Cada um com
suas manias. Uma das minhas é pensar nos motivos pelos quais, na China, o Partido
Comunista demorou praticamente uma década para mudar a estratégia que
praticamente o destruiu.
A estratégia baseada na insurreição urbana e num
determinado tipo de aliança com os nacionalistas organizados no chamado Kuomitang,
desembocou no massacre de Xangai (1927) e no extermínio físico de dezenas de
milhares de quadros. Mas só durante a Longa Marcha (1934-1935), o Comitê
Central do PC da China foi conquistado pelos dirigentes que defendiam outra
estratégia, a chamada Guerra Popular Prolongada.
Há vários
motivos para o intervalo de quase uma década.
A necessidade de fugir, de se esconder, de preservar os quadros, as
imensas distâncias, as condições de luta interna em um partido de massas e
extremamente popular etc. Mas tenho para mim que um dos motivos é a inércia.
Que se manifesta de diversas formas, entre as quais a influência que seguem
tendo certas concepções, mesmo quando sua linha se revela um fracasso total.
Hoje,
por exemplo, quando falamos da China até 1949, lembramos de Mao, como se suas posições tivessem predominado entre os comunistas chineses, desde 1921. Mas os fatos são outros: desde
1921, e particularmente entre a derrota de Xangai e a Longa Marcha, as idéias predominantes foram outras.
Como disse,
cada um tem suas manias. E depois de expor uma das minhas, passo a analisar o
texto “Por que sou a favor de uma Frente Democrática”, assinado por José
Dirceu e divulgado no dia 29 de junho de 2020.
Quem quiser
ler o texto, está disponível aqui:
https://nocaute.blog.br/2020/06/29/por-que-sou-a-favor-de-uma-frente-democratica/
Não vou
retomar aqui debates anteriores que mantive com (contra) as posições de Dirceu.
Quem tiver interesse, pode encontrar vários textos a respeito, no mesmo endereço onde está
esse aqui, um dos mais recentes:
https://valterpomar.blogspot.com/search?q=dirceu
Mas adianto
que, na minha opinião, Dirceu está repetindo o mesmo movimento que fez entre
1990 e 1993: sinalizou para a esquerda, mas está virando para a direita.
Para
ser mais preciso: todo mundo que manteve contato com Dirceu nos últimos meses e
anos, já ouviu opiniões para lá de maximalistas acerca da conjuntura, da
estratégia e do próprio Partido dos Trabalhadores.
Mas nas últimas semanas, ele
está dando sinais crescentes de que simplesmente não consegue se libertar das concepções que nos levaram à derrota em 2016. Como acho que o PT não está condenado a seguir repetindo o mesmo erro, me vejo na obrigação de polemizar com o que ele defende.
Vejamos então o que Dirceu diz no artigo “Por que sou a favor de uma Frente Democrática”.
Nele, Dirceu afirma que “não podemos confundir direitos civis e políticos com
direitos sociais. Sem liberdade, não teremos como recuperar os direitos sociais
e ampliá-los”.
De fato, se
direitos civis e políticos fossem iguais aos direitos sociais, não haveria
motivo para usar nomes distintos.
Porém, na história real dos últimos 380 anos,
em todo o planeta, foi a luta pelos direitos sociais que ampliou os direitos
políticos.
As classes trabalhadoras lutam por melhorar suas condições de vida
e, nessa luta, criam e ampliam os direitos civis e políticos.
Por isso, se
não podemos confundir, também não podemos separar a luta pela liberdade, da luta
pelos direitos.
E, mais importante, não podemos esquecer de que é a luta pelos
direitos que faz as grandes massas lutarem pelas liberdades.
Claro que para os
setores médios e ricos, que já têm direitos sociais, a luta pelas liberdades
parece importante “em si mesma”, no sentido de que parece um móvel, um motor, um motivo suficiente.
Luto pela liberdade porque quero ser livre, parece pensar o cidadão
da mal denominada classe média.
Mas para a imensa maioria do povo, a frase que
descreve de maneira mais precisa o que se passa historicamente é: luto para
sobreviver e ao lutar crio as liberdades; e passo a defendê-las para poder não apenas sobreviver, mas também para poder viver cada vez melhor.
Dirceu
afirma, também, que “o voto é a arma do povo brasileiro, que não detém o
poder econômico, militar, judicial ou de informação”.
“O voto é a
arma do povo brasileiro”: essa é uma daquelas frases que parecem óbvias, mas que
exatamente por isso deveria ser vista com um pouquinho mais de desconfiança.
Para começo de conversa, é fato que a classe dominante brasileira fez e segue
fazendo de tudo para impedir que a maioria do povo tenha acesso ao direito de
votar e, principalmente, que tenha acesso às condições para votar de acordo com
os interesses da classe trabalhadora.
Dito de outra maneira, a classe dominante
usa o “poder econômico, militar, judicial ou de informação” para impedir,
constranger e influenciar o voto do povo.
Portanto, mais correto seria dizer: “o voto
pode ser uma arma do povo brasileiro”. Não "é", pode ser.
E neste detalhe reside
uma imensa diferença entre o pensamento democrático-liberal e o
pensamento da esquerda.
O democrata-liberal atua como se o voto tivesse “em si” poderes mediúnicos.
A esquerda atua levando em consideração o voto e suas circunstâncias.
Circunstâncias que podem levar, como levaram em 2018, parcelas expressivas do
povo a votar num candidato da extrema direita.
Dirceu
afirma que “para fazer o impeachment de Bolsonaro, temos que
construir uma ampla frente democrática e, dentro dela, criar uma saída à esquerda
para a crise brasileira e para a reconstrução de nosso país”.
Nestas
frases considero estar o núcleo do pensamento de Dirceu.
Lendo-as, lembro-me imediatamente de
uma entrevista que ele me concedeu noutro milênio, para o jornal Brasil
Agora, onde discorreu acerca do objetivo de conquistar governos cada
vez mais progressistas, até que enfim teríamos um governo democrático e
popular, que abriria caminho para o socialismo.
Hehe. Hoje sabemos o lado B
desta lógica gradualista.
Por partes.
É óbvio que
para fazer o impeachment de Bolsonaro, precisamos de maioria neste Congresso que aí está.
A
maioria deste congresso é composta por parlamentares ligados a partidos de centro-direita & direita.
Portanto,
caso seja de fato aprovado, o impeachment em si mesmo seria uma materialização de
uma “frente” entre a esquerda e setores do centro-direita & direita.
Isto posto,
cabem duas perguntas: 1/isto deve ser chamado de “frente democrática”; 2/como
conseguir que isto aconteça?
Bom, a
escolha dos nomes das coisas é algo muito íntimo. Mas excesso de livre arbítrio
conduz a certos exageros.
Afinal, o que poderia motivar setores de direita
& centro-direita a votar no impeachment não seria, nunca, a defesa da “democracia”
em abstrato, mas sim a defesa dos seus (deles) interesses econômicos e
políticos, que não têm nada que ver com os nossos.
Portanto, num certo sentido,
eles votariam no impeachment por motivos opostos aos nossos.
Para fazer uma
brincadeira com a famosa frase de Antonio Carlos, é como se dissessem: façamos o impeachment por
cima antes que o povo o faça, por baixo.
Chamar de “frente democrática” uma
eventual aliança prática, em favor do impeachment, com setores cujos interesses
são opostos e antagônicos aos nossos, apenas estimula a ilusão de que haveria
uma convergência mais profunda de interesses.
Ou seja, que seríamos todos "democráticos".
Aliás, ao chamar de “frente democrática” algo que simplesmente ainda não existe, estamos colocando
a carroça adiante dos bois, pois já estamos distribuindo medalhinhas a quem não
cometeu absolutamente nenhum ato de heroísmo.
O fato é que
a maior parte da direita & centro-direita não defende o impeachment de
Bolsonaro.
Mesmo os que criticam Bolsonaro, ainda não foram (na sua maioria)
além do ranger de dentes.
Seja como for, independente de como chamemos a tal hipotética
e desejada frente que se materializaria no voto pelo impeachment, cabe perguntar:
como conseguir que isto aconteça?
A resposta
de alguns petistas é, traduzida em linguagem pop, “chegando junto”.
A gente
assinaria uns manifestos inócuos, participaria de uns eventos com bastante gente descolada, aqui e ali falariamos alguma
palavra proibida (tipo "basta", "fora" ou até mesmo "devolução dos direitos políticos", termos
que provocam assaduras em alguns da direita¢ro-direita) e, desta forma,
por osmose talvez, iríamos convencendo a turma da centro&direita a abandonar a timidez e a transformar a auto-proclamada
frente ampla pela "democracia", numa frente pelo impeachment.
Na minha
opinião, esse jeito de "chegar junto" não vai nos levar a nenhum bom lugar, e não vai nos levar ao impeachment.
Se existe alguma chance de
empurrar amplos setores da direita & centro-direita a defender pelo menos o
impeachment, é fazendo pressão independente e autônoma, de baixo para cima e de
fora para dentro.
Isso exige
construir uma verdadeira frente democrática, uma coalizão entre os que de fato
defendem o impeachment.
E uma frente democrática consequente (ou seja, pelo
menos pró impeachment) só vai conseguir audiência entre o povo, se conseguir convencer
a massona de que o impeachment é condição necessária para melhorar a vida do
povo.
Portanto, ao
contrário do que diz Dirceu, não é por “dentro” de uma “ampla frente” que vamos
criar uma saída à esquerda.
Não é por dentro de uma “ampla frente” com FHC et
caterva que vamos criar uma saída à esquerda.
Primeiro, porque uma “ampla
frente” com FHC ainda não é “democrática”, porque não coloca como objetivo pelo
menos o impeachment.
Segundo, porque a “ampla frente” de que faz parte a
caterva de FHC só virá a assumir o impeachment, só vai se converter numa real
frente democrática, se for empurrada de fora para dentro, de baixo para cima.
E
só haverá esse empurrão se convencermos o povo de que para defender a vida, é
preciso tirar Bolsonaro.
E não há como fazer isso, se estivermos misturados com
os mesmos que prejudicaram os direitos do povo (EC95, reforma trabalhista,
reforma da previdência etc.).
Portanto, o
raciocínio de Dirceu -- “para fazer o
impeachment de Bolsonaro, temos que construir uma ampla frente democrática e,
dentro dela, criar uma saída à esquerda para a crise brasileira e para a
reconstrução de nosso país” – não contribui nem para construir o impeachment,
nem para construir uma frente democrática de verdade, nem para criar uma saída
à esquerda, nem para a reconstrução de nosso país.
Acho que Dirceu sabe
muito bem disso tudo que escrevi antes. Pois nada disso é novidade para quem construiu
o PT na luta contra a ditadura militar e contra a transição democrática.
É por
isso, na minha opinião, que ele tem passado “por maus pedaços nas últimas
semanas, na verdade meses”. Pois o que ele propõe fazer hoje, não é o que
fizemos nos anos 1980. O que ele propõe fazer hoje é algo parecido com o que se
tentou fazer, mas fracassou, entre 1964 e 1968. O que ele propõe hoje lembra o que a direita do Partido Comunista Brasileiro propunha fazer, no final dos anos 1970 e início dos anos 1980.
Aliás, por
falar em confusões, numa passagem do texto Dirceu lembra que “pelo voto, o povo
derrotou duas vezes as tentativas de impor o parlamentarismo e lutou bravamente
pelo direito de eleger o presidente da República”. De fato. E na
segunda vez, Dirceu esteve entre os que inicialmente defenderam o
parlamentarismo, sendo derrotado fragorosamente pelo voto da maioria (70%) dos
petistas.
Dirceu
afirma que seus “argumentos são simples, quase simplórios, mas minha intuição e
minha consciência me pedem que os apresente. Aprendi desde menino na luta
contra a ditadura que os inimigos de meus inimigos são meus amigos,
companheiros ou companheiras de viagem como se dizia, cada um com destino a uma
estação, mas todos preservando o meio para o fim, a democracia”.
Então, cada
um teve sua infância, inalienável e inesquecível. Na minha, aprendi que os inimigos de meus inimigos hoje raramente
são meus “amigos”, sendo bem provável que logo logo se tornem meus inimigos de amanhã.
Também
aprendi que a burguesia e a classe trabalhadora têm posturas totalmente
distintas frente a democracia e as liberdades.
A classe trabalhadora, ao lutar
para melhorar de vida, cria as liberdades democráticas. A classe dominante, ao defender
interesses, ameaça cotidianamente estas mesmas liberdades.
Portanto, não acredito
que viajamos no mesmo trem, em direção a estações diferentes (aliás, tinha e acho que ainda tem um trem muito legal em Passa Quatro).
Nem acredito que
todos preservamos “o meio para o fim, a democracia”.
A classe dominante, seus
funcionários, seus intelectuais, podem usar e abusar da palavra democracia, mas
não são democratas no mesmo sentido que a classe trabalhadora é democrata.
A
classe trabalhadora, repito, cria a democracia ao lutar para viver e sobreviver. Já a classe dominante, para preservar seus interesses, está sempre ameaçando as liberdades democráticas que servem ao povo. Mesmo que ao fazer isso, algumas vezes acabe restringindo até mesmo as liberdades que servem a setores da própria classe dominante.
O que, aliás, resulta em reviravoltas curiosas, como a de um certo economista-youtubber que foi para as ruas em 2016 defender o impeachment, foi para as rádios atacar Lula e Haddad em 2018 e hoje posa de antibolsonarista desde criancinha, com direito a dar palpites em reuniões do PT e entrevistar o Lula.
Enfim, não
concordo com Dirceu, quando ele fala que seus argumentos sejam simples, quase
simplórios. Na minha opinião seus argumentos não são simples, nem simplórios,
são apenas democrático-liberais.
Claro que há
várias passagens do texto de Dirceu que coincidem integralmente ou parcialmente com o que eu penso. E, como
ele, não quero viver sob “uma ditadura de caráter neofascista e militar, um
governo familiar de milicianos e defensores não apenas da tortura e assassinato
político, mas do fundamentalismo religioso e do obscurantismo, de negação da
ciência e da liberdade”.
Minha
divergência principal com ele está em que, na minha opinião, a linha que ele
propõe para enfrentar este perigo terá tanto êxito quanto a que adotamos, a
partir de 2005, para enfrentar a operação armada pela extrema-direita.
Aliás,
Dirceu mesmo reconhece ser “verdade que nossa direita liberal e mesmo alguns na
centro-direita sonham em conviver com um Bolsonaro domesticado e são seus
aliados na manutenção dos interesses financeiros internacionais e dos rentistas
internos, da mais iníqua e injusta concentração de propriedade, riqueza e renda
do mundo”.
Mas, paradoxalmente, ele afirma que “até agora Bolsonaro não se
tornou um ditador, na prática, pela atuação da oposição e pelo impedimento que
a Suprema Corte ou o Congresso Nacional lhe têm imposto e pela ampla e radical
oposição da mídia monopolista a seu crescente autoritarismo e obscurantismo.
Estou dizendo uma inverdade?”
Não, não está dizendo nenhuma inverdade. Como aliás é de todo óbvio, se os demais setores do golpismo não
oferecessem resistência e defendessem seus interesses, Bolsonaro já seria nosso
fuhrer.
Mas se não é inverdade o que Dirceu diz, tampouco é toda a missa.
Pois cabe
lembrar que Bolsonaro não é apenas uma pessoa, nem um clã. Bozo é um protagonista importante de um
projeto de país, de um projeto reacionário, que se totalmente vitorioso nos fará voltar aos
anos 1920.
Por isso, organizar nossa política em torno do que fazer ou deixar
de fazer apenas com a pessoa física ou jurídica de Bolsonaro, pode nos fazer tratar Mourão e outros
do gênero, não como os “adultos da sala”, como certos tolos gostam de dizer, mas como os “democratas”
da sala.
Por isso,
aliás, que o PT tem insistido não apenas no impeachment, mas no “fora
Bolsonaro, fora Mourão, fora seu governo, suas políticas, convocação de novas
eleições”.
O problema
do raciocínio de Dirceu, portanto, não é que seja uma "inverdade". O problema é
que, preocupado com o avanço da ditadura pessoal e do clã e do bolsonarismo estrito senso, minimiza o avanço da ditadura
sistêmica, de um regime de exceção que vem sendo construído por dentro e há tempos.
Não custa lembrar que Bolsonaro não precisou se tornar um “ditador”
para que 55 mil pessoas morressem e para que quase 40 milhões vivam sem
emprego.
A verdade é que está em curso a formação de um novo regime, de uma “democracia-de-exceção”, indispensável para controlar um país de 210 milhões, em que 40 milhões estão jogados no desemprego e outros tantos na precariedade.
Na formação deste novo regime, a grande mídia, a maioria do congresso e do
supremo são protagonistas.
Num certo sentido, Bolsonaro cumpre um papel útil para
distrair a atenção, enquanto eles “passam a boiada” da exceção.
E quando ele
cair, isto poderá ter o efeito de “tirar o bode da sala”, citado na conhecida piada.
Mas a
sala, a esta altura do campeonato, não terá mais nada que ver com a democracia, em qualquer sentido popular que esta palavra possa assumir.
Quem dera, portanto, que nosso problema fosse apenas o cavernícola.
Na parte
final do texto, Dirceu fala de Ciro e Marina como "candidatos à esquerda”, fala
da “necessidade de deter o desmonte do Estado Nacional e de Bem Estar Social”,
fala da “marcha insensata das chamadas reformas de Guedes” e diz que “as
derrotas de Macri e Macron deviam nos servir de lição”.
São tantas
as emoções, que é melhor ir passo a passo.
Claro que
sempre alguém pode estar à esquerda de alguém. Mas não acho que seja possível chamar
Ciro de esquerda. A esse respeito, recomendo ler o texto a seguir: https://www.diariodocentrodomundo.com.br/a-politica-de-odio-de-ciro-gomes-por-vivaldo-barbosa-brizolista-e-trabalhista-historico/
Claro que
devemos lutar em defesa de determinadas instituições do Estado e em defesa de
determinadas políticas públicas e sociais.
Mas falar que está em curso o desmonte
do Bem Estar Social, é falar de algo que nunca existiu em nosso país. Sem falar
que não se está “desmontando” o “Estado nacional”, mas sim reforçando a
dimensão mais brutal, repressiva e antissocial do Estado realmente existente.
Claro que as
“reformas” de Guedes são um horror para o povo, mas não são “insensatas”. Este
tipo de linguagem supõe que exista um parâmetro comum entre o povo e as elites;
mas este parâmetro não existe, como a pandemia mais uma vez demonstrou. É
preciso abandonar esta linguagem que nos induz a erro. Guedes é extremamente “sensato-do-ponto-de-vista-dos-setores-financeiros”.
Isto posto,
vamos ao que realmente interessa: ao falar de Macron e de Macri, o que Dirceu está nos
dizendo é para construir uma política tendo em vista 2022.
A rigor, eu não sei
por qual motivo Dirceu não compareceu ao ato por Direitos Já, na sexta-feira 26
de junho.
Pois, como confessou inadvertidamente ao final um de seus organizadores, o plano real
é esse: construir uma “frente democrática”, cujo objetivo real não é tirar
Bolsonaro, mas sim construir uma frente eleitoral em 2022, em que a esquerda
entre com os votos e com a música, deixando para os tucanos a candidatura
presidencial e deixando o miolo do programa para os social-liberais.
Dirceu chega
a escrever o seguinte: “construir uma Frente Democrática pelo impeachment e na
luta e na unidade avançar para um programa mínimo mais amplo como foi o das
Diretas que desaguou na Constituinte de 1988”.
O movimento
das Diretas começou em 1983 por iniciativa do PT e foi traído, em 1985, pela
burguesia liberal. O que desaguou no Congresso (e não Assembleia) Constituinte de 1988, portanto, não foi um,
mas vários movimentos e programas mínimos diferentes entre si. Se o PT tivesse
feito, naquela época, o movimento que Dirceu defende agora, o resultado teria
sido uma Constituição ainda mais recuada.
Claro que Dirceu alerta que “conforme a radicalidade e
amplitude da luta contra Bolsonaro, teremos um ou outro resultado. As ruas, as
mobilizações e a entrada das classes trabalhadoras na luta – as classes médias
só aguardam o fim da pandemia para sair às ruas — ditarão o rumo e o conteúdo
das mudanças pós Bolsonaro”.
Claro, também, que Dirceu diz que “nossa tarefa é mobilizar e organizar as classes trabalhadoras, até
porque os mais pobres, explorados, discriminados já estão nas ruas. A greve
geral dos trabalhadores de aplicativos marcada para 1o de julho é um exemplo. A
experiência recente prova que as classes médias conservadoras ou progressistas
têm grande poder de mobilização até porque recebem um tratamento especial dos
meios de comunicação”.
Aliás, nestes dois
parágrafos aparece outro tema importante, mas que exigiria outro texto para ser
abordado com algum cuidado: a relação que tem a polêmica frente ampla X frente
de esquerda, com uma determinada concepção acerca da relação entre a classe
trabalhadora e os setores médios.
Seja como
for, admito que sempre pode ser que eu esteja exagerando quando falo de concepções democrático-liberais. Mas, como diria
Dirceu, com certeza não estou dizendo uma inverdade.
Acontece que, ao contrário
da lenda, Dirceu é fundamentalmente um tático, não um estrategista. E por isso
mesmo, ele é capaz de apresentar, no mesmo texto, respostas contraditórias e as
vezes até antagônicas para uma mesma questão.
Um exemplo
disso é como ele termina o texto: “Se a direita liberal ou conservadora não
quer fazer o impeachment de Bolsonaro, cabe a nós, das esquerdas, fazê-lo,
disputando as classes trabalhadoras e base social democrática dessas forças.
Isso exige formar uma ampla frente democrática pelo impeachment e, dentro dela,
construir uma saída à esquerda para a crise brasileira e para a reconstrução de
nosso país.”
Ou seja, se
a frente democrática não for possível, por culpa da atitude de nossos supostos aliados, faremos
sem eles o mesmo que queríamos fazer com eles.
Mas cá entre nós: se somos capazes disso, por qual
motivo deveríamos mais uma vez insistir na crença de que existe um “centro-verdadeiramente-democrático”
em nosso país?
Já não basta o que ocorreu entre 2014 e 2020? Já não basta
Xangai?
SEGUE O TEXTO COMPLETO DE JOSÉ DIRCEU
Por que sou
a favor de uma Frente Democrática
Não podemos
confundir direitos civis e políticos com direitos sociais. Sem liberdade, não
teremos como recuperar os direitos sociais e ampliá-los. O voto é a arma do povo brasileiro, que não
detém o poder econômico, militar, judicial ou de informação. Para fazer o
impeachment de Bolsonaro, temos que construir uma ampla frente democrática e,
dentro dela, criar uma saída à esquerda para a crise brasileira e para a
reconstrução de nosso país.
Tenho
passado por maus pedaços nas últimas semanas, na verdade meses. A cada dia,
vejo amigos e amigas de décadas de luta – e mesmo o PT — se opondo a Frentes
Democráticas. Razões não faltam, levando-se em conta o golpe que derrubou Dilma
precedido da recusa do PSDB em aceitar a derrota eleitoral de 2014. Tudo se
complica quando incluímos nas razões o apoio de praticamente toda nossa direita
à agenda ultra liberal de Bolsonaro-Guedes e a infâmia e vergonhosa indignidade
do impedimento de Lula.
Sem falar
nas tentativas de prescrição do PT, um partido mais do que comprometido com a
democracia — surgiu para lutar por ela e cresceu e se fortaleceu a defendendo e
praticando mesmo quando não concordava com seu caráter elitista, excludente e
eivado de heranças e entulhos da Ditadura como a tutela militar, filha da
impunidade dos crimes praticados pelo Estado via Forças Armadas, o artigo 142 e
outras pérolas como a desproporcionalidade na Câmara dos Deputados, a iníqua e
injusta estrutura tributária e por aí vamos.
Fico
remoendo o risco que corremos em confundir os direitos civis e políticos que
conquistamos depois de 24 anos de ditadura na Constituição de 1988 com os
direitos sociais que construímos na luta e escrevemos na Constituição Cidadã.
Parece uma discussão inócua ou simplista, mas não o é pela simples razão de
que, sem liberdade, teremos que lutar, como fizemos exclusivamente por ela,
pelo direito de reunião, manifestação, organização, expressão. Não podemos nos
esquecer de que nos custava a vida ou anos de prisão — geralmente tortura,
desemprego, clandestinidade e exílio – apenas lutar por salários, contra a
censura, a tortura, contra a falta de liberdade, pelo direito de greve, contra
o arrocho salarial ou a manipulação da inflação, e como nos custou longos e
duros 21 anos até o colégio eleitoral e 25 anos até as eleições para
presidente.
O voto é a
arma do povo
Na
democracia crescemos e chegamos ao governo do país. O voto é a arma do povo
brasileiro, que não detém o poder econômico, militar, judicial ou de informação
e formação da mídia monopolista. Pelo voto, o povo derrotou duas vezes as
tentativas de impor o parlamentarismo e lutou bravamente pelo direito de eleger
o presidente da República.
Foi o povo
que derrotou a Arena e a ditadura nas urnas em 1974 e nunca mais deixou a
ditadura vencer uma eleição. E só não elegeu o presidente no colégio eleitoral
em 1978 porque os militares mudaram a composição do colégio eleitoral e
inventaram a excrescência do senador biônico.
Em 1986, deu
maioria absoluta ao PMDB na Câmara e no Senado em 86 e elegeu o PT para
governar o Brasil quatro vezes e o elegeria mais uma vez em 2018 fosse Lula o
candidato ou as eleições limpas.
Meus
argumentos são simples, quase simplórios, mas minha intuição e minha
consciência me pedem que os apresente. Aprendi desde menino na luta contra a
ditadura que os inimigos de meus inimigos são meus amigos, companheiros ou
companheiras de viagem como se dizia, cada um com destino a uma estação, mas
todos preservando o meio para o fim, a democracia.
Nosso povo e
nosso Brasil já têm excesso de violência, pobreza, desigualdade e miséria,
discriminação, preconceito, racismo, machismo e homofobia para que
acrescentemos à violência Estatal uma ditadura de caráter neofascista e
militar, um governo familiar de milicianos e defensores não apenas da tortura e
assassinato político, mas do fundamentalismo religioso e do obscurantismo, de
negação da ciência e da liberdade.
É verdade
que nossa direita liberal e mesmo alguns na centro-direita sonham em conviver
com um Bolsonaro domesticado e são seus aliados na manutenção dos interesses
financeiros internacionais e dos rentistas internos, da mais iníqua e injusta
concentração de propriedade, riqueza e renda do mundo. Na prática, mesmo em
plena pandemia e crise sanitária, que já matou quase 60 mil brasileiros, já reassumem
a agenda ultraliberal haja visto a aprovação da privatização da água. Apesar de
toda campanha para dourar a pílula, o que o Senado aprovou foi a entrega de um
bem natural à exploração privada que visa o lucro. Amanhã vão querer privatizar
o ar, porque a terra já é bem privado neste país e as florestas, que são o
nosso pulmão, caminham também para o mesmo iníquo destino.
Nem falarei
da vergonhosa política externa e submissão de nossa soberania à política
externa e de defesa aos Estados Unidos, a renúncia a um projeto de
desenvolvimento nacional e a entrega da nossa soberania financeira à fracassada
globalização financeira, o fechar de olhos para a captura dos aparelhos do
Estado e a lenta, segura e gradual instauração de um regime autoritário como foi
o de 1964.
Para
completar o pano de fundo Bolsonaro, além de militar — esta é sua formação
ideológica e política –, se apoia nas palavras de ordem do nosso fascismo
tupiniquim ou monismo político da família, Deus e Pátria, no fundamentalismo
religioso. Tem, portanto, raízes e base popular que, somadas aos interesses
capitalistas de nossa elite, lhe garante apoio para, suportado pelos militares
e milícias, manter não só o governo, mas avançar para se impor como ditador
mesmo que dentro de aparente legalidade.
Outro fato,
pois procuro me ater aos fatos, é que até agora Bolsonaro não se tornou um
ditador, na prática, pela atuação da oposição e pelo impedimento que a Suprema
Corte ou o Congresso Nacional lhe têm imposto e pela ampla e radical oposição
da mídia monopolista a seu crescente autoritarismo e obscurantismo. Estou
dizendo uma inverdade?
Esquerdas
são alternativa
Assim, as
forças políticas e sociais de esquerda ou de centro-esquerda que são
alternativas reais de governo — basta ver o resultado da eleição de 2018, onde
os três candidatos à esquerda Haddad, Ciro e Marina, tiveram quase 43% —
deveriam ser as maiores interessadas em uma Frente Democrática. E deveriam ser
em qualquer ponto de vista, particularmente dos direitos sociais e da urgente
necessidade de deter o desmonte do Estado Nacional e de Bem Estar Social e a
marcha insensata das chamadas reformas de Guedes e o risco real que Bolsonaro
representa. As derrotas de Macri e Macron deviam nos servir de lição.
Não se trata
de se submeter ou se atrelar aos interesses e objetivo eleitorais deste o
daquele partido ou setor social que se opõe a Bolsonaro. Mas, sim, de construir
uma Frente Democrática pelo impeachment e na luta e na unidade avançar para um
programa mínimo mais amplo como foi o das Diretas que desaguou na Constituinte
de 1988. Conforme a radicalidade e amplitude da luta contra Bolsonaro, teremos
um ou outro resultado. As ruas, as mobilizações e a entrada das classes
trabalhadoras na luta – as classes médias só aguardam o fim da pandemia para
sair às ruas — ditarão o rumo e o conteúdo das mudanças pós Bolsonaro.
Nossa tarefa
é mobilizar e organizar as classes trabalhadoras, até porque os mais pobres,
explorados, discriminados já estão nas ruas. A greve geral dos trabalhadores de
aplicativos marcada para 1o de julho é um exemplo. A experiência recente prova
que as classes médias conservadoras ou progressistas têm grande poder de
mobilização até porque recebem um tratamento especial dos meios de comunicação.
Se a direita
liberal ou conservadora não quer fazer o impeachment de Bolsonaro, cabe a nós,
das esquerdas, fazê-lo, disputando as classes trabalhadores e base social
democrática dessas forças. Isso exige formar uma ampla frente democrática pelo
impeachment e, dentro dela, construir uma saída à esquerda para a crise
brasileira e para a reconstrução de nosso país