produto serve, por sua vez, como meio de produção. Ela permanece social, mas outra parte é consumida como meios de subsistência pelos membros da associação, o que faz com que tenha de ser distribuída entre eles. O modo dessa distribuição será diferente de acordo com o tipo peculiar do próprio organismo social de produção e o correspondente grau histórico de desenvolvimento dos produtores. Apenas para traçar um paralelo com a produção de mercadoria, suponha que a cota de cada produtor nos meios de subsistência seja determinada por seu tempo de trabalho, o qual desempenharia, portanto, um duplo papel. Sua distribuição socialmente planejada regula a correta proporção das diversas funções de trabalho de acordo com as diferentes necessidades. Por outro lado, o tempo de trabalho serve simultaneamente de medida da cota individual dos produtores no trabalho comum e, desse modo, também na parte a ser individualmente consumida do produto coletivo. As relações sociais dos homens com seus trabalhos e seus produtos de trabalho permanecem aqui transparentemente simples, tanto na produção quanto na distribuição. 

Para uma sociedade de produtores de mercadorias, cuja relação social geral de produção consiste em se relacionar com seus produtos como mercadorias, ou seja, como valores, e, nessa forma reificada [sachlich], confrontar mutuamente seus trabalhos privados como trabalho humano igual, o cristianismo, com seu culto do homem abstrato, é a forma de religião mais apropriada, especialmente em seu desenvolvimento burguês, como protestantismo, deísmo etc. Nos modos de produção asiáticos, antigos etc. a transformação do produto em mercadoria e, com isso, a existência dos homens como produtores de mercadorias, desempenha um papel subordinado, que, no entanto, torna-se progressivamente mais significativo à medida que as comunidades avançam em seu processo de declínio. Povos propriamente comerciantes existem apenas nos intermúndios do mundo antigo, como os deuses de Epicuro, ou nos poros da sociedade polonesa, como os judeus. Esses antigos organismos sociais de produção são extraordinariamente mais simples e transparentes do que o organismo burguês, mas baseiam-se ou na imaturidade do homem individual, que ainda não rompeu o cordão umbilical que o prende a outrem por um vínculo natural de gênero [Gattungszusammenhangs], ou em relações diretas de dominação e servidão. Eles são condicionados por um baixo grau de desenvolvimento das forças produtivas do trabalho e pelas relações correspondentemente limitadas dos homens no interior de seu processo material de produção da vida, ou seja, pelas relações limitadas dos homens entre si e com a natureza. 

Essa limitação real se reflete idealmente nas antigas religiões naturais e populares. O reflexo religioso do mundo real só pode desaparecer quando as relações cotidianas da vida prática se apresentam diariamente para os próprios homens como relações transparentes e racionais que eles estabelecem entre si e com a natureza. A figura do processo social de vida, isto é, do processo material de produção, só se livra de seu místico véu de névoa quando, como produto de homens livremente socializados, encontra-se sob seu controle consciente e planejado. Para isso, requer-se uma base material da sociedade ou uma série de condições materiais de existência que, por sua vez, são elas próprias o produto natural-espontâneo de uma longa e excruciante história de desenvolvimento. 

É verdade que a economia política analisou, mesmo que incompletamente, o valor e a grandeza de valor e revelou o conteúdo que se esconde nessas formas. Mas ela jamais sequer colocou a seguinte questão: por que esse conteúdo assume aquela forma, e por que, portanto, o trabalho se representa no valor e na medida do trabalho, por meio de sua duração temporal, na grandeza de valor do produto do trabalho?


Pedir Atenção para a nota de rodapé 32, que está na página 155 de O Capital


Tais formas, em cuja testa está escrito que elas pertencem a uma formação social em que o processo de produção domina os homens, e não os homens o processo de produção, são consideradas por sua consciência burguesa como uma necessidade natural tão evidente quanto o próprio trabalho produtivo. Por essa razão, as formas pré-burguesas do organismo social de produção são tratadas por ela mais ou menos do modo como as religiões pré-cristãs foram tratadas pelos Padres da Igreja.


Pedir que leiam  ATENTAMENTE A NOTA 33 que está na página 156 da edição da boitempo


O quanto uma parte dos economistas é enganada pelo fetichismo que se cola ao mundo das mercadorias ou pela aparência objetiva das determinações sociais do trabalho é demonstrado, entre outros, pela fastidiosa e absurda disputa sobre o papel da natureza na formação do valor de troca. Como este último é uma maneira social determinada de expressar o trabalho realizado numa coisa, ele não pode conter mais matéria natural do que, por exemplo, a taxa de câmbio. 

Como a forma-mercadoria é a forma mais geral e menos desenvolvida da produção burguesa, razão pela qual ela já aparece desde cedo, ainda que não com a predominância que lhe é característica em nossos dias, seu caráter fetichista parece ser relativamente fácil de se analisar. Em formas mais concretas, desaparece até mesmo essa aparência de simplicidade. De onde vêm as ilusões do sistema monetário? Para ele, o ouro e a prata, ao servir como dinheiro, não expressam uma relação social de produção, mas atuam na forma de coisas naturais dotadas de estranhas propriedades sociais. E quanto à teoria econômica moderna, que arrogantemente desdenha do sistema monetário, não se torna palpável seu fetichismo quando ela trata do capital? Há quanto tempo desapareceu a ilusão fisiocrata de que a renda fundiária nasce da terra, e não da sociedade? 

Para não nos anteciparmos, basta que apresentemos aqui apenas mais um exemplo relativo à própria forma-mercadoria. Se as mercadorias pudessem falar, diriam: é possível que nosso valor de uso tenha algum interesse para os homens. A nós, como coisas, ele não nos diz respeito. O que nos diz respeito materialmente [dinglich] é nosso valor. Nossa própria circulação como coisas-mercadorias [Warendinge] é a prova disso. Relacionamo-nos umas com as outras apenas como valores de troca. Escutemos, então, como o economista fala expressando a alma das mercadorias: 

“Valor” (valor de troca) “é qualidade das coisas, riqueza” (valor de uso) [é qualidade] “do homem. Valor, nesse sentido, implica necessariamente troca, riqueza não.”

“Riqueza” (valor de uso) “é um atributo do homem, valor um atributo das mercadorias. Um homem, ou uma comunidade, é rico; uma pérola, ou um diamante, é valiosa [...]. Uma pérola ou um diamante tem valor como pérola ou diamante.”

Até hoje nenhum químico descobriu o valor de troca na pérola ou no diamante. Mas os descobridores econômicos dessa substância química, que se jactam de grande profundidade crítica, creem que o valor de uso das coisas existe independentemente de suas propriedades materiais [sachlichen], ao contrário de seu valor, que lhes seria inerente como coisas. Para eles, a confirmação disso está na insólita circunstância de que o valor de uso das coisas se realiza para os homens sem a troca, ou seja, na relação imediata entre a coisa e o homem, ao passo que seu valor, ao contrário, só se realiza na troca, isto é, num processo social. Quem não se lembra aqui do bom e velho Dogberry, a doutrinar o vigia noturno Seacoal: “Uma boa aparência é dádiva da sorte; mas saber ler e escrever é dom da natureza”.


[Ficarão, para comentar em uma próxima aula, os prefácios e as notas de rodapé.]


Capítulo 2 

O processo de troca 

As mercadorias não podem ir por si mesmas ao mercado e trocar-se umas pelas outras. Temos, portanto, de nos voltar para seus guardiões, os possuidores de mercadorias. Elas são coisas e, por isso, não podem impor resistência ao homem. Se não se mostram solícitas, ele pode recorrer à violência; em outras palavras, pode tomálas à força. Para relacionar essas coisas umas com as outras como mercadorias, seus guardiões têm de estabelecer relações uns com os outros como pessoas cuja vontade reside nessas coisas e que agir de modo tal que um só pode se apropriar da mercadoria alheia e alienar a sua própria mercadoria em concordância com a vontade do outro, portanto, por meio de um ato de vontade comum a ambos. Eles têm, portanto, de se reconhecer mutuamente como proprietários privados. Essa relação jurídica, cuja forma é o contrato, seja ela legalmente desenvolvida ou não, é uma relação volitiva, na qual se reflete a relação econômica. O conteúdo dessa relação jurídica ou volitiva é dado pela própria relação econômica. Aqui, as pessoas existem umas para as outras apenas como representantes da mercadoria e, por conseguinte, como possuidoras de mercadorias. Na sequência de nosso desenvolvimento, veremos que as máscaras econômicas das pessoas não passam de personificações das relações econômicas, como suporte [Träger] das quais elas se defrontam umas com as outras. 

O possuidor de mercadorias se distingue de sua própria mercadoria pela circunstância de que, para ela, o corpo de qualquer outra mercadoria conta apenas como forma de manifestação de seu próprio valor. Leveller [niveladora]a e cínica de nascença, ela se encontra, por isso, sempre pronta a trocar não apenas sua alma, mas também seu corpo com qualquer outra mercadoria, mesmo que esta seja munida de mais inconveniências do que Maritornesb. Se à mercadoria falta esse sentido para a percepção da concretude dos corpos de mercadorias, o possuidor de mercadorias preenche essa lacuna com seus cinco ou mais sentidos. Sua mercadoria não tem, para ele, nenhum valor de uso imediato. Do contrário, ele não a levaria ao mercado. Ela tem valor de uso para outrem. Para ele, o único valor de uso que ela possui diretamente é o de ser suporte de valor de troca e, portanto, meio de troca. Por essa razão, ele quer aliená-la por uma mercadoria cujo valor de uso o satisfaça. Todas as mercadorias são não-valores de uso para seus possuidores e valores de uso para seus não-possuidores. Portanto, elas precisam universalmente mudar de mãos. Mas essa mudança de mãos constitui sua troca, e essa troca as relaciona umas com as outras como valores e as realiza como valores. Por isso, as mercadorias têm de se realizar como valores antes que possam se realizar como valores de uso. 

Por outro lado, elas têm de se conservar como valores de uso antes que possam se realizar como valores, pois o trabalho humano que nelas é despendido só conta na medida em que seja despendido numa forma útil para outrem. Se o trabalho é útil para outrem, ou seja, se seu produto satisfaz necessidades alheias é algo que somente a troca pode demonstrar. 

Cada possuidor de mercadorias só quer alienar sua mercadoria em troca de outra mercadoria cujo valor de uso satisfaça sua necessidade. Nessa medida, a troca é para ele apenas um processo individual. Por outro lado, ele quer realizar sua mercadoria como valor, portanto, em qualquer outra mercadoria do mesmo valor que seja de seu agrado, não importando se sua mercadoria tem ou não valor de uso para o possuidor da outra mercadoria. Nessa medida, a troca é para ele um processo social geral. Mas não é possível que, simultaneamente para todos os possuidores de mercadorias, o mesmo processo seja exclusivamente individual e, ao mesmo tempo, exclusivamente social geral. 

(LEMBRAR DE NOVO DA RESENHA DE ENGELS, AS CONTRADIÇÕES SURGINDO E DELAS EMERGINDO UMA SOLUÇÃO, NO CASO EM TELA O DINHEIRO, QUE POR SUA VEZ É UMA NOVA CONTRADIÇÃO ETC.)

Observando a questão mais de perto, vemos que todo possuidor de mercadorias considera toda mercadoria alheia como equivalente particular de sua mercadoria e, por conseguinte, sua mercadoria como equivalente universal de todas as outras mercadorias. Mas como todos os possuidores de mercadorias fazem o mesmo, nenhuma mercadoria é equivalente universal e, por isso, tampouco as mercadorias possuem qualquer forma de valor relativa geral na qual possam se equiparar como valores e se comparar umas com as outras como grandezas de valor. Elas não se confrontam, portanto, como mercadorias, mas apenas como produtos ou valores de uso. 

Em sua perplexidade, nossos possuidores de mercadorias pensam como Fausto. Era no início a açãoc. Por isso, eles já agiram antes mesmo de terem pensado. As leis da natureza das mercadorias atuam no instinto natural de seus possuidores, os quais só podem relacionar suas mercadorias umas com as outras como valores e, desse modo, como mercadorias na medida em que as relacionam antagonicamente com outra mercadoria qualquer como equivalente universal. Esse é o resultado da análise da mercadoria. Mas somente a ação social pode fazer de uma mercadoria determinada um equivalente universal. A ação social de todas as outras mercadorias exclui uma mercadoria determinada, na qual todas elas expressam universalmente seu valor. Assim, a forma natural dessa mercadoria se converte em forma de equivalente socialmente válida. Ser equivalente universal torna-se, por meio do processo social, a função especificamente social da mercadoria excluída. E assim ela se torna – dinheiro. 

“Illi unum consilium habent et virtutem et potestatem suam bestiae tradunt. [...] Et ne quis possit emere aut vendere, nisi qui habet characterem aut nomen bestiae, aut numerum nomisis ejus.”d 

O cristal monetário [Geldkristall] é um produto necessário [AQUI APARECE DE NOVO A CATEGORIA NECESSIDADE] do processo de troca, no qual diferentes produtos do trabalho são efetivamente equiparados entre si e, desse modo, transformados em mercadorias. A expansão e o aprofundamento históricos da troca desenvolvem a oposição entre valor de uso e valor que jaz latente na natureza das mercadorias. A necessidade de expressar externamente essa oposição para o intercâmbio impele a uma forma independente do valor da mercadoria e não descansa enquanto não chega a seu objetivo final por meio da duplicação da mercadoria em mercadoria e dinheiro. [A CONTRADIÇÃO INTERNA SE TORNA UMA CONTRADIÇÃO EXTERNA, NA RELAÇÃO DE TROCA: M(vu-v); M(vu)-M(v)]Portanto, na mesma medida em que se opera a metamorfose dos produtos do trabalho em mercadorias, opera-se também a metamorfose da mercadoria em dinheiro40. 

A troca direta de produtos tem, por um lado, a forma da expressão simples do valor e, por outro lado, ainda não a tem. Aquela forma era: x mercadoria A = y mercadoria B. A forma da troca imediata de produtos é: x objeto de uso A = y objeto de uso B. Aqui, antes da troca, as coisas A e B ainda não são mercadorias, mas tornam-se mercadorias apenas por meio dela. O primeiro modo como um objeto de uso pode ser valor é por meio de sua existência como não-valor de uso, como quantidade de valor de uso que ultrapassa as necessidades imediatas de seu possuidor. [PORTANTO, A PRODUTIVIDADE É UMA PREMISSA] As coisas são, por si mesmas, exteriores [äusserlich] ao homem e, por isso, são alienáveis [veräusserlich]. Para que essa venda [Veräusserung] seja mútua, os homens necessitam apenas se confrontar tacitamente como proprietários privados daquelas coisas alienáveis e, precisamente por meio delas, como pessoas independentes umas das outras. No entanto, tal relação de alheamento [Fremdheit] mútuo não existe para os membros de uma comunidade natural-espontânea, tenha ela a forma de uma família patriarcal, uma comunidade indiana antiga, um Estado inca etc. A troca de mercadorias começa onde as comunidades terminam: no ponto de seu contato com comunidades estrangeiras ou com membros de comunidades estrangeiras. A partir de então, as coisas que são mercadorias no estrangeiro também se tornam mercadorias na vida interna da comunidade. Sua relação quantitativa de troca é, a princípio, inteiramente acidental. Elas são permutáveis por meio do ato volitivo de seus possuidores de aliená-las mutuamente. Ao mesmo tempo, a necessidade de objetos de uso estrangeiros se consolida paulatinamente. A constante repetição da troca transforma-a num processo social regular, razão pela qual, no decorrer do tempo, ao menos uma parcela dos produtos do trabalho tem de ser intencionalmente produzida para a troca. Desse momento em diante, confirma-se, por um lado, a separação entre a utilidade das coisas para a necessidade imediata e sua utilidade para a troca. Seu valor de uso se aparta de seu valor de troca. [PORTANTO, A MERCADORIA TORNA-SE MERCADORIA NA PRODUÇÃO E REALIZA SUA VOCAÇÃO NA TROCA] Por outro lado, a relação quantitativa, na qual elas são trocadas, torna-se dependente de sua própria produção. O costume as fixa como grandezas de valor. 

Na troca direta de produtos, cada mercadoria é diretamente meio de troca para seu possuidor e equivalente para seu não-possuidor, mas apenas enquanto ela é valor de uso para ele. [NOTAR QUE NADA DISSO PRESSUPÕE O CAPITALISMO] O artigo de troca ainda não assume nenhuma forma de valor independente de seu próprio valor de uso ou da necessidade individual dos agentes da troca. A necessidade dessa forma se desenvolve com o número e a variedade crescentes das mercadorias que entram no processo de troca. O problema surge simultaneamente aos meios de sua solução. Uma circulação em que os proprietários de mercadorias comparam mutuamente seus artigos e os trocam por outros artigos diferentes jamais ocorre sem que, em sua circulação, diferentes mercadorias de diferentes possuidores de mercadorias sejam trocadas e comparadas como valores com uma única terceira mercadoria. Essa terceira mercadoria, por servir de equivalente de diversas outras mercadorias, torna-se imediatamente, mesmo que em estreitos limites, a forma de equivalente universal ou social. Essa forma de equivalente universal surge e se esvai com o contato social momentâneo que a trouxe à vida. De modo alternado e transitório, ela se realiza nesta ou naquela mercadoria. Porém, com o desenvolvimento da troca de mercadorias, ela se fixa exclusivamente em tipos 131 particulares de mercadorias ou se cristaliza na forma-dinheiro. Em que tipo de mercadoria ela permanece colada é, de início, algo acidental. No entanto, duas circunstâncias são, em geral, decisivas. A forma-dinheiro se fixa ou nos artigos de troca mais importantes vindos do estrangeiro, que, na verdade, são formas naturais espontâneas de manifestação do valor de troca dos produtos domésticos, ou no objeto de uso que constitui o elemento principal da propriedade doméstica alienável, como, por exemplo, o gado. Os povos nômades são os primeiros a desenvolver a forma dinheiro, porque todos os seus bens se encontram em forma móvel e, por conseguinte, diretamente alienável, e também porque seu modo de vida os põe constantemente em contato com comunidades estrangeiras, com as quais eles são chamados a trocar seus produtos. Frequentemente os homens converteram os próprios homens, na forma de escravos, em matéria monetária original, mas jamais fizeram isso com o solo. Tal ideia só pôde surgir na sociedade burguesa já desenvolvida. Ela data do último terço do século XVII, mas sua implementação em escala nacional só foi tentada um século mais tarde, na revolução burguesa dos franceses. Na mesma proporção em que a troca de mercadorias dissolve seus laços puramente locais e o valor das mercadorias se expande em materialidadee do trabalho humano em geral, a forma-dinheiro se encarna em mercadorias que, por natureza, prestam-se à função social de um equivalente universal: os metais preciosos. 

Ora, que “o ouro e a prata não sejam, por natureza, dinheiro, embora o dinheiro seja, por natureza, de ouro e prata”42 demonstra uma harmonia entre suas propriedades naturais e suas funções43. Até aqui, no entanto, conhecemos apenas a função do dinheiro de servir como forma de manifestação do valor das mercadorias ou como o material, no qual as grandezas de valor das mercadorias se expressam socialmente. A forma adequada de manifestação do valor ou da materialidade do trabalho humano abstrato – e, portanto, igual – só pode ser encontrada numa matéria cujos exemplares possuam todos a mesma qualidade uniforme. Por outro lado, como a diferença das grandezas de valor é puramente quantitativa, a mercadoria-dinheiro tem de ser capaz de expressar diferenças puramente quantitativas, podendo ser dividida e ter suas partes novamente reunidas como se queira. O ouro e a prata possuem essas propriedades por natureza. 

O valor de uso da mercadoria-dinheiro duplica. Ao lado de seu valor de uso particular como mercadoria – como o uso do ouro no preenchimento de cavidades dentárias, como matéria-prima de artigos de luxo etc. –, ela adquire um valor de uso formal, que deriva de suas funções sociais específicas. Como todas as mercadorias são apenas equivalentes particulares do dinheiro, que é seu equivalente universal, elas se relacionam com o dinheiro como mercadorias particulares com a mercadoria universal44. 

Vimos que a forma-dinheiro é apenas o reflexo, concentrado numa única mercadoria, das relações de todas as outras mercadorias. Que o dinheiro seja mercadoria45 é, portanto, uma descoberta que só realiza aquele que toma sua forma pronta para, a partir dela, empreender uma análise mais profunda desse objeto. O processo de troca confere à mercadoria, que ele transforma em dinheiro, não seu valor, mas sua forma de valor específica. A confusão entre essas duas determinações gerou o equívoco de considerar o valor do ouro e da prata como imaginário46. Do fato de o dinheiro, em funções determinadas, poder ser substituído por simples signos de si mesmo, derivou outro erro, segundo o qual ele seria um mero signo [Zeichen]. Por outro lado, nisso residia a noção de que a forma-dinheiro da coisa é externa a ela mesma, não sendo mais do que a forma de manifestação de relações humanas que se escondem por trás dela. Nesse sentido, cada mercadoria seria um signo, uma vez que, como valor, ela é tão somente um invólucro reificado [sachliche] do trabalho humano nela despendido47. Mas considerar como meros signos os caracteres sociais que, num determinado modo de produção, aplicam-se às coisas – ou aos caracteres reificados [sachlich] que as determinações sociais do trabalho recebem nesse modo de produção – significa considerá-las, ao mesmo tempo, produtos arbitrários da reflexão [Reflexion] dos homens. [NÃO SÃO MEROS SIGNOS, OU SEJA, NÃO SÃO ARBITRÁRIOS, PELO CONTRÁRIO, RESULTAM DE UM DEMORADO PROCESSO HISTÓRICO] Esse foi o modo iluminista pelo qual, no século XVIII, costumou-se tratar das formas enigmáticas das relações humanas, cujo processo de formação ainda não podia ser decifrado, a fim de eliminar delas, ao menos provisoriamente, sua aparência estranha. 

J á observamos anteriormente que a forma de equivalente de uma mercadoria não inclui a determinação quantitativa de sua grandeza de valor. Se sabemos que o ouro é dinheiro e, por essa razão, é imediatamente permutável, não sabemos, com isso, o valor de, por exemplo, 10 libras de ouro. Como qualquer outra mercadoria, o dinheiro só pode expressar seu valor de modo relativo, confrontando-se com outras mercadorias. Seu próprio valor é determinado pelo tempo de trabalho requerido para sua produção e se expressa numa dada quantidade de qualquer outra mercadoria em que esteja incorporado o mesmo tempo de trabalho48. Essa determinação de sua grandeza relativa de valor ocorre na fonte de sua produção, na permuta [Tauschhandel] direta. Quando entra em circulação, como dinheiro, seu valor já está dado. Quando, já no início da análise do valor, nos últimos decênios do século XVII, concluiu-se que o dinheiro era mercadoria, tal conhecimento dava apenas seus primeiros passos. A dificuldade não está em compreender que dinheiro é mercadoria, mas em descobrir como, por que e por quais meios a mercadoria é dinheiro49. 

Vimos como, já na mais simples expressão de valor x mercadoria A = y mercadoria B, a coisa em que se representa a grandeza de valor de outra coisa parece possuir sua forma de equivalente independentemente dessa relação, como uma qualidade social de sua natureza. J á acompanhamos de perto a consolidação dessa falsa aparência. Ela se consuma no momento em que a forma de equivalente universal se mescla com a forma natural de um tipo particular de mercadoria ou se cristaliza na forma-dinheiro. Uma mercadoria não parece se tornar dinheiro porque todas as outras mercadorias representam nela seus valores, mas, ao contrário, estas é que parecem expressar nela seus valores pelo fato de ela ser dinheiro. O movimento mediador desaparece em seu próprio resultado e não deixa qualquer rastro. Sem qualquer intervenção sua, as mercadorias encontram sua própria figura de valor já pronta no corpo de uma mercadoria existente fora e ao lado delas. Essas coisas, o ouro e a prata, tal como surgem das entranhas da terra, são, ao mesmo tempo, a encarnação imediata de todo trabalho humano. Decorre daí a mágica do dinheiro. O comportamento meramente atomístico dos homens em seu processo social de produção e, com isso, a figura 133 reificada [sachliche] de suas relações de produção, independentes de seu controle e de sua ação individual consciente, manifestam-se, de início, no fato de que os produtos de seu trabalho assumem universalmente a forma da mercadoria. Portanto, o enigma do fetiche do dinheiro não é mais do que o enigma do fetiche da mercadoria, que agora se torna visível e ofusca a visão. [COMO SE VE, É O DESDOBRAMENTO DO ITEM SOBRE O FETICHE DA MERCADORIA]

(”objeto a que se atribui poder sobrenatural ou mágico e se presta culto”)

Capitulo 3

O dinheiro ou a circulação de mercadorias 

[medida dos valores/meio de circulação/dinheiro]

1. Medida dos valores 

Neste escrito, para fins de simplificação, pressuponho sempre o ouro como a mercadoria-dinheiro. 

A primeira função do ouro é de fornecer ao mundo das mercadorias o material de sua expressão de valor ou de representar os valores das mercadorias como grandezas de mesmo denominador, qualitativamente iguais e quantitativamente comparáveis. Desse modo, ele funciona como medida universal dos valores, sendo apenas por meio dessa função que o ouro, a mercadoria-equivalente específica, torna-se, inicialmente, dinheiro.

 As mercadorias não se tornam comensuráveis por meio do dinheiro. Ao contrário, é pelo fato de todas as mercadorias, como valores, serem trabalho humano objetivado e, assim, serem, por si mesmas, comensuráveis entre si, que elas podem medir conjuntamente seus valores na mesma mercadoria específica e, desse modo, convertêla em sua medida conjunta de valor, isto é, em dinheiro. O dinheiro, como medida de valor, é a forma necessária de manifestação da medida imanente de valor das mercadorias: o tempo de trabalho.

[RECOMENDA-SE LER A NOTA 50 DA PÁGINA 169, ASSISTIR O FILME O PREÇO DO AMANHÃ E REFLETIR A RESPEITO]

 A expressão de valor de uma mercadoria em ouro – x mercadoria A = y mercadoriadinheiro – é sua forma-dinheiro, ou seu preço. [AQUI APARECE A CATEGORIA PREÇO]  Uma única equação, tal como 1 tonelada de ferro = 2 onças de ouro, basta agora para expressar o valor do ferro de modo socialmente válido. A equação não precisa mais marchar na mesma fileira das equações de valor das outras mercadorias, porque a mercadoria-equivalente, o ouro, já possui o caráter de dinheiro. A forma de valor relativa universal das mercadorias volta a ter, agora, a configuração de sua forma de valor relativa originária, isto é, sua forma de valor relativa simples ou singular. Por outro lado, a expressão relativa de valor desdobrada ou a série infinita de expressões relativas do valor torna-se a forma de valor especificamente relativa da mercadoria-dinheiro. Porém, agora essa série já está dada socialmente nos preços das mercadorias. Basta ler de trás para a frente as cotações numa lista de preços para encontrar a grandeza de valor do dinheiro, expressa em todas as mercadorias possíveis. J á o dinheiro, ao contrário, não tem preço. Para tomar parte nessa forma de valor relativa unitária das outras mercadorias, ele teria de se confrontar consigo mesmo como seu próprio equivalente. 

O preço ou a forma-dinheiro das mercadorias é, como sua forma de valor em geral, distinto de sua forma corpórea real e palpável, portanto, é uma forma apenas ideal ou representada. [OU SEJA, É UMA RELAÇÃO SOCIAL] O valor do ferro, do linho, do trigo etc., apesar de invisível, existe nessas próprias coisas; ele é representado por sua igualdade com o ouro, numa relação que só assombra no interior de suas cabeças. Por isso, a fim de informar seus preços ao mundo exterior, o detentor das mercadorias tem ou de passar a língua em suas 136 cabeças, ou nelas fixar etiquetas51. Como a expressão dos valores das mercadorias em ouro é ideal, nessa operação só pode ser aplicado o ouro representado ou ideal. Todo portador de mercadorias sabe que ele não dourou suas mercadorias pelo simples fato de dar a seu valor a forma do preço ou a forma representada do ouro e que ele não necessita da mínima quantidade de ouro real para avaliar em ouro os valores das mercadorias. Em sua função de medida de valor, o ouro serve, portanto, apenas como dinheiro representado ou ideal. Essa circunstância deu vazão às mais loucas teorias52. Embora apenas o dinheiro representado sirva à função de medida do valor, o preço depende inteiramente do material real do dinheiro. O valor, isto é, a quantidade de trabalho humano que, por exemplo, está contida em 1 tonelada de ferro, é expresso numa quantidade representada da mercadoria-dinheiro que contém a mesma quantidade de trabalho. Por isso, a depender do fato de a medida do valor ser o ouro, a prata ou o cobre, o valor da tonelada de ferro obtém expressões de preço totalmente distintas ou é representado em quantidades totalmente diferentes de ouro, prata ou cobre. 

Portanto, se duas mercadorias, por exemplo, o ouro e a prata, servem simultaneamente como medidas de valor, então todas as mercadorias possuem duas expressões distintas de preço, o preço-ouro e o preço-prata, que coexistem tranquilamente enquanto a relação de valor entre o ouro e a prata permanece inalterada, por exemplo = 1:15. Mas qualquer alteração nessa relação de valor perturba a relação entre o preço-ouro e o preço-prata das mercadorias e, assim, prova, de fato, que a duplicação da medida de valor contradiz sua função53.

 As mercadorias dotadas de preços apresentam-se todas na seguinte forma: b mercadoria B = x ouro, c mercadoria C = z ouro, d mercadoria D = y ouro etc., em que b, c e d representam determinadas quantidades dos tipos de mercadorias B, C e D e x, z, e y representam determinadas quantidades de ouroa. Os valores das mercadorias são, assim, convertidos em diferentes quantidades representadas de ouro e, portanto, apesar da variedade confusa dos corpos das mercadorias, em grandezas de mesmo denominador, grandezas de ouro. Na forma de diferentes quantidades de ouro, essas grandezas se comparam e se medem umas com as outras, e desenvolve-se tecnicamente a necessidade de referi-las a uma quantidade fixa de ouro como sua unidade de medida. Tal unidade de medida é, por sua vez, desenvolvida em padrão de medida por meio de sua repartição em partes alíquotas. Antes de sua transformação em dinheiro, o ouro, a prata e o cobre já possuem tais padrões de medida em seus pesos metálicos, de modo que, por exemplo, 1 libra serve como unidade de medida e pode, por um lado, ser dividida em onças etc. e, por outro, ser multiplicada para formar 1 quintal etc.54, razão pela qual, em toda circulação metálica, os nomes dos padrões de peso formam também os nomes do padrão monetário ou padrão de medida dos preços. 

Como medida dos valores e padrão dos preços, o ouro desempenha dois papéis completamente distintos. Ele é medida de valor por ser a encarnação social do trabalho humano e padrão de preços por ser um peso metálico estipulado. Como medida de valor, ele serve para transformar as diversas mercadorias em preços, em quantidades representadas de ouro; como padrão de preços, ele mede essas 137 quantidades de ouro. Pela medida de valor se medem as mercadorias como valores; já pelo padrão de preços, ao contrário, quantidades de ouro se medem por determinada quantidade de ouro, e não o valor de uma quantidade de ouro pelo peso de outra quantidade. Para o padrão de preços é preciso que determinado peso de ouro seja fixado como unidade de medida. Aqui, como em todas as outras determinações de medida de grandezas de mesmo denominador, a fixidez das relações de medida é decisiva, de maneira que o padrão de preços cumpre tanto melhor sua função quanto mais imutavelmente uma e a mesma quantidade de ouro sirva como unidade de medida. O ouro só pode servir como medida de valor porque ele próprio é produto do trabalho e, portanto, um valor que pode ser alterado55. 

Ora, é claro que uma mudança no valor do ouro não afeta de modo algum sua função como padrão de preços. I ndiferentemente da variação que o valor do ouro possa sofrer, diferentes quantidades de ouro continuam sempre na mesma relação de valor umas com as outras. Se o valor do ouro caísse em 1.000%, 12 onças de ouro continuariam a valer 12 vezes mais do que 1 onça de ouro, pois o os preços representam apenas as relação de diferentes quantidades de ouro entre si. Por outro lado, assim como a queda ou o aumento do valor de 1 onça de ouro não muda em absoluto seu peso, ela tampouco altera o peso de suas partes alíquotas, de modo que o ouro, como padrão fixo dos preços, cumpre sempre a mesma função, indiferentemente das alterações em seu valor. 

A mudança de valor do ouro tampouco impede sua função como medida de valor. Ela atinge todas as mercadorias ao mesmo tempo e caeteris paribus [os demais fatores permanecendo constantes] mantém inalterados seus valores relativos recíprocos, mesmo que estes agora se expressem em preços de ouro maiores ou menores do que antes. 

Tal como na representação do valor de uma mercadoria no valor de uso de uma outra mercadoria qualquer, também na valoração das mercadorias em ouro é pressuposto apenas que, numa época determinada, a produção de uma quantidade determinada de ouro custe uma dada quantidade de trabalho. Quanto ao movimento dos preços das mercadorias em geral, valem as leis da expressão relativa simples do valor que expusemos anteriormente. Mantendo-se igual o valor do dinheiro, os preços das mercadorias só podem aumentar generalizadamente se os valores das mercadorias sobem; mantendo-se iguais os valores das mercadorias, eles só podem aumentar se o valor do dinheiro cai. I nversamente: mantendo-se igual o valor do dinheiro, os preços das mercadorias só podem cair em geral se os valores das mercadorias caem; mantendo-se iguais os valores das mercadorias, eles só podem cair se o valor do dinheiro sobe. Disso não se segue em absoluto que o valor crescente do dinheiro condicione uma queda proporcional dos preços das mercadorias e que o valor decrescente do dinheiro condicione um aumento proporcional desses preços. I sso vale somente para mercadorias de valor inalterado. Por exemplo, aquelas mercadorias cujo valor aumenta na mesma medida do – e simultaneamente com o – valor do dinheiro conservam os mesmos preços. Se seu valor aumentar mais devagar ou mais rápido do que o valor do dinheiro, a queda ou o aumento de seus preços será determinada pela diferença entre 138 o movimento de seu valor e o movimento do dinheiro etc. 

Voltemos, agora, à análise da forma do preço. 

As denominações monetárias dos pesos metálicos se separam progressivamente de suas denominações originais por razões diversas, dentre as quais se podem citar, como historicamente decisivas: 1) a introdução de dinheiro estrangeiro em povos pouco desenvolvidos, como na Roma Antiga, onde as moedas de prata e de ouro circulavam inicialmente como mercadorias estrangeiras; 2) com o desenvolvimento da riqueza, o metal menos nobre perdeu sua função de medida de valor para o metal mais nobre. O cobre cedeu à prata, a prata ao ouro, por mais que essa sequência possa contradizer toda cronologia poéticab 56. A libra, por exemplo, era a denominação monetária para 1 libra de prata. Assim que o ouro tomou o lugar da prata como medida de valor, o mesmo nome passou a significar cerca de 1/15 de 1 libra de ouro, a depender da relação de valor entre o ouro e a prata. Desde então, a libra como denominação monetária e como medida de peso do ouro estão separadas uma da outra57; 3) a falsificação do dinheiro, realizada por séculos pelos príncipes, fez com que as moedas não conservassem de seu peso original mais do que o nome58. 

Esses processos históricos transformaram em hábito popular a separação entre a denominação monetária dos pesos metálicos e os nomes de suas medidas habituais de peso. Como o padrão monetário é, por um lado, puramente convencional, mas, por outro, necessita de validade universal, ele é, por fim, regulado por lei. Uma porção determinada de peso de um metal precioso, por exemplo, 1 onça de ouro, é oficialmente dividida em partes alíquotas, que a lei batiza com nomes tais como libra, táler etc. Essa parte alíquota, que então passa a valer como a verdadeira unidade de medida do dinheiro, é subdividida em outras partes alíquotas que a lei batiza com outros nomes, como xelim, penny etc.59 Tal como antes, determinados pesos metálicos continuam a ser padrão do dinheiro metálico. O que mudou foi a divisão das partes alíquotas e os nomes adotados. 

Os preços, ou as quantidades de ouro em que os valores das mercadorias foram idealmente convertidos, são, agora, expressos nas denominações monetárias ou nas denominações contábeis legalmente válidas do padrão de medida do ouro. Na I nglaterra, em vez de se dizer que 1 quarter de trigo é igual a 1 onça de ouro, dir-se-ia que ele é igual a £3, 17 xelins e 10 1/2 pence. Assim, as mercadorias declaram, em suas denominações monetárias, o quanto elas valem, e o dinheiro serve como unidade de conta na medida em que vale para fixar uma coisa como valor e, com isso, expressá-la na forma-dinheiro60. 

O nome de algo é totalmente exterior à sua natureza. Não sei nada de um homem quando sei apenas que ele se chama J acó. Do mesmo modo, nas denominações monetárias libra, táler, franco, ducado etc. desaparece todo sinal da relação de valor. A confusão sobre o sentido oculto desses símbolos cabalísticos é tanto maior porque as denominações monetárias expressam o valor das mercadorias e, ao mesmo tempo, partes alíquotas de um peso metálico, do padrão monetário61. Por outro lado, é necessário que o valor, em contraste com os variados corpos do mundo das mercadorias, desenvolva-se nessa forma material, desprovida de conceito, mas também simplesmente social62. 139 

O preço é a denominação monetária do trabalho objetivado na mercadoria. Por isso, a equivalência entre a mercadoria e a quantidade de dinheiro – cujo nome é seu preço – é uma tautologia63, assim como a expressão relativa de valor de uma mercadoria é sempre a expressão da equivalência entre duas mercadorias. Mas se o preço, como exponente da grandeza de valor da mercadoria, é exponente de sua relação de troca com o dinheiro, disso não se conclui a relação inversa, isto é, que o exponente de sua relação de troca com o dinheiro seja necessariamente o exponente de sua grandeza de valor. Consideremos que uma mesma grandeza de trabalho socialmente necessário esteja expressa em 1 quarter de trigo e em £2 (aproximadamente ½ onça de ouro). As £2 são, assim, a expressão monetária da grandeza de valor do quarter de trigo, ou seu preço. Ora, se as circunstâncias permitirem que essa expressão monetária seja remarcada para £3 ou exija que ela seja reduzida para £1, conclui-se que £1 ou £3, como expressões da grandeza de valor do trigo, são pequenas ou grandes demais, porém constituem, de qualquer forma, os preços do trigo, pois, em primeiro lugar, elas são sua forma de valor, dinheiro, e, em segundo lugar, são exponentes de sua relação de troca com o dinheiro. Em condições constantes de produção ou de produtividade constante do trabalho, é necessário, tal como antes, que a mesma quantidade de tempo de trabalho social seja despendida para a reprodução do quarter de trigo. Essa circunstância independe da vontade tanto do produtor do trigo quanto dos outros possuidores de mercadorias. A grandeza de valor da mercadoria expressa, portanto, uma relação necessária – e imanente ao seu processo constitutivo – com o tempo de trabalho social. Com a transformação da grandeza de valor em preço, essa relação necessária aparece como relação de troca entre uma mercadoria e a mercadoria-dinheiro existente fora dela. Nessa relação, porém, é igualmente possível que se expresse a grandeza de valor da mercadoria, como o mais ou o menos pelo qual ela vendável sob dadas circunstâncias. A possibilidade de uma incongruência quantitativa entre preço e grandeza de valor, ou o desvio do preço em relação à grandeza de valor, reside, portanto, na própria formapreço. I sso não é nenhum defeito dessa forma, mas, ao contrário, aquilo que faz dela a forma adequada a um modo de produção em que a regra só se pode impor como a lei média do desregramento que se aplica cegamente. 

ISTO ACIMA É ESSENCIAL, SEJA POR APONTAR UMA DAS MUITAS RAÍZES DE CRISES, SEJA POR EXPLICAR A NATUREZA CRISICA GERAL DO CAPITALISMO

Mas a forma-preço permite não apenas a possibilidade de uma incongruência quantitativa entre grandeza de valor e preço, isto é, entre a grandeza de valor e sua própria expressão monetária, mas pode abrigar uma contradição qualitativa, de modo que o preço deixe absolutamente de ser expressão de valor, embora o dinheiro não seja mais do que a forma de valor das mercadorias. Assim, coisas que em si mesmas não são mercadorias, como a consciência, a honra etc. podem ser compradas de seus possuidores com dinheiro e, mediante seu preço, assumir a forma-mercadoria, de modo que uma coisa pode formalmente ter um preço mesmo sem ter valor. A expressão do preço se torna aqui imaginária tal como certas grandezas da matemática. Por outro lado, também a forma-preço imaginária – como o preço do solo não cultivado, que não tem valor porque nele nenhum trabalho humano está objetivado –, abriga uma relação efetiva de valor ou uma relação dela derivada. 

Do mesmo modo que a forma de valor relativa em geral, o preço expressa o valor de 140 uma mercadoria, por exemplo, 1 tonelada de ferro, permitindo que determinada quantidade de equivalente, por exemplo, 1 onça de ouro, seja imediatamente permutável pelo ferro, mas de modo nenhum em sentido inverso, de modo que o ferro seja imediatamente permutável pelo ouro. A fim de exercer praticamente o efeito de um valor de troca, a mercadoria tem de se despojar de seu corpo natural, transformando-se de ouro apenas representado em ouro real, mesmo que essa transubstanciação possa ser-lhe mais “amarga” do que o é, para o “conceito” hegeliano, a transição da necessidade à liberdade, ou para uma lagosta a perfuração de sua couraça, ou para São J erônimo a supressão do velho Adão64. No preço, a mercadoria pode possuir, ao lado de sua forma real – ferro etc. –, uma figura de valor ideal ou uma forma-ouro representada, porém não pode ser a um só tempo realmente ferro e realmente ouro. Para o estabelecimento de seu preço basta equipará-la ao ouro representado, mas, para servir a seu possuidor como equivalente universal, ela tem de ser substituída realmente pelo ouro. Se, por exemplo, o possuidor do ferro se encontrasse diante do possuidor de outra mercadoria qualquer e lhe referisse o preço do ferro, que se encontra na forma-dinheiro, ele lhe responderia tal como São Pedro respondeu a Dante no Paraíso, depois deste último ter-lhe recitado o credo:

 “Assai bene è trascorsa D’esta moneta già la lega e’l peso, Ma dimmi se tu l’hai nella tua borsa.”

A forma-preço inclui a possibilidade da venda das mercadorias por dinheiro e a necessidade dessa venda. Por outro lado, o ouro funciona como medida ideal de valor apenas porque ele já se estabeleceu como mercadoria-dinheiro no processo de troca. Sob a medida ideal dos valores esconde-se, à espreita, o dinheiro vivo. 


2. O meio de circulação 

a) A metamorfose das mercadorias

 Vimos que o processo de troca das mercadorias inclui relações contraditórias e mutuamente excludentes. O desenvolvimento da mercadoria não elimina essas contradições, porém cria a forma em que elas podem se mover. Esse é, em geral, o método com que se solucionam contradições reais. É, por exemplo, uma contradição o fato de que um corpo seja atraído por outro e, ao mesmo tempo, afaste-se dele constantemente. A elipse é uma das formas de movimento em que essa contradição tanto se realiza como se resolve. 

Na medida em que o processo de troca transfere mercadorias das mãos em que elas não são valores de uso para as mãos em que elas são valores de uso, ele é metabolismo social. O produto de um modo útil de trabalho substitui o produto de outro. Quando passa a servir de valor de uso, a mercadoria transita da esfera da troca de mercadorias para a esfera do consumo. Aqui, interessa-nos apenas a primeira dessas esferas. Temos, assim, de considerar o processo inteiro segundo o aspecto formal, isto é, apenas a mudança de forma ou a metamorfose das mercadorias, que medeia o metabolismo social. 

A concepção inteiramente defeituosa dessa mudança de forma se deve, desconsiderando-se a falta de clareza sobre o próprio conceito de valor, à circunstância de que toda mudança de forma de uma mercadoria se consuma na troca entre duas mercadorias, uma mercadoria comum e a mercadoria-dinheiro. Se nos concentramos exclusivamente nesse momento material, na troca de mercadoria por ouro, ignoramos justamente aquilo que se deve ver, a saber, o que se passa com a forma. I gnoramos, assim, que o ouro, como simples mercadoria, não é dinheiro e que, em seus preços, as outras mercadorias relacionam-se com o ouro como com sua própria figura monetária. 

I nicialmente, as mercadorias entram no processo de troca sem serem douradas, nem açucaradas, mas tal como vieram ao mundo. Esse processo gera uma duplicação da mercadoria em mercadoria e dinheiro, uma antítese externa, na qual elas expressam sua antítese imanente entre valor de uso e valor. Nessa antítese, as mercadorias, como valores de uso, confrontam-se com o dinheiro, como valor de troca. Por outro lado, ambos os polos da antítese são mercadorias, portanto, unidades de valor de uso e valor. Mas essa unidade de diferentes se expressa em cada um dos polos de modo inverso e, com isso, expressa, ao mesmo tempo, sua relação recíproca. A mercadoria é realmente [reell] valor de uso; seu valor se manifesta apenas idealmente [ideell] no preço, que a reporta ao ouro, situado no polo oposto, como sua figura de valor real. I nversamente, o material do ouro vale apenas como materialidade de valor [Wertmateriatur], dinheiro. Ele é, por isso realmente valor de troca. Seu valor de uso aparece apenas idealmente na série das expressões relativas de valor na qual ele se relaciona com as mercadorias a ele contrapostas, como o círculo de suas figuras reais de uso. Essas formas antitéticas das mercadorias são as formas efetivas de movimento de seu processo de troca. 

Acompanhemos agora um possuidor qualquer de mercadorias – por exemplo, nosso velho conhecido tecelão de linho – à cena do processo de troca, o mercado. Sua mercadoria, 20 braças de linho, tem um preço determinado, e seu preço é £2. Ele a troca por £2 e, sendo um homem de grande virtude, troca novamente as £2 por uma Bíblia familiar de mesmo preço. O linho, que para ele é apenas mercadoria, objeto portador de valor, é alienado por ouro, sua figura de valor, e, a partir dessa figura, é novamente alienado por outra mercadoria, a Bíblia, que, no entanto, deve ser levada à casa do tecelão e lá satisfazer a elevadas necessidades. O processo de troca da mercadoria se consuma, portanto, em duas metamorfoses contrapostas e mutuamente complementares: conversão da mercadoria em dinheiro e reconversão do dinheiro em mercadoria65.Os momentos da metamorfose das mercadorias são simultaneamente transações dos possuidores de mercadorias – venda, troca da mercadoria por dinheiro; compra, troca do dinheiro por mercadoria –, e a unidade dos dois atos: vender para comprar. 

Se, agora, o tecelão de linho considera o resultado da barganha, ele possui uma Bíblia em vez de linho, isto é, em vez de sua mercadoria original, ele possui outra de mesmo valor, porém de utilidade diferente. Desse mesmo modo, ele se apropria de seus outros meios de subsistência e de produção. De seu ponto de vista, o processo inteiro medeia apenas a troca do produto de seu trabalho pelo produto do trabalho de outros, isto é, a troca de produtos. 142 

O processo de troca da mercadoria se consuma, portanto, na seguinte mudança de forma: 

Mercadoria-Dinheiro-Mercadoria M-D-M 

Segundo seu conteúdo material, o movimento é M-M, isto é, troca de mercadoria por mercadoria, ou metabolismo do trabalho social, em cujo resultado extingue-se o próprio processo. 

M-D. Primeira metamorfose da mercadoria ou venda. O salto que o valor da mercadoria realiza do corpo da mercadoria para o corpo do ouro, tal como demonstrei em outro lugard, é o salto mortale [salto mortal] da mercadoria. Se esse salto dá errado, não é a mercadoria que se esborracha, mas seu possuidor. A divisão social do trabalho torna seu trabalho tão unilateral quanto multilaterais suas necessidades. Exatamente por isso, seu produto serve-lhe apenas de valor de troca. Mas ele só obtém a forma de equivalente universal, socialmente válida, como dinheiro, e este encontra-se no bolso de outrem. Para apoderar-se dele, é preciso que a mercadoria seja sobretudo valor de uso para o possuidor do dinheiro, de modo que o trabalho nela despendido esteja incorporado numa forma socialmente útil ou se confirme como elo da divisão social do trabalho. Mas a divisão do trabalho é um organismo natural-espontâneo da produção, cujos fios foram e continuam a ser tecidos pelas costas dos produtores de mercadorias. Talvez a mercadoria seja o produto de um novo modo de trabalho, que se destina à satisfação de uma necessidade recém-surgida ou pretende ela própria engendrar uma nova necessidade. O que até ontem era uma função entre muitas de um e mesmo produtor de mercadorias, hoje pode gerar uma nova modalidade particular de trabalho, que, separada desse conjunto, autonomizada, manda seu produto ao mercado como mercadoria independente. As circunstâncias podem estar ou não maduras para esse processo de separação. O produto satisfaz hoje uma necessidade social. Amanhã é possível que ele seja total ou parcialmente deslocado por outro tipo de produto semelhante. Mesmo que o trabalho de nosso tecelão de linho seja um elo permanente da divisão social do trabalho, com isso não está de modo algum garantido o valor de uso de suas 20 braças de linho. Se a demanda social de linho – e tal demanda tem uma medida, como as outras coisas – for satisfeita por tecelões concorrentes, o produto de nosso amigo será excedente, supérfluo e, portanto, inútil. De cavalo dado não se olham os dentes, mas ele não vai ao mercado para distribuir presentes. Suponhamos, porém, que o valor de uso de seu produto se confirme e, assim, o dinheiro seja atraído por sua mercadoria. Pergunta-se, então: quanto dinheiro? A resposta já está antecipada no preço da mercadoria, no expoente de sua grandeza de valor. Desconsideremos eventuais erros de cálculo puramente subjetivos do possuidor de mercadorias, erros que, no mercado, são imediata e objetivamente corrigidos. Suponhamos que ele despendeu em seu produto somente a média socialmente necessária de tempo de trabalho. Desse modo, o preço da mercadoria é apenas a denominação monetária da quantidade de trabalho social nela objetivado. No entanto, sem a autorização e pelas costas de nosso tecelão, as condições de produção 143 da tecelagem de linho, já há muito estabelecidas, entraram em ebulição. O que até ontem era, sem dúvida, tempo de trabalho socialmente necessário à produção de 1 braça de linho, hoje deixa de sê-lo, tal como o possuidor de dinheiro o demonstra prontamente exibindo ao tecelão as cotações de preços de seus diversos concorrentes. Para sua desgraça, há muitos tecelões no mundo. Suponhamos, por fim, que cada peça de linho existente no mercado contenha apenas o tempo de trabalho socialmente necessário. Apesar disso, a soma total dessas peças pode conter tempo de trabalho despendido de modo supérfluo. Se o estômago do mercado não consegue absorver a quantidade total de linho pelo preço normal de 2 xelins por braça, isso prova que foi despendida uma parte maior de tempo de trabalho socialmente necessário na forma da tecelagem de linho. O efeito é o mesmo que se obteria se cada tecelão individual tivesse aplicado em seu produto individual mais do que o tempo de trabalho socialmente necessário. Aqui vale o provérbio: apanhados juntos, enforcados juntos [mitgefangen, mitgehangen]. Todo linho no mercado vale como se fosse um artigo único, sendo cada peça apenas uma parte alíquota desse todo. E, de fato, também o valor de cada braça individual é apenas a materialidade da mesma quantidade socialmente determinada de trabalho humano de mesmo tipoe. 

Como se pode ver, a mercadoria ama o dinheiro, mas “the course of true love never does run smooth” [em tempo algum teve um tranquilo curso o verdadeiro amor] f. Tão naturalmente contingente quanto o qualitativo é o nexo quantitativo do organismo social de produção, que apresenta seus membra disjecta [membros amputados] no sistema da divisão do trabalho. Nossos possuidores de mercadorias descobrem, assim, que a mesma divisão do trabalho que os transforma em produtores privados independentes também torna independente deles o processo social de produção e suas relações nesse processo, e que a independência das pessoas umas da outras se consuma num sistema de dependência material [sachlich] universal. 

A divisão do trabalho converte o produto do trabalho em mercadoria e, com isso, torna necessária sua metamorfose em dinheiro. Ao mesmo tempo, ela transforma o sucesso ou insucesso dessa transubstanciação em algo acidental. Aqui, no entanto, o fenômeno deve ser considerado em sua pureza, razão pela qual pressupomos o seu curso normal. Além disso, quando ele enfim se processa, portanto, quando a mercadoria não é invendável, sua mudança de forma ocorre sempre, ainda que, nessa mudança de forma, possa ocorrer um acréscimo ou uma diminuição anormal de substância – de grandeza de valor. O vendedor tem sua mercadoria substituída pelo ouro, e o comprador tem seu ouro substituído por uma mercadoria. O fenômeno que aqui se evidencia é a mudança de mãos ou de lugar entre a mercadoria e o ouro, entre 20 braças de linho e £2, isto é, sua troca. Mas pelo que se troca a mercadoria? Por sua própria figura geral de valor. E pelo que se troca o ouro? Por uma figura particular de seu valor de uso. Por que o ouro se defronta com o linho como dinheiro? Porque seu preço de £2 ou a denominação monetária do linho já o coloca em relação com o ouro como dinheiro. A alienação [Entäusserung] da forma original da mercadoria se consuma mediante a venda [Veräusserung] da mercadoria, isto é, no momento em que seu valor de uso atrai efetivamente o ouro que, em seu preço, era apenas representado. Desse modo, a 144 realização do preço ou da forma de valor apenas ideal da mercadoria é, ao mesmo tempo e inversamente, a realização do valor de uso apenas ideal do dinheiro, a conversão de mercadoria em dinheiro e, simultaneamente, de dinheiro em mercadoria. Trata-se de um processo bilateral: do polo do possuidor de mercadorias é venda; do polo do possuidor de dinheiro, compra. Ou, em outras palavras, venda é compra, e MD é igual a D-M. 

Até o momento, não conhecemos [AQUI NO SENTIDO DE QUE NÃO ABORDAMOS ATÉ O MOMENTO] nenhuma relação econômica dos homens senão aquela entre possuidores de mercadorias, uma relação em que cada um só apropria o produto do trabalho alheio na medida em que aliena [entfremden] seu próprio produto. Por conseguinte, um possuidor de mercadorias só pode se defrontar com outro, como possuidor de dinheiro, porque seu produto possui, por natureza, a forma-dinheiro, portanto, é material-dinheiro [Geldmaterial], ouro etc., ou porque sua própria mercadoria muda de pele, despojando-se de sua forma de uso original. Para funcionar como dinheiro, o ouro tem, naturalmente, de ingressar no mercado em algum ponto. Tal ponto se encontra em sua fonte de produção, onde ele é trocado como produto imediato de trabalho por outro produto de trabalho do mesmo valor. Mas, a partir desse momento, ele passa a representar preços realizados de mercadorias67. Excetuando o momento da troca de ouro por mercadoria, em sua fonte de produção, o ouro é, nas mãos de cada possuidor de mercadorias, a figura alienada [entäusserte] de sua mercadoria alienada [veräusserten], o produto da venda ou da primeira metamorfose das mercadorias M-D68. O ouro tornou-se dinheiro ideal ou medida de valor porque todas as mercadorias passaram a medir seus valores por ele, convertendo-o, assim, no oposto representado de sua figura de uso, isto é, em sua figura de valor. Ele se torna dinheiro real porque as mercadorias, por meio de sua venda universal [allseitige Veräusserung], fazem dele sua figura de uso efetivamente alienada ou transformada e, desse modo, sua efetiva figura de valor. Em sua figura de valor, a mercadoria se despoja de todo traço de seu valor de uso natural-espontâneo e do trabalho útil particular ao qual ela deve sua origem, a fim de se crisalidar na materialidade social e uniforme do trabalho humano indiferenciado. Não se percebe no dinheiro de que qualidade é a mercadoria que foi nele transformada. Em sua formadinheiro, uma mercadoria tem a mesma aparência que a outra. Por isso, o dinheiro pode ser lixo, embora lixo não seja dinheiro. Suponha que as duas moedas de ouro em troca das quais nosso tecelão de linho aliena sua mercadoria sejam a figura transformada de 1 quarter de trigo. A venda do linho, M-D, é simultaneamente sua compra, D-M. Como venda do linho, esse processo dá início a um movimento que termina com seu oposto, com a compra da Bíblia; como compra do linho, ele conclui um movimento que começou com seu contrário, a venda do trigo. M-D (linhodinheiro), essa primeira fase de M-D-M (linho-dinheiro-Bíblia), é, ao mesmo tempo, DM (dinheiro-linho), a última fase de um último movimento M-D-M (trigo-dinheirolinho). A primeira metamorfose de uma mercadoria, sua conversão da formamercadoria em dinheiro, é sempre, ao mesmo tempo, uma segunda metamorfose contrária de outra mercadoria, sua reconversão de forma-dinheiro em mercadoria69. 

D-M. Segunda e conclusiva metamorfose da mercadoria: a compra. Sendo o dinheiro a figura alienada de todas as outras mercadorias, ou o produto de sua venda 145 universal, ele é a mercadoria absolutamente vendável. Ele lê todos os preços de trás para a frente e, assim, espelha-se em todos os corpos de mercadorias como no material que se oferece a seu próprio tornar-se mercadoria [Warenwerdung]. Ao mesmo tempo, os preços, os olhos amorosos com que as mercadorias lhe lançam uma piscadela, revelam o limite de sua capacidade de transformação, a saber, sua própria quantidade. Como a mercadoria desaparece ao se transformar em dinheiro, neste não se percebe como ele chegou às mãos de seu possuidor ou qual mercadoria foi nele transformada. Non olet [não fede]g, seja qual for sua origem. Se por um lado ele representa mercadoria vendida, por outro representa mercadorias compráveis70. 

D-M, a compra, é ao mesmo tempo venda, M-D; por isso, a última metamorfose de uma mercadoria é também a primeira metamorfose de outra mercadoria. Para nosso tecelão de linho, a biografia de sua mercadoria se conclui com a Bíblia, na qual ele transformou as £2. Mas o vendedor da Bíblia converte em aguardente as £2 gastas pelo tecelão de linho. D-M, a fase final de M-D-M (linho-dinheiro-Bíblia), é simultaneamente M-D, a primeira fase de M-D-M (Bíblia-dinheiro-aguardente). Como o produtor de mercadorias produz apenas um único tipo de produto, ele o vende frequentemente em grandes quantidades, ao passo que suas múltiplas necessidades o obrigam constantemente a fragmentar em muitas compras o preço realizado ou a soma de dinheiro recebida. Uma venda resulta, por isso, em muitas compras de diversas mercadorias. De modo que a metamorfose final de uma mercadoria constitui uma soma das primeiras metamorfoses de outras mercadorias. 

Ora, se considerarmos a metamorfose total de uma mercadoria, por exemplo, do linho, veremos, primeiramente, que ela consiste em dois movimentos antitéticos e mutuamente complementares, M-D e D-M. Essas duas mutações antitéticas da mercadoria se realizam em dois processos sociais antitéticos do possuidor de mercadorias e se refletem em dois caracteres econômicos antitéticos desse possuidor. Como agente da venda, ele se torna vendedor e, como agente da compra, comprador. Mas como em toda mutação da mercadoria suas duas formas – a forma-mercadoria e a forma-dinheiro – só existem ocupando polos antitéticos, também o mesmo possuidor de mercadorias, como vendedor, confronta-se com outro comprador e, como comprador, com outro vendedor. Como a mesma mercadoria percorre sucessivamente as duas mutações inversas, passando de mercadoria a dinheiro e de dinheiro a mercadoria, assim o mesmo possuidor de mercadorias desempenha alternadamente os papéis de vendedor e comprador. Estes não são fixos, mas, antes, personagens [Charaktere] constantemente desempenhados por pessoas [Personen] alternadas no interior da circulação de mercadorias. 

A metamorfose total de uma mercadoria envolve, em sua forma mais simples, quatro extremos e três personae dramatis [atores]. [M-D D-M]Primeiramente, o dinheiro se defronta com a mercadoria como sua figura de valor, que, no além, no bolso alheio, possui sólida realidade material [sachlich]. Desse modo, um possuidor de dinheiro se defronta com o possuidor de mercadorias. Assim que a mercadoria se converte em dinheiro, este se torna a forma de equivalente evanescente daquela, cujo valor de uso ou conteúdo existe no aquém, nos corpos das outras mercadorias. Como ponto de chegada da primeira mutação da mercadoria, o dinheiro é, ao mesmo tempo, o ponto 146 de partida da segunda mutação. Assim, o vendedor do primeiro ato torna-se comprador no segundo, onde um terceiro possuidor de mercadorias confronta-se com ele como vendedor 71. 

Os dois movimentos inversos da metamorfose da mercadoria formam um ciclo: forma-mercadoria, despojamento da forma-mercadoria, retorno à forma-mercadoria. No entanto, a própria mercadoria é aqui determinada de maneira antitética. No ponto de partida, ela é não valor de uso; no ponto de chegada, é valor de uso para seu possuidor. Assim, o dinheiro aparece, primeiramente, como o sólido valor cristalizado em que se transforma a mercadoria, mas o faz apenas para, num segundo momento, diluir-se como simples forma de equivalente dela. 

As duas metamorfoses que formam o ciclo de uma mercadoria formam, ao mesmo tempo, as metamorfoses parciais inversas de duas outras mercadorias. A mesma mercadoria (linho) inaugura a série de suas próprias metamorfoses e finaliza a metamorfose total de outra mercadoria (o trigo). No curso de sua primeira mutação, a venda, ela desempenha esses dois papéis em sua própria pessoa. J á como crisálida de ouro, forma sob a qual ela própria segue o caminho de toda carne, ela completa, ao mesmo tempo, a primeira metamorfose de uma terceira mercadoria. O ciclo percorrido pela série de metamorfoses de uma mercadoria se entrelaça inextricavelmente com os ciclos de outras mercadorias. O processo inteiro se apresenta como circulação de mercadorias. 

A circulação de mercadorias distingue-se da troca direta de produtos não só formalmente, mas também essencialmente. Lancemos um olhar retrospectivo sobre o percurso. O tecelão de linho trocou incondicionalmente o linho pela Bíblia, a mercadoria própria por uma mercadoria alheia. Mas esse fenômeno só é verdadeiro para ele. O vendedor de Bíblias, que prefere o quente ao frioh, não pensou em trocar a Bíblia por linho, assim como o tecelão de linho não sabe que seu linho foi trocado por trigo etc. A mercadoria de B substitui a mercadoria de A, mas A e B não trocam mutuamente suas mercadorias. É possível, de fato, que A e B comprem alternadamente um do outro, mas tal relação particular não é de modo algum condicionada pelas condições gerais da circulação de mercadorias. Vemos, por um lado, como a troca de mercadorias rompe as barreiras individuais e locais da troca direta de produtos e desenvolve o metabolismo do trabalho humano. Por outro, desenvolve-se um círculo completo de conexões que, embora sociais, impõem-se como naturais [gesellschaftlicher Naturzusammenhänge], não podendo ser controladas por seus agentes. O tecelão só pode vender o linho porque o camponês já vendeu o trigo, o esquentadoi só pode vender a Bíblia porque o tecelão já vendeu o linho, o destilador só pode vender a aguardente porque o outro já vendeu a água da vida eterna etc. 

Por isso, diferentemente da troca direta de produtos, o processo de circulação não se extingue com a mudança de lugar ou de mãos dos valores de uso. [GANHA VIDA, SAI PELO MUNDO] O dinheiro não desaparece pelo fato de, no final, ficar de fora da série de metamorfoses de uma mercadoria. Ele sempre se precipita em algum lugar da circulação deixado desocupado pelas mercadorias. Por exemplo, na metamorfose completa do linho, linho-dinheiroBíblia, é o linho que primeiramente sai de circulação, entrando o dinheiro em seu lugar, e então a Bíblia sai de circulação e o dinheiro toma seu lugar. A substituição de 147 uma mercadoria por outra sempre faz com que o dinheiro acabe nas mãos de um terceiro72. A circulação transpira dinheiro por todos os poros. 

[OU SEJA, OCORRE ALGO NOVO, A CONTRADIÇÃO INTERNA VUxV se converte numa contradição externa MxD e esta contradição externa se resolve expelindo dinheiro que sai pelo mundo, primeiro para servir de intermediários em outras trocas, mas depois...]

Nada pode ser mais tolo do que o dogma de que a circulação de mercadorias provoca um equilíbrio necessário de vendas e compras, uma vez que cada venda é uma compra, e vice-versa. Se isso significa que o número das vendas efetivamente realizadas é o mesmo das compras, trata-se de pura tautologia. Mas ele pretende provar que o vendedor leva seu próprio comprador ao mercado. Venda e compra são um ato idêntico como relação mútua entre duas pessoas situadas em polos contrários: o possuidor de mercadorias e o possuidor de dinheiro. Como ações da mesma pessoa, eles constituem dois atos frontalmente opostos. Desse modo, a identidade de compra e venda implica que a mercadoria se torna inútil se, uma vez lançada na retorta alquímica da circulação, ela não resulta desse processo como dinheiro, se não é vendida pelo possuidor de mercadorias e, portanto, não é comprada pelo possuidor de dinheiro. Além disso, essa identidade implica que o processo, quando bem-sucedido, constitui um ponto de repouso, um período da vida da mercadoria que pode durar mais ou menos. Como a primeira metamorfose da mercadoria é simultaneamente venda e compra, esse processo parcial é, ao mesmo tempo, um processo autônomo. O comprador tem a mercadoria, o vendedor tem o dinheiro, isto é, uma mercadoria que conserva a forma adequada à circulação independentemente se mais cedo ou mais tarde ela volta a aparecer no mercado. Ninguém pode vender sem que outro compre. Mas ninguém precisa comprar apenas pelo fato de ele mesmo ter vendido. A circulação rompe as barreiras temporais, locais e individuais da troca de produtos precisamente porque provoca uma cisão na identidade imediata aqui existente entre o dar em troca o próprio produto do trabalho e o receber em troca o produto do trabalho alheio, transformando essa identidade na antítese entre compra e venda. Dizer que esses dois processos independentes e antitéticos formam uma unidade interna significa dizer que sua unidade interna se expressa em antíteses externas. Se, completando-se os dois polos um ao outro, a autonomização externa do internamente dependente avança até certo ponto, a unidade se afirma violentamente por meio de uma crise. A antítese, imanente à mercadoria, entre valor de uso e valor, na forma do trabalho privado que ao mesmo tempo tem de se expressar como trabalho imediatamente social, do trabalho particular e concreto que ao mesmo tempo é tomado apenas como trabalho geral abstrato, da personificação das coisas e coisificação das pessoas – essa contradição imanente adquire nas antíteses da metamorfose da mercadoria suas formas desenvolvidas de movimento. Por isso, tais formas implicam a possibilidade de crises, mas não mais que sua possibilidade. O desenvolvimento dessa possibilidade em efetividade requer todo um conjunto de relações que ainda não existem no estágio da circulação simples de mercadorias73. 

[É MUITO IMPORTANTE LER A NOTA DE RODAPÉ 73 QUE ESTÁ NAS PÁGINAS 187 E 188 DA EDIÇÃO DA BOITEMPO, SOBRE A ESPECIFICIDADE DOS MODOS DE PRODUÇÃO]

[O TRECHO ACIMA SERÁ RETOMADO, NOS LIVROS SEGUINTES, QUANDO DISCUTIRMOS O TEMA DA CRISE]

Como mediador da circulação de mercadorias, o dinheiro exerce a função de meio de circulação. 

b) O curso do dinheiro 

A mudança de forma em que se realiza o metabolismo dos produtos do trabalho, M-D148 M, exige que o mesmo valor, como mercadoria, constitua o ponto de partida do processo e retorne ao mesmo ponto como mercadoria. Esse movimento das mercadorias é, por isso, um ciclo. Por outro lado, a mesma forma exclui o ciclo do dinheiro, e seu resultado é o afastamento constante do dinheiro de seu ponto de partida, e não seu retorno a este último. Enquanto o vendedor retém a figura transformada de sua mercadoria – o dinheiro –, a mercadoria encontra-se no estágio da primeira metamorfose, ou apenas percorreu a primeira metade de sua circulação. Quando o processo de vender para comprar está consumado, o dinheiro é novamente removido das mãos de seu possuidor original. É verdade que o tecelão de linho, depois de ter comprado a Bíblia, vende uma nova peça de linho e, desse modo, o dinheiro retorna a suas mãos. Mas ele não retorna por meio da circulação das primeiras 20 braças de linho, mediante a qual o dinheiro passou das mãos do tecelão para as do vendedor da Bíblia. Ele só retorna por meio da renovação ou repetição, para a nova mercadoria, do mesmo processo de circulação, com o que ele chega ao mesmo resultado do processo anterior. Essa forma de movimento imediatamente conferida ao dinheiro pela circulação de mercadorias é, pois, a de seu distanciamento constante do ponto de partida, sua passagem das mãos de um possuidor de mercadorias às de outro, ou seu curso (currency, cours de la monnaie). 

NO PARAGRAFO SEGUINTE, FICA CLARO COMO O DINHEIRO É O EMBRIÃO DO CAPITAL

O curso do dinheiro mostra uma repetição constante, monótona, do mesmo processo. A mercadoria está sempre do lado do vendedor, o dinheiro sempre do lado do comprador, como meio de compra. Ele funciona como meio de compra na medida em que realiza o preço da mercadoria. Ao realizá-lo, ele transfere a mercadoria das mãos do vendedor para as do comprador, enquanto, ao mesmo tempo, afasta-se das mãos do comprador para as do vendedor, a fim de repetir o mesmo processo com outra mercadoria. Que essa forma unilateral do movimento do dinheiro nasce do movimento formal bilateral da mercadoria é algo que permanece oculto. A natureza da própria circulação das mercadorias gera a aparência contrária. A primeira metamorfose da mercadoria é visível não somente como movimento do dinheiro, mas como seu próprio movimento; sua segunda metamorfose, no entanto, só é visível como movimento do dinheiro. Na primeira metade de sua circulação, a mercadoria troca de lugar com o dinheiro. Com isso, sua forma de uso sai da circulação e entra no consumo74, e sua figura de valor ou larva monetária [ Geldlarve] ocupa o seu lugar. A segunda metade de sua circulação ela percorre não mais em sua própria pele natural, mas na pele do ouro. Desse modo, a continuidade do movimento recai inteiramente do lado do dinheiro, e o mesmo movimento que, para a mercadoria, engloba dois processos antitéticos, também engloba, como movimento próprio do dinheiro, sempre o mesmo processo, a sua troca de lugar com uma mercadoria sempre distinta. O resultado da circulação de mercadorias, a substituição de uma mercadoria por outra, não parece ser mediado por sua própria mudança de forma, mas pela função do dinheiro como meio de circulação, que faz circular mercadorias que, por si mesmas, são imóveis, transferindo-as das mãos em que elas são não-valores de uso para as mãos em que elas são valores de uso e, nesse processo, movendo-se sempre em sentido contrário ao seu próprio curso. O dinheiro remove constantemente as mercadorias da esfera da circulação, assumindo seus lugares e, assim, distanciando-se 149 de seu próprio ponto de partida. Por essa razão, embora o movimento do dinheiro seja apenas a expressão da circulação de mercadorias, é esta última que, ao contrário, aparece simplesmente como resultado do movimento do dinheiro75.

NOVAMENTE ABAIXO OUTRA DICA SOBRE A NATUREZA DAS CRISES

 Por outro lado, o dinheiro só desempenha a função de meio de circulação por ser o valor autonomizado das mercadorias. Razão pela qual seu movimento como meio de circulação é, na verdade, apenas o movimento próprio da forma delas. Por isso, tal movimento tem, também, de se refletir sensivelmente no curso do dinheiro. Por exemplo, o linho transforma, primeiramente, sua forma-mercadoria em sua formadinheiro. O último extremo de sua primeira metamorfose M-D, a forma-dinheiro, torna-se, então, o primeiro extremo de sua última metamorfose D-M, sua reconversão na Bíblia. Mas cada uma dessas duas mudanças de forma opera-se por meio de uma troca entre mercadoria e dinheiro, por sua troca mútua de lugar. As mesmas peças monetárias chegam às mãos do vendedor como figura alienada [entäusserte] da mercadoria e deixam suas mãos como figura absolutamente alienável [veräusserliche] da mercadoria. Elas trocam duas vezes de lugar. A primeira metamorfose do linho traz essas peças monetárias para o bolso do tecelão, a segunda retira-as de seu bolso. As duas mudanças antitéticas de forma da mesma mercadoria se refletem, assim, na dupla troca de lugar do dinheiro que ocorre em sentidos contrários.

 Se, ao contrário, há apenas metamorfoses unilaterais das mercadorias, seja a simples venda ou a simples compra, o mesmo dinheiro também só troca de lugar uma única vez. Sua segunda troca de lugar expressa sempre a segunda metamorfose da mercadoria, sua reconversão em dinheiro. A frequente repetição da troca de lugar das mesmas peças monetárias reflete não apenas a série de metamorfoses de uma única mercadoria, mas também o entrelaçamento das inúmeras metamorfoses que ocorrem no mundo das mercadorias em geral. De resto, é absolutamente evidente que tudo isso vale apenas para a forma da circulação simples de mercadorias que aqui examinamos. 

Toda mercadoria, em seu primeiro passo na circulação, ao sofrer sua primeira mudança de forma, sai de circulação e dá lugar a uma nova mercadoria. Ao contrário, o dinheiro, como meio de circulação, habita continuamente a esfera da circulação e transita sempre no seu interior. Surge, então, a questão de quanto dinheiro essa esfera constantemente absorve. 

[O QUE SEGUE É MUITO INTERESSANTE, ESPECIALMENTE PARA QUEM TEM ALMA DE HISTORIADOR ECONOMICO, MAS É TERRIVEL PARA QUEM TEM ALMA DE GENTE NORMAL. LER, NÃO SE DESESPERAR, SEGUIR ADIANTE, VOLTAR DEPOIS]

Num país, ocorrem todos os dias, ao mesmo tempo e de modo contíguo, numerosas metamorfoses unilaterais de mercadorias, ou, em outras palavras, simples vendas de um lado, simples compras de outro. Em seus preços, as mercadorias são previamente igualadas a determinadas quantidades representadas de dinheiro. E como a forma imediata de circulação aqui considerada contrapõe sempre a mercadoria ao dinheiro de modo palpável, a primeira no polo da venda, o segundo no polo da compra, concluímos que a massa de meios de circulação requerida para o processo de circulação do mundo das mercadorias é determinada de antemão pela soma dos preços das mercadorias. Na verdade, o dinheiro não faz mais do que representar realmente a quantidade de ouro que já está expressa idealmente na soma dos preços das mercadorias. Por isso, é evidente a igualdade dessas duas somas. Sabemos, no entanto, que, mantendo-se constantes os valores das mercadorias, seus preços variam de acordo com o valor do ouro (do material do dinheiro), aumentando na proporção 150 em que ele diminui e diminuindo na proporção em que ele aumenta. Assim, conforme a soma dos preços das mercadorias aumente ou diminua, também a quantidade de dinheiro em circulação tem de aumentar ou diminuir na mesma medida. De fato, a variação na quantidade do meio de circulação surge aqui do próprio dinheiro, mas não de sua função como meio de circulação, e sim de sua função como medida de valor. Primeiramente, o preço das mercadorias varia em proporção inversa ao valor do dinheiro; em segundo lugar, a quantidade de meio de circulação varia em proporção direta ao preço das mercadorias. O mesmo fenômeno ocorreria se, por exemplo, em vez da queda do valor do ouro, tivéssemos a sua substituição pela prata como medida de valor, ou se, em vez de a prata aumentar seu valor, o ouro lhe tomasse sua função de medida de valor. No primeiro caso, seria preciso haver mais prata em circulação do que havia ouro anteriormente; no segundo, mais ouro do que prata. Em ambos os casos, ter-se-ia alterado o valor do material do dinheiro, isto é, o valor da mercadoria que funciona como medida dos valores e, por conseguinte, o valor da expressão de preço dos valores das mercadorias, assim como a quantidade de dinheiro que circula e serve à realização desses preços. Vimos que a esfera da circulação das mercadorias tem uma abertura através da qual o ouro (ou a prata, em suma, o material do dinheiro) nela adentra como mercadoria de um dado valor. Esse valor é pressuposto na função do dinheiro como medida de valor e, portanto, com a determinação do preço. Se, por exemplo, diminui o valor da própria medida de valor, isso se manifesta primeiramente na variação de preço daquelas mercadorias que, na fonte de produção dos metais preciosos, são trocadas imediatamente por eles como mercadorias. Especialmente em condições menos desenvolvidas da sociedade burguesa ocorre que uma grande parte de todas as outras mercadorias continua por mais tempo a ser estimada de acordo com o valor da antiga medida de valor, tornado obsoleto e ilusório. Ocorre que uma mercadoria contagia a outra por meio da relação de valor entre elas, de modo que seus preços, expressos em ouro ou em prata, são gradualmente equalizados nas proporções determinadas por seus próprios valores, até que, por fim, os valores de todas as mercadorias são estimados de acordo com o novo valor do metal monetário. Esse processo de equalização é acompanhado pelo aumento contínuo dos metais preciosos, que afluem em substituição às mercadorias que por eles são diretamente trocadas. Assim, na mesma medida em que se universaliza o processo de conferir às mercadorias seus preços corretos, ou em que seus valores são estimados de acordo com o valor até certo ponto decrescente do metal, já está dada de antemão a quantidade de metal necessária para a realização desses novos preços. No século XVII, e principalmente no século XVIII, uma observação unilateral dos fatos que se seguiram à descoberta das novas fontes de ouro e prata levou à conclusão equivocada de que os preços das mercadorias haviam aumentado pelo fato de que uma quantidade maior de ouro e prata havia passado a funcionar como meio de circulação. Daqui em diante, pressuporemos o valor do ouro tal como ele está efetivamente dado no momento da determinação do preço de uma mercadoria.

 Sob esse pressuposto, pois, a quantidade do meio de circulação é determinada pela soma dos preços das mercadorias a serem realizados. Além disso, se pressupomos como dado o preço de todo tipo de mercadoria, a soma dos preços das mercadorias 151 depende nitidamente da quantidade de mercadorias que se encontra em circulação. Não é preciso quebrar muito a cabeça para compreender que se 1 quarter de trigo custa £2, então 100 quarters custam £200, 200 quarters £400 etc., de modo que, com a quantidade do trigo, cresce também a quantidade de dinheiro que troca de lugar com ele em sua venda. 

Uma vez pressuposta como dada a quantidade de mercadorias, a quantidade do dinheiro em circulação varia de acordo com as flutuações nos preços das mercadorias. Ela aumenta ou diminui na proporção em que a soma dos preços das mercadorias sobem ou caem em consequência da variação desses preços. Mas não é de modo nenhum necessário que os preços de todas as mercadorias subam ou caiam ao mesmo tempo. O aumento dos preços de um dado número de artigos mais importantes, num caso, ou sua diminuição, num outro, é o bastante para elevar ou diminuir a soma dos preços de todas as mercadorias e, portanto, para pôr mais ou menos dinheiro em circulação. Se a variação nos preços das mercadorias reflete uma variação efetiva de valor ou meras flutuações nos preços de mercado, o efeito sobre a quantidade do meio de circulação permanece o mesmo. 

Suponha um número de vendas ou de metamorfoses parciais que ocorrem de modo conjunto, simultâneo e, desse modo, espacialmente contíguo, como as vendas de 1 quarter de trigo, 20 braças de linho, 1 Bíblia e 4 galõesj de aguardente. Se o preço de cada artigo é £2, e, portanto, a soma dos preços a serem realizados é £8, então é preciso que uma quantidade de dinheiro de £8 entre em circulação. Se, ao contrário, as mesmas mercadorias constituem elos da série de metamorfoses que já nos é conhecida – 1 quarter de trigo = £2, 20 braças de linho = £2, 1 Bíblia = £2, 4 galões de aguardente = £2 –, então £2 faz com que as diferentes mercadorias circulem uma atrás da outra, realizando seus preços sucessivamente e, com isso, também a soma de seus preços, £8, até que, por fim, encontrem seu repouso nas mãos do destilador. As £2 percorrem, assim, 4 cursos. Essa mudança repetida de posição das mesmas peças monetárias representa a dupla mudança de forma da mercadoria, seu movimento através de dois estágios antitéticos da circulação e o entrelaçamento das metamorfoses de diferentes mercadorias76. As fases antitéticas e reciprocamente complementares que esse processo percorre não podem se justapor no espaço, mas apenas se suceder no tempo. Os intervalos de tempo formam, assim, a medida de sua duração, ou seja, o número de cursos que as mesmas peças monetárias percorrem num dado tempo mede a velocidade da circulação do dinheiro. Suponha que o processo de circulação daquelas quatro mercadorias dure um dia. Assim, a soma dos preços a serem realizados no dia é £8, o número dos cursos das mesmas peças monetárias durante o dia é 4 e a quantidade do dinheiro em circulação é £2, ou, para um dado intervalo de tempo do processo de circulação, (soma dos preços das mercadorias)/(números de cursos das mesmas peças monetárias) = quantidade do dinheiro, que funciona como meio de circulação. O processo de circulação de um país num dado intervalo de tempo compreende, sem dúvida, muitas vendas (ou compras) ou metamorfoses parciais dispersas, simultâneas e espacialmente contíguas, nas quais as mesmas peças monetárias trocam de lugar apenas uma vez ou completam apenas um curso, mas também compreende, por outro lado, muitas séries de metamorfoses mais ou menos encadeadas, em parte adjacentes, 152 em parte entrelaçadas, nas quais as mesmas peças monetárias perfazem um número maior ou menor de cursos. Porém, o número total dos cursos de todas as peças monetárias que se encontram em circulação expressa o número médio dos cursos da peça monetária individual ou a velocidade média do curso do dinheiro. A quantidade de dinheiro lançada, por exemplo, no começo do processo diário de circulação é naturalmente determinada pela soma dos preços das mercadorias que circulam de modo simultâneo e contíguo. Mas no interior do processo uma peça monetária se torna, por assim dizer, responsável pela outra. Se uma acelera sua velocidade de circulação, ela retarda a velocidade da outra ou sai inteiramente da esfera da circulação, pois esta pode absorver apenas uma dada quantidade de ouro, que, multiplicada pelo número de cursos de cada um de seus elementos singulares, é igual à soma dos preços a serem realizados. Assim, aumentando o número de cursos das peças monetárias, diminui sua quantidade em circulação. Diminuindo o número de seus cursos, sua quantidade aumenta. Porque a quantidade de dinheiro que pode funcionar como meio de circulação é determinada por certa velocidade média de curso da moeda, basta pôr em circulação uma determinada quantidade de notas de £1 para tirar de circulação a mesma quantia de sovereignsk, um truque bem conhecido de todos os bancos. 

Assim como no curso do dinheiro em geral aparece apenas o processo de circulação das mercadorias, isto é, sua passagem por uma série de metamorfoses contrárias, também na velocidade do curso do dinheiro aparece apenas a velocidade de sua mudança de forma, o entrelaçamento contínuo das séries de metamorfoses, a pressa do metabolismo, a rápida desaparição das mercadorias da esfera da circulação e sua igualmente rápida substituição por novas mercadorias. Na velocidade do curso do dinheiro se manifesta, portanto, a unidade fluida das fases contrárias e mutuamente complementares, a conversão da figura de uso em figura de valor e a reconversão da figura de valor em figura de uso, ou os dois processos da venda e da compra. I nversamente, na desaceleração do curso do dinheiro manifesta-se a dissociação e a autonomização antitética desses processos, a estagnação da mudança de forma e, com isso, do metabolismo. De onde provém essa estagnação é algo que, naturalmente, a própria circulação não nos informa. Ela se limita a mostrar o fenômeno, razão pela qual o senso comum, que com a desaceleração do curso do dinheiro vê o dinheiro aparecer e desaparecer com menos frequência em todos os pontos periféricos da circulação, atribui o fenômeno à quantidade insuficiente do meio de circulação77. 

E TUDO O QUE FOI DITO ANTES PODE SER RESUMIDO NO QUE SEGUE... -APROVEITAR PARA FALAR AQUI DO ABSURDO DOS RESUMOS DE O CAPITAL QUE TIRAM TUDO O QUE PARECE SER DIGRESSÃO...

A quantidade total do dinheiro que funciona como meio de circulação em cada período é, portanto, determinada, por um lado, pela soma dos preços do mundo de mercadorias em circulação e, por outro, pelo fluxo mais lento ou mais rápido de seus processos antitéticos de circulação. Da velocidade desse fluxo depende a proporção em que aquela soma de preços pode ser realizada por cada peça monetária singular. Mas a soma dos preços das mercadorias depende tanto da quantidade quanto dos preços de cada tipo de mercadoria. Além disso, os três fatores: o movimento dos preços, a quantidade de mercadorias em circulação e, por fim, a velocidade do curso do dinheiro podem variar em diferentes sentidos e diferentes proporções, de modo que a soma dos preços a realizar e a quantidade dos meios de circulação por ela condicionada podem 153 se apresentar em inúmeras combinações. Enumeramos, a seguir, apenas as combinações mais importantes na história dos preços das mercadorias. 

Quando os preços das mercadorias permanecem constantes, a quantidade do meio de circulação pode aumentar em consequência do aumento da quantidade de mercadorias em circulação, da diminuição da velocidade do curso do dinheiro ou da combinação de ambos. A quantidade do meio de circulação pode, ao contrário, diminuir em razão da quantidade decrescente de mercadorias ou da velocidade crescente da circulação. 

Com um aumento geral nos preços das mercadorias, a quantidade do meio de circulação pode permanecer constante, desde que a quantidade das mercadorias em circulação diminua na mesma proporção em que aumentam seus preços, ou que a velocidade do curso do dinheiro aumente tanto quanto aumentam seus preços, mantendo-se constante a quantidade das mercadorias em circulação. A quantidade do meio de circulação pode diminuir, seja porque a quantidade de mercadorias torna-se menor, seja porque a velocidade do curso torna-se maior do que os preços

 Ocorrendo uma baixa geral dos preços das mercadorias, a quantidade de meios de circulação pode permanecer igual se a massa de mercadorias crescer na mesma proporção em que o seu preço baixa ou se a velocidade do curso do dinheiro diminuir na mesma proporção que os preços. Ela pode crescer no caso de a quantidade de mercadorias crescer mais rapidamente ou se a velocidade de circulação diminuir mais rapidamente do que a queda dos preços das mercadorias. 

As variações dos diferentes fatores podem se compensar mutuamente, de modo que, não obstante sua contínua instabilidade, a quantidade total dos preços das mercadorias a serem realizados permaneça constante e, com ela, também o volume de dinheiro em circulação. É por isso que, especialmente na observação de períodos mais longos, encontramos um nível médio mais constante do volume de dinheiro em circulação em cada país e muito menos desvios desse nível médio do que poderíamos esperar à primeira vista – com exceção de fortes perturbações que surgem periodicamente das crises da produção e do comércio ou, mais raramente, de uma flutuação no valor do dinheiro. 

A lei segundo a qual a quantidade do meio de circulação é determinada pela soma dos preços das mercadorias em circulação e pela velocidade média do curso do dinheiro78 também pode ser expressa dizendo-se que, considerando-se uma dada soma de valor das mercadorias e uma dada velocidade média de suas metamorfoses, o volume de dinheiro ou do material do dinheiro em movimento depende de seu próprio valor. Ao contrário, a ilusão de que os preços das mercadorias são determinados pela quantidade do meio de circulação, e de que esta última é, por sua vez, determinada pela quantidade de material de dinheiro que se encontra num país79 tem suas raízes, em seus primeiros representantes, na hipótese absurda de que, ao entrarem em circulação, as mercadorias não possuem preços e o dinheiro não possui valor, de modo que uma parte alíquota do mingau das mercadorias é trocada por uma parte alíquota da montanha de metais80. 

c) A moeda. O signo do valor 

Da função do dinheiro como meio de circulação deriva sua figura como moeda. A fração de peso do ouro representada no preço ou na denominação monetária das mercadorias tem de se defrontar com estas na circulação como peças ou moedas de ouro de mesmo nome. Assim como a determinação do padrão dos preços, também a cunhagem de moedas é tarefa que cabe ao Estado. Nos diferentes uniformes nacionais que o ouro e a prata vestem, mas dos quais voltam a se despojar no mercado mundial, manifesta-se a separação entre as esferas internas ou nacionais da circulação das mercadorias e a esfera universal do mercado mundial. 

As moedas de ouro e o ouro em barras diferenciam-se, assim, apenas por sua fisionomia, e o ouro pode ser constantemente transformado de uma forma em outra81. O caminho pelo qual a moeda deixa a cunhagem é o mesmo que a leva ao forno de fundição. Pois, na circulação, as moedas de ouro se desgastam, umas mais, outras menos. Título de ouro e substância de ouro, conteúdo nominal e conteúdo real iniciam seu processo de separação. Moedas de ouro de mesma denominação passam a ter valores diferentes, pois diferem em seu peso. O ouro, como meio de circulação, diverge do ouro como padrão dos preços e, com isso, deixa também de ser o equivalente efetivo das mercadorias, cujos preços ele realiza. A história dessas confusões forma a história monetária da I dade Média e da época moderna até o século XVIII. A tendência natural-espontânea do processo de circulação de transformar o serouro [Goldsein] da moeda em aparência de ouro ou de converter a moeda num símbolo de seu conteúdo metálico oficial é reconhecida pelas leis mais modernas que fixam o grau de perda do metal suficiente para invalidar ou desmonetizar uma moeda de ouro. 

NOVAMENTE O QUE SEGUE É DELICIOSO... PARA OS HISTORIADORES ECONOMICOS E QUETAIS

Se o próprio curso do dinheiro separa o conteúdo real da moeda de seu conteúdo nominal, sua existência metálica de sua existência funcional, ele traz consigo, de modo latente, a possibilidade de substituir o dinheiro metálico por moedas de outro material ou por símbolos. As dificuldades de cunhagem de moedas muito pequenas de ouro ou de prata e a circunstância de que metais inferiores foram originalmente usados como medida de valor no lugar dos metais de maior valor – prata em vez de ouro, cobre em vez de prata – e, desse modo, circularam até serem destronados pelos metais mais preciosos, esclarecem historicamente o papel das moedas de prata e cobre como substitutas das moedas de ouro. Tais metais substituem o ouro naquelas esferas da circulação das mercadorias em que a moeda circula com mais rapidez e, por isso, inutiliza-se de modo mais rápido, isto é, onde as compras e as vendas se dão continuamente numa escala muito pequena. Para impedir que esses metais satélites tomem definitivamente o lugar do ouro, determinam-se por lei as proporções muito ínfimas em que eles podem ser usados no lugar desse metal. Naturalmente, as esferas particulares em que circulam os diferentes tipos de moedas penetram-se reciprocamente. A moeda divisionária é introduzida, paralelamente ao ouro, para o pagamento de frações da moeda de ouro de menor valor; o ouro entra constantemente na circulação varejista, porém é igualmente dela retirado mediante sua troca por moedas divisionárias82. 

O peso metálico das senhas [Marken] de prata ou de cobre é determinado arbitrariamente pela lei. Em seu curso, elas se desgastam ainda mais rapidamente do que as moedas de ouro. De modo que sua função como moeda se torna, na prática, 155 totalmente independente de seu peso, isto é, de todo valor. Assim, a existência do ouro como moeda se separa radicalmente de sua substância de valor. Coisas relativamente sem valor, como notas de papel, podem, portanto, funcionar como moeda em seu lugar. Nas senhas metálicas, o caráter puramente simbólico ainda se encontra de certo modo escondido. No papel-moeda, ele se mostra com toda evidência. Como se vê, ce n’est que le premier pas que coûte [difícil é apenas o primeiro passo]. 

Trata-se, aqui, apenas de papel-moeda emitido pelo Estado e de circulação compulsória. Ele surge imediatamente da circulação metálica. O dinheiro creditício [Kreditgeld] implica, por outro lado, condições que nos são totalmente desconhecidas do ponto de vista da circulação simples de mercadorias. Cabe apenas observar, de passagem, que, assim como o papel-moeda surge da função do dinheiro como meio de circulação, também o dinheiro creditício possui suas raízes naturais-espontâneas na função do dinheiro como meio de pagamento83. 

NOTAR

Dxmeiocirculaçãoxpapel moeda

Dxmeio de pagamentox dinheiro creditício

Cédulas de dinheiro, nas quais se imprimem denominações monetárias como £1, £5 etc., são lançadas no processo de circulação a partir de fora, pelo Estado. Enquanto circulam realmente em lugar da quantidade de ouro de mesma denominação, elas não fazem mais do que refletir, em seu movimento, as leis do próprio curso do dinheiro. Uma lei específica da circulação das cédulas de dinheiro só pode surgir de sua relação de representação com o ouro. E tal lei é simplesmente aquela que diz que a emissão de papel-moeda deve ser limitada à quantidade de ouro (ou prata) – simbolicamente representada pelas cédulas – que teria efetivamente de circular. É verdade que a quantidade de ouro que a esfera da circulação é capaz de absorver oscila constantemente acima ou abaixo de certo nível médio. Mas o volume do meio de circulação num dado país jamais diminui abaixo de um certo mínimo facilmente fixado pela experiência. Que essa quantidade mínima mude constantemente seus componentes, isto é, que ela seja sempre substituída por outras peças de ouro, não altera em nada sua grandeza e seu movimento constante na esfera da circulação. Desse modo, ela pode ser substituída por símbolos de papel. Se hoje todos os canais da circulação fossem preenchidos com papel-moeda até o máximo de sua capacidade de absorção, amanhã eles poderiam ter esse limite excedido em virtude das oscilações da circulação das mercadorias. Perder-se-ia, então, toda medida. Mas se o papel-moeda ultrapassasse a sua medida, isto é, a quantidade de moedas de ouro da mesma denominação que poderia estar em circulação, ele representaria, abstraindo do perigo de descrédito geral, apenas a quantidade de ouro determinada pelas leis da circulação das mercadorias, portanto, apenas a quantidade de ouro que pode ser representada pelo papel-moeda. Se a quantidade total de cédulas de papel passasse a representar, por exemplo, 2 onças de ouro em vez de 1 onça, então £1 se tornaria, por exemplo, a denominação monetária de 1/8 de onça de em vez de 1/4 . O efeito seria o mesmo que se obteria caso o ouro sofresse uma alteração em sua função como medida dos preços. Os mesmos valores que antes se expressavam no preço de £1 seriam, agora, expressos no preço de £2.

 O papel-moeda é signo do ouro ou signo de dinheiro. Sua relação com os valores das mercadorias consiste apenas em que estes estão idealmente expressos nas mesmas quantidades de ouro simbólica e sensivelmente representadas pelo papel. O dinheiro 156 de papel só é signo de valor na medida em que representa quantidades de ouro, que, como todas as outras mercadorias, são também quantidades de valor 84. 

Pergunta-se, por fim: como pode o ouro ser substituído por simples signos de si mesmo destituídos de valor? Porém, como vimos, ele só é substituível na medida em que é isolado ou autonomizado em sua função como moeda ou meio de circulação. Ora, a autonomização dessa função não ocorre com todas as moedas de ouro singulares, embora ela se manifeste nas moedas desgastadas que continuam a circular. Cada peça de ouro é simples moeda ou meio de circulação apenas na medida em que circula efetivamente. Todavia, o que não vale para as moedas de ouro singulares vale para a quantidade mínima de ouro que é substituível por papel-moeda. Ela permanece constantemente na esfera da circulação, funciona continuamente como meio de circulação e, assim, existe exclusivamente como portadora dessa função. Seu movimento expressa, portanto, a alternância contínua dos processos antitéticos da metamorfose das mercadorias M-D-M, na qual a mercadoria se confronta com sua figura de valor apenas para voltar a desaparecer imediatamente. A existência autônoma do valor de troca da mercadoria é aqui apenas um momento fugaz. Logo em seguida, ela é substituída por outra mercadoria. De modo que a mera existência simbólica do dinheiro é o suficiente nesse processo que o faz passar de uma mão a outra. Sua existência funcional absorve, por assim dizer, sua existência material. Como reflexo objetivo e transiente dos preços das mercadorias, ele funciona apenas como signo de si mesmo, podendo, por isso, ser substituído por outros signos85. Mas o signo do dinheiro necessita de sua própria validade objetivamente social, e esta é conferida ao símbolo de papel por meio de sua circulação forçada. Essa obrigação estatal vale apenas no interior dos limites de uma comunidade ou na esfera da circulação interna, mas é somente aqui que o dinheiro corresponde plenamente à sua função de meio de circulação ou de moeda e pode, assim, assumir no papel-moeda um modo de existência meramente funcional, apartado de sua substância metálica. 

3. Dinheiro 

A mercadoria que funciona como medida de valor e, desse modo, também como meio de circulação, seja em seu próprio corpo ou por meio de um representante, é dinheiro. O ouro (ou a prata) é, portanto, dinheiro. Ele funciona como dinheiro, por um lado, quando tem de aparecer em sua própria corporeidade dourada (ou prateada), isto é, como mercadoria-dinheiro, nem de modo meramente ideal, como em sua função de medida de valor, nem como capaz de ser representado, como em sua função de meio de circulação; por outro lado, quando, em virtude de sua função, seja ela realizada em sua própria pessoa ou por um representante, ele se fixa exclusivamente na figura de valor, a única forma adequada de existência do valor de troca, em oposição a todas as outras mercadorias como meros valores de uso.

a) Entesouramento 

O contínuo movimento cíclico das duas metamorfoses contrapostas da mercadoria ou a alternância constante entre a venda e a compra se manifesta no ininterrupto curso do 157 dinheiro ou em sua função como perpetuum mobile [móvel perpétuo] da circulação. Mas assim que se interrompem as séries de metamorfoses, e a venda deixa de ser suplementada pela compra subsequente, ele é imobilizado, ou, como diz Boisguillebert, transforma-se de meuble em immeuble [móvel em imóvel], de moeda em dinheiro.

 Com o primeiro desenvolvimento da circulação das mercadorias, desenvolve-se também a necessidade e a paixão de reter o produto da primeira metamorfose, a figura transformada da mercadoria ou sua crisálida de ouro86. A mercadoria é vendida não para comprar mercadoria, mas para substituir a forma-mercadoria pela formadinheiro. De simples meio do metabolismo, essa mudança de forma converte-se em fim de si mesma. A figura alienada [entäusserte] da mercadoria é impedida de funcionar como sua figura absolutamente alienável [veräusserliche], ou como sua forma-dinheiro apenas evanescente. Com isso, o dinheiro se petrifica em tesouro e o vendedor de mercadorias se torna um entesourador. 

COMO FICA CLARO ACIMA, VÃO SURGINDO AS PREMISSAS DO CAPITAL QUE SE AUTOVALORIZA

Nos estágios iniciais da circulação das mercadorias, apenas o excedente de valores de uso é transformado em dinheiro. O ouro e a prata se tornam, por si mesmos, expressões sociais da superfluidade ou da riqueza. Essa forma ingênua de entesouramento se eterniza em povos em que o modo de produção tradicional e orientado à autossubsistência corresponde a um círculo rigidamente fechado de necessidades. É o caso dos asiáticos, sobretudo dos indianos. Vanderlint, que fantasia que os preços das mercadorias sejam determinados pela massa do ouro e da prata existente num país, pergunta-se por que as mercadorias indianas são tão baratas. A resposta é: porque os indianos enterram seu dinheiro. Ele observa que, de 1602 a 1734, eles enterraram £150 milhões em prata, vindas originariamente da América para a Europa87. De 1856 a 1866, portanto, em dez anos, a I nglaterra exportou para a Índia e a China (grande parte do metal exportado para a China flui de volta para a Índia) £120 milhões em prata, que anteriormente fora trocada por ouro australiano. ]À medida que a produção de mercadorias se desenvolve, todo produtor de mercadorias tem de assegurar-se do nervus rerum, do “penhor social”88. Suas necessidades se renovam incessantemente e requerem a compra incessante de mercadorias alheias, ao passo que a produção e a venda de suas próprias mercadorias demandam tempo e dependem das circunstâncias. Para comprar sem vender, ele tem, antes, de ter vendido sem comprar. Essa operação, realizada em escala universal, parece contradizer a si mesma. Porém, em suas fontes de produção, os metais preciosos são trocados diretamente por outras mercadorias. Aqui, ocorre a venda (do lado do possuidor de mercadorias) sem a compra (do lado do possuidor de ouro e prata)89. E vendas subsequentes, sem serem seguidas por compras, têm como efeito apenas a distribuição ulterior dos metais preciosos entre todos os possuidores de mercadorias. Desse modo, em todos os pontos do intercâmbio surgem tesouros de ouro e prata, dos mais variados tamanhos. Com a possibilidade de reter a mercadoria como valor de troca ou o valor de troca como mercadoria, surge a cobiça pelo ouro. Com a expansão da circulação das mercadorias, cresce o poder do dinheiro, a forma absolutamente social da riqueza, sempre pronta para o uso.

 “O ouro é uma coisa maravilhosa! Quem o possui é senhor de tudo o que deseja. 158 Com o ouro pode-se até mesmo conduzir as almas ao paraíso” (Colombo, em sua carta da Jamaica, 1503). 

Como no dinheiro não se pode perceber o que foi nele transformado, tudo, seja mercadoria ou não, transforma-se em dinheiro. Tudo se torna vendável e comprável. A circulação se torna a grande retorta social, na qual tudo é lançado para dela sair como cristal de dinheiro. A essa alquimia não escapam nem mesmo os ossos dos santos e, menos ainda, as mais delicadas res sacrosanctae, extra commercium hominum [coisas sagradas que não são objeto do comércio dos homens]90. Como no dinheiro está apagada toda diferença qualitativa entre as mercadorias, também ele, por sua vez, apaga, como leveller radical, todas as diferenças91. Mas o dinheiro é, ele próprio, uma mercadoria, uma coisa externa, que pode se tornar a propriedade privada de qualquer um. Assim, a potência social torna-se potência privada da pessoa privada. A sociedade antiga o denuncia, por isso, como a moeda da discórdia de sua ordem econômica e moral92. A sociedade moderna, que já na sua infância arrancou Pluto das entranhas da terra pelos cabelos93, saúda no Graal de ouro a encarnação resplandecente de seu princípio vital mais próprio. 

A mercadoria, como valor de uso, satisfaz a uma necessidade particular e constitui um elemento particular da riqueza material. Todavia, o valor da mercadoria mede o grau de sua força de atração sobre todos os elementos da riqueza material e, portanto, a riqueza social de seu possuidor. Para um possuidor de mercadorias barbaramente simples, e mesmo para um camponês da Europa Ocidental, o valor é inseparável da forma de valor e, por isso, o aumento do tesouro de ouro e prata é, para ele, aumento de valor. No entanto, o valor do dinheiro aumenta, seja em consequência de sua própria variação de valor, seja em consequência da variação do valor das mercadorias. Mas isso não impede, por um lado, que 200 onças de ouro continuem a conter mais valor que 100, 300 mais que 200 etc., ou que, por outro lado, a forma metálica natural dessa coisa continue a ser a forma de equivalente geral de todas as mercadorias, a encarnação diretamente social de todo trabalho humano. O impulso para o entesouramento é desmedido por natureza. Seja qualitativamente, seja segundo sua forma, o dinheiro é desprovido de limites, quer dizer, ele é o representante universal da riqueza material, pois pode ser imediatamente convertido em qualquer mercadoria. Ao mesmo tempo, porém, toda quantia efetiva de dinheiro é quantitativamente limitada, sendo, por isso, apenas um meio de compra de eficácia limitada. Tal contradição entre a limitação quantitativa e a ilimitação qualitativa do dinheiro empurra constantemente o entesourador de volta ao trabalho de Sísifo da acumulação. Com ele ocorre o mesmo que com o conquistador do mundo, que, com cada novo país, conquista apenas mais uma fronteira a ser transposta.

 Para reter o ouro como dinheiro e, desse modo, como elemento do entesouramento, ele tem de ser impedido de circular ou de se dissolver, como meio de compra, em meio de fruição. Ao fetiche do ouro o entesourador sacrifica, assim, seu prazer carnal. Ele segue à risca o evangelho da renúncia. Por outro lado, ele só pode retirar da circulação na forma de dinheiro aquilo que ele nela colocou na forma de mercadorias. Quanto mais ele produz, tanto mais ele pode vender. Trabalho árduo, parcimônia e avareza constituem, assim, suas virtudes cardeais, e vender muito e 159 comprar pouco são a suma de sua economia política94. 

[MAX WEBER...,  VER TAMBÉM NOTA 95 QUE COMEÇA NA PÁGINA 207 DA EDIÇÃO DA BOITEMPO, ONDE SE CITA LUTERO]

A forma imediata do tesouro é acompanhada de sua forma estética, a posse de mercadorias de ouro e prata. Tal posse aumenta com a riqueza da sociedade civil. “Soyons riches ou paraissons riches” [“Sejamos ou pareçamos ricos”] l. Assim se forma, por um lado, um mercado cada vez mais ampliado para o ouro e a prata, independentemente de suas funções como dinheiro, e, por outro, uma fonte latente de oferta de dinheiro, que flui principalmente em períodos de convulsão social. 

O entesouramento cumpre diferentes funções na economia da circulação metálica. A função mais imediata deriva das condições de circulação das moedas de ouro e de prata. Vimos que a quantidade de dinheiro em circulação sofre altas e baixas em razão das oscilações constantes que a circulação das mercadorias apresenta quanto à sua extensão, seus preços e sua velocidade. Portanto, ela tem de ser capaz de contração e expansão. Ora o dinheiro tem de ser atraído como moeda, ora é preciso repeli-lo. Para que a quantidade de dinheiro efetivamente corrente possa saturar constantemente o poder de absorção da esfera da circulação, é necessário que a quantidade de ouro ou prata num país seja maior que a quantidade absorvida pela função monetária. Essa condição é satisfeita pela forma que o dinheiro assume como tesouro. As reservas servem, ao mesmo tempo, como canais de afluxo e refluxo do dinheiro em circulação, o qual, assim regulado, jamais extravasa seus canais de circulação95. 

b) Meio de pagamento 

Na forma imediata da circulação de mercadorias, que consideramos até o momento, a mesma grandeza de valor esteve presente sempre de um modo duplo: como mercadorias, num polo, e como dinheiro, no outro. Os possuidores de mercadorias, portanto, só entravam em contato entre si como representantes de equivalentes mutuamente existentes. Mas com o desenvolvimento da circulação das mercadorias desenvolvem-se condições por meio das quais a alienação da mercadoria é temporalmente apartada da realização de seu preço. Basta, aqui, indicar a mais simples dessas condições. Para ser produzido, um tipo de mercadoria requer mais tempo e outro, menos. A produção de diferentes mercadorias está ligada a diferentes estações do ano. Uma mercadoria é feita para um mercado local, ao passo que outra tem de ser transportada até um mercado distante. Por conseguinte, um possuidor de mercadorias pode surgir como vendedor antes que o outro se apresente como comprador. Com a repetição constante das mesmas transações entre as mesmas pessoas, as condições de venda das mercadorias regulam-se de acordo com suas condições de produção. Por outro lado, a utilização de certos tipos de mercadorias, como uma casa, é vendida por um período de tempo determinado. Somente após o término desse prazo o comprador obtém efetivamente o valor de uso da mercadoria. Ele a compra, portanto, antes de tê-la pagado. Um possuidor de mercadorias vende mercadorias que já existem, o outro compra como mero representante do dinheiro ou como representante de dinheiro futuro. O vendedor se torna credor, e o comprador, devedor. Como aqui se altera a metamorfose da mercadoria ou o desenvolvimento de sua forma de valor, também o dinheiro recebe outra função. Torna-se meio de 160 pagamento96. 

O TRECHO A SEGUIR TAMBÉM TEM RELAÇÃO COM AS CRISES. TODOS OS FENOMENOS MAIS COMPLEXOS TEM SUAS PREMISSAS NA FORMA MAIS SIMPLES.

O papel de credor ou devedor resulta, aqui, da circulação simples de mercadorias. Sua modificação de forma imprime no vendedor e no comprador esse novo rótulo. I nicialmente, trata-se de papéis tão evanescentes e alternadamente desempenhados pelos mesmos agentes da circulação como os de vendedor e de comprador. Mas agora a antítese parece menos cômoda e suscetível de uma maior cristalização97. Os mesmos personagens também podem se apresentar em cena independentemente da circulação de mercadorias. A luta de classes no mundo antigo, por exemplo, apresenta-se fundamentalmente sob a forma de uma luta entre credores e devedores e conclui-se, em Roma, com a ruína do devedor plebeu, que é substituído pelo escravo. Na I dade Média, a luta tem fim com a derrocada do devedor feudal, que perde seu poder político juntamente com sua base econômica. Entretanto, a forma-dinheiro – e a relação entre credor e devedor possui a forma de uma relação monetária – reflete aqui apenas o antagonismo entre condições econômicas de existência mais profundas.

 Voltemos à esfera da circulação de mercadorias. Deixou de existir a aparição simultânea dos equivalentes mercadoria e dinheiro nos dois polos do processo da venda. Agora, o dinheiro funciona, primeiramente, como medida de valor na determinação do preço da mercadoria vendida. Seu preço estabelecido por contrato mede a obrigação do comprador, isto é, a soma de dinheiro que ele deve pagar num determinado prazo. Em segundo lugar, funciona como meio ideal de compra. Embora exista apenas na promessa de dinheiro do comprador, ele opera na troca de mãos da mercadoria. É apenas no vencimento do prazo que o meio de pagamento entra efetivamente em circulação, isto é, passa das mãos do comprador para as do vendedor. O meio de circulação converteu-se em tesouro porque o processo de circulação se interrompeu logo após a primeira fase, ou porque a figura transformada da mercadoria foi retirada de circulação. O meio de pagamento entra na circulação, mas depois que a mercadoria já saiu dela. O dinheiro não medeia mais o processo. Ele apenas o conclui de modo independente, como forma de existência absoluta do valor de troca ou mercadoria universal. O vendedor converteu mercadoria em dinheiro a fim de satisfazer uma necessidade por meio do dinheiro; o entesourador, para preservar a mercadoria na forma-dinheiro; o devedor, para poder pagar. Se ele não paga, seus bens são confiscados e vendidos. A figura de valor da mercadoria, o dinheiro, torna-se, agora, o fim próprio da venda, e isso em virtude de uma necessidade social que deriva do próprio processo de circulação.

[O DINHEIRO COMO MEIO DE PAGAMENTO.. MEIO CAMINHO ANDADO PARA O DINHEIRO CONVERTER-SE EM CAPITAL]

 O comprador volta a transformar dinheiro em mercadoria antes de ter transformado mercadoria em dinheiro, ou efetua a segunda metamorfose das mercadorias antes da primeira. A mercadoria do vendedor circula, realiza seu preço, porém apenas na forma de um título de direito privado que garante a obtenção futura do dinheiro. Ela se converte em valor de uso antes de se ter convertido em dinheiro. A consumação de sua primeira metamorfose se dá apenas posteriormente98. 

Em cada fração de tempo do processo de circulação as obrigações vencidas representam a soma de preços das mercadorias, cuja venda gerou aquelas obrigações. A quantidade de dinheiro necessária à realização dessa soma de preços depende, inicialmente, da velocidade do curso dos meios de pagamento. Ela é condicionada por 161 duas circunstâncias: o encadeamento das relações entre credor e devedor, de modo que A, que recebe dinheiro de seu devedor B, paga ao seu credor C etc., e a distância temporal que separa os dois prazos de pagamento. A cadeia de pagamentos em processo, ou das primeiras e posteriores metamorfoses, distingue-se essencialmente do entrelaçamento das séries de metamorfoses de que tratamos anteriormente. No curso do meio de circulação, a conexão entre vendedores e compradores não é apenas expressa. A própria conexão tem sua origem no curso do dinheiro e só existe em seu interior. O movimento do meio de pagamento, ao contrário, exprime uma conexão social que já estava dada antes dele. 

O QUE EQUIVALE A DIZER QUE A TRANSFORMAÇÃO DO DINHEIRO EM CAPITAL NÃO É UM ACIDENTE, É A RESULTANTE DE UM PROCESSO QUE É SEU PRESSUPOSTO


A simultaneidade e a justaposição das compras limitam a substituição das moedas em virtude da velocidade da circulação. Elas constituem, inversamente, uma nova alavanca na economia dos meios de pagamento. Com a concentração dos pagamentos no mesmo lugar, desenvolvem-se espontaneamente instituições e métodos próprios para sua liquidação. Assim, por exemplo, os virements [transferências] na Lyon medieval. As dívidas de A para com B, de B para com C, de C para com A, e assim por diante, precisam apenas ser confrontadas umas com as outras para que se anulem mutuamente, até um determinado grau, como grandezas positivas e negativas. Resta, assim, apenas um saldo devedor a compensar. Quanto maior for a concentração de pagamentos, menor será esse saldo e, portanto, a quantidade dos meios de pagamento em circulação. 

NOVAMENTE ABAIXO, SE DÃO ELEMENTOS QUE SERÃO ESSENCIAIS PARA ENTENDER AS CRISES. ALIAS, VER A NOTA 99, QUE ESTÁ NA PÁGINA 211 DA EDIÇÃO BOITEMPO.

A função do dinheiro como meio de pagamento traz em si uma contradição direta. Na medida em que os pagamentos se compensam, ele funciona apenas idealmente, como moeda de conta [Rechengeld] ou medida dos valores. Quando se trata de fazer um pagamento efetivo, o dinheiro não se apresenta como meio de circulação, como mera forma evanescente e mediadora do metabolismo, mas como a encarnação individual do trabalho social, existência autônoma do valor de troca, mercadoria absoluta. Essa contradição emerge no momento das crises de produção e de comércio, conhecidas como crises monetárias99. Ela ocorre apenas onde a cadeia permanente de pagamentos e um sistema artificial de sua compensação encontram-se plenamente desenvolvidos. Ocorrendo perturbações gerais nesse mecanismo, venham elas de onde vierem, o dinheiro abandona repentina e imediatamente sua figura puramente ideal de moeda de conta e converte-se em dinheiro vivo. Ele não pode mais ser substituído por mercadorias profanas. O valor de uso da mercadoria se torna sem valor, e seu valor desaparece diante de sua forma de valor própria. Ainda há pouco, o burguês, com a típica arrogância pseudoesclarecida de uma prosperidade inebriante, declarava o dinheiro como uma loucura vã. Apenas a mercadoria é dinheiro. Mas agora se clama por toda parte no mercado mundial: apenas o dinheiro é mercadoria! Assim como o cervo brame por água fresca, também sua alma brame por dinheiro, a única riquezam 100. Na crise, a oposição entre a mercadoria e sua figura de valor, o dinheiro, é levada até a contradição absoluta. Por isso, a forma de manifestação do dinheiro é aqui indiferente. A fome de dinheiro é a mesma, quer se tenha de pagar em ouro, em dinheiro creditício ou em cédulas bancárias etc.101 

Se considerarmos agora a quantidade total do dinheiro em circulação num período determinado, veremos que, dada a velocidade do curso do meio de circulação e dos 162 meios de pagamentos, ela é igual à soma dos preços das mercadorias a serem realizados mais a soma dos pagamentos devidos, menos os pagamentos que se compensam uns aos outros e, finalmente, menos o número de ciclos que a mesma peça monetária percorre, funciona ora como meio de circulação, ora como meio de pagamento. Por exemplo, o camponês vende seu cereal por £2, que servem, assim, como meio de circulação. Em seguida, ele usa essa soma para pagar o linho que o tecelão lhe fornecera. As mesmas £2 funcionam, agora, como meio de pagamento. Então, o tecelão compra uma Bíblia com dinheiro vivo, e as £2 passam novamente a funcionar como meio de circulação, e assim por diante. Mesmo sendo dados os preços, a velocidade do curso e o equilíbrio dos pagamentos, a quantidade de dinheiro deixa de coincidir com a quantidade de mercadorias em circulação durante um certo período, por exemplo, um dia. Continua em curso o dinheiro que representa mercadorias há muito tempo saídas de circulação. Circulam mercadorias cujo equivalente em dinheiro só aparecerá numa data futura. Por outro lado, os débitos contraídos a cada dia e os pagamentos com vencimento no mesmo dia são grandezas absolutamente incomensuráveis102. 

O dinheiro creditício surge diretamente da função do dinheiro como meio de pagamento, quando certificados de dívida relativos às mercadorias vendidas circulam a fim de transferir essas dívidas para outrem. Por outro lado, quando o sistema de crédito se expande, o mesmo ocorre com a função do dinheiro como meio de pagamento. Nessa função, ele assume formas próprias de existência nas quais circula à vontade pela esfera das grandes transações comerciais, enquanto as moedas de ouro e prata são relegadas fundamentalmente à esfera do comércio varejista103. 

Quando a produção de mercadorias atingiu certo grau de desenvolvimento, a função do dinheiro como meio de pagamento ultrapassa a esfera da circulação das mercadorias. Ele se torna a mercadoria universal dos contratos104. Rendas, impostos etc. deixam de ser fornecimentos in natura e se tornam pagamentos em dinheiro. O quanto essa transformação é condicionada pela configuração geral do processo de produção é demonstrado, por exemplo, pela tentativa – duas vezes fracassada – do I mpério Romano de arrecadar todos os tributos em dinheiro. A miséria atroz da população rural francesa sob Luís XI V, tão eloquentemente denunciada por Boisguillebert, Marschall Vauban etc., teve sua causa não apenas no aumento dos impostos, mas também na transformação do imposto pago in natura em imposto pago em dinheiro105. Por outro lado, quando a forma natural da renda do solo, que, na Ásia, constitui o elemento fundamental do imposto estatal, baseia-se em relações de produção que se reproduzem com a imutabilidade de condições naturais, aquela forma de pagamento conserva retroativamente a antiga forma de produção. Tal forma constitui um dos segredos da autoconservação do I mpério Turco. Se o comércio exterior, imposto ao J apão pela Europa, acarretar a transformação da rendain natura em renda monetárian, será o fim de sua agricultura exemplar. Suas estreitas condições econômicas de existência acabarão por se dissolver. 

Em todos os países são estabelecidos certos prazos gerais de pagamento. Essas datas dependem, abstraindo-se de outros ciclos da reprodução, de condições naturais da produção, vinculadas às estações do ano. Elas também regulam os pagamentos que 163 não derivam diretamente da circulação de mercadorias, tais como impostos, rendas etc. A quantidade de dinheiro requerida para esses pagamentos, disseminados por toda a superfície da sociedade e espalhados ao longo do ano, provoca perturbações periódicas, porém totalmente superficiais na economia dos meios de pagamento106. 

Da lei sobre a velocidade do curso dos meios de pagamento podemos concluir que a quantidade de meios de pagamento requerida para todos os pagamentos periódicos, sejam quais forem suas fontes, está em proporção inversao à extensão desses períodos de pagamento107. 

O desenvolvimento do dinheiro como meio de pagamento torna necessária a acumulação de dinheiro para a compensação das dívidas nos prazos de vencimento. Assim, se por um lado o progresso da sociedade burguesa faz desaparecer o entesouramento como forma autônoma de enriquecimento, ela o faz crescer, por outro lado, na forma de fundos de reserva de meios de pagamento. 

[NÃO POR ACASO, O CAPITALISMO SENIL-FINANCEIRO LEMBRA O INFANTIL-FILIBUSTEIRO...]

c) O dinheiro mundial 

Ao deixar a esfera da circulação interna, o dinheiro se despe de suas formas locais de padrão de medida dos preços, de moeda, de moeda simbólica e de símbolo de valor, e retorna à sua forma original de barra de metal precioso. No comércio mundial, as mercadorias desdobram seu valor universalmente. Por isso, sua figura de valor autônoma as confronta, aqui, como dinheiro mundial. Somente no mercado mundial o dinheiro funciona plenamente como a mercadoria cuja forma natural é, ao mesmo tempo, a forma imediatamente social de efetivação do trabalho humano in abstracto. Sua forma de existência torna-se adequada a seu conceito. 

Na esfera da circulação interna, apenas uma mercadoria pode servir como medida de valor e, desse modo, como dinheiro. No mercado mundial, tem-se o domínio de uma dupla medida de valor: o ouro e a prata108. 

[15 DE AGOSTO DE 1971, ESTADOS UNIDOS DECRETAM UNILATERALMENTE O FIM DO PADRÃO OUTRO. TODO O DEBATE A RESPEITO DA RELIQUIA BARBARA. IMPLICAÇÕES PARA A ANALISE DO DINHEIRO PELA ECONOMIA POLITICA MARXISTA]

O dinheiro mundial funciona como meio universal de pagamento, meio universal de compra e materialidade absolutamente social da riqueza universal (universal wealth). O que predomina é sua função como meio de pagamento para o ajuste das balanças internacionais. Daí a palavra-chave dos mercantilistas: balança comercial109! O ouro e a prata servem como meios internacionais de compra essencialmente naqueles períodos em que o equilíbrio do metabolismo entre as diferentes nações é repentinamente desfeito. Por fim, ele serve como materialidade social da riqueza, em que não se trata nem de compra nem de pagamento, mas da transferência da riqueza de um país a outro, mais precisamente nos casos em que essa transferência na forma das mercadorias é impossibilitada, seja pelas conjunturas do mercado, seja pelo próprio objetivo que se busca realizar 110.

 Assim como para sua circulação interna, todo país necessita de um fundo de reserva para a circulação no mercado mundial. As funções dos tesouros derivam, portanto, em parte da função do dinheiro como meio da circulação e dos pagamentos internos, em parte de sua função como dinheiro mundial110a. Para essa última função, sempre se requer a genuína mercadoria-dinheiro, o ouro e a prata corpóreos, razão pela qual J ames Steuart caracteriza expressamente o ouro e a prata comomoney of the 164 world [dinheiro do mundo], em contraste com seus representantes apenas locais. 

O movimento da corrente de ouro e prata é um movimento duplo. Por um lado, ele parte de sua fonte e se espalha por todo o mercado mundial, onde ele é absorvido, em graus variados, pelas diferentes esferas nacionais da circulação, a fim de preencher seus canais internos de circulação, substituir moedas de ouro e prata desgastadas, fornecer material para mercadorias de luxo e petrificar-se como tesouro111. Esse primeiro movimento é mediado pela troca direta dos trabalhos que as nações realizam nas mercadorias pelo trabalho que é incorporado nos metais preciosos pelos países produtores de ouro e prata. Por outro lado, o ouro e a prata fluem constantemente de um lado para o outro entre as diferentes esferas nacionais de circulação, movimento que segue as oscilações ininterruptas do câmbio112. 

Países onde a produção burguesa é desenvolvida limitam os tesouros massivamente concentrados nas reservas bancárias ao mínimo necessário ao cumprimento de suas funções específicas113. Com algumas exceções, o excesso dessas reservas acima de seu nível médio é sinal de estancamento na circulação de mercadorias ou de uma interrupção no fluxo de suas metamorfoses114.

PROXIMA AULA

11 de setembro sexta

Aula 5 – Volume I – Cap. IV – Transformação do Dinheiro em Capital; Cap. V – Processo de Trabalho e Processo de Valorização

PAGINAS 223-275


NADA ACIMA FOI REVISADO


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