domingo, 18 de junho de 2017

Balanço dos governos nacionais petistas

Resolução aprovada por unanimidade, sem prejuízo de emendas, no recente Congresso nacional do Partido dos Trabalhadores. Versão já consolidada pela comissão de sistematização, faltando apenas revisão ortográfica.


Resolução sobre balanço dos governos nacionais petistas

1.O Partido dos Trabalhadores foi fundado em 1980, tendo realizado desde então seis congressos (contando o atual) e quinze encontros nacionais (inclusive dois extraordinários), mais um sem-número de reuniões estaduais, municipais e setoriais, que aprovaram resoluções programáticas, estratégias, táticas e organizativas.
2.De conjunto, estas resoluções contém não apenas um balanço do presente e diretrizes para o futuro, mas também uma análise do passado, inclusive da trajetória do Partido dos Trabalhadores, da ação de sua militância, de seus mandatos parlamentares e executivos, da contribuição que buscamos dar para a luta das classes trabalhadoras no Brasil e no mundo.
3.Portanto, ao incluir o tema “balanço” em sua pauta, o 6º Congresso não “inventou a roda”. Pelo contrário, pretendeu dar continuidade à uma prática crítica e autocrítica que o Partido dos Trabalhadores busca adotar desde sua criação.
4.Não somos os únicos a proceder assim. Tanto na esquerda brasileira quanto mundial, esta atitude crítica e autocrítica é almejada por muitos outros partidos. Mas nem todos possuem a pluralidade de opiniões que caracteriza o PT.
5.Nós sabemos que esta pluralidade não impediu nem impede, muito pelo contrário, que exista entre nós uma grande convergência em defesa de um conjunto de objetivos programáticos, entre os quais a luta contra todas as formas de opressão e exploração, a luta contra o capitalismo, o colonialismo e o imperialismo, a luta contra o machismo, o racismo e a homofobia, a defesa do socialismo democrático, do bem-estar social, da mais profunda democracia, da soberania nacional, do desenvolvimento sustentável, da integração regional, da paz e do desenvolvimento, assim como de uma nova ordem mundial.
6.A pluralidade interna ao PT tampouco impediu nem impede que tenhamos conseguido construir importantes sínteses estratégicas e táticas, nas lutas sociais e na ação institucional, bem como na busca de construir um partido socialista, de massas e democrático. 
7.Foi assim que construímos nosso Partido e desenvolvemos nossa ação, acumulando ao longo de quase quatro décadas um relevante conjunto de experiências em termos de organização popular, de luta social e de ação institucional, em todos os níveis. Experiências que a Fundação Perseu Abramo deve seguir sistematizando, debatendo e divulgando.

8.Sobre todas e cada uma destas experiências e formulações, há no interior do nosso Partido balanços muitas vezes diferenciados. Não achamos que isto seja um problema: trata-se de outra das muitas expressões de nossa pluralidade e, principalmente, de nossa democracia interna, que rejeita “vereditos oficiais” e não aceita “dar por encerrada a discussão”, especialmente sobre temas de natureza histórica, sobre os quais ainda se discutirá muito, sem que seja necessário emitir sobre eles qualquer pretensa “última palavra”.
9.Até porque nossas experiências e formulações não são propriedade privada do Partido dos Trabalhadores: elas fazem parte do patrimônio histórico do povo brasileiro. Primeiro, porque nossas experiências e formulações são inseparáveis das lutas deste povo. Segundo, porque o aprendizado acerca de nossas experiências e formulações está posto ao serviço das lutas populares. Terceiro, porque é inevitável, legítimo e necessário que haja um permanente debate – entre os que militam nas diferentes organizações populares -- acerca das formulações e experiências protagonizadas pelo PT.
10.Aliás, nosso Partido já produziu diferentes avaliações acerca de sua própria trajetória, assim como da trajetória de outras experiências de esquerda. Não apenas porque o PT é plural, não apenas porque esta pluralidade é distinta a cada momento, mas também porque nosso ponto de vista é resultado de um acumulado histórico – no qual se incluem valores, princípios e tradições que nos marcam desde a criação do Partido--, mas também sempre fortemente marcado pelas circunstâncias de cada época.
11.A época que vivemos, por exemplo, é caracterizada pela tentativa – patrocinada pelo grande capital e por seus instrumentos, especialmente o oligopólio da mídia – de desmoralizar e destruir o Partido dos Trabalhadores, bem como os avanços conquistados entre 1 de janeiro de 2003 e 12 de maio de 2016, período em que petistas estiveram à frente da Presidência da República.
13.Por isto, ao realizar o balanço deste período, não podemos deixar de enfatizar nossos êxitos. Não porque não tenhamos cometido erros, tampouco porque tenhamos sido exitosos em tudo. Aliás, se fosse assim, o golpe não teria ocorrido e viveríamos no socialismo. Enfatizaremos nossos êxitos, em primeiro lugar porque foi contra eles que os golpistas agiram e seguem agindo. Em segundo lugar, enfatizaremos nossos êxitos como resposta às mentiras e ao desmonte praticado pelos golpistas. E, em terceiro lugar, como um argumento adicional em defesa de nosso regresso à presidência da República.
14.Embora possa parecer óbvio, achamos necessário afirmar: se nós mesmos não defendermos o que fizemos, quem o fará? E se não temos motivos para defender o que fizemos, por que defendemos ser útil, ao povo brasileiro, o regresso do PT à presidência da República?
15.Ao destacar nossos êxitos, não deixaremos de apontar nossos erros e insuficiências. Está mais do que claro que os golpistas agiram contra nós, devido ao que fizemos de correto; mas também está claro que tiveram sucesso no golpe, também devido a nossos erros e insuficiências. Evidentemente, identificar quais foram estes erros e insuficiências não alterará a história que passou, nem reduzirá o tamanho da derrota que sofremos; mas contribuirá para que consigamos dar a volta por cima e possamos voltar mais fortes e mais capazes de triunfar.
16.É importante, quando falamos de nossos êxitos, recordar que nossos governos não foram homogêneos. Os governos Lula e Dilma não foram iguais; o primeiro mandato de Lula não foi igual ao segundo, assim como o primeiro mandato de Dilma não foi igual ao interrompido segundo mandato. Mas, quando comparamos o desempenho de nossos governos com o desempenho de governos anteriores (nos referimos aqui, especificamente, aos mandatos de Sarney, Collor, Itamar e Fernando Henrique), constatamos que existe uma diferença profunda: durante nossos governos houve uma melhoria no padrão de vida da maioria da população brasileira. Aliás, podemos dizer que durante os mandatos Lula e Dilma nosso país ocupou a vanguarda mundial no combate à fome, à pobreza e à miséria: dezenas de milhões de pessoas passaram a ter direito à vida. De inspiração antineoliberal, nossos governos implementaram não apenas políticas públicas de inclusão social e transferência de renda, mas principalmente de ampliação de direitos.

17.Elevar o padrão de vida da maioria da população brasileira também foi um  dos êxitos de nossos governos, a razão fundamental pela qual – independente dos nossos erros e insuficiências -- consideramos que valeu a pena e segue valendo a pena o esforço de construir o Partido dos Trabalhadores, participar das organizações e mobilizações das classes trabalhadoras, disputar eleições e exercer mandatos, travar a luta política, ideológica e cultural contra o capitalismo e em defesa do socialismo democrático.
18.Alguns – inclusive no próprio Partido dos Trabalhadores – interpretam a frase “melhorar o padrão de vida” de maneira reducionista, como se fora o mesmo que dizer “consumir mais”. Alguns fazem esta interpretação em tom de crítica, outros em tom de elogio. Estas diferentes interpretações remetem a uma questão extremamente importante: que tipo de sociedade almejamos e quais os variados caminhos para construí-la.
19.O conjunto das teses debatidas ao 6º Congresso Nacional do PT apontam que as classes trabalhadoras têm o direito de consumir mais; salientando, explícita ou implicitamente, que entendem isto como parte de um processo histórico que tornará possível, às classes trabalhadoras, assumir o controle das riquezas materiais e espirituais produzidas pela sua atividade criativa. Portanto, “consumir mais” não é nem pode ser um objetivo em si mesmo; pelo contrário, deve ser visto como parte de uma caminhada que inclui construir novos padrões de consumo e de vida em sociedade, de relação com outros povos e com a natureza. Motivo pelo qual, quando apontamos a ampliação do consumo individual e familiar como um desdobramento importante daquilo que nossos governos fizeram, também apontamos que não foi e/ou não deveria ter sido apenas isto o que fizemos e o que pretendemos fazer.
20.A geração de empregos vai muito além de proporcionar um salário: numa sociedade como a nossa, o desemprego tende a produzir todo tipo de constrangimento, sofrimento e humilhação. Já a geração de emprego gera não apenas desdobramentos econômicos, mas também efeitos culturais, sociais e psíquicos extremamente positivos, não apenas para um indivíduo, mas para o conjunto da vida em sociedade.
21.De maneira similar, o acesso à educação vai muito além de proporcionar qualificações técnicas e perspectivas futuras de melhoria salarial; ao possibilitar que milhões de trabalhadores e filhos de trabalhadores tenham acesso à escola, à educação e à cultura, estamos desprivatizando  e socializando o saber acumulado pela humanidade.
22.O acesso à casa própria vai muito além da redução do gasto com aluguel; trata-se de garantir que as pessoas do povo tenham sua moradia, seu teto, seu abrigo, seu lar, contribuindo para a segurança material e emocional, sem a qual os laços comunitários são mais facilmente ameaçados e destruídos.
23.O acesso à energia elétrica vai muito além da possibilidade de utilizar eletrodomésticos; trata-se de transportar para nosso tempo pessoas e regiões que vinham sendo mantidas em condições do século XIX e anteriores.
24.A bolsa família significa muito mais do que um dinheiro depositado numa conta bancária; assim como a política de reajuste do salário mínimo e das aposentadorias vai muito além de impedir a erosão inflacionária. Para milhões de pessoas, significa sentir-se parte de uma comunidade, significa demonstrar que compartilhamos responsabilidades e destinos, que ninguém pode ser sujeito ao abandono, à miséria, a privação, ao esquecimento e desemparo na doença e na velhice. Este talvez seja o sentido mais profundo de políticas como o SUAS e o SUS, entre muitas outras.
25.Portanto, quando observadas de conjunto, estas e outras políticas públicas que no curto prazo podem ter resultado ou efetivamente resultaram em ampliação do consumo, também tinham relação – algumas vezes tênue e contraditória, outras vezes intensa e cristalina  – com o projeto de devolver às classes trabalhadoras, enquanto indivíduos e enquanto coletivo, o produto do seu trabalho. E, ao mesmo tempo, de permitir às classes trabalhadoras afirmar outros padrões societários, internos e externos, de relação entre os seres humanos e de relação com a natureza. É por isto que governos que se empenharam em gerar empregos e aumentar os salários, também buscaram garantir e ampliar direitos, combater o racismo, a homofobia, a violência contra a mulher, a exclusão e desrespeito com os povos indígenas. É por isso que nossos governos, em sua política externa, romperam com o hábito de “falar fino com os poderosos e falar grosso com os frágeis”. É por isso, igualmente, que buscamos – ainda que com muitas contradições – superar o modelo predatório que caracteriza nossa economia há séculos. 
26.As teses debatidas no 6º Congresso não têm dúvida em apontar os limites de tudo que fizemos e o tanto que deixamos de fazer. Até porque não se conseguiria mudar, em menos de duas décadas, séculos de história. O que mais importa é que estas teses deixam claro que pretendemos voltar a governar e o faremos reafirmando que não queremos ser um país plutocrático, a serviço dos que ganham sem trabalhar; nem queremos ser país falsamente meritocrático, que garante para alguns padrões de “classe média”, às custas de muitos que são privados do acesso ao consumo e aos direitos. Queremos ser um país onde as classes trabalhadoras tenham um alto padrão de vida, material e cultural, com base em novos paradigmas de consumo e de vida em sociedade, de relação com outros povos e com a natureza.
27.Sabemos que para atingir estes objetivos é necessário garantir fortes políticas públicas, que não apenas materializem mas que também permitam ampliar de forma expressiva e continuada os direitos. Neste sentido, com todos os limites que possam ter tido e que efetivamente tiveram, os governos Lula e Dilma construíram experiências que contrastam com a lógica anteriormente predominante em diversas esferas do Estado: a ideia de que políticas públicas são precárias por natureza, ineficientes, quando muito tratadas como matéria prima de marketing, carentes da seriedade e da atenção que devem merecer ações cujo destinatário é o povo brasileiro.
28.Se os governos Lula e Dilma construíram e apontaram para aquele tipo de experiências, contrastantes com o que pensava e ainda pensa a classe dominante deste país, é antes de mais nada porque, ao longo de sua história de 37 anos, o Partido dos Trabalhadores desenvolveu uma prática que apontava num sentido inovador. Fizemos isto contribuindo para a organização e participando da luta das classes trabalhadoras, de todos os setores explorados e oprimidos. Fizemos isto através da ação de governos municipais e estaduais, da luta parlamentar e de leis por nós propostas, das lutas políticas e sociais que o PT protagonizou ou integrou. Os governos Lula e Dilma são e devem ser vistos como uma parte importante desta trajetória. Não como seu ápice, nem como seu final, pois muito ainda há o que fazer e muito mais ainda conseguiremos fazer: transformações profundas e estruturais, em direção ao socialismo democrático.
29.O golpismo busca desmontar, no plano simbólico e material, as ações implementadas por nossos governos nacionais no sentido de melhorar o padrão de vida da maioria da população brasileira. As teses debatidas no 6º Congresso apontam que o trabalho deletério dos golpistas foi facilitado pela política econômica adotada no início do segundo mandato da presidenta Dilma, política que -- para além dos efeitos econômicos e sociais que produziu -- teve como principal efeito político desorientar parte de nossa base social e eleitoral. Os golpistas contaram, também, com a força do oligopólio da mídia, contra o qual nossos governos não tomaram as medidas reclamadas pelo nosso Partido e por grande parte da esquerda brasileira. Os golpistas se beneficiaram, ainda, da hegemonia que as forças de centro-direita seguiram mantendo sobre grande parte das instituições brasileiras, desde o Judiciário até o Congresso Nacional, que não foram objeto de uma reforma política e de Estado. Contribuiu para o golpe o controle do capital financeiro, transnacional e oligopolizado sobre a economia nacional, controle explícito no financiamento privado empresarial das eleições, assim como nas operações de sabotagem e desestabilização econômica que foram praticadas contra nossos governos. Nossos governos enfrentaram de forma tímida o capital financeiro. Deveríamos ter realizado uma auditoria cidadã e soberana da dívida pública e denunciado ao povo brasileiro o quanto dos recursos públicos são destinados ao esquema da dívida. Finalmente, mas não menos importante, o golpismo foi em alguma medida estimulado, respaldado e orientado por agentes estatais e não estatais estrangeiros.
30.Nunca é demais repetir que o programa político, econômico e social do golpismo foi derrotado nas eleições de 2002, 2006, 2010 e 2014. Sendo que nas três últimas eleições presidenciais, o povo avaliou e aprovou, majoritariamente, as realizações dos governos Lula e Dilma. Todavia, há pesquisas que informam que parte importante da população brasileira aprovou o que fizemos, votou em nossas candidaturas, mas não compreendeu adequadamente o vinculo existente entre nossas realizações administrativas e um determinado programa, uma visão de mundo.
31.Neste sentido, é preciso reconhecer que falhamos em explicar e convencer o conjunto de nosso eleitorado, que os êxitos obtidos por nossos governos só foram possíveis ali onde conseguimos construir políticas publicas que materializassem uma visão alternativa e antagônica à concepção neoliberal, entreguista e antidemocrática que foi hegemônica na presidência da República, entre 1990 e 2002.
32.Não é segredo que existem em nosso Partido diferentes opiniões acerca do quanto fizemos. Há quem esteja convicto de que fizemos o máximo que a correlação de forças permitia e permitiria. Há os que afirmam que poderíamos e deveríamos ter feito mais. Há quem esteja convencido de que conciliamos em demasia com os interesses do grande capital, do agronegócio e da especulação financeira.
33.Mas é importante ressaltar que nenhuma das posições apresentadas durante o 6º Congresso Nacional do PT duvida que -- especialmente quando comparados ao governo usurpador -- nossos governos efetivaram políticas públicas que buscavam implantar outra concepção de desenvolvimento, expressa por exemplo na política externa altiva e ativa, no arquivamento do projeto de Área de Livre Comércio das Américas (ALCA), no estreitamento dos laços com os vizinhos da América do Sul, no aprofundamento de projetos comuns aos BRICS, nas relações com o continente africano; nas políticas de participação popular; na Lei da Partilha do Pré-Sal; na retomada do papel protagonista do Estado, tanto no desenvolvimento econômico quanto na ampliação do bem-estar social.
34.As teses debatidas no 6º Congresso destacam, especificamente, um conjunto de ações e políticas que ampliaram os direitos, a saúde e a educação da classe trabalhadora, especialmente das mulheres, da juventude, dos negros e das negras: a Política de Valorização do Salário Mínimo, a PEC das Domésticas, a Lei Maria da Penha, o Programa Bolsa Família, que em 2016 mantinha 13,9 milhões de família fora da extrema pobreza, o programa Mais Médicos, a política de Cotas, a ampliação do investimento público total em educação em relação ao PIB, de 4,5% em 2004 para 6,2%, em 2013.
35.Portanto, as teses destacam nossos êxitos em termos de ampliação do bem-estar social, das liberdades e direitos democráticos, de fortalecimento da soberania e da integração regional, êxitos reconhecidos pela maioria do eleitorado em 2006, 2010 e 2014. Mas apesar disso, fomos vítimas de um golpe jurídico, parlamentar e midiático. Golpe que foi seguido de uma eleição municipal em 2016, em que as candidaturas petistas tiveram – com exceções – um desempenho negativo.
36.As teses debatidas no 6º Congresso do PT apontam que o golpe foi em grande medida uma reação do grande capital nacional e internacional, do oligopólio da mídia e de diferentes setores da direita, dentro e fora do Estado brasileiro. Reação contra nós, contra o que nós somos, contra o que nós efetivamente fizemos, contra o que eles temiam que poderíamos vir a fazer e, também, reação contra nossa recusa em capitular e implementar o programa dos golpistas. Uma reação que não se dirigia apenas contra nossos governos, mas contra o que há de mais combativo na classe trabalhadora e no conjunto do povo brasileiro. Uma reação que tinha e tem como objetivo efetivar um programa antipopular e antinacional, um programa derrotado nas urnas nas quatro últimas eleições presidenciais, um programa que visa ampliar os padrões de lucratividade do capital. O golpe foi a saída encontrada pelas oligarquias financeiras, industriais, agrárias, midiáticas e pelos partidos que as representam para subordinar a política econômica aos pressupostos da ortodoxia neoliberal em sintonia com a tendência mundial do capitalismo de concentrar e exportar capitais, ampliando a financeirização da economia no contexto da globalização. Trata-se de aplicar outro projeto de país, projeto que envolve uma visão sobre o Estado e suas instituições, sobre a economia, as relações de trabalho, a sociedade, a política, o poder coercitivo, a democracia, a cultura, os valores, os modos de vida.
37.Não há consenso, nas diferentes teses debatidas no 6º Congresso Nacional, acerca dos motivos pelos quais o golpe foi vitorioso. Nem tampouco há consenso acerca da relação entre o golpe e aquilo que fizeram e/ou deixaram de fazer nossos governos nacionais.
38.Mesmo quando manifestam opiniões parecidas, as teses apresentam nuances importantes, seja para compreender o que ocorreu, seja para contribuir para nossas ações futuras. Mas é comum a todas as teses apontar a relação entre a política econômica adotada no segundo mandato da presidenta Dilma e o golpe finalizado em 31 de agosto de 2017. Assim como é comum a todas as teses apontar não apenas os erros cometidos pelos governos, mas também os erros cometidos pelo Partido, assim como as debilidades dos movimentos sociais.
39.No que diz respeito especificamente ao governo Dilma, é importante lembrar a crítica feita pelo próprio Diretório Nacional do Partido, transcrita em algumas teses. Ao invés de acelerar o programa distributivista, como havia sido defendido na campanha da reeleição presidencial em 2014, o governo adotou medidas de austeridade sobre o setor público, os direitos sociais e a demanda. O ajuste fiscal, além de intensificar a tendência recessiva, gerou confusão e desânimo na base social petista: entre os trabalhadores, a juventude e a intelectualidade progressista, disseminou-se a sensação, estimulada pelos monopólios da comunicação, de estelionato eleitoral. A popularidade da presidenta rapidamente despencou. As forças conservadoras sentiram-se encorajadas a buscar a hegemonia nas ruas, pela primeira vez desde as semanas que antecederam o golpe militar de 1964. O enfraquecimento da esquerda, nos meses seguintes à vitória apertada no segundo turno de 2014, rapidamente alterou a correlação de forças no país, dentro e fora das instituições. A direita retomou a ofensiva. As frações de centro, assistindo o derretimento do governo na opinião pública, começaram a se descolar da coalizão presidencial, deslizando para uma aliança conservadora que impôs seguidas derrotas parlamentares à administração federal. Apesar de seguidas decisões do Partido, apontando ser indispensável mudar a política econômica para recuperar apoio político e social, o governo prosseguiu no rumo que escolhera, agravando as dificuldades. E se distanciando do que era efetivamente necessário, a saber: recompor o equilíbrio fiscal através da tributação dos mais ricos e desmontar o oligopólio dos bancos, entre outras medidas que permitissem recursos para o Estado aprofundar políticas de desenvolvimento com distribuição de renda. Portanto, não um reordenamento orçamentário, mas sim um novo ciclo programático baseado em reformas estruturais, sem o que o processo de desindustrialização e dependência externa vai se aprofundar, conduzindo o Brasil a uma situação econômica que já experimentamos antes da Revolução de 1930.
40.Como já foi dito por resoluções partidárias, registradas em algumas teses, o golpe confirmou que a burguesia, em determinada correlação de forças, pode até aceitar certas mudanças nos períodos expansivos, quando avanços das camadas populares não resultam em diminuição de seus ganhos absolutos ou relativos. Mas a burguesia oferece brutal resistência quando esse equilíbrio distributivo está sob ameaça, particularmente nas fases de contração econômica. Noutras palavras, pode-se dizer que uma tentativa de golpe viria, mais cedo ou mais tarde, sejam quais fossem as formas e os pretextos.
41.Nesse sentido, como é dito em várias teses,  deveríamos compreender que a hegemonia dos trabalhadores no Estado e na sociedade não depende exclusiva ou principalmente de administrações bem-sucedidas, nem tampouco de maiorias parlamentares, mas sim da construção de uma força política, social e cultural capaz de dirigir a sociedade e as instituições, derrotando nossos inimigos em todos os terrenos. Para construir esta força, deveríamos ter costurado um programa e uma aliança estratégica entre os partidos populares e os movimentos sociais, que pudesse ampliar o peso da esquerda, dentro e fora das instituições.
Deveríamos, ainda, ter desenvolvido um trabalho articulado de disputa de hegemonia pelo partido, pelos governos petistas e pelas bancadas, através de políticas de estado e das políticas partidárias de formação e comunicação, dentre outros.
Sem isto, o nosso crescimento institucional foi insuficiente e, além disso, foi contaminado pelo financiamento empresarial de campanhas, afetando nossa nitidez político-ideológica, expondo negativamente nossa imagem, abrindo flancos para ataques de aparatos judiciais controlados pela direita.
42.Como isto não ocorreu, nosso balanço é chamado a explicar por quais motivos o impeachment foi aprovado por um parlamento onde a “base do governo” era supostamente majoritária; respaldado por um Supremo Tribunal Federal composto, em sua ampla maioria, por ministros indicados por presidentes petistas; apoiada em provas produzidas por investigações conduzidas por um Ministério Público e por uma Polícia Federal fortalecidas em nossas gestões; e publicizada por meios de comunicação financiados, em boa medida, através de verbas publicitárias do governo federal. Sem falar que Temer, o usurpador, teve sua candidatura a vice-presidente da República respaldada pelo voto amplamente majoritário de dois encontros do PT.
43.Sobre cada um destes pontos, as teses debatidas no 6º Congresso oferecem diferentes interpretações. Algumas apontam para a existência de uma estratégia de conciliação de classes, que inclusive não teria se preparado para a hipótese de ocorrer uma reação golpista. Outras interpretações reconhecem decisões efetivamente incorretas, mas consideram que elas teriam se dado nos marcos de uma estratégia correta, que buscou levar em conta a correlação de forças. Independente da opinião que tem acerca destas diferentes interpretações, a maioria das teses aponta que nosso retorno ao governo deveria ser acompanhado da criação de condições para uma reforma geral nas instituições, a ser feita através de uma Assembleia Nacional Constituinte.
44.Outro ponto presente em todas as teses é o tema da corrupção. É feita uma crítica da corrupção e da promiscuidade público/privado, seja enquanto componente indissociável do capitalismo em geral e da história do Estado burguês no Brasil, seja enquanto “efeito colateral” dos mecanismos de financiamento privado empresarial. 
45.Embora haja diferentes e algumas vezes muito contraditórias apreciações nas teses debatidas no 6º Congresso, pode-se dizer que todas apontam ser indispensável superar a adaptação do Partido ao modus vivendi da política tradicional no Brasil. Algumas teses destacam como exemplo principal de “adaptação” as coligações eleitorais com partidos de centro-direita, especialmente o PMDB. Outras destacam o estabelecimento de uma relação tradicional entre partido e governo, com o primeiro subordinando-se ao segundo, o que inclusive impediria o desempenho adequado e a defesa eficaz de ambos.
46.Na opinião de algumas teses, este processo de adaptação teria levado o PT, inclusive, a não travar alguns debates políticos e ideológicos apontados como decisivos. Embora cada tese faça sua lista específica, todas apontam que, em nome de cálculos eleitorais e/ou de governabilidade institucional, teríamos deixado de debater ou teríamos feito concessões em diversos temas, entre os quais são citados a questão do aborto, a segurança pública, a taxação das grandes fortunas, a reforma política, a reforma do sistema penitenciário, a reforma agrária, a defesa dos povos indígenas, entre outros. Há teses que chamam a atenção para o fato de que recusamos a tese formal da autonomia do Banco Central, mas que na prática esta autonomia foi exercida, beneficiando os interesses rentistas. Além disso, muitas resoluções de Conferências Nacionais – como as de Educação, Saúde, Direitos Humanos e Comunicação – teriam sido deixadas de lado.
47.Diversas teses fazem uma crítica enfática ao que consideram uma determinada interpretação do “republicanismo”, que teria nos levado a decisões equivocadas em questões relativas ao Ministério Público, a Procuradoria Geral da República, ao Supremo Tribunal Federal e a Polícia Federal. Na opinião destas teses, sem aquele tipo de “republicanismo” a Operação Lava Jato e, antes dela, a Ação Penal 470 não teriam conseguido instalar uma “justiça de exceção”, organizada pelo objetivo de destruir o PT e Lula. Com o mesmo propósito, mas utilizando uma terminologia distinta, há teses que criticam a crença na neutralidade das instituições.
48.A título de conclusão, podemos afirmar que – ao tratar do tema “balanço” -- as teses debatidas no 6º Congresso nacional discutem em que medida a ação dos nossos governos influiu e deixou de influir na relação de forças entre as classes sociais existentes no Brasil.
49.Do ponto de vista da ação presente e futura do Partido, o 6º Congresso considera que esta é uma das questões fundamentais sobre as quais devemos nos debruçar, se quisermos voltar a governar o Brasil e se quisermos ser vitoriosos numa próxima experiência governamental. A saber: como utilizar nossa presença no governo nacional para alterar a relação de forças na sociedade brasileira. Ou, dito de outra forma: o que fazer para fortalecer cultural, política e economicamente as classes trabalhadoras? Como atrair os setores médios, buscando impedir que eles se convertam em tropa de choque da reação? Que ações implementar com o objetivo de dividir e enfraquecer o poder cultural, político e econômico da classe dominante? Responder a estas perguntas é uma das principais contribuições que o balanço pode e deve dar para a discussão sobre nosso programa, nossa estratégia, nossa tática e nossa política de organização.
50.Concluímos enfatizando este último ponto: mudar o Brasil implica em conquistar governos, mas exige principalmente construir um novo poder. E construir um novo poder é uma tarefa das organizações da classe trabalhadora, entre as quais o próprio Partido dos Trabalhadores. Neste sentido, talvez um de nossos maiores erros tenha sido acreditar ser possível terceirizar, para os governos, tarefas políticas, sociais e culturais que cabiam antes de tudo ao próprio Partido.
51.Reconhecer este erro e tomar as medidas práticas para que ele não se repita – realizando mudanças no trabalho de massas cotidiano, no discurso feito junto à sociedade, na política de alianças, na atitude perante as instituições do Estado, no peso do institucional, nos costumes, no direcionamento das atividades partidárias, no esforço para produzir uma cultura e uma elaboração teórica à altura das necessidades – é o principal sentido das resoluções de balanço do 6º Congresso do Partido dos Trabalhadores.



domingo, 11 de junho de 2017

Antonio Martins e o otimismo seletivo da esquerda não petista

Recomendo a leitura do texto abaixo, de Antonio Martins, publicado no Outras Palavras.

http://outraspalavras.net/capa/jeremy-corbyn-revela-outra-esquerda-e-possivel/

Primeiro e principalmente, pelo que ele informa acerca da Inglaterra e de Jeremy Corbin.

Segundo, por que ele revela um traço muito curioso do pensamento de certa esquerda não petista .

Esta esquerda não petista está sempre atenta aos sinais que vem do exterior: o altermundismo, o Podemos, o Syriza, Parti de Gauche, Melenchon, agora Jeremy Corbin.

Além de atenta -- no que faz muito bem -- é cheia de otimismo com o que acontece lá fora.

Nisto, lembram a atitude de parte dos setores médios brasileiros, quando se trata de comparar o Brasil com o resto do mundo.

Voltando à esquerda não petista, lhes falta otimismo quando se trata de analisar a situação do Partido dos Trabalhadores.

Cá entre nós: se comparamos a história do Labour Party com a história do Partido dos Trabalhadores, o PT ganha de longe em termos de radicalidade e compromisso de classe.

E mesmo assim foi possível à esquerda ganhar o Labour.

Porém, quando se trata do Brasil, Antonio Martins afirma que aqui não há "um instrumento político, uma forma de organização em que possam debater, permanecer mobilizadas, construir visões coletivas sobre o mundo, o país e sua cidade. Os partidos já não cumprem este papel. Não surgiu ainda nada como um Podemos ou como a rebeldia de Jeremy Corbyn no Partido Trabalhista britânico."

Imagino quantas vezes o próprio Jeremy Corbin deve ter ouvido este tipo de profecia acerca do Labour.

Imaginem se ele tivesse acreditado nisto.

Caso Corbin tivesse dado ouvido para os "Antonios Martins" da Inglaterra, o Antonio Martins do Brasil não poderia estar comemorando agora.

 


quarta-feira, 7 de junho de 2017

Haddad e o republicanismo inocente, de autoria do professor Yuri Soares

Haddad e o republicanismo inocente
* Por Yuri Soares

O ex-prefeito de São Paulo Fernando Haddad fez um relato de sua recente trajetória política na revista Piauí nº 129, da editora Abril. Haddad comenta acontecimentos e reflexões sobre suas gestões no MEC, na prefeitura, campanhas eleitorais e reuniões com lideranças. A íntegra pode ser lida aqui: https://www.evernote.com/shard/s35/sh/ca05532e-84ac-49e5-bec6-6e4466abcad5/d9cfff537612f4c1
Por se tratar de uma narrativa de cunho pessoal se torna difícil estabelecer um debate público e coletivo em torno dos temas abordados. Mesmo assim creio ser necessário abordar alguns fundamentos políticos presentes nas suas observações.
Haddad acerta ao apontar o patrimonialismo, ou a “versão beta do cronycapitalism, o capitalismo clientelista ou de compadrio” como origem da corrupção no Brasil.
No entanto o seu longo relato possui algumas inconsistências. Seria cansativo para o autor e principalmente para o leitor destrinchar cada ponto abordado pelo ex-prefeito. Decidi, portanto, me restringir a algumas questões especialmente importantes.
Haddad é extremamente condescendente, para dizer o mínimo,com o entreguismo de FHC. Este jamais pensou um plano para que o Brasil pudesse ter uma melhor inserção no mercado internacional. Quando se trata de políticas públicas a prática é o critério da verdade, e não podemos medir governantes por suas supostas vontades, mas sim pelas decisões tomadas e ações realizadas. A pecha de entreguista neoliberal só colou em FHC por condizer com os fatos concretos realizados durante seu governo que reforçam esta tese. Fernando Henrique Cardoso jamais buscou reposicionar o Brasil, apenas adaptá-lo à divisão internacional do trabalho e as novas configurações do capitalismo internacional. E isto não por ser refém das baixas pretensões das nossas classes dirigentes, mas por ser ele próprio representante do projeto político e econômico fruto da aliança entre as elites econômicas e políticas locais e internacionais que lhe deram sustentação.
Não fica claro qual seria a proposta de “acerto de contas com 1932”. Aparentemente Haddad, assim como boa parte da intelectualidade uspiana, não analisaram corretamente o papel da elite paulistana no conflito e tampouco digeriu a derrota.
Na análise da política econômica ele acerta ao criticar o fato de Dilma ter comprado uma agenda equivocada, elaborada em parte pela Fiesp: desonerações, redução da tarifa de energia elétrica (que beneficiou principalmente as indústrias), swap cambial, administração de preços públicos etc. Como sempre, os empresários ficaram com os lucros para si e os prejuízos foram socializados.
Sobre as alianças do último período Haddad continua refém da ilusão nas aproximações com o PMDB como garantia de estabilidade. Ele aparenta criticar a guinada de Dilma quanto esta isolava o partido no Governo Federal, enquanto em âmbito municipal PT e PMDB se aproximavam. O problema maior não é escolher entre PMDB e PSD, entre Chalita e Kassab, mas entre modelos de sustentação política, baseados em acordos de gabinetes ou em pressão popular sobre os parlamentos e governos. 
Em tom de brincadeira Haddad diz que perdeu as eleições para a prefeitura porque "faltou comunicação". O problema da ironia neste caso é a ausência de uma posterior análise séria sobre os motivos que levaram a derrota. Esta mereceria um longo e detalhado debate político ainda ausente, que levasse em conta a conjuntura nacional e local, os atores políticos envolvidos e também uma série de autocríticas por parte do partido e do próprio prefeito. Não adianta apenas analisar as jogadas dos adversários como determinantes do resultado da partida, é preciso refletir sobre os nossos posicionamentos e ações. Ou somente bastaria que Marta e Erundina não tivessem sido candidatas para que sua candidatura obtivesse êxito?
Sobre os meios de comunicação Haddad critica corretamente o tratamento desleal que lhe foi dado durante sua gestão, apesar de sua relação pessoal cordial e amistosa com as famílias proprietárias destes meios. No entanto ele não tira daías devidas ações necessárias. O problema não é somente falta de regulação do mercado, é também a inexistência de grandes meios de comunicação da própria esquerda, nos tornando reféns das pautas e narrativas dos nossos adversários.
Concordo com Haddad que a ilusão da esquerda com a internet e as redes sociais é equivocada. Vários estudos demonstram que o fluxo da informação ainda se origina nos grandes meios de comunicação. E todos sabemos que as plataformas são de propriedade de empresas estrangeiras. Sem debater a sério o papel da internet controlada pelo imperialismo nos golpes de novo tipo estaremos sempre reféns da manipulação estrangeira que Putin e Erdogan alertaram a Dilma e Lula. Não foi à toa que na Rússia e na China foram criadas ferramentas e plataformas de comunicação e redes sociais próprias.
É equivocada a avaliação positiva e sem críticas que ele faz do fortalecimento da PF e da autonomia do MP que foi feita por nós. E que as práticas patrimonialistas se fixariam justamente onde esses órgãos tinham um espaço muito menor de atuação.É fato que estas instituições precisam ser fortalecidas, mas com algum tipo de controle social. Quando um determinado aparato do Estado passa a gozar de total independência sem se reportar a ninguém, ele próprio se torna uma corporação a serviço do patrimonialismo das elites. Afinal de contas, quem vigia os vigilantes?
Cabe lembrar que mesmo nos Estados Unidos da América inexiste tamanha autonomia. Recentemente o presidente Donald Trump demitiu o diretor do FBI, James Comey, que o investigava por ligação com a Rússia, sob uma genérica explicação que ele não seria capaz de, efetivamente, comandar o FBI.
Haddad faz uma série de críticas a várias instituições: Ministério Público, justiça, imprensa, partidos e lideranças. Ele, no entanto, não aprofunda sobre a necessidade de mudanças estruturais nestas áreas, o que certamente significaria uma política de ruptura, em contraposição à política de conciliação que tivemos até este momento.
Ficamos com a pergunta em aberto sobre qual seria a arena da grande política que Haddad cita? Sem se basear no antagonismo entre as classes, entre as elites e a maioria do povo, entre imperialismo e desenvolvimento nacional soberano, Haddad parece se fundamentar muito mais numa oposição etapista entre atraso e modernidade, patrimonialismo e social-liberalismo.
Me pergunto se os atores desta grande política serão as maiorias em luta nas ruas, nas praças, nas escolas, universidades e locais de trabalho ou serão os puros filósofos políticos de centro-esquerda e centro-direita unidos sob a bandeira de um “republicanismo” inocente e anacrônico.
Ao contrário do que afirmam alguns intelectuais, a apropriação privada do Estado não se restringe à Portugal e tampouco é mero resquício de um modelo arcaico que sobreviveu à modernização. Todo Estado está a serviço de algo ou de alguém. Em um país capitalista periférico como o nosso, está aparelhado, apropriado e a serviço das elites locais atrasadas e subservientes.
A arena de combate hoje se dá em torno defesa dos direitos da maioria do povo contra a concentração de renda e privatização das vidas, sonhos, cidades e países em nome do lucro de poucos. O cenário atual impede qualquer tipo de diminuição de desigualdade e ampliação de políticas sociais sem avançar sobre as riquezas do andar de cima.
O lamento de Haddad, sem enxergar a origem terrena da força do gigante chamado patrimonialismo, é incapaz de apontar para um enfrentamento consequente deste. Tal qual o Anteu da mitologia grega, é preciso lhe retirar a base de sustentação para matá-lo.
Não é possível combater o efeito sem atingir sua origem. Somente atacando as elites e seus aparatos será possível combater o seu patrimonialismo.


* Yuri Soares é professor de História e Secretário de Políticas Sociais da CUT Brasília

Voltar aos 17

Este texto foi publicado na edição digital da revista Esquerda Petista número 7.

Centenário
Voltar aos 17
Valter Pomar
Corria o ano de 1986. O PT tinha seis anos de idade, a CUT três. As duas organizações decidiram investir na formação política. Com o apoio direto de alguns sindicatos, adquiriram as instalações de um hotel desativado, situado no município de Cajamar (SP), que fica entre Jundiaí e São Paulo, na Via Anhanguera km 46,5. Naquele lugar começou a funcionar o Instituto Cajamar, também conhecido como Inca.
O presidente do Inca era o educador Paulo Freire. A lista de diretores incluía Arlindo Chinaglia, Avelino Ganzer, Frei Betto, Gilberto Carvalho, Jorge Coelho, Luis Gushiken, José Luís Gon- çalves, Luiza Erundina, Olívio Dutra, Paul Singer, Paulo Schilling, Perseu Abramo, Rui Falcão e Walter Barelli. O cotidiano do Inca era de responsabilidade de uma coordenação executiva integrada por Osvaldo Bargas, Aloizio Mercadante, Devanir Ribeiro, Durval de Carvalho, Luiz Azevedo, Miguel Rupp, Nobuko Kameyama, Pedro Pontual, Regina Festa, Wander Bueno Prado, Wladimir Pomar e Wilson Santa Rosa.
Faziam parte do Conselho Fiscal do Instituto Cajamar Maurício Soares de Almeida, Valderi Antão Ruviaro, Djalma de Souza Bom, José Cicote, Epitácio Luís Epaminondas e Marcos Antonio Vitorino de Almeida.
Na época, foi uma grande novidade. Uma “casa de encontros” que não era de propriedade, nem tampouco gerida por instituições religiosas. Cursos de formação que duravam uma semana ou quinze dias. Conteúdos abordados de um ponto de vista marxista, numa instituição dirigida por petistas vinculados à “Articulação dos 113”.
Em 1987, por ocasião do septuagésimo aniversário da Revolução de Outubro de 1917, o Inca promoveu um seminário internacional intitulado “70 anos de experiências da construção do socialismo”. O seminário foi realizado entre os dias 20 a 24 de novembro de 1987. As palestras e debates foram gravados, transcritos e publicados em um livro editado pelo economista Carlos Eduardo Carvalho. Intitulado 1917-1987: Socialismo em debate, o livro foi lançado em agosto de 1988. Seu expediente relaciona, além do supracitado Carlos Eduardo, os seguintes colaboradores da edição: Marco Aurélio Garcia, Marcos Piva, Rui Falcão, Valter Pomar e Wladimir Pomar.
A “apresentação” do livro, assinada pelo setor de publicações do Instituto Cajamar, esclarece que “dificuldades impostas pelo governo brasileiro na concessão do visto diplomático impediram” a entrada no país, a tempo, do representante do Instituto de América Latina da Academia de Ciências da URSS. E a “coincidência de datas entre a realização do Seminário e o 13º Congresso do PC Chinês impediu a vinda de estudiosos” daquele país.
O livro traz, ainda, uma relação dos participantes do seminário, indicando além do nome e sobrenome, o cargo ocupado à época. A saber: Luiz Inácio Lula da Silva (presidente nacional do Partido dos Trabalhadores), Luís Carlos Prestes (ex-secretário geral do Partido Comunista Brasileiro), Aloizio Mercadante (coordenador do departamento de estudos e pesquisas do Instituto Cajamar), Apolonio de Carvalho (membro do Diretório Nacional do PT), Benedito de Carvalho (ex-dirigente do PCB e ex-dirigente do Partido Comunista do Brasil), Camilo Domenes (subdiretor do Centro de Estudos da América, Havana), Cézar Alvarez (membro do Diretório Regional do PT do Rio Grande do Sul), Clara Charf (membro do Diretório Regional do PT de SP), Claus Germer (militante do Partido dos Trabalhadores), Clovis Ilgenfritz (membro do Diretório Nacional do PT), Daniel Aarão Reis (historiador), David Capistrano (militante do PT), Eduardo Suplicy (membro do Diretório Nacional do PT), Emir Sader (historiador), Eneida Soler (presidenta do Sindicato dos Artistas do Estado de SP), Fúlvio Abramo (Diretor do Centro Mário Pedrosa), Gilberto Carvalho (presidente do Diretório Regional do PT do Paraná), Jacob Gorender (historiador, ex-dirigente do Partido Comunista Brasileiro Revolucionário), Jair Meneguelli (presidente da Executiva Nacional da Central Única dos Trabalhadores), José Dirceu (secretário-geral do Diretório Regional do PT de SP), Juan Valdez (chefe do Depar- tamento de América Latina do Centro de Estudos da América, Havana), Leonardo Boff (teólogo franciscano), Lafaiete Santos Neves (ex-presidente do Diretório Regional do PT do Paraná), Lúcio Jimenez (secretário-geral da Central Sandinista de Trabalhadores da Nicarágua), Luis Favre (membro do coletivo da Secretaria de Relações Internacionais do PT), Luís Flávio Rainho (pesquisador do Centro Ecumênico de Documentação e Informação), Luiz Gushiken (deputado federal do PT), Marcelo Deda (deputado estadual do PT de Sergipe), Mário Barbosa (diretor do Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo do Campo e Diadema), Marco Aurélio Garcia (diretor do Arquivo Edgar Leuenroth da Unicamp), Marcos Arruda (pesquisador e educador popular), Marco Piva (membro do coletivo da SRI do PT), Osvaldo Bargas (coordenador-geral do Instituto Cajamar), Paulo Azevedo (presidente do Sindicato dos Metroviários de SP), Paulo Vannuchi (assessor de formação política do Sindicato dos Metalúrgicos de SBC e Diadema), Paul Singer (membro da assessoria econômica do DN do PT), Pedro Tonelli (deputado estadual do PT do PR), Perly Cipriano (presidente do PT do Espírito Santo), Rui Falcão (secretário de formação política do Diretório Regional do PT de São Paulo), Selvino Heck (deputado estadual do PT do Rio Grande do Sul), Valter Pomar (membro do coletivo da Secretaria de Formação Política do PT de São Paulo), Vicente Paulo da Silva (presidente do Sindicato dos Metalúrgicos de SBC e Diadema), Vito Letizia (historiador) e Wladimir Pomar (coordenador-geral adjunto do Instituto Cajamar).
A exposição principal sobre a experiência soviética foi feita por Jacob Gorender, Leonardo Boff e Vito Letizia. O debate sobre a experiência chinesa foi aberto por Wladimir Pomar e Benedito Carvalho, um dos participantes do levante comunista de 1935. O caso cubano foi apresentado por Juan Valdez, seguido de comentários de Emir Sader e José Dirceu. A Nicarágua foi tratada por Lucio Jimenez e Marcos Arruda. Depois das falas principais, ocorreram debates, de que participou grande parte dos presentes ao seminário.
Ler o livro e recordar as polêmicas do seminário promovido há 30 anos pelo Instituto Cajamar suscita diversas questões, entre as quais a sensação de um “debate interrompido”.
Debate interrompido pela ofensiva neoliberal; pela capitulação de grande parte da social-democracia europeia e do nacional-desenvolvimentismo latino-americano; pelo colapso da União Soviética e do tipo de socialismo que havia no Leste Europeu; e pela crise do movimento comunista. Debate interrompido, também e paradoxalmente, pelos êxitos relativos da esquerda brasileira, com destaque para o PT, que em 1988 foi o grande vitorioso das eleições municipais e em 1989 quase venceu, com Lula, as eleições presidenciais.
Quando a Revolução de Outubro comemorou seus 80 anos (1997) e seus 90 anos (2007), havia deixado de existir uma parte importante do mundo sobre o qual discutimos no seminário “70 anos de experiências da construção do socialismo”. E muitas das questões que então havíamos debatido, deixaram de ser ou deixaram de parecer essenciais, pelo menos aos olhos de muita gente.
Nos últimos dez anos, a situação mudou novamente. A partir da crise mundial de 2008, muitas daquelas antigas questões voltaram a ser ou pelo menos voltaram a parecer ser essenciais. Sem dúvida isto tem alguma relação com a impressionante concentração de efemérides. No espaço de dez anos, entre 2014 e 2024, chegam ao centenário: o começo e o fim da Primeira Guerra; a Revolução de Fevereiro e a Revolução de Outubro de 1917; a Revolução Alemã de 1918; a criação da Internacional Comunista, a fundação do Partido Comunista da China e do Partido Comunista do Brasil; o assassinato de Rosa Luxemburgo e vários de seus camaradas alemães; o falecimento de Lenin. Além dos 200 anos de nascimento de Karl Marx e a publicação de livros clássicos como Imperialismo, etapa superior e O Estado e a Revolução, ambos de Lenin. Mas para além do “efeito efeméride”, a retomada do interesse no debate sobre o socialismo em geral e sobre a Revolução Russa em particular tem outras causas.
Em primeiro lugar, porque vivemos um cenário internacional que possui algumas semelhanças com o que ocorreu no início do século XX: o declínio da potência hegemônica, a ascensão de novos polos de poder, o acirramento das contradições intercapitalistas, a importância do capital financeiro e do imperialismo. Malgrado as óbvias diferenças, o ambiente de 2017 lembra em vários aspectos aquele que desembocou na Primeira Guerra Mundial. Vivemos uma profunda crise mundial e momentos assim tornam inescapável certa “volta aos clássicos”. A Revolução Russa de 1917 é um caso clássico, do ponto de vista dos que estudam a dinâmica do capitalismo e de suas crises. Um caso tão clássico quanto o da Revolução Francesa de 1789, neste caso do ponto de vista dos que estudam a dinâmica do feudalismo e de suas crises.
Em terceiro lugar, muitas das antigas questões voltaram a ser ou pelo menos a parecer ser essenciais, porque a crise de 2008 e o que veio depois colocaram com extrema força e urgência o debate sobre o capitalismo, sobre as crises de acumulação, sobre o capital financeiro, sobre o papel do Estado, sobre o imperialismo e as guerras. Temas sobre os quais há contribuições relevantes feitas pelos revolucionários russos, como Bukarin e Lenin, antes e depois de Outubro de 1917. E, principalmente, contribuições práticas, tanto originadas da Revolução Russa de 1917 quanto dos que reagiram a ela.
De maneira mais geral, a análise marxista sobre o capitalismo voltou à moda. Análise que sempre foi muito cara para as diferentes tradições socialistas existentes na Rússia − anarquistas, populistas, social-democratas e comunistas, que dedicaram grande energia ao debate acerca do modo de produção capitalista, em particular à discussão sobre seu desenvolvimento e crises.
A história é conhecida: logo depois da primeira edição de O Capital, foi publicada uma tradução em russo. A situação excêntrica do Império Russo, um pé na Ásia e outro na Europa, um pé no feudalismo e outro no capitalismo, um pé no atraso e outro na modernidade, obrigou os pensadores russos de todos os matizes a se debruçar sobre a relação desigual entre desenvolvimento econômico e desenvolvimento político, a dialética entre os diferentes tempos e conteúdos da (re)evolução política e da (re)evolução econômico-social.
Em quarto lugar, cabe lembrar que a tradição socialista vitoriosa na Revolução de Outubro (os social-democratas da fração bolchevique, que em 1918 adotaram o nome de “comunistas”) investiu grande parte de suas energias no debate sobre o papel do proletariado na luta pela democracia e pelo socialismo. Num país onde o proletariado era uma parcela diminuta da população, isto implicou em debater de maneira integrada a rela- ção entre “proletariado” e “campesinato”, entre “cidade” e “campo”, entre “partido e classe”, entre “teoria” e “prática”, entre “ditadura” e “democracia”. Questões que certas tradições acadêmicas tentam abordar fragmentariamente, como “objetos” particulares da economia, da sociologia, da política, da cultura, da história etc.
Cem anos depois, acompanhando a difusão do capitalismo, a maior parte da população trabalhadora mundial é assalariada. Um proletariado que continua “compartilhando” a condição de vítima da exploração capitalista com outra classe, a dos trabalhadores pequenos proprietários. Um proletariado que se tornou mais universal, mas não se tornou mais homogêneo: tanto mundialmente quanto em cada país, segue composto por diferentes frações econômico-sociais (por exemplo: operários e não operários), atravessado por conflitos nacionais, étnicos, de gênero, geracionais, culturais e religiosos. Características que fazem com que o debate sobre as formas de luta e de organização, de comunicação e cultura, especialmente a necessidade de partidos políticos “de novo tipo”, ganhe novamente grande importância no debate político contemporâneo. E como fazer este debate, sem reler o que disse, por exemplo, Lenin?
Há cem anos, como hoje, muitos socialistas lamentavam a divisão nas forças da esquerda, as traições, as vacilações, o ambiente de confusão e divisão existente na classe trabalhadora. E deduziam daí que a revolução socialista seria adiada por muitos anos e décadas, pessimismo reforçado por uma interpretação tosca acerca dos caminhos pelos quais a quantidade se transforma em qualidade.
Outra semelhança fundamental entre hoje e a situação vigente há cem anos: as crises do capitalismo e suas decorrências políticas e sociais, entre as quais a obscena desigualdade. “Voltar aos 17” é também buscar descobrir que condições objetivas e subjetivas fizeram com que uma situação de “defensiva estratégica” fosse convertida numa “ofensiva revolucionária” que marcou a história do século XX.
Para os que vivemos na América Latina e Caribe, há mais uma causa que explica a retomada do interesse no debate sobre o socialismo em geral e sobre a Revolução Russa em particular. Desde 1998 até hoje, vários países da região são governados por partidos que pretendem estar construindo o socialismo ou, pelo menos, caminhando em direção a ele. Isto produziu uma retomada do debate sobre a transição socialista, debate que na América Latina e Caribe é temperado pelos pontos de contato que existem entre o populismo russo do século XIX e a “esquerda populista” do século XXI.
Os populistas russos, ao menos em sua versão clássica, acreditavam que seria possível construir o socialismo sem passar pelo capitalismo, tomando como ponto de apoio as tradições coletivistas do campesinato russo. Lenin iniciou sua trajetória política combatendo essa teoria, mas o curso dos acontecimentos o levou a capitanear um experimento que foi considerado, por alguns de seus adversários no movimento social-democrata, uma variante do “populismo”. Posteriormente, todas as chamadas revoluções socialistas do século XX ocorreram em países em que o capitalismo estava pouco desenvolvido. Recolocando novamente a questão: quais os vínculos entre a construção do socialismo e o desenvolvimento do capitalismo, nos planos da economia, da sociedade, da cultura e da política?
Responder de forma sólida a esta questão supõe revisitar o debate sobre a Revolução de Outubro, sobre o processo de construção da União Soviética, sobre as concepções e as práticas do movimento comunista ao longo do século XX. Debate que está sintetizado em expressões como: “transição”, “socialismo”, “socialismo real”, “ditadura do proletariado”, “estado operário burocraticamente degenerado”, “capitalismo de Estado”, “modo de produção asiático”, “stalinismo”, “totalitarismo”, “social-imperialismo”. Debate que está diretamente relacionado com as diferentes caracterizações que se faz, hoje, acerca da República Popular da China.
No final de 1991, televisões de todo o mundo transmitiram a cena: pela última vez desde então, a bandeira da União das Repú- blicas Socialistas Soviéticas desceu o mastro onde estava hasteada, no Kremlin. Desmoralizando as previsões dos teóricos do “totalitarismo”, a URSS caiu devido à suas próprias contradições internas.
No mundo inteiro, no Brasil e no PT, foram tempos para lembrar que, como tantas outras obras humanas, a Revolução Russa de Outubro de 1917 fora carregada de tragédias e crimes, lama e sangue, dor e violência, imperfeições e debilidades. E que nenhum processo histórico deve ser considerado “irreversível”.
Mas foram tempos também para defender, em certos momentos contra quase tudo e contra quase todos, que diferente de outras obras humanas, a Revolução Russa de Outubro de 1917 fora um esforço titânico para materializar os ideais de igualdade, liberdade e fraternidade. Metas algum dia compartilhadas pela burguesia, mas que desde há muito constituem parte do legado e patrimônio da classe trabalhadora.
Hoje, décadas depois do fim da URSS, parece mais evidente que a contribuição global da Revolução de Outubro de 1917 para a humanidade foi positiva. “Convicção” que pode ser sustentada com inúmeras “provas”, entre as quais a contribuição que a Revolução deu para a luta pelos direitos iguais para as mulheres; para a batalha por políticas públicas de saúde, educação, cultura, esportes, habitação e transporte; para a adoção do planejamento econômico; além da contribuição, direta e indireta, para a luta contra o imperialismo, contra o colonialismo, o racismo e o nazismo, assim como a luta em favor da paz. E também, acima de tudo, a tentativa de superar o capitalismo e iniciar a transição socialista em direção a uma sociedade comunista.
Neste ano de centenário, centenas de milhões de pessoas − muitas delas latino-americanas e brasileiras − vão perguntar novamente: qual a herança da Revolução Russa de 1917?
Ao publicar uma segunda edição fac-símile de 1917-1987: Socialismo em debate, a Fundação Perseu Abramo dá uma importante contribuição para ajudar a responder tal questão.


Valter Pomar é professor de relações internacionais na UFABC. Trabalhou no Instituto Cajamar durante 1987 e 1991, nos departamentos de estudos e pesquisas, recursos pedagógicos e também como professor nos cursos de formação política.

terça-feira, 6 de junho de 2017

Hora de quebrar ovos

O texto abaixo foi enviado para publicação no dia 25 de maio. Está disponível na edição de julho de 2017 da Le Monde Diplomatique Brasil, podendo ser acessado no endereço http://diplomatique.org.br/hora-de-quebrar-ovos





Hora de quebrar ovos

No dia 17 de maio de 2017, o sonho do PSDB parece ter ido a pique. Segundo este sonho, Temer faria o serviço sujo, as eleições de 2018 seriam vencidas por um dos tucanos históricos, o país voltaria a crescer, devidamente alinhado com os EUA, sem espaço para “lulopetismos” e com o “custo Brasil” (leia-se: salários e direitos) devidamente arrochado.

O torpedo foi disparado pela Procuradoria Geral da República e pelas Organizações Globo, ao divulgarem o diálogo criminoso entre titulares da empresa JBS e o senador Aécio Neves (PSDB-MG).

Se tivesse ficado nisso, poderíamos estar diante de uma jogada calculada: sacrificar Aécio, para tentar dar credibilidade a um “ataque final” contra Lula. Acontece que divulgaram também um diálogo criminoso mantido por Michel Temer. E junto com os diálogos vieram fotos e filmes de assessores carregando malas de dinheiro.

Há quem diga que, incapaz de fazer frente a crescente mobilização popular -- que teve na greve de 28 de abril um ponto destacado -- Temer deixara de ser funcional para o golpismo. Mas, qualquer que tenha sido a motivação original da PGR e da Globo, a situação ganhou vida própria, afetando o PSDB, ampliando a rejeição contra Temer, mudando o patamar da crise que vive o país e aprofundando a polarização, tendência que deve aprofundar-se, inclusive durante e depois da próxima eleição presidencial, quem quer que vença.

Importante dizer que, se não houver alteração constitucional nem interdição ilegal da candidatura Lula, a tendência é que as próximas eleições presidenciais -- em 2017 ou 2018 -- sejam decididas num segundo turno entre a direita e a esquerda. Mais exatamente entre alguém “padrão” Bolsonaro ou Dória contra Lula.

Os golpistas continuam trabalhando para impedir que Lula concorra às eleições presidenciais. Eles imaginam que isto dividiria o eleitorado lulista entre os adeptos do boicote, os adeptos de uma candidatura petista, os adeptos da esquerda antipetista, os adeptos de Ciro Gomes etc. 


Tal fracionamento facilitaria a vitória de uma candidatura de direita. E poderia ter como efeito colateral desconstituir o bloco democrático-popular que, desde 1989, constitui uma alternativa de governo que polariza a disputa política do país.


Entretanto, nada garante que seja possível interditar Lula, ao menos respeitando minimamente as aparências e os prazos previstos em lei. Afinal, trata-se não apenas de condenar sem provas em primeira instância, mas também condenar em segunda instância, em tempo recorde e novamente sem provas.


Nada garante, também, que interditar juridicamente Lula o impeça de “transferir votos” para outra candidatura, que ao final possa sair vitoriosa. Ademais, se a direita vier a vencer as eleições graças à interdição de Lula, o resultado pode ser mais crise, inclusive devido à baixa legitimidade do novo presidente frente a uma situação marcada por grandes conflitos políticos e sociais.


Noutras palavras, aos golpistas não basta impedir Lula de concorrer. Nem basta prosseguir na tentativa de demolir a imagem e a capacidade operativa do presidente Lula, do PT e de outras instituições e símbolos do campo democrático e popular. Afinal, mesmo após 12 anos em que vem sendo vítima de uma campanha sistemática de desconstrução, o PT e Lula seguem liderando as pesquisas de opinião. Motivo que leva setores do golpismo a defender uma mudança no sistema político.

As alternativas em estudo, que vão do adiamento das eleições até a implantação do parlamentarismo -- assim como as hipóteses vocalizadas por cavernícolas, tais como o magnicídio e uma saída jurídico-militar -- constituiriam um golpe dentro do golpe, para impor as contrarreformas, para impedir a vitória de Lula, para não ter que depender de um novo Collor.

Ainda não está claro como as elites poderiam materializar este golpe dentro do golpe.  As alternativas envolvem operações complexas, como uma “renúncia acordada” de Temer, um mandato tampão de Rodrigo Maia ou Carmem Lúcia (presidente da Câmara e presidenta do STF, respectivamente), a eleição indireta de um personagem como Henrique Meirelles ou Nelson Jobim. E mesmo assim não se teria conseguido remover aquilo que os golpistas consideram uma “pedra no meio do caminho”: a eleição presidencial direta em 2018. Também por este motivo, há quem defenda, nos meios golpistas, a convocação de um arremedo de Constituinte, através da qual buscariam por fim à crise, legitimar as contrarreformas e a mudança no sistema político.

Evidentemente, para que possam materializar um desfecho como o descrito, não basta a conciliação entre os golpistas. Motivo pelo qual é essencial o contraponto dos setores populares, reafirmando que não existe solução democrática que não inclua a saída imediata de Temer e a convocação de Diretas Já.

Esta unidade popular é fundamental, não apenas para sabotar uma “saída por cima”, mas também para impedir que a direita sequestre a insatisfação popular, como de certa forma ocorreu em determinado momento das manifestações de 2013! 

Entretanto, entre os que defendem o Fora Temer e as Diretas Já, há diferenças importantes no terreno da tática, da estratégia e do programa.

No terreno estratégico e programático há, por exemplo, um velho e conhecido debate acerca de como enfrentar o neoliberalismo: se a partir de um programa de capitalismo democrático-nacional ou se a partir de um programa democrático-popular e socialista. Dito de outra forma, para que a população apoie com radicalidade a “Democracia” e a “Nação”, será ou não essencial defender a “Igualdade”?

Na tática também há variados pontos de vista, desde os que falam em “volta Dilma” até os que não descartam a hipótese de participar, mesmo que de forma encoberta, de uma eventual eleição indireta. Passando, ainda, pelos que apoiam Lula e indo até aqueles que se opõem à candidatura Lula, seja por sonharem com uma alternativa “mais à esquerda”, seja por acreditarem que a retirada de Lula facilitaria a luta por Diretas Já e também a constituição de uma frente progressista, por exemplo, em torno de Ciro Gomes. Vale lembrar que o apoio popular à Lula faz com que ele seja um candidato eleitoralmente mais amplo do que eventuais alternativas.

Finalmente, há nas forças populares um debate sobre como relacionar a luta democrática e nacional, com a luta em defesa dos direitos sociais afetados pelas contrarreformas. Debate diretamente relacionado com outro: a importância de combinar as manifestações de rua, com greves que paralisem a produção.

A crise política e a queda na popularidade de Temer aumentaram e muito a possibilidade de uma vitória popular na batalha em defesa da previdência. O que teria efeitos extremamente positivos, entre os quais consolidar -- no imaginário de vastos setores da classe trabalhadora -- a greve geral como um instrumento de luta possante e exitoso.

A crise também ampliou as possibilidades – por enquanto muito pequenas -- de vitória popular no enfrentamento da contrarreforma trabalhista. Até agora, a compreensão popular sobre o tema é menor do que no caso da previdência. O enfraquecimento de Temer nos garante mais tempo para organizar, esclarecer e mobilizar.


Por outro lado, fatos como a abertura de processo contra Temer e a prisão preventiva da irmã de Aécio Neves criaram um álibi e uma cortina de fumaça que fortalecem a decisão, tomada pelo “juiz” Moro há muito tempo, de condenar Lula. Mesmo sem provas, não faltariam elogios à "higienização das instituições" que estaria sendo promovida pela Operação Lava Jato. Isto apesar de que a situação atual demonstre exatamente o contrário: a Lava Jato vinha acobertando Temer, Aécio & Cia, pois tem como objetivo central criminalizar a esquerda. 

Os efeitos colaterais de uma condenação sem provas não parecem preocupar a facção golpista de que Moro faz parte. Apesar do primitivismo e mediocridade de seu cabeça mais visível, esta facção é a vanguarda do golpismo, entre outros motivos por saber que não se faz omelete sem quebrar os ovos.


Como disse Moro em declaração publicada pela imprensa no dia 17 de maio: “O Brasil encontra-se em uma encruzilhada. É possível avançar na implementação do Estado de Direito e no fortalecimento da democracia, o que exige o enfrentamento da corrupção sistêmica. Ou é possível retroceder ao status quo anterior, de desenfreada corrupção sem responsabilização. A passagem entre um modelo de privilégio para um modelo de responsabilidade não se faz sem turbulência”.


De fato turbulência é o que não faltará, não apenas devido ao que ocorre na “grande política”, mas também por causa da piora na situação econômica e social.

As contrarreformas reduzam o valor pago aos trabalhadores e ampliam os recursos disponíveis ao Capital, mas a conjuntura global e a situação interna são desfavoráveis ao crescimento. A tendência é a ampliação do desemprego, da desassistência e da miséria. O que, como é óbvio, não contribui para estabilizar o cenário político.

Até o dia 17 de maio, vivíamos uma crise político-institucional, caracterizada pela crescente desarmonia e conflitos entre os “poderes” da República. Desde então, estamos ingressando em uma “crise de regime”. Noutras palavras, numa situação que pode desembocar numa mudança do regime político do país.

No varejo, isto pode se explicar assim: o caminho escolhido para atacar Lula e o PT, a implementação da “ponte para o futuro” e o clima de radicalização decorrente polarizam o país entre alternativas (como Lula, Dória e Bolsonaro) que não são exatamente as preferidas pela cúpula de diferentes setores do golpismo. O aprofundamento da polarização, por sua vez, faz crescer a possibilidade de um “pronunciamento” militar, mesmo que venha fantasiado de toga. Noutras palavras: a crise das instituições tende a se converter numa crise de regime, podendo levar a uma ruptura da institucionalidade vigente.

No atacado, a explicação para o surgimento de uma crise de regime está na dificuldade cada vez maior de aparecer uma solução para a crise nos marcos da atual institucionalidade, no descompasso entre as necessidades das diferentes classes sociais versus os limites impostos pela atual constitucionalidade, na distância cada vez maior entre a profundidade da crise e as capacidades e pretensões dos que controlam as instituições de Estado.

Na história do Brasil já assistimos situações semelhantes.  Algumas poucas vezes, a mobilização popular prevaleceu e a crise foi resolvida através do exercício das liberdades democráticas. No mais das vezes, prevaleceu o acordo por cima, sustentado muitas vezes por intervenções militares.  Não faltando quem alimentasse ilusões nos “setores patrióticos” das Forças Armadas, que antes como hoje estariam supostamente incomodadas com o entreguismo, com a corrupção e o caos social. 

Importante levar em consideração, também, que a tendência à polarização e a crise não é restrita ao Brasil. É uma tendência latino-americana e também mundial. O golpe no Brasil só ganha pleno sentido e lógica quando o inserimos nas movimentações dos EUA, especialmente no sentido de enfrentar a China e aliados, inclusive militarmente.


Apesar destes enormes perigos, a presente crise constitui uma nova chance para o conjunto da esquerda brasileira. Mas para aproveitar esta chance, é importante responder ao seguinte: a crise que o país vive pode ser solucionada através de uma negociação entre as partes em conflito? Ou a crise que o país vive exige uma derrota profunda de uma das partes em conflito?


O golpe de 31 de agosto, tudo o que ocorreu antes e depois, bem como o apoio dos “jovens ricos educados” à alternativas tipo Bolsonaro e Dória indicam que uma parte das elites já decidiu qual seu caminho: aprofundar o golpismo, se necessário com doses de militarização. Tudo leva a crer que a maior parte das elites tocará a música de sua jovem guarda.


Como impedir que as alternativas de direita se concretizem? Alguns setores acham que contribuiremos para isto se “despolarizarmos” a disputa. Este é o espírito que move diversas outras iniciativas autodenominadas “progressistas” e “nacional-populares”: ceder parte dos interesses do campo popular, em troca de supostas "garantias democráticas". 


O principal problema deste tipo de “solução” é que ela consiste em tentar impedir nossa derrota através de uma autoderrota. Uma consequência prática disto seria a de que não haveria reversão, mas sim aprofundamento da “ponte para o futuro”. E já sabemos (vide a Europa e os EUA) o que tende a ocorrer quando a esquerda capitula enquanto o tecido social se deteriora.


Outro caminho para impedir as alternativas de direita consiste em ampliar a mobilização popular.  A Frente Brasil Popular, o PT, a CUT, o MST, a CMP, a UNE, a Frente Povo Sem Medo e todas as organizações do campo democrático, popular e de esquerda precisam insistir na campanha pelo Fora Temer e Diretas Já; defender os direitos e enfrentar as contrarreformas; colocar em pauta a necessidade de uma Assembleia Nacional Constituinte, como mecanismo democrático que propomos para reordenar as instituições e indicar o tipo de desenvolvimento que queremos para o Brasil; e, ao menos no caso do PT, apresentar desde já a candidatura de Lula presidente.

Não necessariamente a mobilização será suficiente para impedir desfechos como as indiretas, a interdição de Lula e o parlamentarismo. Mas, mesmo na pior das hipóteses, a mobilização ajudará a preparar o povo brasileiro para as duras lutas que virão.

Seja no melhor, seja no pior cenário, devemos nos preparar para um período em que a luta de classes assumirá formas mais duras, mais confrontativas e mais violentas do que no período 2003-2016. Inclusive se a esquerda vencer a próxima eleição presidencial, a tendência seguirá sendo a ampliação dos conflitos. Em resumo: também precisaremos estar dispostos a quebrar ovos.

Valter Pomar é professor do bacharelado de relações internacionais da Universidade Federal do ABC.