sábado, 5 de janeiro de 2019

Brum, Bolsonaro e o "homem mediano"


O secretário nacional de formação política do Partido dos Trabalhadores, companheiro Vilson Oliveira, recomendou que todos lêssemos o mais recente texto da escritora, repórter e documentarista Eliane Brum.

Trata-se de um artigo denominado “O homem mediano assume o poder”, publicado no jornal El Pais no dia 4 de janeiro. Quem tiver interesse em acessar diretamente, pode encontrar aqui:
https://brasil.elpais.com/brasil/2019/01/02/opinion/1546450311_448043.html

Realmente trata-se de um texto que merece ser lido, mas como exemplo de uma descrição equivocada que, aceita como verdadeira, nos levará a conclusões também equivocadas.

É o que buscarei demonstrar a seguir, analisando ponto a ponto tudo o que Brum afirma. 

Primeira parte

Brum inicia afirmando que “desde 1 de janeiro de 2019, o Brasil tem como presidente um personagem que jamais havia ocupado o poder pelo voto. Jair Bolsonaro é o homem que nem pertence às elites nem fez nada de excepcional. Esse homem mediano representa uma ampla camada de brasileiros. É necessário aceitar o desafio de entender o que ele faz ali. E com que segmentos da sociedade brasileira se aliou para desenhar um Governo que une forças distintas que vão disputar a hegemonia. Embora existam várias propostas e símbolos do passado na eleição do novo presidente, a configuração encarnada por Bolsonaro é inédita. Neste sentido, ele é uma novidade. Mesmo que seja uma difícil de engolir para a maioria dos brasileiros que não votou nele, escolhendo o candidato oposto ou votando branco, nulo ou simplesmente não comparecendo às urnas. Bolsonaro encarna também o primeiro presidente de extrema direita da democracia brasileira. O “coiso” está no poder. O que significa?”

Comecemos pela afirmação “ocupado o poder pelo voto”. Trata-se, na minha opinião, de uma mistificação. O voto, em nosso país, nunca garantiu o “poder”. O voto não garante o controle das forças armadas, dos meios de comunicação, do capital e nem mesmo a obediência da alta burocracia de Estado. 

E foram exatamente as forças armadas, os meios de comunicação, o grande capital e a alta burocracia de Estado que pavimentaram o caminho para que Jair Bolsonaro fosse eleito. Por isso, qualquer narrativa que comece apresentando Bolsonaro como alguém que chegou “ao poder” pelo voto, contribui – mesmo que não seja esta a intenção -- para reforçar a legitimidade de um “mito” que precisa ser deslegitimado. 

Concordo, entretanto, que Bolsonaro é um “personagem”. 

Curiosamente, ao invés de levar a sério esta definição, ou seja, a de que estamos diante de alguém que personifica algo, sem que seja exatamente aquilo que personifica, Brum por diversas vezes trata o personagem e o ator como se fossem idênticos. 

Ou seja: Bolsonaro não se comportou como um “homem mediano”, ele seria mesmo o “homem mediano”, portanto um ator totalmente identificado com o personagem. 

Ao por diversas vezes aceitar isto, Brum comete na minha opinião dois equívocos. 

O primeiro, de natureza teórica, diz respeito a admitir a existência do tal “homem mediano”. O segundo, de natureza política, diz respeito a dar ainda mais legitimidade para Bolsonaro. Ele não apenas tentaria parecer, ele seria mesmo autêntico...

As frases a seguir são claras neste sentido: “Jair Bolsonaro é o homem que nem pertence às elites nem fez nada de excepcional. Esse homem mediano representa uma ampla camada de brasileiros”. 

Admitamos por enquanto que Jair Bolsonaro não tenha feito nada de excepcional. Mas pergunto: será verdade que ele não “pertence às elites”? 

Bolsonaro foi deputado federal por 28 anos. Sua declaração oficial de bens fala em 2,3 milhões de reais; a imprensa denunciou a omissão de 2,6 milhões de reais.  Em torno de Bolsonaro ergueu-se um clã familiar. 

Não vejo, portanto, como sustentar a conclusão de que um deputado milionário não pertenceria, de alguma maneira, às elites políticas e econômicas do Brasil. 

Claro, isto conduz a uma péssima conclusão sobre as elites realmente existentes no Brasil. Mas o rumo seguido por Brum foi outro: apresentar Bolsonaro não como expressão de um setor destas elites realmente existentes, mas como expressão do brasileiro mediano.  

Há por detrás desta discussão um problema teórico: como descrever os grupos sociais existentes na sociedade brasileira? 

Termos como brasileiro mediano e elites adotam um padrão de análise; termos como capitalistas, pequenos proprietários e trabalhadores assalariados apontam para outro padrão de análise. 

Se Brum tivesse dito que Bolsonaro não “pertence às elites capitalistas”, eu concordaria com ela. Mas isso poderia ser dito também a respeito de Fernando Henrique Cardoso, que certamente Brum não considera como expressão do brasileiro mediano.

Estabelecida a premissa – Bolsonaro seria expressão do homem mediano, que sem pertencer às elites, conseguiu chegar ao poder pelo voto--, Brum se propõe a “aceitar o desafio de entender o que ele faz ali. E com que segmentos da sociedade brasileira se aliou para desenhar um Governo que une forças distintas que vão disputar a hegemonia”. 

Esta descrição parece fiel, mas na verdade oculta a trama real. 

Brum descreve a eleição como um processo que envolve, de um lado, o personagem Bolsonaro e, de outro, “segmentos da sociedade brasileira”, com quem Bolsonaro teria se aliado para “desenhar um Governo que une forças distintas que vão disputar a hegemonia”. 

Isto simplesmente não é verdade, por duas razões. 

A primeira, que não podemos esquecer nunca, é que a eleição de Bolsonaro teria sido impossível sem o golpe de 2016, sem a Operação Lava Jato (que “legalizou” e “legitimou” a interdição de Lula) e sem o desmanche da direita tradicional. 

A segunda, que tem relação direta com a discussão proposta por Brum, é que a candidatura de Bolsonaro não foi uma aventura pessoal. Depois do que disse Bolsonaro a respeito do general Villas Boas, como continuar acreditando nisso?

Portanto, o “desafio” aceito por Eliane Brum precisa ser posto noutros termos: por quais motivos determinados segmentos da sociedade brasileira construíram e outros setores adotaram uma candidatura com as características de Bolsonaro? Ou seja, Bolsonaro precisa ser posto como personagem de uma trama, não como demiurgo dela.

Sigamos na análise do texto de Brum. 

Logo em seguida, ela afirma que “embora existam várias propostas e símbolos do passado na eleição do novo presidente, a configuração encarnada por Bolsonaro é inédita. Neste sentido, ele é uma novidade. Mesmo que seja uma difícil de engolir para a maioria dos brasileiros que não votou nele, escolhendo o candidato oposto ou votando branco, nulo ou simplesmente não comparecendo às urnas. Bolsonaro encarna também o primeiro presidente de extrema direita da democracia brasileira. O “coiso” está no poder. O que significa?”

Neste trecho de Brum, Bolsonaro é apresentado como uma novidade pelo que ele é (o primeiro homem mediano a chegar ao poder pelo voto), mas também pelo que ele encarna (o primeiro presidente de extrema direita da democracia brasileira). 

Mesmo deixando de lado os presidentes eleitos entre o início da República e o golpe militar de 1964, a segunda afirmação é apenas relativamente verdadeira, já que Collor era um filhote da ditadura, usando e abusando de expressões do tipo “nossa bandeira nunca será vermelha”. 

Mas aceitar o forte paralelismo entre Collor e Bolsonaro não permitiria sustentar uma equação fundamental para a tese de Brum: homem mediano/extrema direita.

Mas Lula não seria, também, expressão do homem mediano? Se for, estaria desmontada a equação homem mediano/extrema direita. 

Vejamos o que diz Brum: “Quando Luiz Inácio Lula da Silva chegou ao Palácio do Planalto pela primeira vez, na eleição de 2002, depois de três derrotas consecutivas, foi um marco histórico. Quem testemunhou o comício da vitória na Avenida Paulista, tendo votado ou não em Lula, compreendeu que naquele momento se riscava o chão do Brasil. Não haveria volta. Pela primeira vez um operário, um líder sindical, um homem que fez com a família a peregrinação clássica do sertão seco do Nordeste para a industrializada São Paulo de concreto, alcançava o poder. Alguém com o “DNA do Brasil”, como diria sua biógrafa, a historiadora Denise Paraná”.

Neste ponto, de maneira surpreendente para quem acabou de escrever o que reproduzi no parágrafo acima, Brum escreve o seguinte: “O Lula que conquistou o poder pelo voto era excepcional. 'Homem do povo', sem dúvida, mas excepcional”. 

Agora fica claro por qual motivo a segunda frase do texto de Brum é a seguinte; “Jair Bolsonaro é o homem que nem pertence às elites nem fez nada de excepcional”. 

Sem este adendo “excepcional”, a equação homem mediano/extrema direita viria abaixo. 

Pois em algum momento da história recente, o homem mediano teria sido Lula, o primeiro presidente claramente de esquerda a ser eleito na história do Brasil. 

O que nos levaria a concluir que o tal “homem mediano” é um” tipo ideal”, pouco útil para entender a luta política e social no Brasil.

Brum faz um resumo da trajetória de Lula e pergunta: “independentemente da opinião que cada um possa ter dele hoje, é preciso aceitar os fatos: quantos homens com a trajetória de Lula se tornaram Lula?” 

Depois de fisgar com este anzol tão bonito o coração de muitos lulistas e petistas, Brum continua: “Lula era o melhor entre os seus, o melhor entre aqueles que os brancos do Sul discriminavam com a pecha de ‘cabeça chata’. Se sua origem e percurso levavam uma enorme novidade ao poder central de um dos países mais desiguais do mundo, a ideia de que aquele que é considerado o melhor deve ser o escolhido para governar atravessa a política e o conceito de democracia. Não se escolhe um qualquer para comandar o país, mas aquele ou aquela em que se enxergam qualidades que o tornam capaz de realizar a esperança da maioria. Neste sentido, não havia novidade”. 

Peço que releiam o parágrafo acima, porque ele é impressionante. O que está dito de essencial nele, claro que escrito com letras invisíveis, é que Lula saiu do povo e entrou na elite. Já Bolsonaro, como já foi dito antes e será dito em seguida, veio do povo e nele continuou. 

Portanto, o que parece ser um elogio a Lula, é na verdade uma condenação. Mesmo que Brum não deseje isto, não queira isto, não tenha consciência de estar fazendo isto, sua narrativa faz o péssimo serviço de exaltar Bolsonaro. 

Vejamos a questão no detalhe.

Existe uma diferença fundamental entre a classe trabalhadora e a classe dos capitalistas, que pode ser resumida na frase divertida que teria sido dita por uma mãe milionária a seu filho também milionário, mas que queria virar presidente dos Estados Unidos. Ao saber do desejo, a mãe teria dito (cito de memória): isto (ser presidente dos EUA) é tarefa para nossos empregados

Noutros termos: a força da classe capitalista reside, em última análise, nos seus recursos econômicos.  Já a força da classe trabalhadora reside na sua organização coletiva. 

Portanto, a trajetória de Lula não é a saga de um indivíduo. É a saga de uma classe social, ou pelo menos de uma parte desta classe. 

Portanto, a frase “o Lula que conquistou o poder pelo voto era excepcional” nos conduz para o lugar errado, pois não foi Lula-pessoa física que ganhou as eleições, foi Lula-pessoa jurídica.

Infelizmente, não apenas Brum, mas muitos petistas e lulistas acreditam no contrário. 

Não percebem, ou não tiram todas as consequências do fato de que as características “excepcionais” de Lula foram produto da luta política e social desenvolvida por dezenas de milhões de trabalhadores e de trabalhadoras, desde o final dos anos 1970. 

E acabam acreditando na seguinte afirmação, feita por Brum: “sua origem e percurso levavam uma enorme novidade ao poder central de um dos países mais desiguais do mundo, a ideia de que aquele que é considerado o melhor deve ser o escolhido para governar atravessa a política e o conceito de democracia”. 

Releiam a frase acima: a enorme novidade na vitória de Lula residiria no fato de que o “aquele que é considerado o melhor deve ser o escolhido para governar”, ideia que “atravessa a política e o conceito de democracia”. 

Há aqui assunto para muitos debates. Nas eleições elegemos o “melhor”? A opção da “maioria” dos votantes define o que é “melhor” para todos? Democracia seria então a escolha do “melhor”? 

Aceitas estas premissas, falta pouco para aceitarmos uma definição oligárquica e meritocrática de democracia. 

Brum diz que “não se escolhe um qualquer para comandar o país, mas aquele ou aquela em que se enxergam qualidades que o tornam capaz de realizar a esperança da maioria”. 

Isto pode ser aceito como justificativa individual para o voto dado por cada um de nós. 

Mas quando consideramos a questão não do ponto de vista subjetivo, individual, mas sim do ponto de vista de 135 milhões de brasileiros e brasileiras, de distintas origens sociais, a pergunta que não quer calar é: melhor para quem? Afinal, os que votaram em Collor, Fernando Henrique, Serra, Alckmin, Aécio e Bolsonaro também achavam que estavam votando no “melhor”.

Brum utiliza este raciocínio acerca do “melhor” para concluir que, ao eleger Lula, o excepcional, teríamos eleito o melhor. Logo, “neste sentido, não havia novidade”. 

Se “neste sentido” não havia novidade, posso concluir que antes (na eleição de FHC e de Collor) também não havia “novidade”. Portanto, se tomarmos o que está escrito, o que Brum está afirmando é que se Lula fosse um medíocre, alguém que não tivesse feito nada de excepcional, sua eleição seria uma grande novidade. Mas como ele era excepcional, então não havia novidade. 

Assumida esta premissa, a conclusão só pode ser aquela que vem a seguir: “Neste ponto do texto, Brum afirma que “quando parte das elites se sentiu pressionada a dividir o poder (para manter o poder), e depois da Carta ao Povo Brasileiro assinada por Lula garantindo a continuidade da política econômica, era o excepcional que chegava ao Planalto pelo voto”.

Não é genial? O “excepcional” chegou ao “poder” graças a uma aliança com as elites. 

E, bingo, Lula é empurrado para o lado das elites. 

Com este raciocínio torto, se consegue ao mesmo tempo fulanizar uma trajetória coletiva; banalizar um episódio transcendental, que foi a vitória da classe trabalhadora nas eleições presidenciais de 2002; e magnificar artificialmente a vitória de Bolsonaro. 

Brum diz que o “que a chegada de Lula ao poder fez pelo Brasil e como influenciou o imaginário e a mentalidade dos brasileiros é algo que merece todos os esforços de pesquisa e análise para que se alcance a justa dimensão. Mas grande parte já foi assimilada por quem viveu esses tempos. Os efeitos do que Lula representou apenas por chegar lá sequer são percebidos por muitos porque já foram incorporados. Já estão. Como disse uma vez o historiador Nicolau Sevcenko (1952-2014), em outro contexto:  ‘Há coisas que não devemos perguntar o que farão por nós. Elas Já fizeram’.”

O parágrafo acima transcrito é muito curioso, porque parece um elogio, mas no fundo é um epitáfio. E do ponto de vista histórico, parte do que é dito nele é falso. Basta lembrar das contínuas e contraditórias interpretações feitas acerca da chamada Era Vargas.  

Ademais, é um erro imenso admitir que “grande parte já foi assimilada por quem viveu esses tempos”, no exato momento em que o governo Bolsonaro está usando a máquina do Estado não apenas para destruir materialmente, mas também espiritualmente tudo o que diga respeito ao PT, a Lula, a esquerda. Mas é compreensível que Brum diga isto. Afinal, como ela já disse noutra oportunidade, o PT é passado.

Brum também fala de Marina. Diz que “Marina Silva, derrotada nas últimas três eleições consecutivas, em cada uma delas perdendo uma fatia maior de capital eleitoral, seria outra representante inédita de uma parcela da população que nunca ocupou a cadeira mais importante da República. Diferentemente de Lula, como já escrevi neste espaço, Marina encarna um outro amplo segmento de brasileiros, muito mais invisível, representado pelos povos da floresta. Carrega no corpo alquebrado por contaminações e também por doenças que já não deveriam existir no Brasil uma experiência de vida totalmente diversa de alguém como Lula e outros pobres urbanos”. 

Mas para Brum, este também é “o passado de Marina”. 

Segundo Brum, “a mulher negra, que se alfabetizou aos 16 anos e trabalhou como empregada doméstica depois de deixar o seringal na floresta amazônica, empreendeu uma busca pelo conhecimento acadêmico e hoje fala mais como uma intelectual da universidade do que como uma intelectual da floresta. Também deixou a Igreja Católica ligada à Teologia da Libertação para se converter numa evangélica genuína, daquelas que vivem a religião no cotidiano em vez de instrumentalizá-la nas eleições, como tantos pastores neopentecostais. Se Marina tivesse conseguido chegar ao poder, ela representaria toda essa complexa trajetória, mas também encarnaria uma excepcionalidade entre os seus. Quantas mulheres com o percurso de Marina se tornaram Marina?”

Ao falar de Marina, Brum deixa ainda mais claro um aspecto implícito de seu raciocínio: alguém pertencente a classe trabalhadora, quando esta classe trabalhadora está num momento em que consegue altos níveis de organização (PT, CUT, MST), pode ser chamado a ocupar postos de liderança na organização. E ao fazer isso, adquire “modos” que não são típicos do conjunto da classe, nem mesmo de sua maioria. E isso converte essa pessoa em uma “excepcionalidade entre os seus”.
  
A conclusão deste jeito de expor a coisa é que só os excepcionais chegam lá. Portanto, povos da terra, fodidos e mal pagos, plebe rude e ignara, massas e classes laboriosas, desistam de querer chegar ao “poder”: lá só chegam os filhos da elite, os excepcionais ou... Bolsonaro!!!! É muito ilustrativo da confusão a que chegamos, o fato de existir gente de esquerda, inclusive petistas e lulistas, que acha interessante este tipo de raciocínio, sem perceber o que está por debaixo do tapete.

Vejamos agora o que diz Brum acerca de Bolsonaro.

Segunda parte

Brum começa assim: “Jair Bolsonaro, filho de um dentista prático do interior paulista, oriundo de uma família que poderia ser definida como de classe média baixa, não é representante apenas de um estrato social. Ele representa mais uma visão de mundo. Não há nada de excepcional nele. Cada um de nós conheceu vários Jair Bolsonaro na vida. Ou tem um Jair Bolsonaro na família”.

Eu realmente gosto, sem ironia, da maneira como Brum escreve. Não por concordar, mas porque me encanta o jeito leve com que ela foge de discussões essenciais. 

Por exemplo: ela diz que Bolsonaro é oriundo de “uma família que pode ser definida como de classe média”. Isto é exato e explorar este filão é essencial para entender o que ocorreu no Brasil, em 1964, em 1989, em 2002, em 2005 e em 2016. 

Mas o que faz Brum? Ao contrário de explorar este filão, diz que Bolsonaro não é representante “apenas de um estrato social. Ele representa mais uma visão de mundo. Não há nada de excepcional nele”.

Mas de quem é essa “visão de mundo” de que Bolsonaro é representante? Esta inveja dos de cima, esta raiva/pânico diante dos de baixo, não seriam por acaso traços essenciais da visão de mundo dos chamados setores médios??

Ademais, como não reconhecer que Bolsonaro é excepcional exatamente por que explicita, sem nenhum tipo de mediação, todas as neuras e preconceitos dos setores médios?

Para tentar sustentar o argumento segundo o qual Bolsonaro não teria “nada de excepcional”, Brum afirma que “Cada um de nós conheceu vários Jair Bolsonaro na vida. Ou tem um Jair Bolsonaro na família”. Certamente isto é verdade e os 57 milhões de votos recebidos por Bolsonaro confirmam isso. Mas isto significa que Bolsonaro seja mediano?

Dito de outro jeito: o Brasil tem 200 milhões de habitantes e cerca de 135 milhões de eleitores. Destes, 57 milhões votaram em Bolsonaro, 47 milhões votaram em Haddad e 31 milhões escolheram não votar em nenhum dos dois. 

Dizer que Bolsonaro não é excepcional, afirmar que ele é o “homem mediano”, significa concordar que sua postura simultaneamente fascista + racista + homofóbica + misógina constituem o "normal" do povo brasileiro. 

E isto simplesmente não é verdade. Nem sua posição é mediana, nem ele é mediano. Claro, ele é medíocre, no sentido português da palavra, mas suponho que nisto estamos todos de acordo, ele inclusive.

O pior neste raciocínio acerca do “mediano” é que eles reforça o discurso do próprio Bolsonaro e contribui para legitimar sua (dele) posição.  E, ao mesmo tempo, se aceito como verdadeiro o raciocínio, coloca a esquerda diante de uma armadilha política, como buscaremos demonstrar a seguir.

Segundo Brum, “ainda que tenha havido alguns presidentes apenas medianos durante a República, eram por regra homens oriundos de algum tipo de elite e alicerçados por ela. Lula foi exceção. E Bolsonaro é exceção. Mas representam opostos. Não apenas por um ser de centro esquerda e outro de extrema direita. Mas porque Bolsonaro rompe com a ideia da excepcionalidade. Em vez de votar naquele que reconhecem como detentor de qualidades superiores, que o tornariam apto a governar, quase 58 milhões de brasileiros escolheram um homem parecido com seu tio ou primo. Ou consigo mesmos”.

De fato, Bolsonaro e Lula são opostos. Mas no quê são opostos? Por suas posições políticas, diz Brum. Mas acrescenta: “porque Bolsonaro rompe com a ideia da excepcionalidade”. 

Como comentamos antes, esta “ideia” de que numa eleição se escolhe o “melhor” é uma opção teórica de Brum. Mas o tema principal aqui é o da “excpecionalidade”: Lula seria expepcional, já Bolsonaro seria “um brasileiro igualzinho a voce”.

A frase a seguir deixa ainda mais claro o problema posto, na minha opinião, neste tipo de análise: “Em vez de votar naquele que reconhecem como detentor de qualidades superiores, que o tornariam apto a governar, quase 58 milhões de brasileiros escolheram um homem parecido com seu tio ou primo. Ou consigo mesmos”.

Na boa, quanto de democrático-popular existe neste conceito de democracia adotado por Brum, segundo o qual se considera positivo que alguém vote em outro alguém porque este seria “detentor de qualidades superiores”? 

Que diacho de concepção democrática é esta, que acha que só quem tem “qualidades superiores” seria “apto a governar”?

Ao invés de demonstrar que Bolsonaro encarnou um personagem, cujo objetivo era justamente capitalizar o sentimento antipolítica tradicional de uma parte dos brasileiros, Brum adota um descrição que torna Bolsonaro um “brasileiro igualzinho a voce” e converte parte da esquerda em defensora de uma concepção oligárquica de democracia.

Óbvio que a esquerda que aceita este raciocínio está diante de uma armadilha. 

Nesta armadilha caíram os autores de alguns memes feitos por apoiadores da campanha Haddad, exaltando seu currículo acadêmico e contrapondo-o a mediocridade de Bolsonaro. 

Na mesma armadilha caiu Fernando Henrique, na campanha eleitoral para prefeito de São Paulo em 1985, quando facilitou a Janio Quadros incorporar a condição de expressão legítima do povo.

E caiu Cristovam Buarque, quando achou que desmoralizava intelectualmente Roriz num debate, sem perceber que estava cavando seu túmulo nas eleições. 

Mas vamos ao grão: será verdade que 58 milhões de brasileiros (e brasileiras, acrescento) escolheram um homem parecido “consigo mesmos”? 

Há 58 milhões de brasileiros e de brasileiras que compartilham o conjunto de opiniões de Bolsonaro, que possuem uma trajetória política similar a de Bolsonaro? 

Se fosse assim, por qual motivo todas as pesquisas indicam que – se a candidatura de Lula não tivesse sido ilegalmente tirada do páreo—parte destes 58 milhões votaria em Lula e não em Bolsonaro?

Por qual motivo estas pessoas, se Lula fosse candidato, desistiriam de votar em alguém parecido “consigo mesmas” e passariam  a votar em alguém “excepcional”?

A argumentação de Brum não explica isso. E não explica porque, na correta tentativa de explicar algo importante (a criação de um personagem capaz de construir uma maioria eleitoral no povão), ela oscila (na verdade, mais que oscila) entre perceber que estamos diante de um personagem e afirmar que estamos diante de alguém autêntico.

Por exemplo: Brum diz que essa “disposição dos eleitores”, ou seja, a de votar em alguém “parecido”, foi “bastante explorada pela bem sucedida campanha eleitoral de Bolsonaro”, que apostou na vida “comum”, “falseando o cotidiano prosaico, o improviso e a gambiarra nas comunicações do candidato com seus eleitores pelas redes sociais”. Bolsonaro não deveria parecer melhor, mas igual. Não deveria parecer excepcional, mas ‘comum’.”

Na passagem acima e noutras citadas de forma excelente por Brum, somos apresentados explicitamente a uma falsificação.

Mas na passagem a seguir, Brum diz que "o grande achado [de Bolsonaro] foi se eleger deputado e conseguir continuar se elegendo deputado. Em seguida, colocar todos os filhos no caminho dessa profissão altamente rentável e com muitos privilégios. A ‘família’ Bolsonaro tornou-se um clã de políticos profissionais que, nesta eleição, conseguiu um número assombroso de votos. Mas não pela excepcionalidade de seus projetos e ideias”.

Aqui voltamos ao assunto da “excepcionalidade”. Brum não aceita que Bolsonaro seja “excepcional”, porque segundo os critérios de Brum a excepcionalidade dependeria dele ter apresentado “projetos e ideias”. Como Brum, muita gente mede os outros pelos seus critérios pessoais, fortemente marcados por seus preconceitos de classe. Aí, claro, subestima os outros. 

Do meu lado, acho o oposto: Bolsonaro é uma excepcional expressão de um setor político e social brasileiro. E por isso ele e só ele tinha, neste momento, o perfil ideal para ocupar a dupla brecha aberta entre 2016 e 2018, de um lado pela perseguição contra Lula e o PT, de outro lado pelo desmanche da direita normal.

Brum tem dificuldade de admitir isto, porque seus critérios são... elitistas. 

Por exemplo: ela o chama de “bufão” e diz que, por isso, “até um ano atrás poucos acreditavam que poderia se eleger presidente. Parecia impossível que alguém que dizia as barbaridades que ele dizia poderia ser escolhido para o cargo máximo do país”. 

Parecia impossível, para quem acha que a democracia é para escolher “os melhores”. 

Mas para quem acha que a sociedade é dividida em classes e sabe que o “melhor” não quer dizer o mesmo para pessoas de diferentes classes sociais, a chegada de um bufão à presidência da República era uma das possibilidades inscritas no momento em que os tucanos decidiram, no dia seguinte ao segundo turno de 2014, que não correriam o risco de uma quinta derrota presidencial consecutiva frente ao PT.

Brum argumenta, a posteriori, que a descrença nas chances de Bolsonaro vinha, por exemplo, do fato de que “se deixou de perceber” que “quase todos tinham um tio ou um primo exatamente como Bolsonaro. Logo essa evidência ficou clara nos almoços de domingo ou nas datas festivas da família. Mas ainda assim parecia apenas uma continuação do que as redes sociais já tinham antecipado, ao revelar o que realmente pensavam pessoas que até então pareciam razoáveis. Deixou-se de enxergar, talvez por negação, o quanto esse contingente de pessoas era numeroso. Os preconceitos e os ressentimentos recalcados em nome da convivência eram agora liberados e fortalecidos pelo comportamento de grupo das bolhas da internet. As redes sociais permitiram “desrecalcar” os recalcados, fenômeno que tanto beneficiou Bolsonaro”.

Novamente, tiro o chapéu para Brum. A chegada de Bolsonaro à presidência da República, resultante de um golpe de Estado, da interdição de Lula e do desmanche da direita tucana, é convertido numa espécie de revolução dos tios chatos & saudosos da ditadura.

E como todo mundo conhece um tio (ou uma tia) assim, o argumento de Brum parece a mais pura expressão da verdade. Mas pergunto: estes tios não existiam antes? Estavam adormecidos e foram despertos pelos zaps e facebooks? Se multiplicaram mais que o normal nos últimos meses e anos? 

É óbvio que sempre existiu no Brasil um setor muito conservador, de extrema direita. É óbvio que este setor sobreviveu ao final da ditadura, porque os sucessivos governos democráticos acharam melhor olhar para o outro lado. E também é óbvio que as chamadas redes sociais cumpriram um papel importante na campanha eleitoral. 

Mas é isto que explica a eleição de Bolsonaro? 

O grande erro dos que subestimaram as chances de Bolsonaro foi não perceber que tinham um tio de extrema direita? 

Por acaso não há precedentes, na história do Brasil e do mundo, muito antes de que Mark Zuckerberg tivesse nascido, de presidentes eleitos com base numa demagogia populista de direita, usando as ferramentas tecnológicas que havia na época?

Parte três

Antes de continuar, um alerta. 

As críticas que faço não querem dizer que não considere o texto de Brum muito interessante. Pelo contrário, acho que ele aborda aspectos, temas, questões que devem ser estudadas com atenção. E várias de suas opiniões, hipóteses, indicações são muito úteis para construir uma interpretação que seja, ao mesmo tempo, cientificamente correta e politicamente útil.

Entretanto, discordo do conjunto da obra. Acho que tomada de conjunto, a narrativa construída por Brum não é cientificamente correta, no sentido de descrever adequadamente o fenômeno; nem é politicamente útil, no sentido de fornecer bases para a elaboração de uma linha adequada para enfrentar o governo Bolsonaro, a extrema direita, o grande capital e seus sócios estrangeiros.

Detalhe: Brum não tem obrigação alguma de ser "politicamente útil" para quem pensa como eu. Pelo contrário. Do ponto de vista dela, sua análise faz todo o sentido e é totalmente coerente com os ataques e críticas que ela faz, noutros de seus textos, contra o PT e Lula. 

Um exemplo de narrativa instigante, mas cientifica e politicamente inadequadas, está aqui: “Bolsonaro representa, sim – e muito – um tipo de brasileiro que se sentia acuado há bastante tempo. E particularmente nos últimos anos. E que estava dentro de cada família, quando não era a família inteira” (...) Sugiro algumas hipóteses para compreender como o mediano entre os medianos se tornou presidente do Brasil. As pesquisas de intenção de voto mostraram que Bolsonaro era o preferido especialmente entre os homens e especialmente entre os brancos e especialmente entre os que ganhavam mais. (...) O novo presidente representa, principalmente, o brasileiro que nos últimos anos sentiu que perdeu privilégios. Nem sempre os privilégios são bem entendidos. Não se trata apenas de poder de compra, o que é determinante numa eleição, mas daquilo que dá chão a uma experiência de existir, aquilo com que faz com que aquele que caminha se sinta em terra mais ou menos firme, conheça as placas de sinalização e entenda como se mover para chegar onde precisa. Várias irrupções perturbaram esse sentimento de caminhar em território conhecido, em especial para o homem branco e heterossexual”. 

Paro por aqui a transcrição, para fazer uns comentários. 

Primeiro, eu acho que a empatia pode e deve ser utilizada, na análise dos comportamentos políticos e sociais. 

Nesse sentido, acho que pode ser útil trabalhar com esta hipótese segundo a qual um “tipo de brasileiro” – o homem branco heterossexual—estaria se sentindo “acuado”, estaria sentindo estar perdendo privilégios, estaria se sentindo ameaçado pelas mulheres e pelos homossexuais etc.

E acho que neste quesito, Bolsonaro é totalmente autêntico. 

Quem leu suas declarações a respeito não pode deixar de perceber que – diferente de Serra falando contra o aborto em 2010 – Bolsonaro tem sua alma atormentada por conflitos profundos e mal resolvidos.

Mas por acaso o tipo de fenômeno apontado surgiu em 2018? E qual foi, verdadeiramente, a importância desta pauta em 2018? Estamos diante do tema de fundo da campanha ou estamos diante de uma exitosa operação diversionista?

Explico: se os homens brancos heterossexuais votaram em Bolsonaro efetivamente por estarem se sentindo acuados, se foi esta a pauta que decidiu o resultado da eleição, se o número destas pessoas é capaz de decidir uma eleição, então a esquerda favorável aos direitos das mulheres, dos negros e dos homossexuais estaria diante de uma situação de difícil solução. 

Há efetivamente setores da esquerda que colocam a situação nestes termos e já começam a reduzir seu compromisso com os direitos humanos (porque, falemos claro, no fundo é disso que se trata).

Para explicitar melhor a tal situação de difícil solução, farei uma comparação: se uma maioria absoluta das pessoas realmente votam neste ou naquele candidato por motivações religiosas, então a esquerda estaria condenada a abandonar suas posições laicas, ou a desistir das disputas eleitorais, ou teria que esperar que, através da luta interna aos diferentes grupos religiosos, predominasse uma postura menos fundamentalista.

Um dos riscos contidos no tipo de análise feita por Brum é nos conduzir a este tipo de beco sem saída. Que alguns tentaram resolver, no passado recente, apoiando uma neofundamentalista vinda da esquerda. E outros tentaram resolver fazendo alianças com empresas-disfarçadas-de-igrejas.

Mas voltemos ao texto de Brum, onde podemos ler o seguinte: “As mulheres disseram a eles com uma ênfase inédita que não seria mais possível fazer gracinhas nas ruas nem assediá-las nos trabalho ou em qualquer lugar. A violência sexual foi exposta e reprimida. A violência doméstica, quase tão comum quanto o feijão com arroz (“um tapinha não dói”) foi confrontada pela Lei Maria da Penha. Afirmar que uma “mulher era mal comida” se tornou comentário inaceitável de um neandertal”.

Juro que eu gostaria de ter vivido (e de voltar a viver) no pais descrito no parágrafo acima. Infelizmente, no Brasil em que eu vivo, as coisas nunca foram assim. 

Para começo de conversa, “as mulheres” nunca agiram como um bloco único em defesa de seus direitos. A violência sexual e a violência doméstica continuam rolando, de maneira brutal. E embora haja “homens brancos heterossexuais” que possam estar se sentindo “acuados” (Bocage explica com exatidão o que quer dizer o termo), a verdade  é que a maioria das mulheres continua sendo brutalizada por uma violência cotidiana.

Brum prossegue falando dos LGBTI, que “se fizeram mais visíveis na exigência dos seus direitos, entre eles o de existir, e passaram a denunciar a homofobia e a transfobia. Figuras públicas como Laerte Coutinho anunciaram-se como mulher sem fazer cirurgia para tirar o pênis. O que há entre as pernas já não define ninguém. E a posição de homem heterossexual no topo da hierarquia nunca foi tão questionada como nos últimos anos”.

Admitamos, com a máxima empatia, que o parágrafo acima sintetiza o sentimento de alguns. Mas por acaso sintetiza a realidade? 

Não acredito necessário citar aqui a situação das mulheres, negros e negras no mercado de trabalho, nem citar os índices de violência contra os LGBTI. 

Imagino que todos têm a mais plena certeza de que a existência de direitos formais e a existência de um clima de tolerância em alguns setores, não alteraram a realidade de conjunto. 

O curioso é que, ao descrever com a máxima empatia os sentimentos de uma parcela dos homens brancos heterossexuais, Brum acaba passando a impressão de que houve uma completa inversão na situação objetiva; e, pior, converte a posição de parte (significativa, mas parte) dos “homens brancos heterossexuais” em posição do conjunto deste “tipo de brasileiro”.  

E, por um passe de mágica, Bolsonaro deixa de ser porta-voz de uma “minoria grande” e passa a ser representante legítimo de uma maioria. 

Claro, isto não é dito por Brum, mas é para aí que conduz o tipo de narrativa que ela constrói. Ela se dá conta disto? Ela concorda com isto? Acredito sinceramente que não.

Mas uma consequência política (desastrosa) deste tipo de análise poderia muito bem ser a seguinte: a esquerda, se quiser ser representante das maiorias, deve deixar no armário a defesa dos direitos humanos. Como já disse, é por aí que alguns setores tentam escapar do beco sem saída para o qual nos conduz este tipo de análise.

Brum diz com todas as letras que “o que a maioria dos homens entendia como direito – falar o que bem entendesse, especialmente para uma mulher – já não era possível”. 

Suponhamos que isso seja verdade (que uma “maioria” dos homens entendia, digamos entre 2003 e 2016, como “direito” falar “o que bem entendesse” especialmente para uma mulher). 

E esqueçamos, também para não complicar a discussão, de algumas pesquisas que indicam que há um conservadorismo entre as mulheres as vezes maior do que entre os homens. 

E vamos direto ao grão: estamos diante de um fenômeno “espontâneo” (homens se sentindo acuados por mudanças) ou estamos diante de uma fabricação, de uma manipulação, de uma hipertrofia artificial de certas características, em decorrência de escolhas feitas pela classe dominante na luta política?

Para deixar mais claro, um exemplo: a misoginia foi ou não um elemento utilizado, de maneira explícita, pela direita e extrema-direita como parte da campanha para derrubar a presidenta Dilma Rousseff?

A questão é chave, pelo seguinte: se estamos diante de um fenômeno espontâneo, é quase uma situação sem saída. Mas se estamos diante de um fenômeno construído, então existe saída política para o problema.

Saída que inclui defender com ênfase os direitos humanos e não se esconder debaixo da cama, toda vez que alguém da direita fala algo reacionário.

Brum diz que o “politicamente correto” é “interpretado” como “agressão direta a privilégios que eram considerados direitos”. Penso que o uso que ela faz do termo “interpretado” possui um sentido ambíguo. Excesso de empatia pode gerar cumplicidade. Mas digamos que isto é impressão subjetiva minha e passemos ao que me parece seguro e pior: toda a descrição que Brum faz omite a existência e o papel desempenhado pelos meios de comunicação de massa, pela cúpula das empresas-disfarçadas-de-igrejas, peloa políticos de direita, pela cúpula das forças armadas e do judiciário. 

É como se a ideologia da classe dominante tivesse surgido e se multiplicado, entre os trabalhadores pobres, por geração espontânea.

Vejam o seguinte trecho: “Para um homem pobre, seja ele branco ou negro, tripudiar sobre gays e/ou mulheres na vida cotidiana pode ser a única prova de ‘superioridade’ enquanto enfrenta o massacre diário de uma jornada extenuante e mal paga”. 

O capitalista entra nesta história como o sujeito oculto que paga salários baixos por jornadas extenuantes. Mas o capitalista parece não ter nada que ver com as opções ideológicas adotadas pelos pobres (e não só pelos homens, diga-se). 

Brum não desconhece, óbvio, a “assombrosa desigualdade social” existente em nosso país. Mas ela não explicita, no seu texto, um fato já comprovado: a extrema-direita e a direita estão na origem e no fomento cotidiano das ideologias, discursos e visões de mundo que dividem os pobres entre si, jogando trabalhadores brancos contra trabalhadores negros, trabalhadoras mulheres contra trabalhadores homens, trabalhadores LGBTI contra trabalhadoras heterossexuais e assim por diante.

Curiosamente, ao omitir a classe dominante, Brum não percebe que ela acaba convertendo Bolsonaro num cara excepcional, à medida que teria sabido, sozinho, interpretar e vocalizar as angústias do brasileiro “acorrentado” pelo politicamente correto.

Ao não falar da classe dominante, Brum tampouco fala de outro aspecto essencial no discurso de Bolsonaro: o ultraliberalismo. Assunto certamente menor, pois muito mais relevante é saber que os brancos pobres votaram em Bolsonaro para ter o privilégio de “voltar a ter assunto na mesa de bar – ou o de não ser reprimido pela sobrinha empoderada e feminista no almoço de domingo”.

É curioso, porque Brum critica os “privilégios de raça, tão enraizados quanto os privilégios de classe e de gênero no Brasil”, mas não fala dos verdadeiramente privilegiados. Esses somem de sua narrativa. 

No seu texto, a tragédia da eleição de Bolsonaro não inclui personagens das elites capitalistas. As elites que comparecem no texto de Brum vem dos setores médios. Aqueles atingidos, por exemplo, pela “PEC das Domésticas”. Já os que se beneficiaram do fim de toda legislação trabalhista, aqueles que se beneficiarão pela destruição completa da previdência pública, estes não aparecem.

Sumindo com a classe dos capitalistas, Brum pode falar tranquilamente dos “direitos de gênero, classe e raça”, do “ódio dos bolsonaristas”, de uma visão de mundo que “justificaria qualquer violência”, como se isso fosse privativo de parcela dos setores médios tradicionais.

Se levasse em consideração este detalhe – a existência da classe dos capitalistas— o que fala Brum seria muito útil, pois nos levaria a perguntar de que forma a classe capitalista dominante age para estimular um conflito entre os diferentes setores das classes trabalhadoras. E ajudaria a esquerda a adotar medidas que serviriam para, ao mesmo tempo, reduzir as desigualdades entre os de baixo, sem permitir o crescimento da influência dos de cima.

Exemplo: se a PEC das domésticas fosse acompanhada de um crescimento da tributação dos capitalistas, que permitisse ampliar a educação e saúde pública de qualidade para os trabalhadores de altos salários, a reação da mal denominada classe média contra a PEC das domésticas teria sido menor.

Ao retirar da trama os capitalistas, o que sobra é uma disputa no andar de baixo. Pobres contra pobres, médios contra pobres. E a pauta parece dominada pela “sexualidade”, pela “família”, pela “religião” etc. 

Brum, portanto, não fala do essencial (a luta dos capitalistas contra os trabalhadores); e, em segundo lugar, não demonstra como as demais questões são manipuladas como parte desta luta.

Com isso, ela aceita como essencialmente verdadeiro o personagem Bolsonaro. 

De sua narrativa, surge um Bolsonaro que está travando uma batalha em grande medida “cultural” pela volta dos bons velhos tempos. Ou, como diria Regina Duarte, coisa de “homem dos anos 1950”.

Aceita esta versão, perde-se qualquer conexão orgânica entre esta visão de mundo e a batalha dos capitalistas contra as classes trabalhadoras, no sentido de implementar um programa ultraliberal e de subordinação aos interesses dos Estados Unidos. 

E a “nova direita” passa a ser uma corrente que “compreende muito bem os anseios de uma parcela dos homens desesperados desse tempo”.

Mesmo quando esta “nova direita” deixa claro qual é a sua – por exemplo, quando ataca o marxismo, o socialismo e o comunismo--, Brum não escuta e chega a dizer o seguinte: “chamam todos aqueles que apontam a necessidade de limites de ‘comunistas’ ou ‘esquerdistas’, como se ambas as palavras significassem uma espécie de pecado capital”.

Neste sentido, acho que Brum deveria levar esta “nova direita” mais a sério. Eles enxergam socialismo e comunismo em tudo, porque têm medo. E os que convocaram a “nova direita” aqui no Brasil, assim como os que convocaram a nova direita na Itália dos anos 20 e na Alemanha dos anos 30, sabem do que têm medo.

Mas Brum, que até então foi toda empatia, neste momento prefere desqualificar: “Como sentiam-se oprimidos por conceitos que não compreendiam, os bolsonaristas descobriram que poderiam dar às palavras o significado que lhes conviesse porque o grupo os respaldaria. E, graças às redes sociais, o grupo os respalda. O significado das palavras é dado pelo número de ‘curtir’ nas redes sociais. Esvaziadas de conteúdo, história e consenso, esvaziadas até mesmo das contradições e das disputas, as palavras se tornaram gritos, força bruta”.

Certamente há bolsonaristas que são pura ignorância, no sentido vulgar do termo. Mas é de uma arrogância sem par não perceber que a extrema direita brasileira dispõe de uma intelectualidade hiperativa, fartamente financiada, que está emitindo opinião sobre tudo e sobre todos. E que sabe muito bem o que é socialismo e comunismo. 

E que percebe – de uma forma que Brum, ao menos neste texto, não quer reconhecer – por qual motivo estimular a luta dentro dos pobres é tão útil para o domínio dos ricos. 

Não apenas em geral, mas neste momento em particular, um dos caminhos para rebaixar a participação das classes trabalhadoras nas riquezas geradas, é impondo uma redução ainda maior para alguns segmentos da classe. Por isso o racismo e a misoginia, por exemplo, ganham reforço. Não se trata de um retorno ao “old time”, mas de uma “ponte para o futuro”.

Brum não percebe isto. Seu foco é a luta que se trava entre os pobres. Nessa luta, ela toma partido contra o “Macho. Branco. Sujeito Homem”. Mas não fala dos grandes capitalistas.

Parte quatro

No final do seu texto, Brum dá sinais de que vai adotar um ponto de vista mais amplo, que considere o papel das elites capitalistas na ascensão de Bolsonaro. Vejamos como ela se sai.

Brum diz que “mas é este brasileiro que chega ao poder com Bolsonaro? Em parte sim. Mas em parte não”. Apresenta Bolsonaro como “uma criança voluntariosa e mal educada que precisa da aprovação dos maiores”. E afirma que, “ao vislumbrarem que Bolsonaro poderia ganhar a eleição, diferentes grupos das elites se aproximaram e respaldaram sua candidatura”. 

E que grupos seriam esses? 

“Há Paulo Guedes, o ultraliberal ambicioso e intoxicado pela própria importância que quer marcar a história, comandando o superministério da Economia. Há Sergio Moro, o juiz que mostrou que pode violar a lei caso ela perturbe seu projeto pessoal, porque acredita que seu projeto pessoal é público e acredita saber o que é melhor para a nação, como acreditam todos os que se creem superiores ou mesmo super-heróis”. 

“Há os representantes do “agronegócio”, ramo que no Brasil se confunde com crimes como grilagem (roubo) de terras públicas e conflitos agrários causadores de dezenas de assassinatos a cada ano. Fiadores do governo de Michel Temer (MDB) e também da candidatura de Bolsonaro, os ruralistas não apenas estão no governo, mas “são” o governo”.

“No escalão mais subalterno, há um ministro do Meio Ambiente condenado por violar o meio ambiente, um ruralista escolhido pelos ruralistas. Há uma ministra da cota evangélica que vai cuidar de temas tão amplos como direitos humanos, mulheres e indígenas, a partir de uma leitura literal da Bíblia. Há um ministro de Cidadania que será responsável também pela área da cultura, mas já afirmou não entender nada da área”.

“Há ainda os ministros da cota afetiva de Bolsonaro, como o chanceler Ernesto Araújo, que assumiu para si a tarefa de construir a base intelectual da ideologia de Bolsonaro. (...) E há o ministro da Educação que acredita que o golpe que levou o Brasil a 21 anos de ditadura deve ser comemorado (...)".

“E há, finalmente, aquele que é talvez o grupo mais significativo, composto por sete militares ocupando postos chaves no governo. Nem sempre esses grupos concordam sobre o que é melhor para o Brasil. É provável que em alguns pontos possam discordar radicalmente. Como então o garoto Bolsonaro vai lidar com a disputa de gente grande?”

Paro por aqui a transcrição, para fazer alguns comentários.

Primeiro, é muito sintomático que na síntese acima se omita qualquer referência ao grande capital financeiro e as multinacionais. O único setor do grande capital que comparece explicitamente na relação de Brum é o agronegócio. Mas atenção: o termo vem entre aspas, substituído em seguida por ruralistas sem aspas, com exemplos que indicam que Brum diferencia entre o velho latifúndio que grila terras e os "modernos". 

Em segundo lugar, e mais importante para o que estamos discutindo aqui, a conexão entre esses setores e Bolsonaro se dá meio que por acidente. Não se acentua a conexão orgânica, muito real, estabelecida especialmente a partir do final da eleição presidencial de 2014. 

Em terceiro lugar, os militares são apenas citados. Notem que é o único grupo que não é acompanhado por adjetivos, abundantes até mesmo no caso de Moro.

Em quarto lugar, silêncio total sobre os meios de comunicação.

Finalmente, destaco o seguinte trecho de Brum: "nem sempre esses grupos concordam sobre o que é melhor para o Brasil. É provável que em alguns pontos possam discordar radicalmente. Como então o garoto Bolsonaro vai lidar com a disputa de gente grande?”

Não é interessante? É como se a "criança" Bolsonaro não tivesse opinião sobre os interesses em jogo. É como se ele realmente só tivesse opinião sobre os temas envolvendo direitos humanos. 

Ao terminar seu texto, portanto, Brum não consegue tratar de forma adequada a relação entre as instituições de Estado, as estruturas midiáticas, a classe dos capitalistas e Bolsonaro.

A análise vira uma descrição, a relação vira acidental (“ao vislumbrarem que Bolsonaro poderia ganhar a eleição, diferentes grupos das elites se aproximaram e respaldaram sua candidatura”).

E Bolsonaro deixa de ser um instrumento de uma mega-operação política e passar a ser uma "criança" envolvida num jogo que ele não entende, por que seria um "medíocre" que "busca desesperadamente a aprovação dos adultos".

Longe de mim querer minimizar as contradições que já existem e vão continuar existindo do lado de lá. Mas acho que a descrição feita por Brum é demasiado otimista, no sentido de superestimar os conflitos na coalizão governante. 

Brum minimiza, porque sua narrativa não começa no lugar certo. E o lugar certo a partir do qual esta história deve ser contada é o da constituição de uma coalizão golpista, com o objetivo de fazer do Brasil um aliado integral dos EUA, recuperar totalmente o governo para uma política neoliberal e, principalmente, destruir as condições que permitiram à esquerda brasileira converter-se em alternativa de governo e sonhar em ser alternativa de poder.

Quando é contada a partir deste ponto de partida, o apoio das elites capitalistas à candidatura Bolsonaro não é uma coincidência, nem ele parece ser um brasileiro mediano. 

Brum termina seu texto com um parágrafo dos mais geniais. 

O tal parágrafo começa dizendo que "a experiência de Brasil que agora se inicia é fascinante. Mas só se vivêssemos em Marte e se a maior floresta tropical do planeta não estivesse ameaçada". 

Ou seja: a ameaça que merece destaque no momento final do texto, é contra a maior floresta tropical do planeta.

O parágrafo segue afirmando que "em algum momento, Jair Bolsonaro se olhará no espelho e verá apenas Fabrício Queiroz, o PM e ex-assessor do filho que não consegue explicar de onde vem o dinheiro que depositou na conta da primeira-dama". 

Ou seja: Bolsonaro seria uma espécie de segunda edição de Collor. Mas Brum desconsidera que quando Collor foi afastado da presidência, havia o PSDB para dar um destino seguro ao neoliberalismo no Brasil. Hoje, se Bolsonaro não der conta da tarefa, o que as elites capitalistas terão como alternativa?

O parágrafo conclui então afirmando que "em algum momento, Jair Bolsonaro poderá se olhar no espelho e verá apenas a imagem mais exata de si mesmo. Assombrado pela verdade que não poderá chamar de “fake news”, ele correrá para as ruas para ouvir os Queiroz gritarem: “Mito! Mito! Mito!”. Mas o grito pode ter sido engolido pela realidade dos dias. Saberemos então, em toda a sua magnitude, o que significa Bolsonaro no poder".

Ou seja: coerente com a "teoria" do "homem mediano", garoto, criança voluntariosa e mal educada, medíocre a busca de aprovação dos adultos, Brum termina seu texto prevendo que o cara vai terminar desmascarado.

Pode ser que termine assim.

Mas até para terminar assim, precisa haver muita resistência, muito enfrentamento, muita oposição.

E  só haverá isto, se tivermos clareza contra o que lutamos.

O texto de Brum, neste sentido, ajuda em alguns detalhes, mas atrapalha muito na visão de conjunto, ao ocultar as relações realmente existentes entre o sujeito Bolsonaro e seus preconceitos individuais, a visão de mundo de parte dos setores médios e as ações dos grandes capitalistas.

Em resumo: nosso problema não está no homem mediano, seja lá o que isto for. Nosso problema está na postura hegemônica na classe dos capitalistas.




2 comentários:

  1. Professor, gostaria de debater com coxinhas ? Se sim, favor acessar o http://coxinhasclub.blogspot.com/ . Grato.

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  2. Este comentário foi removido pelo autor.

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