sexta-feira, 31 de março de 2023

O coelhinho da Páscoa e o arcabouço fiscal

Ontem a Voz do Brasil falou do novo arcabouço fiscal, incluindo várias frases do ministro Fernando Haddad e da ministra Simone Tebet, esta última particularmente entusiasmada.

O novo arcabouço fiscal está sendo proposto como substituto ao “teto de gastos”, nome impopular dado a emenda constitucional aprovada, no governo Temer, para regular as despesas do governo.

O teto de gastos serviu para legalizar um arrocho nas contas públicas. Arrocho seletivo, porque uma parte dos gastos continuava protegido, enquanto outra parte era arrochada.

Aliás, esta é uma característica de várias iniciativas que, nas últimas décadas, supostamente pretendiam garantir o “equilíbrio” via controle das despesas.

Foi assim com a Lei de Responsabilidade Fiscal, imposta no governo FHC. Foi assim com a regra do superávit primário, imposta nos tempos em que Palocci era considerado um companheiro. E foi assim com o “teto de gastos” de Temer.

No lugar de metas sociais, de crescimento e desenvolvimento, a lógica do controle de despesas, tendo como método prejudicar um setor da sociedade, para garantir os ganhos cada vez mais excessivos de uma minoria.

De um lado, as vítimas de sempre: os mais pobres, os trabalhadores, os pequenos proprietários. Doutro lado, os beneficiados de sempre: os salários e rendas mais altas, os grandes empresários, em particular os que ganham dinheiro no mercado financeiro, com a alta taxa de juros e com a dívida pública brasileira.

Por isso mesmo, durante o governo Temer e, depois, durante o governo cavernícola, o PT sempre criticou o teto de gastos. E Lula, na campanha de 2022, prometeu que ia acabar com o teto de gastos.

Supostamente, este é o objetivo do novo arcabouço fiscal: se ele for aprovado, acaba o teto de gastos.

Entretanto, cabe perguntar: o que está sendo proposto, pelo ministro Haddad, com o apoio entusiasmado da ministra Tebet, é uma mudança efetiva, em benefício dos mais pobres, dos trabalhadores, dos pequenos proprietários? Ou equivale a trocar seis por meia dúzia?

O ministro Haddad diz que se trata de uma novidade; e que o Brasil sairá ganhando com a troca, do teto de gastos pelo novo arcabouço fiscal.

Eu também gostaria que fosse assim.

Mas ao ler e ouvir o que Haddad disse, penso que estamos diante, não de um arcabouço fiscal, mas sim de um novo calabouço fiscal. Um pouco mais espaçoso, mas ainda sim um calabouço.

Vale lembrar que ainda não foi divulgada a versão final da proposta. Portanto, pode ser que – em relação ao que li e ouvi - alguma coisa mude para melhor.

Vale lembrar, também, que pode mudar para pior, pois quem vai deliberar a respeito é o Congresso nacional, onde a extrema direita e a direita neoliberal são ampla maioria.

Feita esta ressalva, alguns comentários mais.

Primeiro, é muito grave que o ministro tenha aberto mão, já na largada, da intenção de criar novos impostos que façam os ricos pagarem a conta.

Haddad, na entrevista citada, diz que esta postura seria a materialização de uma promessa de Lula, a saber: “colocar o pobre no orçamento e o rico no imposto de renda”.

Nesta linha, Haddad diz que não vai criar novos impostos, nem vai aumentar a carga tributária, que seu objetivo é fazer pagar os que deveriam pagar, mas não pagam, os impostos já existentes. Ou seja: os que sonegam etc.

Acontece que isto não é suficiente, nem é justo. Não é suficiente, pois precisamos de muitos recursos para poder fazer o país crescer e se desenvolver.

E não é justo, pois os impostos no Brasil são altamente regressivos. E do que precisamos são novos impostos que recaiam sobre o patrimônio dos que são muito ricos.

Temos maioria no Congresso para aprovar isto? Provavelmente não. E nunca teremos, se continuarmos abrindo mão deste objetivo. Mas dizer que é possível ajustar as contas nacionais sem tributar pesadamente o patrimônio dos ricos é aceitar, como horizonte, o status quo que temos hoje.

Por tudo isso, é um imenso desserviço abrir mão, já na largada, do que é necessário e indispensável, se realmente quisermos transformar o Brasil.

Este é o primeiro problema da proposta de arcabouço fiscal.

O segundo problema é que ela reintroduz a lógica presente no “teto de gastos”, embora com outras regras e nomes, bem mais elegantes do que o estabelecido pelo vampiro golpista.

A regra proposta por Haddad & Tebet é a seguinte: as despesas aumentarão até o teto de 70% do crescimento das receitas. Portanto: se produzirmos mais, se arrecadarmos mais, só 70% disso pode se converter em aumento das despesas.

Se o país estivesse bem das pernas, esta regra poderia ser classificada como prudente. Mas num país que precisa desesperadamente de crescimento, de desenvolvimento, de bem estar social, essa regra 70/30 é uma bola de ferro presa no pé do Estado.

Na prática, o que se está propondo é o seguinte: o papel do Estado na economia vai ser tributar 100, devolver 70 para a sociedade e usar 30 para abater dívidas.

Com palavras novas, é a mesma lógica que predominou na Lei de Responsabilidade Fiscal, no superavit primário, no teto de gastos etc.

Há quem acredite que, fazendo isso, o Banco Central vai reduzir os juros. E, com o BC reduzindo os juros, o espírito animal do empresariado brasileiro vai fazer a sua parte: os empresários vão investir e com isso o país vai crescer de maneira “sadia” (a maneira não sadia seria, nesta lógica, o crescimento impulsionado via endividamento público).

Pode ser que a crença acima vire realidade?

Pode ser, sempre pode ser, nesse mundo passa de tudo.

Mas o mais provável é que prevaleça o que sempre prevaleceu em nossa história republicana: só tivemos saltos em nosso desenvolvimento, quando o Estado assumiu a dianteira.

Mas como o Estado vai assumir a dianteira, com uma bola de ferro atada no pé do Estado?

Há quem argumente que a bola não é tão pesada assim, que podemos repetir a performance do segundo governo Lula. No mundo dos cálculos econométricos, isso até pode parecer assim; mas no mundo da economia política, o que se pode ver é um crescimento inferior ao necessário para vencermos, por exemplo, nas eleições de 2024 e 2026.

Além disso, há um “detalhe” adicional, que vários economistas petistas e amigos tem destacado: a lógica 70/30 aponta para uma redução do setor público na economia. E, ato contínuo, serve de argumento para a proposta de redução da carga tributária sobre os ricos.

Claro, se o novo arcabouço fiscal for aprovado tal como está sendo apresentado, algumas “despesas” (como saúde, educação e previdência) estarão relativamente protegidas. Digo relativamente, pois se trata de manter o status quo, que não é bom.

Mas para que algumas “despesas” sejam relativamente protegidas, outras vão ter que sofrer mais, para que média final possa ser 70/30.

A proposta do novo arcabouço fiscal prevê, também, uma regra anticíclica, que Haddad chamou de “colchão”; mas o colchão é fininho como aqueles levados para acampamentos. Segundo entendi, em momentos de baixa arrecadação, o colchão seria a inflação mais 0,5%.

Se a economia brasileira e mundial estivessem bem, se a situação social fosse razoável, esta regra estaria ótima. Mas num país cheio de desigualdades estruturais, necessitando crescer muito e rapidamente, em tempos de crise e de instabilidade mundiais, inflação mais 0,5% não merece ser chamada de política anticíclica.

A proposta de novo arcabouço fiscal inclui também outras regras, inclusive a de atingir déficit zero e depois superavit nos próximos anos. Seria uma homenagem involuntária à proposta chamada de “tosca” por uma certa ex-presidenta?

Feitas as contas, se esta proposta de arcabouço fiscal for aprovada e aplicada; e se tudo acontecer como o ministro Haddad e a ministra Tebet prometem, corremos alto risco de entregar o governo enxuto para a oposição assumir em 2027. Pois se não houver uma virada agora, no biênio 2023-2024, o cenário político vai se complicar muito. E o “plano de voo” do arcabouço prevê, implicitamente, que uma virada – se houver – depende do investimento privado e do investimento externo. Previsão que faz sentido, ao menos para quem acredita que a mão invisível do mercado premia quem não gasta mais do que arrecada.

Cá entre nós, de conjunto a proposta não me surpreende. Ela se enquadra no movimento mais geral de adaptar-se à correlação de forças, ao invés de buscar pontos de apoio para virar o jogo a nosso favor. Como disse, em entrevista recente, o secretário-executivo do ministério da Fazenda: “a democracia deve caber na regra econômica".

(Aqui um parêntesis: fiquei impressionado pela quantidade de pessoas que afirmou ter havido um “equívoco de interpretação” acerca do que disse o secretário-executivo. Ou seja: não é apenas nas notas do BC que o javanês segue em alta. Mas, para infelicidade de quem disse ter havido má interpretação, a proposta de arcabouço fiscal funciona como uma pedra de roseta.)

Isto posto, o que devemos fazer?

Criticar a proposta apresentada, com o objetivo de que ela seja alterada.

Exigir que o governo se comprometa com a tese de uma reforma tributária progressiva, que cobre novos e mais impostos dos ricos.

Exigir que o governo subordine as regras fiscais às metas sociais e de crescimento. Ou seja, submeter as regras econômicas à democracia, e não o contrário.

E mobilizar a sociedade em defesa de mais políticas para os pobres, mais impostos para os ricos.

Se não tivermos êxito nisso, corremos o risco de viver, de novo, o que já vivemos no início do primeiro governo Lula (2003-2006)

Dois anos de juros altos, superavit primário e contenção. Uma derrota nas eleições municipais. E uma crise de governabilidade no biênio pré-eleição presidencial.

Naquela ocasião, foi preciso muito esforço para conseguir dar a volta por cima. Mas, naquela ocasião, enfrentávamos uma única oposição (os neoliberais tucanos) e o mundo estava menos conflituoso. Hoje enfrentamos duas oposições (a de extrema-direita e a neoliberal gourmet) e o mundo está bem mais agitado, a começar pela guerra.

Para não dizer que não falei de flores: hoje é 31 de março, 59º aniversário do golpe militar. Um bom momento para dizer que precisamos derrotar, não só a herança maldita da ditadura militar, mas também a ditadura do capital financeiro, com seus calabouços fiscais e suas regras econômicas, mesmo quando vem embrulhadas como um ovo da Páscoa.

terça-feira, 28 de março de 2023

A síntese lapidar de Gabriel Galípolo

Quero recomendar que todos leiam a entrevista concedida por Gabriel Galípolo, secretário-executivo do ministério da Fazenda, ao infomoney.

A entrevista está aqui: https://www.infomoney.com.br/politica/a-democracia-deve-caber-na-regra-economica-diz-galipolo-sobre-marco-fiscal/

Também copiei e colei a íntegra no final.

Como em outras entrevistas do gênero, há frases que podem ser interpretadas de diferentes maneiras.

Assim como há contorcionismos que fariam sucesso no Cirque du Soleil, tipo "anticiclicidade por reflexividade".

Mas no meio dos floreios, vem a estocada fatal: "A democracia deve caber na regra econômica".

E quem nos informa qual seria a "regra"? O "economista", claro.

É o economista, segundo Galípolo, quem teria a missão de trazer "à luz do sol" quais são "as consequências de cada uma das escolhas da sociedade".

A "sociedade", segundo esta interpretação, não teria o discernimento necessário.

Talvez por pensar assim, Galipolo encerra o raciocínio com o seguinte ta-ti-bi-ta-ti: "Se eu quiser permanentemente ter um gasto que cresce acima da arrecadação, isso claramente vai ter um impacto sobre o custo de financiamento do Estado, a trajetória da relação dívida/PIB. E o inverso também é verdadeiro”.

Se for esta a "filosofia" que prevaleceu na elaboração do "novo arcabouço fiscal", vamos ter um biênio muito difícil pela frente.

E, nesse caso, os culpados não estarão apenas no Banco Central.


SEGUE A ÍNTEGRA DA ENTREVISTA

O governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) construiu um nível de consenso “muito elevado” e está “muito próximo” de apresentar à sociedade o projeto de lei complementar do novo arcabouço fiscal, segundo o secretário-executivo do Ministério da Fazenda, Gabriel Galípolo.

Em evento organizado pela consultoria de risco político Arko Advice, Galípolo evitou comentar se as novas regras que deverão substituir o teto de gastos serão apresentados nesta semana, mas disse que o adiamento da viagem oficial à China deve facilitar os últimos ajustes.

“A decisão, em última instância, é óbvio, é do presidente da República sobre quando vai ser anunciado o arcabouço. O adiamento em função da não ocorrência da viagem nos permite fazer algumas reuniões com a presença do ministro da Fazenda, Fernando Haddad (PT) − o que facilita muito o processo”, afirmou.

“Mas estou muito otimista. O nível de consenso que já existe dentro do governo é muito elevado”, disse em painel realizado nesta segunda-feira (27).

Segundo ele, o texto também teve boa receptividade entre líderes do governo nas casas legislativas e os próprios presidentes da Câmara dos Deputados, Arthur Lira (PP-AL), e do Senado Federal, Rodrigo Pacheco (PSD-MG). A ideia é que, antes de ser anunciado oficialmente, o projeto também seja levado a lideranças das bancadas no Congresso Nacional.

“Estamos muito próximo de o arcabouço fiscal vir à luz do sol”, disse o “número 2” da Fazenda.

No evento, Galípolo também criticou o que chamou de interdição do debate econômico e de uma espécie de imposição técnica sobre decisões políticas que deveriam caber à sociedade. Ele também repetiu os objetivos da equipe econômica com a construção de uma regra desafiadora, mas crível.

“Uma coisa é a regra, outra coisa são os parâmetros. A ideia de ser desafiador, porém crível, está muito associada aos parâmetros. Você precisa demonstrar ao mercado e à sociedade seu comprometimento em buscar o resultado fiscal, que vai permitir uma trajetória mais bem comportada da relação dívida/PIB, mas simultaneamente não passar uma relação que vai a cada momento ter um regime que funciona por exceção, como assistimos”, pontuou.

Ao analisar a experiência brasileira com regras fiscais, o economista destacou críticas ao teto de gastos e à meta de primário por serem excessivamente pró-cíclicas e defendeu a manutenção de despesas em momentos de crise de arrecadação e um freio à expansão de gastos em situações de bonança.

“É difícil economista ter algum tipo de consenso em alguma coisa, mas, se existe um tema que tem consenso na literatura, é que o orçamento público deve suavizar os ciclos econômicos, e não acentuá-los”, disse. “A regra de oferecer alguma previsibilidade sobre o gasto oferece, de uma maneira inteligente, esse tipo de anticiclicidade por reflexividade. Como você não vai gastar mais quando está crescendo nem cortar despesas quando está caindo, ela fica contracíclica jogando parada”.

Para ele, o teto de gastos, ao limitar a evolução de despesas de um ano ao comportamento da inflação no exercício anterior, impôs uma visão política sobre o tamanho do Estado na economia e engessou na Constituição esse entendimento.

“A visão de como deve se comportar o gasto, o resultado primário e a relação dívida/PIB é algo que deve ser determinado pelo governo que foi eleito junto com os congressistas que foram eleitos”, argumentou.

“A democracia deve caber na regra econômica. E o papel do economista é trazer à luz do sol quais são as consequências de cada uma das escolhas da sociedade. Se eu quiser permanentemente ter um gasto que cresce acima da arrecadação, isso claramente vai ter um impacto sobre o custo de financiamento do Estado, a trajetória da relação dívida/PIB. E o inverso também é verdadeiro”, disse.

Na avaliação de Galípolo, uma regra fiscal tem que ser capaz de, de um lado, “abarcar os desejos da sociedade do ponto de vista democrático”, e, de outro, “debater parâmetros que possam oferecer uma evolução da trajetória da relação dívida/PIB bem comportada para os agentes do mercado”.

Durante o evento, o “número 2 da Fazenda” disse que a equipe econômica tem focado em garantir a recomposição da arrecadação para níveis tradicionais registrados pelo país e enfatizou que em nenhum momento foi discutida elevação de carga tributária.

“Muitas vezes se diz que se deveria estar focando mais no corte de despesas ou no ajuste em despesas. Isso não é simples de ser feito quando estou fazendo uma recomposição de arrecadação, porque eu não tenho o desatendimento do resultado primário. Então, a razão para o contingenciamento não é trivial. Se eu tenho uma folga sobre o resultado primário, qual é a razão para contingenciar? A regra fiscal hoje cria uma obstáculo operacional inclusive para contingenciamento”, disse.

“Do outro lado também, quando assistimos muita gente dizer que é preciso fazer uma política fiscal expansionista, gastar mais. Também não é simples, porque eu preciso passar uma nova emenda constitucional. O gasto foi contratado pela PEC. Então, há uma rigidez do ponto de vista do gasto, pela regra e pela forma como ela foi combinada, que muitas vezes não é perfeitamente compreendida. Por isso que a maior parte do processo está sendo feita com buscas de recomposição de receita”, completou.



terça-feira, 21 de março de 2023

O inigualável "senso de inoportunidade" do chanceler Mauro Vieira

Todo mundo tem seus momentos ruins, seus lapsos, suas pisadas na bola.

Mas estou para ver "senso de inoportunidade" igual a do chanceler Mauro Vieira.

Convenhamos: estamos na véspera de uma viagem de Lula à China.

E estamos no meio de uma visita de Xi Jinping à Rússia.

De onde podem sair novidades acerca da guerra e paz.

Paz que o presidente Lula defende.

Neste contexto, estou para ver algo mais "oportuno" do que a resposta do chanceler Mauro Vieira acerca de Putin, na entrevista concedida aos jornalistas do Metrópoles.

Quem não viu, veja o vídeo que está disponível aqui.

Reitero: veja o vídeo, não apenas o distorcido resumo textual feito pelo Metrópoles.

A decisão do Tribunal Penal Internacional, de emitir um mandato de prisão contra Putin, é uma provocação que precisa ser liminarmente descartada, ao menos pelo chanceler de um país que deseja contribuir no processo de paz.

Titubear a respeito já é ruim. Mas frente a uma pergunta direta dos jornalistas, acerca de uma possível prisão de Putin caso este viesse ao Brasil, responder que uma visita de Putin ao Brasil causaria "complicações", é algo assombroso.

Agora, fazer isso exatamente na véspera de uma visita de Lula à China, no exato momento em que Xi Jinping está reunido com Putin, onde reafirmou que a China é sócia estratégica da Rússia, fazer tudo isso junto e misturado, é de um inigualável "senso de inoportunidade", para usar uma linguagem diplomática.

Mas é compreensível: tem gente que, ao "descer do muro", perde todo o equilíbrio.

quinta-feira, 16 de março de 2023

Projeto de resolução sobre a situação política

Nos dias 18 e 19 de março realizamos uma reunião da direção nacional da tendência petista Articulação de Esquerda. O primeiro ponto de pauta desta reunião foi um debate sobre a situação nacional e internacional. Apresentamos a seguir uma "ajuda memória" de nosso debate a respeito, acompanhado de algumas resoluções adotadas.

Ajuda memória

1/Devemos contribuir para que a esquerda brasileira, especialmente o Partido dos Trabalhadores, retome uma perspectiva estratégica. Ou seja, precisamos retomar o debate sobre como alcançar nossos objetivos de médio e longo prazo, o que inclui obviamente reafirmar quais são estes objetivos. 

2/Devemos combater a postura que consiste em restringir o debate ao curto prazo, aos objetivos conjunturais e táticos. Os que adotam e defendem esta postura curto prazista em geral se consideram "realistas", ou seja, atentos a correlação de forças. Acontece que para um partido de esquerda, que pretende transformar a realidade, é tão importante determinar a correlação de forças, quanto é importante determinar como alterar esta correlação de forças em favor das classes trabalhadoras. Mas isso só é possível de fazer quando se quer definir e alcançar objetivos de médio e longo prazo. E quando se pensa a política como movimento, de forma dialética. 

3/É preciso atenção para a evolução da situação internacional. 

4/Recomendamos a leitura dos artigos publicados na mais recente edição da revista Esquerda Petista, abordando a situação dos Estados Unidos, a China, a Rússia, a Europa, a África, a Palestina, a América Latina, bem como analisando o conjunto da situação mundial. Recomendamos, em particular, atenção para as mobilizações em curso na França, bem como para a crise que afeta vários bancos, em particular nos Estados Unidos e Europa. 

5/A situação internacional confirma a postura crítica que adotamos frente ao governo Biden, totalmente distinta daqueles que esperavam que este governo fizesse “uma revolução no capitalismo”, seja no sentido do crescimento, seja no sentido do bem-estar. Pelo contrário, a economia dos EUA segue controlada pelo complexo Wall Street/Pentágono, o que empurra a classe dominante daquele país, não importa quem esteja no governo, para a guerra como suposta solução para os seus desafios internos e externos. 

6/Erram os que alimentam ilusões sobre os EUA, erram os que consideram seu governo atual como nosso “aliado”. Assim como erram aqueles que apostam na Europa como suposta aliada. Erram, igualmente, os que defendem que adotemos políticas "progressistas" e "social-liberais": a esse respeito, basta observar as dificuldades enfrentadas pelos governos Macron e Boric.

7/Nosso "aliado tático" no plano mundial é o bloco liderado pela República Popular da China. Aliado tático porque os interesses da China coincidem parcialmente com os nossos: tanto a nós quanto a eles, interessa derrotar os EUA. Mas a nós interessa derrotar os EUA, como parte do processo que visa mudar profundamente o lugar do Brasil na divisão internacional do trabalho e do poder. E transformar o Brasil em potência mundial choca, em alguma medida, com interesses da própria China. 

8/Nossos aliados estratégicos são os povos latino-americanos e caribenhos. Motivo pelo qual é inaceitável que nosso Partido e nosso governo tratem como se fossem inimigos, países, governos e partidos defensores da integração regional. Nossos inimigos são os imperialistas. O Brasil deve ser proativo na busca de soluções para os problemas dos países da região, com destaque para Argentina, Venezuela, Colômbia, México, Chile, Bolívia, Cuba e Nicarágua.

9/Vista de conjunto, a situação internacional aponta para uma escalada do conflito geopolítico, inclusive no plano militar; e para a persistência da crise econômica latu sensu, como se está constatando na situação de grandes bancos nos EUA e Europa. As políticas de estímulo, generalizadas na época da pandemia, não resultaram no crescimento esperado: a verdade é que há uma crise estrutural do capitalismo.

10/É preciso lembrar sempre que o Brasil vive uma crise estrutural, de múltiplas dimensões, mas que tem seu vetor principal na desindustrialização. O país voltou a ter uma participação industrial no PIB similar a dos anos 1920; mas naquela época 80% da população vivia no campo. Hoje 80% da população vive nas cidades e, por isso, é materialmente impossível superar a crise, se nossa economia seguir primário-exportadora.

11/Alcançar nossos objetivos (soberania nacional, bem estar social, liberdades democráticas, desenvolvimento e socialismo) implica em derrotar três inimigos: o neofascismo, o neoliberalismo e o imperialismo. Por exemplo: se queremos reindustrializar o país, não basta derrotar os neofascistas. E se queremos derrotar os neofascistas, é preciso superar o ambiente social e cultural imposto pelas políticas neoliberais. E se quisermos derrotar ambos, neofascismo e neoliberalismo, será preciso derrotar também seus patronos imperialistas. Isso não é contraditório com definir, a cada momento concreto, quem é o inimigo principal; assim como é correto definir, em cada situação, o sentido do golpe principal. O erro consiste em confundir alianças pontuais e alianças táticas, com alianças estratégicas.

12/Nosso governo nacional e nossos governos estaduais, eleitos em 2022, resultaram de uma vitória muito difícil, alcançada numa disputa na qual participamos com uma política de frente ampla, que tratou parte dos neoliberais como se fossem nossos aliados estratégicos. 

13/O mais grave não foi ter feito esta aliança – a qual nos opusemos; o mais grave foi não ter discutido o que fazer para, no momento seguinte, derrotar os aliados de ontem. Por exemplo: a direção nacional de nosso Partido não quis debater o que fazer com a independência do Banco Central; não quis debater o que fazer com as Forças Armadas. Importante destacar que justamente essas questões, que não foram debatidas, ganharam enorme importância desde o início do nosso governo.

14/Ainda sobre o tema das alianças, destaque-se o imenso tempo e esforço gastos construindo uma federação que - como a vida demonstrou - não serviu para os propósitos a que se propunha.

15/Não podemos aceitar que o limite máximo de nossos governos seja o socialiberalismo na economia e o progressismo na política. Se aceitarmos esses limites, estaremos contribuindo para sofrermos uma derrota brutal em 2024 e em 2026. 

16/É preciso reconhecer os limites da correlação de forças, é preciso fazer mais e melhores políticas públicas, mas ao mesmo tempo é preciso criar as condições para avançar, criar as condições para fazer reformas estruturais que alterem as estruturas de poder, renda e riqueza, que mudem o lugar do Brasil no mundo, não apenas no plano simbólico, mas principalmente no plano material. O debate sobre o Banco Central, sobre a Petrobrás, sobre a Eletrobrás, sobre a política fiscal, de juros e tributária, deve ser feito a partir desta perspectiva.

17/Embora muito esteja sendo feito, embora muito mais possa ser feito, a verdade é que a correlação de forças institucional é estruturalmente desfavorável. Se não houver mobilização de massas, se não houver uma grande onda de lutas sociais, nosso horizonte de possibilidades continuará limitado. 

18/Por isso, uma grande questão é o que podemos fazer, a partir das posições que ocupamos, no sentido de estimular a mobilização social

19/Apesar da derrota que sofreu no dia 8 de janeiro, a extrema direita segue presente, forte e com capacidade de mobilização superior à nossa. Além disso, a direita neoliberal tradicional está extremamente ativa, pressionando - por dentro e por fora do governo - para que nada mude. Além disso, o imperialismo também faz intensa pressão. Por tudo isto, não podemos subestimar os riscos em 2024 e 2026, nem tampouco os riscos de novos levantes da Casa Grande.

20/Tampouco devemos subestimar os riscos decorrentes da guerra e da crise bancária; assim como não devemos minimizar a gravidade da situação envolvendo a segurança pública e o sistema carcerário. A população carcerária cresceu, desde 2003 até hoje, de 200 mil presos para cerca de 1 milhão. Isso revela o fracasso de uma política de segurança baseada na militarização e no punitivismo.

21/As chances de ocorrer uma grande onda de lutas sociais aumenta muito se forças como o PT, a CUT e o MST contribuírem neste sentido. 

22/A força do PT é inegável, atestada nas pesquisas e no fato de – nas nove eleições presidenciais ocorridas desde 1989, inclusive – termos vencido 5 vezes e ficado em segundo lugar nas outras 4. Entretanto, é preciso dizer que - mesmo no terreno eleitoral - enfrentamos dificuldades. 

23/Nosso melhor resultado eleitoral nas disputas presidenciais, em termos de votos válidos, foi em 2002. Em 2022, vencemos por uma diferença de apenas 2 milhões de votos de vantagem; além disso, fomos derrotados na maioria dos estados; mesmo nos estados onde vencemos, há sinais de perda de força; e nos parlamentos e nos municípios, o resultado passado e a perspectiva futura são ainda mais preocupantes. 

24/Além das dificuldades eleitorais, o PT apresenta outros sinais de perda de vitalidade: a estatização das finanças partidárias, nas quais é mínima a contribuição militante; o predomínio da dinâmica eleitoral ("partido dos anos pares"); a autonomização crescente dos parlamentares e governantes eleitos, por sobre as direções e a militância em geral; a conversão de muitas de nossas tendências internas em cooperativas de parlamentares; a crescente subordinação do nosso partido à dinâmica e aos hábitos institucionais e parlamentares; o horizonte cada vez mais curto, em que “estratégico” passa a ser pensar na próxima eleição. 

25/Nosso principal problema é a redução de nossa influência organizada na classe trabalhadora, para o que influi a distância crescente entre a composição social de nosso eleitorado e a composição social da cúpula nacional do Partido. 

26/Episódios deprimentes, como fotografias com genocida, oração em solenidade, parlamentar protegendo o fazendeiro amigo, devem nos servir como alertas de que precisamos de profundas mudanças estratégicas e organizativas, não da “construção de narrativas”, tampouco de um “reposicionamento de marca”. 

27/Para agravar o rol de dificuldades, temos  o adiamento do PED (adiamento que alguns querem estender para os municípios); a existência da Federação (que alguns querem ampliar), além da implacável biologia.

28/A situação da CUT e do conjunto do sindicalismo merecem redobrada atenção. Temos uma das taxas de sindicalização mais baixas de nossa história, em torno de 10%. Ademais, o movimento sindical demostra baixa capacidade de mobilização. O mundo do trabalho mudou profundamente nas últimas décadas e anos, o que impõe grandes dificuldades objetivas.

29/Não se deve esquecer que segue extremamente difícil a situação da classe trabalhadora, em particular das mulheres, dos negros, dos moradores das periferias e da juventude trabalhadora. 

Resoluções

1/Devemos defender o governo Lula, os governos estaduais e municipais petistas, a atuação de nossas bancadas e de nosso Partido, bem como devemos defender a atuação dos partidos de esquerda, dos sindicatos e movimentos sociais. Isso inclui lutar para que nossos governos (municipais, estaduais e federal) cumpram o programa e implementem políticas em defesa dos interesses e necessidades do povo, inclusive em temas como o pagamento dos pisos. No caso específico do governo Lula, é preciso insistir na construção, não apenas de um plano estratégico, mas também de um núcleo de governo. 

2/Devemos pressionar em favor de uma politica econômica reindustrializante,  uma politica alicerçada na ampliação dos investimentos públicos, a serem viabilizados através de uma reforma tributária que penalize os ricos, ao mesmo tempo que isente os pobres e reduza a carga tributária sobre os chamados setores médios. O novo marco fiscal, caso não seja coerente com isto, deve ser criticado publicamente, no sentido de sua alteração. 

3/Devemos contribuir para a retomada da mobilização social, dando especial atenção neste momento para temas como a revogação da chamada reforma do ensino médio, a luta pelo cumprimento do piso (enfermagem e educação) e, também, para a construção de uma campanha de massas em favor de que os ricos paguem impostos. Devemos apoiar, estimular e também propor iniciativas em torno do 31 de março/1 de abril, do abril de lutas, do primeiro de maio.

4/Devemos contribuir para que a militância se mantenha motivada e mobilizada. Isso foi decisivo para a vitória de 2022 e será igualmente decisivo para as vitórias em 2024 e 2026. Motivar a militância inclui combater publicamente as posturas que atropelam o estatuto partidário e a democracia interna. Depois de definir um vice sem realizar um encontro nacional, depois de compor o governo sem considerar diversos setores do Partido, depois de prorrogar os mandatos das direções, agora se cogita rasgar decisões congressuais acerca do número máximo de mandatos parlamentares consecutivos.

 

 

 

 

segunda-feira, 6 de março de 2023

Marx segundo Almeida

Não sei o quanto o senhor Carlos Alberto Almeida entende de Newton.

Mas de Marx ele não entende.

Vide o tuíte abaixo.

A maior parte da obra de Marx é sobre o capitalismo.

E nas poucas vezes que Marx fala do comunismo, geralmente toma o cuidado de demarcar com os utópicos e seus "paraísos idílicos".

A maior parte da obra de Marx foi uma crítica da economia política.

Em comparação com seus contemporâneos, Marx sai ganhando.

E parte dos que vieram depois - muitos deles inimigos do comunismo, do socialismo e do marxismo - reconhece o valor científico da obra de Marx.

Agora, querer de Marx "neutralidade axiológica" é querer algo que nem Weber, nem ninguém, foi ou será capaz de entregar.

Isto posto, o que interessa mesmo é saber se é ou não uma "excrescência" termos uma esquerda marxista.

Acho que depende.

Afinal, segundo o pai dos burros, um dos significados da palavra "excrescência" é "coisa que desequilibra a harmonia de um todo".

Nesse sentido, Almeida pode ter razão.

Pois se tem algo que nossa América Latina e nosso mundo necessitam é de uma esquerda disposta a "desequilibrar" a "harmonia" da ordem capitalista. 

E nessa tarefa, a esquerda tem muito que aprender com a tradição marxista.





Cantalice: "uns merdas"

Tem gente que deveria desligar o celular aos domingos, especialmente depois das 23h00.

É o caso do Alberto Cantalice, meu digamos colega de diretoria na Fundação Perseu Abramo e também integrante do Diretório Nacional do PT.

Afinal, convenhamos, não há como considerar aceitável o tuíte que ele postou no domingo 5 de março, as 23h04.

O tuíte, que reproduzo ao final, diz o seguinte: "Líderes da américa latina: Lula, Boric, Amlo, Petro, Arce, Mujica, Alberto Fernandez, Kirchner  o restante são proto-ditadores, aprendizes de autoritários, uns merdas".

Alguém respondeu: "A América Latina tem 33 países. Voce está chamando 26 desses governos de 'merda'? Um dirigente nacional do PT, diretor da Fundação Perseu Abramo? Chamando 26 países de merda? Você está bêbado?"

Cantalice treplicou: "Não. Eu chamei três países de ditaduras!"

Deixando de lado a dúvida etílica, vamos ao mérito.

Comecemos pelo final: é absolutamente inaceitável tratar como "merdas" dirigentes da esquerda latinoamericana, eleitos pelos seus povos para dirigir seus países.

Ao usar este tipo de linguagem, Cantalice se candidata a ser tratado como gusano.

Vamos agora ao início: acho temerário adotar o método gringo de fazer ranking.

Aliás, só os gringos e suas línguas de aluguel têm a presunção de achar que alguém tem autoridade para dizer quem está in e quem está out.

Por sinal: a lista de Cantalice é composta por oito pessoas, todas vivas e sete delas no exercício do cargo de presidente ou de vice. 

Como a lista inclui Pepe Mujica, que não está exercendo cargo nenhum, deduzo que outras pessoas que não ocupam cargos - como, por exemplo, Dilma Rousseff, Evo Morales, Rafael Correa e Raul Castro - não foram nominadas por Cantalice, não por esquecimento causado pela falta de bom senso, de lógica ou por excesso de octanagem, mas porque ele não as considera merecedoras da medalinha.

Isto posto, vamos ao centro da questão: Cantalice acha que o presidente de Cuba, o presidente da Venezuela e o presidente da Nicarágua são " proto-ditadores, aprendizes de autoritários, uns merdas". 

Noutra mensagem, como já foi dito, Cantalice chegou a escrever que Cuba, Venezuela e Nicarágua são "ditaduras".

Há alguns anos, um presidente do PT, já falecido, disse algo parecido (sobre serem ditaduras, não sobre serem "merdas"). Mas antes que eu reclamasse, nosso então presidente correu para explicar: são ditaduras populares

Isto posto: Nicarágua, Venezuela e Cuba, a FSLN, o PSUV e o PCC têm inúmeros problemas, como o Brasil e o PT também têm. E não vejo nenhum problema, pelo contrário, em debater privadamente e publicamente esses problemas, alguns deles gravíssimos.

(Privadamente, mas de preferência sem as imagens escatológicas de Cantalice. Aliás, não me recordo de Cantalice falar ou escrever este tipo de coisa entre 2016 e 2022, quando nós estávamos na pior e vários dos que Cantalice chama de "merdas" nos ajudaram e muito.)

Acontece que o que Cantalice faz não é debater problemas, nem propor soluções. O que Cantalice faz é colocar estes países, seus governos e seus líderes na lista de inimigos a serem derrotados.

Este tipo de lacração só interessa aos Estados Unidos. Que é o principal responsável pelos problemas que estes países e governos enfrentam.

Aliás, esta é a questão de fundo: o que é bom para os Estados Unidos, não é bom para a América Latina, nem para o Brasil, nem para o povo brasileiro, nem para o PT.

Paro por aqui, esperando que Cantalice escreva um novo tuíte dizendo mais ou menos o seguinte: falei merda, desculpa aí.




ps. cobrado, Cantalice esclareceu que "respondi a uma provocação depois do jogo do Vasco. Reconheci o erro e apaguei a postagem". Apagou a postagem e publicou o que segue abaixo. Melhor do que nada, mas obviamente o problema de fundo segue presente. Ademais, que pensar de quem as 8h00 chama alguém de ditador e as 9h32 muda de opinião??