Ontem a Voz do Brasil falou do novo arcabouço fiscal, incluindo várias frases do ministro Fernando Haddad e da ministra Simone Tebet, esta última particularmente entusiasmada.
O novo arcabouço
fiscal está sendo proposto como substituto ao “teto de gastos”, nome impopular
dado a emenda constitucional aprovada, no governo Temer, para regular as despesas
do governo.
O teto de
gastos serviu para legalizar um arrocho nas contas públicas. Arrocho seletivo,
porque uma parte dos gastos continuava protegido, enquanto outra parte era
arrochada.
Aliás, esta
é uma característica de várias iniciativas que, nas últimas décadas, supostamente
pretendiam garantir o “equilíbrio” via controle das despesas.
Foi assim
com a Lei de Responsabilidade Fiscal, imposta no governo FHC. Foi assim com a
regra do superávit primário, imposta nos tempos em que Palocci era considerado
um companheiro. E foi assim com o “teto de gastos” de Temer.
No lugar de
metas sociais, de crescimento e desenvolvimento, a lógica do controle de
despesas, tendo como método prejudicar um setor da sociedade, para garantir os ganhos
cada vez mais excessivos de uma minoria.
De um lado, as vítimas de sempre: os mais pobres, os trabalhadores, os pequenos
proprietários. Doutro lado, os beneficiados de sempre: os salários e rendas
mais altas, os grandes empresários, em particular os que ganham dinheiro no
mercado financeiro, com a alta taxa de juros e com a dívida pública brasileira.
Por isso
mesmo, durante o governo Temer e, depois, durante o governo cavernícola, o PT
sempre criticou o teto de gastos. E Lula, na campanha de 2022, prometeu que ia
acabar com o teto de gastos.
Supostamente,
este é o objetivo do novo arcabouço fiscal: se ele for aprovado, acaba o teto
de gastos.
Entretanto,
cabe perguntar: o que está sendo proposto, pelo ministro Haddad, com o apoio
entusiasmado da ministra Tebet, é uma mudança efetiva, em benefício dos mais
pobres, dos trabalhadores, dos pequenos proprietários? Ou equivale a trocar seis
por meia dúzia?
O ministro
Haddad diz que se trata de uma novidade; e que o Brasil sairá ganhando com a
troca, do teto de gastos pelo novo arcabouço fiscal.
Eu também
gostaria que fosse assim.
Mas ao ler e
ouvir o que Haddad disse, penso que estamos diante, não de um arcabouço fiscal,
mas sim de um novo calabouço fiscal. Um pouco mais espaçoso, mas ainda sim um
calabouço.
Vale lembrar
que ainda não foi divulgada a versão final da proposta. Portanto, pode ser que –
em relação ao que li e ouvi - alguma coisa mude para melhor.
Vale
lembrar, também, que pode mudar para pior, pois quem vai deliberar a respeito é
o Congresso nacional, onde a extrema direita e a direita neoliberal são ampla
maioria.
Feita esta ressalva,
alguns comentários mais.
Primeiro, é
muito grave que o ministro tenha aberto mão, já na largada, da intenção de
criar novos impostos que façam os ricos pagarem a conta.
Haddad, na entrevista
citada, diz que esta postura seria a materialização de uma promessa de Lula, a
saber: “colocar o pobre no orçamento e o rico no imposto de renda”.
Nesta linha,
Haddad diz que não vai criar novos impostos, nem vai aumentar a carga tributária,
que seu objetivo é fazer pagar os que deveriam pagar, mas não pagam, os impostos
já existentes. Ou seja: os que sonegam etc.
Acontece que
isto não é suficiente, nem é justo. Não é suficiente, pois precisamos de muitos
recursos para poder fazer o país crescer e se desenvolver.
E não é
justo, pois os impostos no Brasil são altamente regressivos. E do que
precisamos são novos impostos que recaiam sobre o patrimônio dos que são muito
ricos.
Temos
maioria no Congresso para aprovar isto? Provavelmente não. E nunca teremos, se
continuarmos abrindo mão deste objetivo. Mas dizer que é possível ajustar as
contas nacionais sem tributar pesadamente o patrimônio dos ricos é aceitar,
como horizonte, o status quo que temos hoje.
Por tudo
isso, é um imenso desserviço abrir mão, já na largada, do que é necessário e indispensável,
se realmente quisermos transformar o Brasil.
Este é o
primeiro problema da proposta de arcabouço fiscal.
O segundo
problema é que ela reintroduz a lógica presente no “teto de gastos”, embora com
outras regras e nomes, bem mais elegantes do que o estabelecido pelo vampiro golpista.
A regra proposta
por Haddad & Tebet é a seguinte: as despesas aumentarão até o teto de 70% do
crescimento das receitas. Portanto: se produzirmos mais, se arrecadarmos mais,
só 70% disso pode se converter em aumento das despesas.
Se o país
estivesse bem das pernas, esta regra poderia ser classificada como prudente. Mas
num país que precisa desesperadamente de crescimento, de desenvolvimento, de
bem estar social, essa regra 70/30 é uma bola de ferro presa no pé do Estado.
Na prática,
o que se está propondo é o seguinte: o papel do Estado na economia vai ser
tributar 100, devolver 70 para a sociedade e usar 30 para abater dívidas.
Com palavras
novas, é a mesma lógica que predominou na Lei de Responsabilidade Fiscal, no
superavit primário, no teto de gastos etc.
Há quem
acredite que, fazendo isso, o Banco Central vai reduzir os juros. E, com o BC
reduzindo os juros, o espírito animal do empresariado brasileiro vai fazer a
sua parte: os empresários vão investir e com isso o país vai crescer de maneira
“sadia” (a maneira não sadia seria, nesta lógica, o crescimento impulsionado
via endividamento público).
Pode ser que
a crença acima vire realidade?
Pode ser,
sempre pode ser, nesse mundo passa de tudo.
Mas o mais
provável é que prevaleça o que sempre prevaleceu em nossa história republicana:
só tivemos saltos em nosso desenvolvimento, quando o Estado assumiu a dianteira.
Mas como o
Estado vai assumir a dianteira, com uma bola de ferro atada no pé do Estado?
Há quem
argumente que a bola não é tão pesada assim, que podemos repetir a performance
do segundo governo Lula. No mundo dos cálculos econométricos, isso até pode
parecer assim; mas no mundo da economia política, o que se pode ver é um
crescimento inferior ao necessário para vencermos, por exemplo, nas eleições de
2024 e 2026.
Além disso,
há um “detalhe” adicional, que vários economistas petistas e amigos tem destacado:
a lógica 70/30 aponta para uma redução do setor público na economia. E, ato
contínuo, serve de argumento para a proposta de redução da carga tributária
sobre os ricos.
Claro, se o novo
arcabouço fiscal for aprovado tal como está sendo apresentado, algumas “despesas”
(como saúde, educação e previdência) estarão relativamente protegidas. Digo
relativamente, pois se trata de manter o status quo, que não é bom.
Mas para que
algumas “despesas” sejam relativamente protegidas, outras vão ter que sofrer
mais, para que média final possa ser 70/30.
A proposta
do novo arcabouço fiscal prevê, também, uma regra anticíclica, que Haddad
chamou de “colchão”; mas o colchão é fininho como aqueles levados para
acampamentos. Segundo entendi, em momentos de baixa arrecadação, o colchão
seria a inflação mais 0,5%.
Se a
economia brasileira e mundial estivessem bem, se a situação social fosse
razoável, esta regra estaria ótima. Mas num país cheio de desigualdades
estruturais, necessitando crescer muito e rapidamente, em tempos de crise e de
instabilidade mundiais, inflação mais 0,5% não merece ser chamada de política anticíclica.
A proposta
de novo arcabouço fiscal inclui também outras regras, inclusive a de atingir
déficit zero e depois superavit nos próximos anos. Seria uma homenagem involuntária
à proposta chamada de “tosca” por uma certa ex-presidenta?
Feitas as
contas, se esta proposta de arcabouço fiscal for aprovada e aplicada; e se tudo
acontecer como o ministro Haddad e a ministra Tebet prometem, corremos alto risco
de entregar o governo enxuto para a oposição assumir em 2027. Pois se não
houver uma virada agora, no biênio 2023-2024, o cenário político vai se
complicar muito. E o “plano de voo” do arcabouço prevê, implicitamente, que uma
virada – se houver – depende do investimento privado e do investimento externo.
Previsão que faz sentido, ao menos para quem acredita que a mão invisível do
mercado premia quem não gasta mais do que arrecada.
Cá entre
nós, de conjunto a proposta não me surpreende. Ela se enquadra no movimento
mais geral de adaptar-se à correlação de forças, ao invés de buscar pontos de
apoio para virar o jogo a nosso favor. Como disse, em entrevista recente, o secretário-executivo
do ministério da Fazenda: “a democracia
deve caber na regra econômica".
(Aqui um parêntesis: fiquei
impressionado pela quantidade de pessoas que afirmou ter havido um “equívoco de
interpretação” acerca do que disse o secretário-executivo. Ou seja: não é
apenas nas notas do BC que o javanês segue em alta. Mas, para infelicidade de
quem disse ter havido má interpretação, a proposta de arcabouço fiscal funciona
como uma pedra de roseta.)
Isto posto, o que devemos
fazer?
Criticar a proposta apresentada,
com o objetivo de que ela seja alterada.
Exigir que o governo se
comprometa com a tese de uma reforma tributária progressiva, que cobre novos e mais
impostos dos ricos.
Exigir que o governo subordine
as regras fiscais às metas sociais e de crescimento. Ou seja, submeter as
regras econômicas à democracia, e não o contrário.
E mobilizar a sociedade em
defesa de mais políticas para os pobres, mais impostos para os ricos.
Se não tivermos êxito nisso,
corremos o risco de viver, de novo, o que já vivemos no início do primeiro
governo Lula (2003-2006)
Dois anos de juros altos,
superavit primário e contenção. Uma derrota nas eleições municipais. E uma crise
de governabilidade no biênio pré-eleição presidencial.
Naquela ocasião, foi preciso
muito esforço para conseguir dar a volta por cima. Mas, naquela ocasião, enfrentávamos
uma única oposição (os neoliberais tucanos) e o mundo estava menos conflituoso.
Hoje enfrentamos duas oposições (a de extrema-direita e a neoliberal gourmet) e
o mundo está bem mais agitado, a começar pela guerra.
Para não dizer que não falei de flores: hoje é 31 de março, 59º aniversário do golpe militar. Um bom momento para dizer que precisamos derrotar, não só a herança maldita da ditadura militar, mas também a ditadura do capital financeiro, com seus calabouços fiscais e suas regras econômicas, mesmo quando vem embrulhadas como um ovo da Páscoa.