segunda-feira, 16 de maio de 2016

Tarso Genro: “virtudes e erros”

Repito aqui o que foi dito noutro texto: derrota tem de tudo.

Tem os que dizem não ser hora de fazer balanço. Especialmente se for um balanço que aponte seus próprios erros.

Tem os que afirmam que a culpa é do derrotado. Muitas vezes sem perceber que com isto apenas aliviam para o outro lado.

Tem os que alardeiam ter avisado há bastante tempo o que ocorreria. Às vezes sem dar-se conta de que ter acertado sobre ontem não responde sobre o que fazer amanhã.

Tem os que juram (e os que fingem) não ter nada que ver com isto. O que não deixa de ser engraçado, considerando o papel que alguns jogaram desde 1980.

Tem os que cospem no prato em que comeram. O que em geral lhes custa caro, pois ninguém confia em quem trai.

Tem os que buscam fazer uma crítica honesta, respeitosa, ponderada, profunda e acertada. Mas nem sempre conseguem.

E tem muitos outros casos e tipos, alguns difíceis de denominar.

Vejamos por exemplo Tarso Genro, em particular um texto intitulado Virtudes e erros na questão democrática”, publicado em Sul21 em 16 de maio de 2015 (ver ao final).

Nele é dito que uma reflexão de “fundo” implica em “defender o legado de uma parte da esquerda deste período”, “reestruturar a nossa visão frentista de forma autocrítica” e pensar “uma saída concreta para a crise”, “política e econômica, mais além das resistências de rua que, se não tiverem uma correspondência no plano das disputas eleitorais pelo Governo, ou em direção a uma Constituinte, tendem a declinar”.

Mesmo considerando que o texto não sofreu uma edição, o autor achou por bem citar algumas conclusões fundamentais. Cabe perguntar se algumas ausências, bem como as premissas implícitas, não estão vinculadas à derrota que sofremos, especialmente com a posse do golpista que Tarso denomina de “interino”.

Por exemplo: Tarso diz que os “motivos do afastamento da Presidenta” estão vinculados a “grandes movimentos políticos” que foram “motivados pela luta contra a corrupção”. Sem dúvida estão vinculados. Mas existe vida além dos setores médios. Muito mais relevantes foram os movimentos do grande capital num ambiente de crise internacional; e os movimentos da classe trabalhadora frente à política do segundo mandato Dilma.

Temas que aparecem quando Tarso afirma que “as futuras ações anunciadas por Meirelles-Jucá (...) são medidas que já vinham sendo tentadas pela Presidente Dilma”; “que os ‘remédios’ que o interino pretende para economia (...) não são tão estranhos aos que a Presidenta vinha encaminhando antes do seu afastamento”; que a presença no governo golpista de figuras como Romero Jucá, Blairo Maggi, Henrique Meirelles, Moreira Franco, Padilha e Temer, leva a perguntar “por quais motivos, então, a Presidenta Dilma foi afastada e o que diferencia, efetivamente, o campo político de esquerda, que sustentava o Governo Dilma daquele campo que agora chegou ao poder, sem votos?”

Perguntas bem-vindas, embora fosse bom fazê-las não apenas para o período Dilma, mas também para o período Lula. E a resposta passa por aqui: o grande capital rompeu a aliança, apesar das imensas concessões que foram feitas por uma parte da classe trabalhadora, porque o grande capital quer e precisa de muito mais do que estas concessões.  

Foi isto que “esteve muito errado no nosso projeto”: fazer estas concessões e achar que elas aplacariam o lado de lá.

Agora, estes erros não querem dizer que “os defeitos dos nossos governos” sobrepujaram “suas virtudes”.

Este tipo de raciocínio desconsidera os posicionamentos e percepções distintos que são típicos de uma sociedade de classes.

Na verdade, o grande capital rompeu a aliança por causa das nossas virtudes. E uma parte da classe trabalhadora afastou-se por causa de nossos defeitos.

Um dos efeitos da crise internacional foi levar o grande capital a buscar ampliar sua fatia e reduzir a nossa. É por isto que “perdem importância os programas de inclusão e coesão social”. E reduzir os ganhos da classe trabalhadora exige e supõe reduzir as liberdades democráticas.

Tarso acha que isto aumenta a “ilegitimidade do poder político, que passa a governar para dívida, não para produção, o emprego e a sociedade”.

Bom, no capitalismo não é tão comum assim achar quem governe “para o emprego e a sociedade”. Bem mais comum é achar quem governo para a dívida e para a produção, no sentido de produção de lucro, rentabilidade, mais-valia.

O que Tarso chama de “grandes méritos dos governos Lula” não eram meritórios do ponto de vista da acumulação de Capital. Acreditar nisto foi uma das imensas ilusões que nos trouxeram até onde estamos.

Na base destas ilusões está um jeito de interpretar e descrever a sociedade brasileira, em que certas análises, palavras e frases tentam flutuar acima das classes sociais. Tentam, porque é uma missão impossível. Os interesses de classe acabam se impondo e, quando nós não explicitamos os nossos, os que se impõem são os da classe dominante.

Por exemplo: Tarso afirma que “o Governo que chega é um símbolo da incoerência das elites capitalistas do país: não tem programa, não tem projeto”; que temos que nos preparar para uma luta longa e difícil, para “relegitimar o poder político no país”; que “lamentavelmente vamos entrar num longo período de instabilidade política”, no qual estarão sendo disputadas “duas saídas para crise estrutural de um Estado Social, que não integra o centro orgânico capitalismo global”.

O governo Temer é golpista, hipócrita, mentiroso e tudo mais. Mas não é incoerente: tem programa e tem projeto. Obviamente, antagônicos aos nossos. Mas correspondem perfeitamente a conduta de uma classe social que tem o poder há muitas décadas.

Que eles tenham sido obrigados a empurrar o país para um período de “instabilidade política”, não é algo em si “lamentável”, assim como a estabilidade política em si não é algo para comemorarmos. No caso em tela, a instabilidade mostra apenas que por enquanto o jogo não está jogado, seja por motivos táticos, seja pelas dificuldades estratégicas enfrentadas pelo projeto da classe dominante.

Do nosso ponto de vista, trata-se não de “relegitimar” em geral “o poder político no país”, mas sim de reconquistar o apoio da classe trabalhadora e dos setores médios para nosso projeto, para nossa saída. Se o fizermos, teremos condições de travar a disputa de governo como parte da disputa pelo poder. Mas para isto, será preciso explicitar programaticamente de que saída estamos falando.

Noutras palavras, não é possível tratar a “questão democrática” como “condição prévia para reformar a economia e as instituições”.

É preciso dar conteúdo programático concreto para a questão democrática, sob pena de propostas como “referendo para eleições gerais”, “novas eleições presidenciais”, “Constituinte para fazer a reforma política” e “Assembleia Constituinte para um novo consenso democrático” não ganharem o apoio da maioria do povo.

É isto, aliás, que ajudará a definir o perfil da “Frente” que se almeja: vincular a luta democrática com o programa de transformações populares e socialistas.

O outro caminho, da desvinculação ou das etapas prévias, vai nos levar a repetir erros recentes. Ou nem tanto.





16/maio/2016, 8h08min
Virtudes e erros na questão democrática
Por Tarso Genro
Circulam nas redes e até na imprensa tradicional -nesta em número insignificante- artigos excelentes sobre a conjuntura, que se abriu com a posse interina de Michel Temer na Presidência da República. O golpe institucional engendrado pela grande mídia, articulado com setores rentistas da sociedade brasileira e lideranças políticas oligárquicas (que tanto estavam no Governo Dilma como fora dele), prosperou e o país vive um novo ciclo político. Após a fala de abertura do Presidente interino e da apresentação do seu Ministério, uma reflexão mais de “fundo” pode ser ensaiada. Para ela, quero contribuir com este pequeno texto, supondo que precisamos, não só defender o legado de uma parte da esquerda deste período, mas também reestruturar a nossa visão frentista de forma autocrítica, além de pensarmos rapidamente uma saída concreta para a crise: saída política e econômica, mais além das resistências de rua que, se não tiverem uma correspondência no plano das disputas eleitorais pelo Governo, ou em direção a uma Constituinte, tendem a declinar.
Já ficou comprovado, no próprio processo de “impeachment”, que os motivos do afastamento da Presidenta nada têm a ver com “crime de responsabilidade”. Eles estão vinculados aos grandes movimentos políticos – colocados nas ruas a partir de julho de 2013 –  motivados pela luta contra a corrupção, glamourizados e orientados pela grande mídia. Está claro, igualmente, que as famosas “pedaladas” foram apenas um arranjo jurídico aventureiro, para simular uma deposição “legal” do Governo eleito. Pela fotografia do Ministério, montado pelo Presidente interino, também ficou claro que a inspiração da derrubada do Governo, pelo motivo da corrupção, já está profundamente prejudicada. Não estou acusando pessoalmente – para os efeitos deste artigo –  nenhum membro do Governo atual de corrupto, mas afirmo que o senso comum (produzido pela própria mídia golpista a respeito do assunto),  já começa a produzir, inclusive nos setores que apoiavam o impedimento de Dilma, uma brutal sensação de frustração.
Dois outros fatos começam a adquirir, rapidamente, relevância política. Primeiro, a importância cada vez mais publicamente evidente de Eduardo Cunha na articulação  golpista, que só não foi preso pelas circunstâncias políticas que vive o país, onde os Tribunais estão tratando de forma desigual os investigados que são “governistas” e os investigados “golpistas”. Segundo, está ficando cada vez mais clara, a falsidade da alegação de que a Presidenta não tinha condições de governar, porque se recusava a promover um “ajuste” para economia deslanchar. As futuras ações anunciadas por Meirelles-Jucá, redução de 4.000 cargos de confiança (que tem zero de importância), Reforma da Previdência, viabilização da CPMF, reestruturação da dívida dos Estados – principalmente – são medidas que já vinham sendo tentadas pela Presidente Dilma, sem sucesso, com obstrução de grande parte da sua própria base, que mudou rapidamente de lado.
Por quais motivos, então, a Presidenta Dilma foi afastada e o que diferencia, efetivamente, o campo político de esquerda, que sustentava o Governo Dilma daquele campo que agora chegou ao poder, sem votos? É importante ressaltar que os nomes mais importantes do atual Governo -Romero Jucá, Blairo Maggi, Henrique Meirelles, Moreira Franco, Padilha e Temer, entre outros- foram quadros que tiveram importância nos Governos Lula e nos Governo Dilma, o que pode demonstrar que os “remédios” que o interino pretende para economia -com os quais eu divirjo como já divergia no próprio Governo Dilma- não são tão estranhos aos que a Presidenta vinha encaminhando antes do seu afastamento, no âmbito de uma pesada crise fiscal do Estado. Em algum lugar, algo esteve muito errado no nosso projeto, para que os defeitos dos nossos governos permitissem que as suas virtudes fossem sobrepujadas.
O Ministro Meirelles, no meio de uma entrevista, deu uma pista importante do que deve guiar o Governo atual, ao dizer que o problema mais urgente a ser tratado, é equacionar a questão da dívida pública. Equacioná-la, para recuperar a “confiança” dos nossos financiadores e dos investidores, ou seja, mostrar -como nos velhos tempos de Lula- que o Brasil é “solvente”. E que os nossos primeiros compromissos são com os nossos credores. Digo isso, sem fazer qualquer caricatura, porque este é o ponto de partida econômico, liberal-capitalista, do qual decorre um conjunto de políticas relacionadas com o desenvolvimento econômico e social do país. Para esta visão, já que o preço das “commodities” não mais colabora para financiar o Estado, perdem importância os programas de inclusão e coesão social e, consequentemente, a mesa da democracia se vê profundamente afetada. Aumenta, assim, a ilegitimidade do poder político, que passa a governar para dívida, não para produção, o emprego e a sociedade. O “pato” da Fiesp, come o milho do seu próprio dono e o Governo sem votos, mesmo com apoio da mídia, terá enormes dificuldades para governar.
Os grandes méritos dos governos Lula não foram, seguramente, mudanças estruturais no modelo de desenvolvimento liberal-capitalista, autorizado pelo império do capital financeiro em escala  mundial, que vem sequestrando a autonomia dos Estados Democráticos. Seus méritos estiveram ancorados na questão democrática, incorporando na mesa de diálogo político e social do país, setores para os quais o Estado não existia, senão como Estado-polícia. Isso foi feito através dos Programas destinados à Agricultura Familiar e à Cooperação, o Prouni, Pronatec, Bolsa-família, Escolas Técnicas, novas Universidades Federais, aumentos reais do Salário Mínimo e das aposentadorias, reestruturação do financiamento da Pequena e Média Empresa e vários outros programas de capilaridade social, para famílias de baixa renda. O modelo rentista, porém, permaneceu intocado: não foi aprovada a CPMF,  não foram taxadas as grandes fortunas, as grandes heranças, os ganhos do capital de forma significativa, nem foram desoneradas as camadas médias que pagam alto  Imposto de Renda, nem aumentadas as alíquotas deste imposto para os bilionários. O fato de o Estado continuar sendo financiado, predominantemente, pela dívida, é que agora cobra a sua coerência dramática, pois, para que os seus credores fiquem tranquilos, os gastos com saúde, educação e inclusão é que devem ser minimizados.
Dificilmente, as reformas para refinanciar o Estado  – sejam elas liberais ou social democratas –  serão feitas em nosso país, com o sistema político atual, como não foram feitas nos Governos Lula, independentemente da convicção do então Presidente. O sistema político, tal qual está posto, vai continuar sendo o espaço no qual as oligarquias políticas regionais, o clientelismo e os interesses corporativos de todas as ordens,  vão continuar predominando sobre a ideia de nação com coesão social. Na verdade, em essência, se é que a nossa Constituição de 88 escolheu fazer do Brasil uma Noruega tropical do ponto de vista social, nos legou -do ponto de vista institucional- um sistema político digno da Velha República. A tese do “golpe” está sendo aceita como verdadeira, dentro do país e no exterior, porque de fato foram rompidas instituições importantes da soberania popular  -eleições presidenciais por voto direto e uso do “impeachment” sem crime de responsabilidade- que nos envergonham perante o mundo.
Um Governo que é derrubado pelas suas virtudes, é mais trágico do que um Governo derrubado pelos seus erros. Porque, se ele tinha virtudes tão fortes e não se preparou para defendê-las, não merecia permanecer no poder ou foi inepto para tanto. Prefiro pensar que o Governo da Presidenta Dilma foi derrubado, principalmente, pelos seus erros de análise política, por não compreender a correlação de forças que estava se instaurando em virtude de uma frente política que não tinha mais nenhum significado, por não conseguir manter -em função da internalização da crise mundial- a coerência programática com o discurso que a elegeu, por não ter enfrentado com preparo, portanto, a luta de classes radical, que a grande mídia  – como partido moderno do rentismo liberal-capitalista – instalou contra nosso programa social-reformista, que melhorou a vida de 50 milhões de brasileiros. Se  o Governo da Presidenta Dilma tinha problemas de governabilidade – e os tinha – e incapacidade de manter um diálogo ampliado, com todos os setores da sociedade, o Governo que chega é um símbolo da incoerência das elites capitalistas do país: não tem programa, não tem projeto, não tem unidade na sua base parlamentar e já nasce rachado em questões de fundo, como o aumento dos impostos e a reforma da previdência. Trata-se de um aglomerado de interesses sem propósito a não ser o de chegar no poder: seus erros serão muito maiores do que nossos, mas os seus resultados atingirão diretamente os 50 milhões de brasileiros que melhoraram de vida nos últimos doze anos.
Independentemente de que consigamos bloquear o “impeachment”, temos que nos preparar para uma luta longa e difícil, para relegitimar o poder político no país. Trata-se da questão democrática, como condição prévia para reformar a economia e as instituições, seja através de um referendo para eleições gerais, seja através de novas eleições presidenciais, seja através de uma Constituinte para fazer a reforma política, seja por uma Assembleia Constituinte para um novo consenso democrático. O que será possível vai depender da amplitude e da radicalidade democrática que emprestarmos a uma nova Frente, que possa se preparar novamente para ser, no futuro, poder político no país. Lamentavelmente vamos entrar num longo período de instabilidade política, no qual estarão sendo disputadas duas saídas para crise estrutural de um Estado Social, que não integra o centro orgânico capitalismo global. Nestes centros orgânicos, as classes trabalhadoras podem perder um pouco -esse é o cálculo liberal- sem ir massivamente para a fome e a marginalidade. Aqui não: as pessoas do mundo do trabalho, formal ou informal, quando perdem um pouco vão diretamente para a miséria. Não comem. Quando muitos não comem, outros não dormem. A receita  “não falem em crise, trabalhem”, é cínica e elitista. E esse foi o principal recado do Governo Temer.
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Tarso Genro foi Governador do Estado do Rio Grande do Sul, prefeito de Porto Alegre, Ministro da Justiça, Ministro da Educação e Ministro das Relações Institucionais do Brasil.


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