quarta-feira, 31 de maio de 2023

Glosando Fernando Haddad

A revista Veja entrevistou o ministro da Fazenda Fernando Haddad.

A entrevista está disponível aqui: veja.abril.com.br/economia/haddad-fala-a-veja-sobre-aprovacao-do-marco-fiscal-vitoria-do-brasil

Tratando-se da Veja, toda edição é suspeita (a maldição de Tutancâmon).

Feita esta ressalva, passo aos comentários.

Um dos objetivos da entrevista é apresentar Haddad como o “adulto na sala”, tentando contrapor o ministro ao PT e inclusive ao presidente Lula.

Isso fica explícito em duas perguntas, a saber: 

“A presidente do PT, Gleisi Hoffmann, foi contrária à reoneração dos combustíveis. Como é enfrentar a oposição do PT em determinados assuntos?”

“O senhor voltou a enfrentar a resistência de setores do PT na questão do marco fiscal. É desgastante a relação com o partido?”

Na resposta à segunda questão, Haddad diz o seguinte: “Na minha cabeça, não. Eu funciono bem ouvindo opiniões divergentes. O que é importante é o seguinte: tem uma coreografia que tem de ser compreendida. É a política. Qual a alternativa a isso? Calar as pessoas? É muito pior do que ouvi-las. Então, eu ouço todo mundo, e numa circunstância política em que o Brasil está precisando de entendimento. A regra fiscal é uma das inúmeras medidas que nós vamos ter de implementar. Eu preciso passar para a sociedade que essa regra fiscal não é do PT ou da esquerda. Que uma boa parte do PT sabe que nas circunstâncias atuais a economia brasileira não prescinde de uma regra um pouco mais dura. As divergências têm de se manifestar, mas sem colocar em risco as medidas que precisam ser tomadas para o bem de todos nós”.

Há vários pontos interessantes nessa resposta. 

Por exemplo, o reconhecimento de que a regra fiscal é “um pouco mais dura”, uma regra que “não é do PT ou da esquerda” mas, apesar disso, uma medida “para o bem de todos nós”.

O mais interessante, ao menos para mim, é a palavra “coreografia”. 

A depender do humor de quem leia, passa a impressão de que as críticas feitas por petistas ao marco fiscal não passariam de jogo de cena.

Acontece que não são. 

Como sabe quem se deu ao trabalho de ler a declaração feita por 22 parlamentares, assim como as críticas feitas por vários petistas, alguns dos quais economistas, outro marco fiscal era possível.

Mas, claro, quem achava que as críticas eram apenas coreografia, provavelmente cumpriu a obrigação de ouvir “todo mundo” (até os petistas!), ligou a primeira e seguiu em frente. 

Confesso que não me surpreendo: já vi atitude similar ser adotada por outros ministros da Fazenda, em outros governos petistas. Assim como já vi Lula dar cavalo de pau.

De toda maneira, Haddad faz bem em reconhecer que a regra fiscal aprovada não é do PT ou da esquerda. Nem dele, diga-se, pois o que foi aprovado não foi a proposta originalmente apresentada pela Fazenda, mas sim uma versão reformulada pelo relator Cajado (PP da Bahia), fazendo do marco fiscal algo muito mais duro.

Infelizmente, Haddad não faz nenhuma referência a isso – ao menos na versão publicada da entrevista. 

Perguntado pela Veja, se a “aprovação do marco fiscal foi uma vitória do Congresso ou do governo?”, Haddad responde que “a aprovação do marco é uma vitória do Brasil”.

Como se pode ver, está fazendo escola o estilo Padilha de comemorar como nossa vitórias alheias.

Podemos concordar ou discordar acerca de qual deveria ser o marco fiscal, podemos concordar ou discordar acerca da tática a adotar frente à maioria de direita existente no Congresso nacional, mas não é razoável – em nome da verdade dos fatos – apresentar o marco fiscal aprovado como uma “repactuação em torno de um projeto nacional”. 

A não ser, é claro, que passemos a acreditar que “projeto nacional” possa ser corporificado em metas como superávit primário e déficit zero.

Aliás, alguém acredita que o mesmo Congresso capaz de aprovar o marco temporal, seria capaz de colocar no “centro das atenções” o “interesse nacional”??

Compreendo perfeitamente que, do seu “lugar de fala”, Haddad não possa falar tudo o que pensa. 

Mas não compreendo que ele fale algo que simplesmente não corresponde aos fatos. Afinal, diversas das alterações introduzidas por Cajado são simplesmente maléficas e, entre outros efeitos, vão servir de pretexto para que se questione o piso constitucional da saúde e da educação.

Talvez Haddad minimize isso, por dois motivos. 

O primeiro motivo é que ele parece acreditar (se é que entendi direito o que ele falou na reunião com a executiva nacional do PT, pouco antes de reunir com Cajado, quando este ainda não havia apresentado seu relatório) que os juros vão diminuir, o crescimento e a arrecadação vão crescer e, portanto, os limites e restrições previstos no marco fiscal não vão causar dano algum. Algumas de suas respostas à entrevista para a Veja estão carregadas deste otimismo

O segundo motivo é que ele parece estar embevecido pelo próprio “desenho”. Nas suas palavras: “o marco fiscal deveria ser visto a partir de dois ângulos. O primeiro é o ângulo do desenho, que foi aplaudido por unanimidade, como quando nós introduzimos o regime de meta de inflação. Não vejo força política querendo abrir mão desse instrumento. O segundo ângulo são os parâmetros desse desenho. E aí é natural que, dependendo da sua visão de mundo, dependendo da sua visão de Estado, puxe um pouquinho pra cá, um pouquinho pra lá”. 

Não sabia da “unanimidade”, a respeito da qual lembro do Nelson Rodrigues. 

Concursos de beleza à parte, o problema é que os “parâmetros” aprovados pela Câmara puxaram “um pouquinho para lá” as coisas, em prejuízo do crescimento e do bem-estar social.  

Mas, ao invés de destacar isso, dando à César o que é de César e a Cajado o que é de Cajado, Haddad prefere destacar a beleza do desenho: “cada governo você vai poder fazer pequenos ajustes nesses parâmetros em relação aos resultados pretendidos. O que é bonito desse desenho é que o estado liberal cabe dentro dele, um estado mais social cabe dentro dele, um estado mais desenvolvimentista cabe dentro dele, ou seja, é um desenho que admite a pluralidade de opiniões com uma unidade em torno do objetivo pretendido, que é garantir a estabilidade social e fiscal do país”.

Não é lindo? 

Lindo, mas não é fato. 

Haddad parece acreditar que criou um marco fiscal elástico, que pode ser adotado por todas as orientações. 

E, de fato, sempre pode existir, em uma medida econômica, algum aspecto mais ou menos “universal”. 

Mas, tirando os truísmos e obviedades tão ao gosto da economia vulgar, a ilusão de Haddad deriva principalmente da crença, muito comum nos tempos em que vivemos, de que alimentar o capital financeiro é a condição sine qua non de tudo o mais.

A esse respeito, aliás, é muito revelador que ele diga o seguinte:  “câmbio, os juros e as projeções de crescimento (…) estão sendo recalculadas para melhor. O próximo passo é a reforma tributária. Estou muito convicto de que nós vamos ter um choque de produtividade na economia brasileira com a reforma tributária, que é o nosso principal gargalo. O Brasil não vai avançar sem enfrentar esse debate sobre produtividade. E, do meu ponto de vista, a produtividade está intrinsecamente ligada ao caos tributário. Não é possível avançar num ambiente tão hostil à concorrência justa, à transparência. Ninguém consegue planejar o longo prazo com o nível de insegurança jurídica tanto para o Fisco quanto para o contribuinte. A base fiscal tem de ser uma rocha.”

De fato, precisamos de uma reforma tributária, especialmente de impostos sobre as grandes fortunas. Não basta, a esse respeito, combater a sonegação e rever isenções.

Mas a narrativa segundo a qual os problemas de “produtividade” na economia brasileira derivam do “caos tributário” provém da outra margem do rio. Assim como vêm da outra margem do rio raciocínios do tipo “Nós reoneramos os combustíveis, revertendo aquele populismo que tentou influir na eleição”.

E por falar em influir na eleição, Haddad afirma explicitamente o seguinte: “Tem uma pressão por gastos que nós temos de acomodar. Temos de equilibrar o Orçamento para que o senhor tenha a liberdade de corrigir injustiças sociais”. Isso tem de ser feito de maneira moderada, para que eu tenha espaço para cortar o gasto no patamar necessário. Não vai acabar o mundo se não for no primeiro ano, se for no segundo ano, porque o Brasil é grande demais, o Brasil tem reservas, o Brasil não tem dívida externa, o Brasil não é uma republiqueta que precisa sair correndo atrás de uma solução de um mês. Mas nós temos de sinalizar para a sociedade, para os investidores internacionais, que estamos numa trajetória consistente. É isso que estou fazendo”.

Entendo a lógica segundo a qual se deve “sinalizar para a sociedade” e, também, para os “investidores”. E concordo que o mundo não vai acabar “se não for no primeiro ano, se for no segundo ano”. O mundo de fato não vai acabar, mas governos podem "acabar" se não corrigirem as injustiças sociais com muita rapidez, se cometerem muitos erros políticos etc.

(Coloco na conta da edição enviesada de Veja a frase segundo a qual a correção das injustiças sociais deve ser feita de maneira moderada, “para que eu tenha espaço para cortar o gasto no patamar necessário”. Pois Haddad certamente não pensa isso, mas sim o contrário, ou seja, que os cortes de "gastos" devem estar à serviço da correção das injustiças sociais, e não o contrário.)

E por falar em erro político, é surpreendente a ingenuidade da resposta dada por Haddad acerca do agronegócio. Reproduzo a seguir.

Veja: “Por que o governo enfrenta resistência do agronegócio?”

Haddad: “Do ponto de vista econômico, nunca houve diferença entre o governo Lula nos seus dois mandatos e o agro. Ao contrário: a maior expansão da produção agrícola da história se deu nos oito anos de governo Lula. O maior saldo comercial, a maior transação comercial de todos os tempos e o maior incremento das exportações. O Carlos Fávaro (ministro da Agricultura) conversa com todo mundo, é uma pessoa educada, simpática, do setor. Eu penso que ele está reconstruindo esse diálogo. Na minha opinião, a coisa só tende a melhorar. Acho que houve muito ruído. Na hora que clarear, essas coisas ficam em ordem”.

O agronegócio e o capital financeiro são as duas frações da classe dominante que mais se opõem ao PT. Esta oposição não depende dos maiores e menores benefícios imediatos que estas duas frações obtiveram, durante nossos governos. A oposição está ligada a algo permanente: o "agro" sempre e o capital financeiro no último período são os "donos do poder" em nosso país. E, portanto, reagem de maneira brutal contra qualquer ameaça ao status quo.

Sem enfrentar e sem derrotar estas duas frações – que bloqueiam a reindustrialização do Brasil – o modelo primário-exportador vai continuar hegemônico e, por tabela, continuaremos sob ameaça do que Haddad chama de “projeto extremista”, de “ameaça autoritária”.

Sem derrotar esta gente, o Brasil não estará “amanhã melhor do que hoje”. E o cajado fiscal não contribui neste sentido.


sábado, 27 de maio de 2023

Texto base do Oitavo Congresso nacional da tendência petista Articulação de Esquerda

 À militância petista

À militância da tendência petista Articulação de Esquerda

O Partido dos Trabalhadores aprovou, no V Encontro Nacional (1987) e no I Congresso (1991), o direito de tendência. E determinou que as tendências devem dar publicidade, ao Partido, acerca de suas posições e atividades.

Cumprindo esta determinação, informamos ao conjunto do Partido que nos dias 28, 29 e 30 de julho de 2023, acontecerá na sede nacional do PT em Brasília, o Oitavo Congresso nacional da tendência petista Articulação de Esquerda.

Destacamos o fato de que neste ano de 2023 a tendência petista Articulação de Esquerda completará 30 anos, fato que será lembrado na abertura do Oitavo Congresso.

Fica desde já convidada a participar, da abertura do 8º Congresso, o conjunto da militância petista, em particular a direção nacional do PT, bem como as direções de todas as tendências existentes no Partido, a começar pelas 14 tendências que fazem parte das 8 chapas representadas no Diretório Nacional do Partido eleito em 2019.

O mesmo convite é extensivo aos congressos de base da tendência, que elegerão as delegadas e delegados que terão direito a voto no Oitavo Congresso nacional da AE.

Nestes congressos de base, terão direito a voto os/as militantes da tendência que estiverem em dia com sua contribuição militante (conforme disposto no regulamento do congresso, disponível em www.pagina13.org.br).

Como subsídio aos congressos de base, a direção nacional da AE aprovou no dia 30 de abril um projeto de resolução. No dia 26 de maio, este projeto de resolução recebeu várias emendas. No dia 25 de junho será aprovada uma terceira versão, que será submetida ao debate na plenária final do Oitavo Congresso nacional.

Destacamos que nossa opção foi elaborar um projeto de resolução que possa ser discutido nos congressos de base e, aos poucos, ser ampliado a partir das emendas que surjam do próprio debate, especialmente com sugestões concretas sobre como enfrentar a situação atual.

Imensos desafios, enormes perigos

A situação mundial, continental e nacional pode ser sintetizada por duas palavras: crise sistêmica. Esta crise possui múltiplas dimensões (militar, política, social, econômica, ambiental, cultural), tem duração indeterminada e seu desfecho dependerá de conflitos que estão em curso neste momento, entre Estados e entre classes sociais.

No âmbito mundial, o conflito fundamental se dá entre Estados Unidos e República Popular da China. No âmbito continental, o conflito fundamental se dá entre imperialismo e integração regional latino-americana e caribenha. No âmbito nacional, o conflito fundamental se dá entre defensores e opositores do modelo primário-exportador.

Nenhum destes conflitos é recente. Mas todos ganharam maior dimensão e velocidade nos últimos anos, como se viu na crise de 2008, na pandemia, na guerra travada na Ucrânia entre Otan e Rússia, nos acontecimentos envolvendo a segunda onda de governos progressistas e de esquerda e nos conflitos em curso no Brasil.

Deste pelo menos 2015, a tendência petista Articulação de Esquerda alerta que vivemos “tempos de guerra” e que precisamos estar à altura disto. Oito anos passados, depois de um golpe, de um governo cavernícola, de uma pandemia e em meio a uma guerra que inclui ameaças nucleares, o alerta e necessidade seguem postas e ampliadas.

Lula tomou posse na Presidência da República do Brasil em 1 de janeiro de 2023. Esta vitória só foi possível porque as forças democráticas e populares resistiram e derrotaram os golpistas e os neofascistas, derrota consagrada no dia 30 de outubro de 2022, tendo sido decisivo o voto da classe trabalhadora com consciência de classe, das mulheres, das negras e negros, da juventude e dos eleitores de coração nordestino, moradores ou não daquela região do país.

A partir de então e mesmo antes de ser diplomado, Lula começou de imediato a tomar decisões e atitudes tipicamente presidenciais. É o caso de sua participação na 27ª Conferência do Clima das Nações Unidas e, também, da participação de Lula nas negociações junto ao Congresso Nacional, buscando alterar o orçamento 2023 de forma a incluir recursos para pagar a chamada Bolsa Família para milhões de famílias.

O governo cavernícola não havia incluído tais recursos na previsão orçamentária e, caso a negociação não fosse feita, Lula iria iniciar seu governo administrando uma crise humanitária de proporções ainda mais graves.

Também no período de 31 de outubro a 1 de janeiro, Lula dedicou grande atenção ao balanço do governo cavernícola, balanço realizado pelo chamado “governo de transição”, figura prevista na legislação brasileira desde 2002. O resultado do trabalho da equipe de transição está consolidado num relatório que foi tornado público no dia 22 de dezembro de 2022 e cuja leitura é essencial para dar conta da herança maldita recebida pelo governo Lula, que dificulta imensamente nossa atuação.

No mesmo período, Lula se dedicou à composição de seu governo e à definição de suas relações com o judiciário e com o legislativo. Nos três casos, aplicou-se a chamada “política de frente ampla”, ou seja, de alianças entre o Partido dos Trabalhadores e um amplo leque de forças, incluindo aí outros partidos de esquerda, partidos de centro, partidos de centro-direita e partidos de direita, bem como setores de partidos.

No que diz respeito ao judiciário, Lula e seu governo adotaram relações institucionais e respeitosas para com o colegiado de 11 ministros que integram a cúpula do poder judiciário brasileiro, a começar pelo Supremo Tribunal Federal. Isso ocorre não obstante parte do judiciário, inclusive da “suprema corte”, ter dado respaldo à ilegal condenação, prisão e interdição eleitoral de Lula. Reafirmamos, a respeito, que o protagonismo político do STF e do judiciário em geral, problema apontado por nós há tempos, segue sendo um tema a ser enfrentado e superado.

No que diz respeito ao legislativo, atendendo orientação do governo, a bancada do PT no Congresso Nacional votou a favor da reeleição do presidente da Câmara dos Deputados e do presidente do Senado federal. Isto apesar de ambos terem contribuído para dar sustentação legislativa à administração da extrema-direita, além de terem introduzido métodos – como o popularmente designado “orçamento secreto” – duramente criticados pelo PT. Desde então e até agora, está evidente que a maioria de direita e extrema-direita no Congresso Nacional decidiu instituir, à revelia da Constituição, o semiparlamentarismo. Esta atitude, liderada por Arhur Lira confirma o erro cometido, em 2022, quando o PT indicou voto na reeleição dos então presidentes da Câmara e do Senado, sem negociar previamente os termos desse apoio, numa atitude que pode ser resumida assim: “toma lá, sem dá cá”. Reafirmamos que um dos nossos desafios segue sendo derrotar a hegemonia da direita e da extrema-direita no Congresso Nacional.

No caso da composição do ministério, Lula contemplou a coligação que o elegeu, mas também forças necessárias para compor uma maioria congressual.  Dos 37 ministros, 17 são petistas ou simpatizantes do Partido; 3 são filiados ao PSB; 3 são filiados ao MDB; 3 são filiados ao PSD; 2 são filiados ao União Brasil (partido que, entretanto, não se considera parte da base do governo no Congresso Nacional); 2 são vinculados ao PDT (embora um destes dois seja na verdade vinculado ao União Brasil, que portanto ocupa de fato três cadeiras no ministério); 1 é integrante do PCdoB, 1 da Rede e 1 do PSOL (embora não tenha se oposto a participação de uma filiada como ministra, o PSOL enquanto partido não se considera parte do governo). Os partidos de direita com participação no governo não garantem a fidelidade de suas bancadas parlamentares, em mais um caso do “toma lá, sem dá cá”.

Ademais da composição partidária estrito senso, é importante ressaltar que o ministério é composto por uma maioria de homens e brancos, realidade que precisa ser alterada. Assim como se faz necessário corrigir distorções regionais e contemplar a diversidade partidária, que não se espelha no ministério, onde uma única tendência controla a maior parte dos principais cargos.

O atual ministério tomou posse no início de janeiro de 2023. Desde então e até hoje, está em curso uma intensa atividade, tanto por parte do presidente Lula quanto por parte dos ministros e ministras, como fica evidente nos relatórios que o governo divulgou acerca de seus 100 primeiros dias, cuja leitura e estudo atento recomendamos a toda militância.

Destacamos, entre as ações realizadas, as medidas tomadas em defesa dos povos indígenas, em particular as ações para deter o genocídio contra o povo Yanomami; a retomada de várias obras paradas; as iniciativas relativas ao programa Minha Casa, Minha Vida e ao programa Mais Médicos; e a interrupção de privatizações; as decisões sobre o mínimo, a recomposição do salário do funcionalismo público e a política de preços da Petrobras.

Reafirmamos que o desempenho do governo Lula nesses primeiros meses teria sido melhor, se vários ministérios não tivessem sido saqueados, desmontados ou até mesmo extintos pelo governo cavernícola, o que agora exige uma engenharia administrativa, legal e orçamentária que torna muito difícil este início de governo. Além disso, o orçamento deixado pelo cavernícola é absolutamente inferior ao necessário.

Em resumo, a ação de muitos ministérios precisa enfrentar o peso da herança maldita deixado pelo governo da extrema direita: desmonte e recursos à míngua, contrastando com a realidade, que exige grande e imediata intervenção.

Outro fator que dificulta a ação de vários ministérios é o fato de - pelo menos até abril de 2023 - as equipes ainda não estarem completamente recompostas, entre outros motivos porque o governo segue busca calibrar as nomeações com a busca de ter maioria no Congresso Nacional. Busca que tem produzido, em alguns casos, situações inaceitáveis, com a presença de bolsonaristas em postos chave do governo.

Finalmente e vinculado ao que foi dito antes, há o fato de vários ministérios serem encabeçados por titulares vinculados à direita, inclusive a setores que participaram do golpe, do lavajatismo, além de terem apoiado o governo cavernícola. Evidente que enquanto prosseguir esta situação, nesses ministérios – com destaque para os da Comunicação e da Defesa – não haverá avanços, no sentido do cumprimento do programa de reconstrução e transformação. Registre-se, a respeito, que o slogan do governo é “união e reconstrução” e não “reconstrução e transformação”.

Julgar, condenar e prender os criminosos de 8 de janeiro

 

As dificuldades citadas anteriormente eram previsíveis, especialmente para quem acompanhou o trabalho da chamada transição.

Apesar disso, muitos eleitores de Lula externaram publicamente — no dia 1 de janeiro de 2023 — a certeza de que o “pesadelo havia chegado ao fim”. A verdade era outra, como ficou patente no dia 8 de janeiro.

Naquele dia, milhares de criminosos atacaram os prédios do governo federal, do Congresso Nacional e do Supremo Tribunal Federal. Depois de algumas horas de depredação, foram reprimidos pela polícia.

Para fazer a polícia da capital do país agir adequadamente contra os criminosos, o presidente Lula foi obrigado a decretar intervenção na segurança do Distrito Federal. Posteriormente, o presidente do Supremo Tribunal Federal decretou o afastamento temporário do governador do Distrito Federal. E, dias depois, foi a vez do comandante do Exército ser demitido e substituído, comprovando que ele nunca deveria ter sido nomeado.

O ataque da extrema-direita não foi um ato espontâneo, nem totalmente inesperado. Já no dia 12 de dezembro de 2022, após a diplomação de Lula, a extrema-direita havia promovido um quebra-quebra na cidade de Brasília, contando com a cumplicidade do ainda presidente da República, do governo do Distrito Federal, de setores das Forças Armadas e das polícias. E no final de dezembro de 2022 e início de janeiro de 2023, as redes (anti)sociais da extrema-direita foram tomadas por mensagens arregimentando pessoas para vir a Brasília.

Tratou-se, portanto, de uma operação de guerra, financiada por empresários, coordenada por uma aliança cívico-militar e perpetrada por alguns milhares de neofascistas, que usaram o acampamento defronte ao Quartel General do Exército como base de operações. Apesar disso, o então e ainda ministro da Defesa disse que nos acampamentos havia democratas, inclusive amigos e familiares seus, prevendo que eles se desmobilizariam aos poucos e pacificamente. Posteriormente o ministro da Defesa tentou explicar estas declarações, mas suas explicações apenas confirmam os motivos pelos quais ele foi escolhido pelos militares para ocupar o posto.

Desde o ocorrido no dia 8 de janeiro, está posta a necessidade de processar, julgar e punir quem financiou as caravanas e os acampamentos da extrema-direita; quem, por ação ou omissão, facilitou o acesso da extrema-direita à Esplanada dos Ministérios, onde ficam os três prédios atacados; assim como processar, julgar e punir quem invadiu e depredou os três palácios. Ficou patente, também, a necessidade de uma revisão completa dos protocolos de segurança e inteligência do governo federal. Parte disto vem sendo feito. Mas muito resta por ser feito, como ficou fartamente demonstrado pela demissão do General encarregado do chamado GSI.

Enfrentar a “questão militar” segue na ordem do dia

 

Até agora, oficiais-generais e outros militares de alta patente envolvidos com o golpe não foram punidos, nem mesmo administrativamente. O ex-comandante do Exército, por exemplo, general Júlio César Arruda, precisa ser compulsoriamente reformado, uma vez que resistiu às ordens para desalojar o acampamento bolsonarista montado diante do Quartel General do Exército em Brasília, desacatou ministros e o interventor federal no Distrito Federal (DF) e chegou a ameaçar um coronel da Polícia Militar que tentava remover os acampados.

Outro general de quatro estrelas, Gustavo Dutra de Menezes, foi responsável por impedir ações contra os bolsonaristas acampados no QG. Portanto, é outro caso de militar da mais alta patente que não pode permanecer na ativa, independentemente das ações que vierem a ser ajuizadas contra ele por participação nos eventos golpistas.

Caso os generais Arruda e Dutra não sejam objeto de reforma, passando à reserva, eles continuarão participando do Alto Comando do Exército, o que é uma situação inaceitável, tais as evidências de seu envolvimento com os golpistas.

Reformá-los imediatamente é uma prerrogativa do governo federal e deve ser levada a cabo, sob pena de premiar quem conspirou contra a vontade popular. Dutra, por exemplo, vem até o momento exercendo uma subchefia do Estado-Maior do Exército.

Destaque-se como ação extremamente positiva a transferência da Agência Brasileira de Informações (ABIN) para a Casa Civil, deixando assim de fazer parte do Gabinete de Segurança Institucional (GSI). Mas o próprio GSI deve ser extinto e o controle da Inteligência deve ficar sob controle de órgãos civis. E precisamos ter um Ministério da Defesa que seja legítimo representante do poder civil. Além de seguir pendente a necessidade de criar um Ministério da Segurança Pública.

Segue necessária, também, uma reforma das Forças Armadas e das PMs, que seja capaz de democratizar tanto os processos de recrutamento e de formação de oficiais como suas estruturas internas (organização, regulamentos, hierarquia). Os currículos atuais das escolas militares são fortemente enviesados pelo conservadorismo mais reacionário, calcado nas antigas doutrinas de “Segurança Nacional” e nas agendas expansionistas dos EUA, a ponto de as Forças Armadas considerarem seriamente a possibilidade de uma invasão da Amazônia pela França e de colocarem um oficial-general a serviço da 5ª Frota estadounidense.

As escolas militares não podem se furtar às orientações do Ministério da Educação nem escamotear uma vasta bibliografia de autores e escolas de pensamento que os generais ainda hoje enxergam como “subversivos”. A resistência dos militares a qualquer alteração no seu sistema escolar indica precisamente quão crucial é esse sistema na reprodução da ideologia profundamente antidemocrática, visceralmente oligárquica, que historicamente vem enquadrando a visão de mundo de gerações e gerações de oficiais.

Além disso, a gestão das escolas militares é profundamente autoritária, desrespeitando a Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB) e a Constituição Federal, que preveem a gestão democrática do ensino, com a participação de professores, funcionários e estudantes nos colegiados e nas decisões das instituições escolares. No ensino superior, um exemplo é o Instituto Tecnológico da Aeronáutica (ITA), cujo reitor é escolhido em processo de seleção decidido exclusivamente pelo Alto Comando da Aeronáutica, sem consulta à comunidade.

A extinção da diretoria responsável pelas escolas cívico-militares, no âmbito da Secretaria de Educação Básica do MEC, foi um passo importante para sepultar a política do governo anterior. Contudo, não é suficiente para avançarmos na desmilitarização da gestão educacional e escolar das redes públicas. É preciso induzir a descontinuidade e a reversão do processo de militarização de escolas em estados e municípios, para que as estruturas civis responsáveis por essas unidades escolares reassumam plenamente sua gestão, em todos os aspectos, livrando-as da interferência de militares e de suas respectivas corporações.

Outra alteração que devemos priorizar, apesar das pesadas adversidades conjunturais, é a desmilitarização das PMs e sua desvinculação do Exército. É preciso pôr fim à falida “guerra às drogas”. As PMs seguem comportando-se como “tropa de ocupação” nas periferias e comunidades faveladas dos grandes centros urbanos. São as forças policiais que mais matam no mundo inteiro! O texto atual da Constituição Federal as define como “forças auxiliares do Exército” e dificulta aos governadores e governadoras exercer comando sobre elas. O que vale para os governos estaduais encabeçados por petistas, sendo o caso da Bahia particularmente preocupante.

Vale lembrar, também, da necessidade de alterar o artigo 142 da Constituição Federal, que prevê, atualmente, a figura da “garantia da lei e da ordem” (GLO). É preciso acabar com as chamadas operações de GLO e transferir automaticamente para a reserva o militar que assumir cargo público, encerrando as especulações sobre o suposto “poder moderador” das Forças Armadas, pondo fim a um certo discurso praticado por setores neofascistas com a finalidade de justificar a tutela militar sobre a sociedade civil.

É central a reformulação do artigo 1º da Lei da Anistia (lei 6.683/1979) e do seu parágrafo 1º, que preveem anistia para os autores de “crimes conexos”, uma espécie de código para anistiar agentes militares e civis que praticaram torturas, assassinatos e toda sorte de atrocidades contra aqueles e aquelas que se opuseram à Ditadura Militar, bem como contra diferentes grupos populacionais, inclusive camponeses e povos indígenas.

Ao “interpretar” essa lei, em 2010, o Supremo Tribunal Federal considerou válidos os dispositivos de “crimes conexos”, legitimou a anistia que os militares se autoconcederam (e a seus cúmplices civis), e interditou todo e qualquer processo criminal contra torturadores e assassinos a serviço do regime ditatorial e de seu terrorismo de Estado: centros de tortura, execuções sumárias, “casas da morte”, desaparecimento forçado de corpos, falsificação de laudos etc.

Não haverá sequer liberdades democráticas no Brasil, muito menos uma “democracia”, enquanto persistir a tutela militar sobre a sociedade civil, enquanto a tortura não for definitivamente banida, enquanto as Polícias Militares tiverem licença para matar. Razão pela qual devemos incluir a questão militar entre os itens prioritários do programa do PT e exortar o governo do companheiro Lula a prosseguir avançando.

As armadilhas da herança maldita

No terreno militar, assim como em outros terrenos, o governo Lula precisa combinar uma “guerra de movimento” com uma “guerra de posição”, neste caso parecida com aquela que se precisa fazer quando se reocupa uma cidade que fora tomada por um exército invasor. É preciso ir de casa em casa, desalojando franco-atiradores, desmontando minas e armadilhas de todo tipo.

Uma dessas armadilhas está no campo da educação. É necessário retomar a pauta do financiamento, que de acordo com a Meta 20 do Plano Nacional de Educação deveria chegar até 10% do PIB, objetivo que sofreu um profundo retrocesso com a Emenda Constitucional que instituiu o chamado “teto dos gastos”. É preciso enfrentar, também, os retrocessos ocorridos, desde 2016, na Educação Básica e no Ensino Médio.

Nos somamos a luta dos trabalhadores da educação e dos estudantes que pedem a revogação da chamada reforma do ensino médio.

Outra das armadilhas deixadas pelo governo anterior ficou no Banco Central.  Legislação aprovada durante o golpe concedeu uma suposta “independência” ao Banco Central, suposta porque na prática o tornou dependente e extensão dos interesses da especulação financeira.

Nomeado pelo cavernícola, o atual presidente do Banco Central mantém uma política de juros absolutamente alucinada, cujo único propósito é transferir recursos para o setor financeiro.

É preciso tomar todas as medidas legais e institucionais para, no mais rápido prazo possível, alterar a diretoria do Banco Central, a começar pela sua presidência, sob pena de não conseguirmos adotar uma política de desenvolvimento com ampliação do bem-estar social.

Apoiamos as críticas feitas pelo presidente Lula contra a política de juros e conclamamos o Partido a apoiar uma campanha nacional contra os juros altos e, também, a favor de que os ricos paguem impostos. Ao contrário do que afirmou o ministro da Fazenda, companheiro Fernando Haddad, não se trata apenas de combater a sonegação e as isenções; é preciso criar impostos que gravem o patrimônio dos muito ricos.

Destacamos a importância da revogação das contrarreformas trabalhista e da previdência, bem como destacamos a política de valorização do salário-mínimo que, como defendeu a CUT, deveria ser de, no mínimo, R$ 1.382,71 e deveria valer já a partir do início do ano, como forma de compensar o confisco salarial resultante da inflação. Reafirmamos que é preciso achar maneiras de recuperar o que foi confiscado desde o golpe.

Destacamos, também, a necessidade de a Petrobrás adotar medidas que rompam com a política adotada no governo anterior e a façam adotar papel central (junto com a Eletrobrás) no processo de retomada do crescimento, do desenvolvimento e da reindustrialização de novo tipo. A mudança da política de preços é um importante passo neste sentido, mas muito mais precisa ser feito.

Finalmente, mas não menos importante, outra das armadilhas deixadas pelo golpismo foi o chamado “teto de gastos”, implementado desde 2017, que buscava limitar por 20 anos a expansão do gasto público à variação inflacionária, excetuando os gastos financeiros, cuja evolução seguiu descontrolada.

O resultado foi a evolução descontrolada da dívida pública, a desestruturação das políticas públicas e a estagnação da economia nacional. O preço quem pagou foi a maioria do povo.

O novo marco fiscal

O PT sempre se opôs ao “teto de gastos” e o presidente Lula, na campanha, informou que iria trabalhar por sua revogação. Mas o que foi efetivamente proposto foi substituir o “teto de gastos” pelo “Novo Arcabouço Fiscal”, elaborado pelo Ministério da Fazenda.

Argumentou-se que tal opção decorria da correlação de forças. De fato, a correlação de forças é um problema. Mas a questão não está em constatar a correlação de forças, mas sim em alterar a correlação de forças. Se nos limitamos a constatar, é óbvio que o passo seguinte será retroceder ainda mais.

Foi o que ocorreu na Câmara dos Deputados, que aprovou o marco fiscal, mas nos termos propostos pelo relator Cajado, do PP da Bahia. Agora o marco fiscal vai para votação no Senado.

O relatório apresentado por Cajado agravou diversos dos problemas já presentes na proposta de marco fiscal apresentada pelo Ministério da Fazenda.

Lembremos: o teto de gastos aprovado no governo Temer impedia a expansão real do gasto público, já o marco fiscal proposto pelo Ministério da Fazenda possibilitaria esta expansão. Mas possibilitaria, sob condições muito restritivas e muito difíceis de ocorrer. A versão de Cajado tornou as restrições ainda maiores.

Diante do marco fiscal proposto pelo Ministério da Fazenda, defendemos alterações no sentido de:

1) estabelecer metas de crescimento e geração de empregos, como parâmetros para a política fiscal;

2) estabelecer metas fiscais expansionistas, portanto opostas à política monetária do BC, para evitar o risco de uma dupla pressão contracionista;

3) estabelecer metas de evolução do superávit subordinadas às necessidades de investimento, em nenhum caso aceitando déficit zero ou superávit, enquanto a economia brasileira não crescer de forma sustentada;

4) diluir ao longo de vários anos as “punições” previstas para o caso de não cumprimento das metas;

5) incluir propostas tributárias que, além de rever desonerações e combater a sonegação, aumentassem os impostos sobre os ricos;

6) alterar os números de variação da receita e crescimento dos “gastos”, no sentido de eliminar qualquer restrição ao papel do setor público na economia brasileira. Reiteramos: o peso do setor público frente ao PIB deve crescer e não diminuir, ao contrário do previsto na proposta da Fazenda e na proposta de Cajado;

7) retirar a educação, a saúde, a previdência, o salário-mínimo e os investimentos da conta dos “gastos”, para evitar cortes nos demais gastos públicos;

8) permitir a transferência de recursos do Tesouro para os bancos públicos.

Ademais, alertamos que o marco fiscal proposto pelo Ministério da Fazenda, se fosse aprovado como proposto, iria gerar pressões contra o piso constitucional da saúde e da educação. O relatório de Cajado acentuou esse problema: os pisos estão sob severo risco.

Pelas razões expostas anteriormente, opinamos que o marco fiscal proposto pelo Ministério da Fazenda era contraditório com as posições históricas do Partido e, principalmente, contraditório com o tipo de política que o Brasil necessita para sair das atuais condições de economia primário-exportadora e de uma sociedade de imensa desigualdade. Mais uma vez reiteramos: a propaganda positiva que o Ministro da Fazenda e parte de sua equipe fazem a respeito é puro “pensamento positivo”.

Argumentou-se, dentro do governo e do partido, que o marco fiscal proposto pelo Ministério da Fazenda era o máximo de avanço possível, dada a correlação de forças.

De fato, a correlação de forças é um problema. Mas a questão não está principalmente em constatar qual é a correlação de forças; a questão fundamental está em como fazer para alterar a correlação de forças. Se nos limitamos a constatar qual é a correlação de forças, é óbvio que o passo seguinte será retroceder ainda mais. E foi exatamente isso que ocorreu no debate do marco fiscal no Congresso Nacional.

Mesmo a direção do Partido não tendo sido consultada previamente, prevaleceu na bancada da Câmara uma postura recuada, de não apresentar emendas. Isto contribuiu para que a direita do Congresso nacional, através do relator Cajado, pudesse agir sem nenhum contraponto, apresentando um relatório que piorou muito os problemas já existentes na proposta apresentada originalmente pela Fazenda.

O relatório foi aprovado pela Câmara, inclusive com o voto da bancada do PT, ressalvada a declaração de voto de 22 parlamentares. Como resultado, o marco fiscal original foi alterado para pior, com a introdução de contingenciamento obrigatório, criminalização, eliminação de exceções, proibição de concursos e reajustes etc.

Supondo que o Senado faça como a Câmara, o resultado será que, além de uma política monetária inimiga do desenvolvimento, teremos uma política fiscal que não contribui para o desenvolvimento.

Por que então setores do governo e do Partido apresentam o marco fiscal como uma vitória?

 

Em alguns casos, por ato reflexo: acham que tudo que vem do governo é bom. Noutros casos, por entender que o marco fiscal aprovado é melhor do que o teto de gastos, o que era verdade parcial no caso do proposto originalmente pela Fazenda e quase deixou de ser no caso do aprovado pela Câmara. Mas há, também, os que acreditam que teremos um cenário primaveril: retomada dos investimentos privados, grandes investimentos estrangeiros, êxitos no combate à sonegação e redução nas isenções.

De fato, se este cenário primaveril se confirmar, as restrições da política monetária do BC e as restrições da política fiscal terão sido superadas.

Também neste cenário primaveril, mesmo que o crescimento dos “gastos” seja sempre menor do que as receitas, mesmo que o marco fiscal projete um futuro em que o peso do setor público no PIB seja menor do que é hoje, isto não impedirá a ampliação dos investimentos públicos e do bem-estar social.

A pergunta é: este cenário primaveril é realista? E, mesmo que seja, ele vai se materializar no tempo político adequado, ou seja, a tempo de afetar positivamente as eleições de 2024 e 2026?

Em nossa opinião, o cenário primaveril não é realista. Sem forte investimento público e sem mudança na política de juros, o investimento privado não crescerá, ao menos não crescerá na quantidade e na qualidade necessárias. Por outro lado, o cenário internacional é excessivamente turbulento, não permitindo confiar em investimentos estrangeiros cujo volume e natureza permitam saltos de qualidade na economia de um país como o Brasil. Além disso, mesmo que haja crescimento nos investimentos, privados e estrangeiros, nas condições atuais ele será em grande parte capturado pelo sistema financeiro. Sem falar que fazer depender nosso desenvolvimento de capitais estrangeiros é um equívoco em si mesmo.

Por outro lado, é improvável que tenhamos êxito no combate à sonegação e na redução das isenções, no volume e na velocidade necessárias, sem que haja uma imensa mobilização política dos setores populares contra os ricos. E a pergunta é: se existe condições de fazer isso, por qual motivo, na elaboração do tal marco fiscal, fizemos tantas concessões à Faria Lima?

Conclusão: se o cenário primaveril não é o mais provável, se o mais provável for um cenário sem grandes investimentos estrangeiros, sem grandes investimentos privados nacionais, sem avanços significativos no combate às desonerações, sem avanços significativos no combate à sonegação, neste cenário realista o novo marco fiscal impõe imensas restrições a ação do Estado e aos investimentos públicos.

Diante desta situação, estamos convocados a travar uma imensa batalha em favor de uma reforma tributária progressiva, que faça os ricos pagarem a conta. O que exigirá superar a atual postura do Ministério da Fazenda, que assumiu indevidamente os compromissos de não aumentar e de não criar impostos sobre os ricos.

Sem novos impostos sobre os ricos, as receitas não vão crescer significativamente. Como nos próximos anos certas despesas vão aumentar, aconteça o que acontecer. Como – segundo o marco fiscal – o conjunto das despesas não pode crescer mais do que 70% do crescimento das receitas. Então a conclusão é que haverá uma disputa para saber quais despesas serão mantidas e quais serão cortadas.

Pelos motivos acima, vai crescer a pressão para revogar os atuais pisos constitucionais da saúde e da educação, conforme aliás já anunciado pelo Secretário do Tesouro. E por qual motivo setores do governo defendem isso? O motivo real, mesmo que não declarado, é o seguinte: segundo os parâmetros do marco fiscal, o teto das despesas cresce na velocidade de 70% da receita, mas certas despesas, por exemplo, a saúde e a educação, crescem com base em 100% da receita.

Por isso, o novo marco fiscal impõe, como consequência “lógica”, a necessidade de alterar os atuais pisos da saúde e educação, como forma de reduzir o crescimento dessas despesas para próximo da velocidade máxima (70% do crescimento das receitas) autorizada pelo marco fiscal.

Ou seja, um dos efeitos colaterais do marco fiscal aprovado pela Câmara será jogar pobres contra pobres, disputando um cobertor curto.

Por estes e por outros motivos, parabenizamos os parlamentares federais (mais de 22) que, apesar de respeitarem a disciplina partidária, fizeram uma declaração de voto demarcando com as diretrizes do marco fiscal.

Atuando sob condições mais difíceis

O ocorrido no dia 8 de janeiro, o ocorrido com o NAF e os acontecimentos internacionais confirmam que o terceiro governo Lula atua em condições muito mais complexas e difíceis do que os governos encabeçados pelo PT entre 2003 e 2016.

Além das dificuldades resultantes da situação mundial e da herança maldita do golpismo e do bolsonarismo, temos as dificuldades ligadas à situação do governo Lula, da classe trabalhadora, da esquerda e do PT.

Fica evidente, a cada dia que passa, que enfrentamos uma dupla oposição: da direita tradicional e da direita neofascista, ambas neoliberais. As duas direitas estão presentes no governo e na máquina de Estado. São majoritárias no Congresso nacional, entre os governadores de Estado, nos aparatos de segurança e na grande mídia. As duas oposições, embora se dividam no que toca a “reconstrução”, unificam-se para impedir a “transformação” nacional. Ambas operam para vencer as eleições de 2024 e tirar o PT da presidência, em 2026.

Frente a este quadro, a linha política hegemônica na esquerda brasileira e em nosso Partido está demonstrando ser ineficiente e insuficiente, tanto do ponto de vista tático quanto do ponto de vista estratégico. É preciso mudar de orientação estratégica e tática. E, para fazer isto, é preciso abandonar a atitude baluartista, cabotina, autocongratulatória e debater abertamente os problemas existentes, debate que deve ser feito nas instâncias partidárias.

Hoje, ainda tem prevalecido a opção de não travar o debate nas instâncias. Antes mesmo da campanha começar, a maioria dos integrantes do atual Diretório Nacional escolheu não aprovar nenhuma resolução sobre como enfrentar o bolsonarismo nas forças armadas, assim como não aprovou uma resolução que propunha enfrentar já na campanha eleitoral a mal denominada “independência” do Banco Central. Tampouco debatemos previamente na direção do Partido a proposta de Novo Arcabouço Fiscal. Como resultado, o Partido tem mais dificuldade de enfrentar os problemas, uma vez que estes não desaparecem pelo fato de não terem sido debatidos.

A respeito desses e de outros temas, como por exemplo a necessidade de revogar as contrarreformas da previdência, trabalhista, sindical e do ensino médio, a mudança de rumo da Petrobrás e a recuperação da Eletrobrás, a luta por outra política de segurança pública e de Defesa, a Articulação de Esquerda tem apresentado diversas propostas ao Diretório Nacional do PT.

Com base nelas, e também com base nas propostas que surjam dos congressos de base, o Oitavo Congresso da AE aprovará um conjunto de resoluções e orientações, tendo como objetivos principais apontar medidas concretas no sentido de retomar o crescimento, implementar uma industrialização de novo tipo, mudar o curso do desenvolvimento nacional, realizar a reforma agrária, defender o meio ambiente, ampliar as políticas públicas, o bem-estar social e as liberdades democráticas do povo brasileiro, recuperar a soberania nacional, promover a integração latino-americana e caribenha, mudar o lugar do Brasil no mundo.

Entretanto, não bastam propostas, se não conquistarmos maioria organizada junto a classe trabalhadora.

As eleições presidenciais de 2022 demonstraram que a esquerda é majoritária entre os eleitores ativos, por uma diferença de 2 milhões de votos. Aliás, ganhamos 5 das últimas 9 eleições presidenciais. Entretanto, se considerarmos os mais de 30 milhões que votaram branco, nulo e se abstiveram; e somarmos a estes os trabalhadores que votaram na candidatura presidencial da extrema-direita, a conclusão inescapável é que, neste momento, a esquerda não tem maioria numérica na classe trabalhadora.

Ademais, décadas de neoliberalismo, somadas a décadas de institucionalização e burocratização, enfraqueceram brutalmente a presença, a força e a representatividade das organizações da classe trabalhadora: movimentos, associações, sindicatos, partidos. E, de outro lado, nas últimas décadas constituiu-se uma extrema-direita com base de massas.

Portanto, nossa tarefa estratégica, de cujo sucesso dependem todas as outras tarefas, é fazer com que a esquerda conquiste e organize a maioria da classe trabalhadora.

Quando falamos de esquerda, falamos principalmente de nosso Partido, o Partido dos Trabalhadores.

A maioria da classe trabalhadora com consciência de classe, especialmente mulheres, jovens, negros e negras, se identifica com o PT. Desde os anos 1980 até hoje, a vitória da classe trabalhadora brasileira depende, em grande medida, das opções feitas pelo PT. Mas a verdade é que nosso Partido – ao mesmo tempo que tem imensos méritos – vem apresentando imensas debilidades. A principal destas debilidades não é organizativa, nem de comunicação; a principal debilidade é política: nosso Partido não construiu uma linha política e uma maneira de funcionar adequadas aos tempos de guerra em que vivemos.

Guerra travada, contra a maioria do povo brasileiro, pelos defensores do imperialismo, do capitalismo, do modelo primário exportador, do neofascismo, do patriarcado, do racismo, do fundamentalismo, pelos defensores de todo tipo de preconceito, opressão e exploração. Guerra que custou a vida de centenas de milhares de pessoas, como é o caso dos indígenas vítimas de genocídio; e, também dos brasileiros e brasileiras que poderiam estar entre nós, se o governo de extrema direita não tivesse sido aliado da Covid.

Neste contexto, qual é o papel da tendência petista Articulação de Esquerda? Em resumo, contribuir, no limite de nossas forças, para que nosso Partido – assim como a CUT, o MST, a CMP, o MNLM, a UNE, a Ubes, as Frentes e todas as demais organizações do nosso povo – estejamos à altura dos imensos desafios postos pela atual situação nacional, continental e mundial.

Para tornar isso possível, será necessário um intenso trabalho organizativo, com destaque para nosso enraizamento na classe trabalhadora e para a mudança de métodos de funcionamento. A retificação que exigimos no PT, também deve ser feita entre nós. As minorias e as maiorias de nosso Partido padecem de deformações gravíssimas e não somos alheios a isto.

Destacamos, como parte desta retificação, em primeiro lugar, contribuir na organização da classe, nos locais de trabalho, de moradia, de estudo, nos espaços de cultura e lazer. Para este esforço convocamos cada militante de nossa tendência. Não basta criticar o que os outros não fazem, é preciso fazer aquilo que achamos que precisa ser feito.

 Em segundo lugar, contribuir para construir o Partido dos Trabalhadores e das trabalhadoras, como partido de massas e radicalmente democrático. Novamente, reafirmamos: não basta criticar os que têm maioria nesta ou naquela instância, é preciso fazer por nossa própria conta o que pode e deve ser feito.

 Em terceiro lugar, lutar contra as políticas equivocadas que existem no interior do chamado campo democrático-popular, com destaque para os setores social liberais infiltrados na esquerda, defensores das privatizações, das terceirizações, do capital financeiro e do agronegócio. Neste terreno, é preciso lembrar que as concessões feitas ao neoliberalismo só produzem mais neoliberalismo.

 Em quarto e fundamental lugar, trabalhar para que o PT continue lutando, aqui e agora, em favor de soluções efetivamente socialistas e revolucionárias para os grandes problemas do nosso país, de nosso continente e do mundo. Nos tempos perigosos e desafiantes em que vivemos, não cabe dúvida: o futuro depende da classe trabalhadora lutar com todas as suas forças pela soberania, pela democracia, pelo desenvolvimento e pelo socialismo.

Contra a Faria Lima, 40 anos em 4

A direção nacional da tendência petista Articulação de Esquerda, reunida no dia 26 de maio de 2023, aprovou a seguinte resolução sobre conjuntura.

O futuro do Brasil depende, em grande medida, do êxito do governo Lula. E o êxito do governo Lula depende, também em grande medida, da capacidade política, da organização e da mobilização da classe trabalhadora.

Nosso êxito não é garantido, nem é fácil, entre outros motivos porque temos contra nós a herança maldita do golpismo e do bolsonarismo, além da oposição da extrema-direita e da direita tradicional, do neofascismo, do neoliberalismo e do imperialismo.

Enfrentar tantos e tão poderosos inimigos exige linha política correta, exige método acertado e muita capacidade de trabalho, mas exige também mobilizar de forma permanente a esperança.

Sem esperança, não há vitória. Mas esperança não é igual a ilusão, nem autoengano. A esse respeito, vale atender ao pedido feito pelo próprio Lula: para que o governo dê certo, é preciso apoio, mas também é preciso crítica e, acrescentamos, autocrítica.

Aliás, para um partido de esquerda, para um partido da classe trabalhadora, falar a verdade para nossas bases e para o conjunto da classe é uma obrigação.

Neste sentido, somos de opinião que a direção do PT precisa reconhecer que a atual situação é muito grave, seja devido à falta de orientação adequada, seja devido à existência de conflitos internos ao governo e ao Partido, seja devido à situação econômica e social de grande parte do povo, seja devido à situação política nacional e internacional.

Portanto, reafirmamos a necessidade de um “freio de arrumação” organizativo e, principalmente, de uma mudança na linha política, tanto no Partido quanto no governo, sob pena de sofrermos uma grave derrota, agora e nas eleições de 2024, com consequências seríssimas.

As últimas votações no Congresso nacional confirmaram a gravidade da situação.

O marco fiscal foi aprovado nos termos definidos pelo relator, ao gosto e paladar da maioria de direita do Congresso Nacional. Ao contrário do que afirmou o ministro da Fazenda, não foi uma “vitória do Brasil”, mas sim uma concessão à Faria Lima.

A maioria de direita existente no Congresso nacional impôs, antes e depois da votação do marco fiscal, várias derrotas ao governo, à esquerda e ao PT.

Destaca-se, entre essas derrotas, a indecente votação do chamado marco temporal.

As derrotas sofridas, mesmo aquelas que setores do governo e do partido não admitem ter sofrido, confirmam que a maioria de direita e extrema-direita no Congresso Nacional decidiu instituir, à revelia da Constituição, o semiparlamentarismo, em prejuízo dos interesses populares, dos indígenas, do meio-ambiente, do desenvolvimento, das liberdades e da soberania.

A atitude da maioria de direita liderada por Arhur Lira confirma o erro cometido, em 2022, quando o PT indicou voto na reeleição dos então presidentes da Câmara e do Senado, sem negociar previamente os termos desse apoio, numa atitude que pode ser resumida assim: “toma lá, sem dá cá”.

Sobre o marco fiscal

A Câmara aprovou o marco fiscal, tal e qual foi proposto pelo relator Cajado, do PP da Bahia. Agora o marco fiscal vai para votação no Senado.

O relatório apresentado por Cajado agravou diversos dos problemas já presentes na proposta de marco fiscal apresentada pelo Ministério da Fazenda.

Lembremos: o teto de gastos aprovado no governo Temer impedia a expansão real do gasto público, já o marco fiscal proposto pelo Ministério da Fazenda possibilitaria esta expansão. Mas possibilitaria, sob condições muito restritivas e muito difíceis de ocorrer. A versão de Cajado tornou as restrições ainda maiores.

Diante do marco fiscal proposto pelo Ministério da Fazenda, defendemos alterações no sentido de:

1) estabelecer metas de crescimento e geração de empregos, como parâmetros para a política fiscal;

2) estabelecer metas fiscais expansionistas, portanto opostas à política monetária do BC, para evitar o risco de uma dupla pressão contracionista;

3) estabelecer metas de evolução do superávit subordinadas às necessidades de investimento, em nenhum caso aceitando déficit zero ou superávit, enquanto a economia brasileira não crescer de forma sustentada;

4) diluir ao longo de vários anos as “punições” previstas para o caso de não cumprimento das metas;

5) incluir propostas tributárias que, além de rever desonerações e combater a sonegação, aumentassem os impostos sobre os ricos;

6) alterar os números de variação da receita e crescimento dos “gastos”, no sentido de eliminar qualquer restrição ao papel do setor público na economia brasileira. Reiteramos: o peso do setor público frente ao PIB deve crescer e não diminuir, ao contrário do previsto na proposta da Fazenda e na proposta de Cajado;

7) retirar a educação, a saúde, a previdência, o salário-mínimo e os investimentos da conta dos “gastos”, para evitar cortes nos demais gastos públicos;

8) permitir a transferência de recursos do Tesouro para os bancos públicos.

Ademais, alertamos que o marco fiscal proposto pelo Ministério da Fazenda, se fosse aprovado como proposto, iria gerar pressões contra o piso constitucional da saúde e da educação. O relatório de Cajado acentuou esse problema: os pisos estão sob severo risco.

Pelas razões expostas anteriormente, opinamos que o marco fiscal proposto pelo Ministério da Fazenda era contraditório com as posições históricas do Partido e, principalmente, contraditório com o tipo de política que o Brasil necessita para sair das atuais condições de economia primário-exportadora e de uma sociedade de imensa desigualdade. Mais uma vez reiteramos: a propaganda positiva que o Ministro da Fazenda e parte de sua equipe fazem a respeito é puro “pensamento positivo”.

Argumentou-se, dentro do governo e do partido, que o marco fiscal proposto pelo Ministério da Fazenda era o máximo de avanço possível, dada a correlação de forças.

De fato, a correlação de forças é um problema. Mas a questão não está principalmente em constatar qual é a correlação de forças; a questão fundamental está em como fazer para alterar a correlação de forças. Se nos limitamos a constatar qual é a correlação de forças, é óbvio que o passo seguinte será retroceder ainda mais. E foi exatamente isso que ocorreu no debate do marco fiscal no Congresso Nacional.

Mesmo a direção do Partido não tendo sido consultada previamente, prevaleceu na bancada da Câmara uma postura recuada, de não apresentar emendas. Isto contribuiu para que a direita do Congresso nacional, através do relator Cajado, pudesse agir sem nenhum contraponto, apresentando um relatório que piorou muito os problemas já existentes na proposta apresentada originalmente pela Fazenda.

O relatório foi aprovado pela Câmara, inclusive com o voto da bancada do PT, ressalvada a declaração de voto de 22 parlamentares. Como resultado, o marco fiscal original foi alterado para pior, com a introdução de contingenciamento obrigatório, criminalização, eliminação de exceções, proibição de concursos e reajustes etc.

Supondo que o Senado faça como a Câmara, o resultado será que, além de uma política monetária inimiga do desenvolvimento, teremos uma política fiscal que não contribui para o desenvolvimento.

Por que então setores do governo e do Partido apresentam o marco fiscal como uma vitória?

Em alguns casos, por ato reflexo: acham que tudo que vem do governo é bom. Noutros casos, por entender que o marco fiscal aprovado é melhor do que o teto de gastos, o que era verdade parcial no caso do proposto originalmente pela Fazenda e quase deixou de ser no caso do aprovado pela Câmara. Mas há, também, os que acreditam que teremos um cenário primaveril: retomada dos investimentos privados, grandes investimentos estrangeiros, êxitos no combate à sonegação e redução nas isenções.

De fato, se este cenário primaveril se confirmar, as restrições da política monetária do BC e as restrições da política fiscal terão sido superadas.

Também neste cenário primaveril, mesmo que o crescimento dos “gastos” seja sempre menor do que as receitas, mesmo que o marco fiscal projete um futuro em que o peso do setor público no PIB seja menor do que é hoje, isto não impedirá a ampliação dos investimentos públicos e do bem-estar social.

A pergunta é: este cenário primaveril é realista? E, mesmo que seja, ele vai se materializar no tempo político adequado, ou seja, a tempo de afetar positivamente as eleições de 2024 e 2026?

Em nossa opinião, o cenário primaveril não é realista. Sem forte investimento público e sem mudança na política de juros, o investimento privado não crescerá, ao menos não crescerá na quantidade e na qualidade necessárias. Por outro lado, o cenário internacional é excessivamente turbulento, não permitindo confiar em investimentos estrangeiros cujo volume e natureza permitam saltos de qualidade na economia de um país como o Brasil. Além disso, mesmo que haja crescimento nos investimentos, privados e estrangeiros, nas condições atuais ele será em grande parte capturado pelo sistema financeiro.

Por outro lado, é improvável que tenhamos êxito no combate à sonegação e na redução das isenções, no volume e na velocidade necessárias, sem que haja uma imensa mobilização política dos setores populares contra os ricos. E a pergunta é: se existe condições de fazer isso, por qual motivo, na elaboração do tal marco fiscal, fizemos tantas concessões à Faria Lima?

Conclusão: se o cenário primaveril não é o mais provável, se o mais provável for um cenário sem grandes investimentos estrangeiros, sem grandes investimentos privados nacionais, sem avanços significativos no combate às desonerações, sem avanços significativos no combate à sonegação, neste cenário realista o novo marco fiscal impõe imensas restrições a ação do Estado e aos investimentos públicos.

Diante desta situação, estamos convocados a travar uma imensa batalha em favor de uma reforma tributária progressiva, que faça os ricos pagarem a conta. O que exigirá superar a atual postura do Ministério da Fazenda, que assumiu indevidamente os compromissos de não aumentar e de não criar impostos sobre os ricos.

Sem novos impostos sobre os ricos, as receitas não vão crescer significativamente. Como nos próximos anos certas despesas vão aumentar, aconteça o que acontecer. Como – segundo o marco fiscal – o conjunto das despesas não pode crescer mais do que 70% do crescimento das receitas. Então a conclusão é que haverá uma disputa para saber quais despesas serão mantidas e quais serão cortadas.

Pelos motivos acima, vai crescer a pressão para revogar os atuais pisos constitucionais da saúde e da educação, conforme aliás já anunciado pelo Secretário do Tesouro. E por qual motivo setores do governo defendem isso? O motivo real, mesmo que não declarado, é o seguinte: segundo os parâmetros do marco fiscal, o teto das despesas cresce na velocidade de 70% da receita, mas certas despesas, por exemplo, a saúde e a educação, crescem com base em 100% da receita.

Por isso, o novo marco fiscal impõe, como consequência “lógica”, a necessidade de alterar os atuais pisos da saúde e educação, como forma de reduzir o crescimento dessas despesas para próximo da velocidade máxima (70% do crescimento das receitas) autorizada pelo marco fiscal.

Ou seja, um dos efeitos colaterais do marco fiscal aprovado pela Câmara será jogar pobres contra pobres, disputando um cobertor curto.

Por estes e por outros motivos, parabenizamos os parlamentares federais (mais de 22) que, apesar de respeitarem a disciplina partidária, fizeram uma declaração de voto demarcando com as diretrizes do marco fiscal.

O quadro internacional

O ocorrido na votação do marco fiscal, bem como as votações ocorridas imediatamente antes ou depois, também confirmaram a existência de problemas diversos no funcionamento do Congresso e da bancada.

Por razões óbvias, estes problemas estão sendo negados pelo Ministro da Fazenda e por setores do partido e do governo, havendo inclusive quem comemore como vitória o que são inegáveis derrotas.

As dificuldades crescentes do governo junto ao Congresso fazem crescer a dependência do governo frente ao judiciário. Mas o judiciário, como foi sobejamente demonstrado nos últimos anos, não é um aliado das forças democráticas e populares, especialmente quando se trata de combater as políticas neoliberais.

As dificuldades internas levam setores do partido e do governo a terem grandes expectativas na possibilidade de atrairmos investimentos estrangeiros.

Entretanto, não é apenas a situação nacional que vem se tornando cada vez mais difícil; situação similar ocorre no plano internacional.

A esse respeito, cabe uma constatação preliminar: com o presidente Lula, o Brasil voltou a ter protagonismo mundial, algo correspondente tanto a importância do Brasil, quanto correspondente ao prestígio do presidente Lula.

Mas não devemos ter ilusões: no médio prazo, nosso protagonismo real depende do Brasil dar um salto na sua capacidade industrial, científica e tecnológica. E forças poderosas operam contra isso, tanto dentro quanto fora do país, a começar pelos Estados Unidos.

O esforço dos Estados Unidos para reverter seu declínio inclui, em grande medida, uma dimensão militar. Destacam-se o cerco promovido pela OTAN contra a Rússia, cerco que está na origem da atual guerra; e as provocações contra a China no estreito de Taiwan. Nos dois casos, os Estados Unidos querem a guerra, não querem a paz.  

E, no plano econômico, as ações do governo Biden e de seus aliados não geram – no Brasil e em grande parte do mundo – repercussões desenvolvimentistas, sociais, políticas e ambientais favoráveis às maiorias.

Por onde se observe o problema, a conclusão é a mesma: embora tenha interessado ao governo Biden a derrota de Bolsonaro, não interessa ao governo Biden o êxito das políticas internas e externas defendidas pelo PT.

Mais do que isso: o governo Biden está trabalhando para derrotar estas políticas, como se viu aliás na recente reunião do G7 em Hiroshima.

A ação dos EUA é um dos motivos pelos quais os atuais governos progressistas e de esquerda, na América Latina e Caribe, enfrentam dificuldades ainda maiores do que no período 1998-2008.

Os resultados das eleições chilenas, as dificuldades na Argentina e na Colômbia, os conflitos internos à esquerda na Bolívia, a difícil situação vivida em Cuba e Venezuela, assim como o quadro na Nicarágua, sem falar de Brasil, Honduras e México, compõem um cenário de grandes dificuldades estruturais e políticas, que exigem de nossa parte (governo Lula e PT) uma conduta que, sob vários aspectos, terá que ser diferente e muito mais ousada do que aquela adotada entre 2003 e 2016.

Neste sentido, devemos valorizar a realização, no Brasil, de 28 de junho a 2 de julho, do 26º Encontro do Foro de São Paulo. E devemos contribuir para que o PT proponha, neste Encontro, medidas concretas para acelerar o processo de integração regional.

Nosso projeto de desenvolvimento só terá êxito nos marcos da integração regional. Mas, por outro lado, nossa política externa só terá êxito se for lastreada numa retaguarda de desenvolvimento, industrialização, bem-estar social e ampla auto-organização do povo brasileiro.

E a verdade é que ainda estamos muito longe disso. Quem vende ilusões em contrário, está contribuindo para nossa derrota.

O tempo corre contra nós

Hoje, amplos setores da esquerda começam a se dar conta das decorrências práticas da chamada política de frente ampla. Assim como vão se dando conta dos efeitos negativos da chamada Federação.

Não se trata, apenas, das alianças que foram feitas nas eleições de 2022, mas principalmente da inexistência de um plano de voo que nos permita superar os limites impostos pela herança maldita, pela maioria de direita nas instituições, pela força da extrema direita em vários espaços de poder, com destaque para os aparatos de segurança.

Falta um plano de voo, acima de tudo, que nos permita superar a condição primário-exportadora, sem o que não vamos superar a desigualdade social estrutural existente no Brasil.

Nesse sentido, o mais grave do atual debate sobre o marco fiscal não são as medidas em si, mas o horizonte medíocre predominante no debate a respeito, projetando perspectivas também medíocres para o desenvolvimento nacional. Num país que precisa crescer 10% ao ano durante muitos anos, grande parte da elite política está focada em garantir seus privilégios e em “enxugar gastos”.

Do ponto de vista da política, o tema central é como alterar a correlação de forças. E isso não se fará sem elevar o nível do debate, sem colocar na pauta objetivos ambiciosos e imediatos, como por exemplo “40 anos em 4”.

Obviamente, a correlação de forças nas instituições só será alterada lentamente. Por conta disto, impõe-se a disjuntiva: i/ou vamos nos conformar com isso e apostar que “devagar se irá ao longe”, correndo o alto risco de logo mais sermos surpreendidos com novas derrotas e golpes, facilitadas pela implacável e inevitável biologia; ii/ou vamos adotar medidas que busquem alterar a correlação de forças nas instituições, agindo de fora para dentro e de baixo para cima, através de ações que contribuam para a conscientização, auto-organização e mobilização do povo.

A segunda opção exige que o PT adote uma política que combine apoiar o governo contra a extrema direita e a oposição em geral, mas também disputar os rumos do governo contra os setores da extrema direita e da direita neoliberal que fazem parte do próprio governo.

A segunda opção exige, ademais, perceber que é necessário mudar rápida e velozmente as condições de vida da maioria das pessoas. E isso se faz através de políticas públicas que incidam na vida material, mas também através de ações políticas que incidam no ambiente psicocultural do país.

Entretanto, parte dos petistas que está no governo, nas bancadas e na direção do Partido, não concorda com isto e, às vezes, nem se dá conta da existência da disjuntiva citada. Atuam como se a dinâmica institucional cotidiana fosse a única alternativa possível e, além disso, como se a dinâmica institucional fosse suficiente para superar as dificuldades e construir as alternativas de que necessitamos. Ademais, não compreendem a necessidade de, ao mesmo tempo, defender e disputar os rumos do governo.

Lula, em nossa opinião, percebe - ao menos em parte - esta necessidade e as demais questões citadas. Dizemos isso com base em parte importante de suas declarações públicas, que não falam apenas de “união e reconstrução”, mas também de “reconstrução e transformação”. Mas boa parte dos petistas que estão em postos-chave do governo estão à direita de Lula.

Sem politização, sem mobilização e sem luta não haverá mudanças. Neste sentido, entre outras propostas, defendemos a convocação de uma Conferência nacional pelo desenvolvimento, que possa servir de catalisador para um plano de “40 anos em 4”.

Nesta mesma perspectiva, defendemos a convocação – por exemplo pelas Frentes - de um encontro nacional do PT e das forças do campo democrático e popular, para debater o enfrentamento da situação atual e das eleições 2024.

É preciso romper o cerco, é preciso mais ousadia, é preciso convocar novamente a mobilização dos que nos deram a vitória em 2022.