segunda-feira, 28 de setembro de 2015

Tarso Genro: "redondamente equivocado"

Como Tarso (e Melville), acho que "os julgamentos do presente, centrados nas tensões do presente, nem sempre são os que fazem história". 

Mas que conclusão nós pobres mortais devemos tirar disto? Abstenção? Relativismo? Agir pensando no julgamento futuro da história? Ou correr o risco de tomar partido aqui e agora?

Como Tarso (e Melville), também acho que "aquele que nunca fracassou em alguma parte, tal homem não pode ser grande, o fracasso é a verdadeira prova de grandeza". 

Mas, novamente, que conclusão nós pobres mortais devemos tirar disto? Relativizamos os fracassos, em nome da grandeza de caráter? Ou deixamos que os biógrafos façam seu trabalho? 

Indo ao ponto: Tarso opina sobre a filiação de Alessandro Molon e de Randolfe Rodrigues a Rede de Marina. 

Considera que ambos "não estão fazendo esta opção por oportunismo ou vantagens políticas pessoais". 

Diz que "são homens de esquerda, que se opuseram à natureza dos ajustes ortodoxos do Governo atual". 

Infelizmente Tarso não pergunta por quais motivos ambos estão saindo exatamente agora, nesta data específica. 

Tarso tampouco questiona o fato de ambos não terem agido de acordo com as convicções democráticas que os dois sempre externaram, segundo as quais o mandato pertence aos partidos, não aos mandatários.

Deixando de lado estas questões -- seriam menores?-- Tarso se concentra em algo obviamente fundamental: como é possível que dois militantes de esquerda, críticos ao ajuste ortodoxo, saiam de seus partidos para buscar abrigo num "campo político que caracterizou as últimas intervenções de Marina Silva, no cenário nacional: o campo demo-tucano, das reformas liberais, combinadas com a crescente vontade de desestabilizar e derrubar uma Presidente legitimamente eleita"?

Tarso parece confiante em que "ambos devem ter feito algum tipo de negociação política com Marina, de que a sua nova Rede não seria furada por "palometas", que abririam rombos pelos quais transitariam acordos com a direita e com a centro-direita, como ocorreu recentemente nas eleições presidenciais"

Confesso que não entendi se Tarso está especulando ou se está nos informando. Seja como for, é neste ponto que -- na minha opinião -- penetramos um terreno perigoso.

Não me refiro a confiança de Tarso no caráter de Marina. Com todo o respeito, isto é problema de quem confia e de quem é confiado. 

Quando falo de terreno perigoso, refiro-me a expectativa de Tarso em que "teremos um novo cenário partidário no país, que poderá permitir coalizões mais orgânicas e frentes mais programáticas, que até poderiam ser testadas, em algumas cidades, em 2016".

Além desta lógica ser parente da que leva governadores e prefeitos a estimular a distribuição de "afilhados políticos" por vários partidos, trata-se de um jeito de raciocinar que no limite transformará nosso PT -- que também é meu e de Tarso-- em "mais um" como tantos.

Diferente de Tarso, nunca apoiei a estratégia da conciliação. Mas parecido com ele, acho que esgotou o prazo de validade desta estratégia. Entretanto, qual deve ser o papel do PT na construção de uma nova estratégia? 

A resposta dada por Tarso, que na minha opinião o leva a ser tão condescendente com a atitude de Molon, é que "temos que buscar, nos diferentes espectros partidários, lideranças, grupos políticos, partidos, frações de partidos, que estejam dispostos a acordar um novo programa econômico e social". 

Na minha opinião, esta resposta está certa sob uma condição: se o "temos que buscar" disser respeito não a pessoas físicas, mas a organizações coletivas. Ou seja, segundo meu ponto de vista, o Partido dos Trabalhadores tem que buscar.

Motivo pelo qual, ademais, não concordo em estimular, concordar, ser condescendente, nem adotar uma atitude passivo-fatalista frente a movimentos de saída do PT. 

Por fim: o inferno está cheio de boas intenções. 

Não tenho dúvida de que Molon e Randolfe acreditam que "não estão abandonando o barco da esquerda, mas procurando construir algo dentro de outros barcos"

Se vão conseguir ou não, e exatamente o que vão conseguir, o futuro dirá.   

Mas a paródia que Tarso faz não é bom presságio, embora seja muito reveladora acerca destes tempos em que vivemos. 

Diz Tarso: "parodiando Melville, barcos dos quais eles ainda não são capitães, mas podem vir a sê-lo". 

Randolfe é um senador da República, Molon é um deputado federal de grande prestígio. Eles estão a busca de um barco onde possam ser capitães??? 

Espero que não. Há motivos melhores para sair e para entrar num partido. 

Assim como há motivos melhores para ficar, especialmente quando o Partido em que ficamos está sob ameaça de ser destruído pela direita.






Os julgamentos do presente

27 de Setembro de 2015 :
Herman Melville é conhecido pelo seu fabuloso "Moby Dick", terminado em julho de 1851 e publicado no mesmo ano, em outubro, em Londres. O livro foi recebido friamente pela crítica, mas foi considerado mais tarde um dos grandes romances da literatura contemporânea. Fazendeiro-escritor, à época, Melville é também autor de um texto maravilhoso - que provavelmente hoje seria classificado como um "ensaio"- "Hawthorne e seus musgos". É um pacto de amizade e fraternidade com seu amigo, a quem dedica o ensaio, impelido pelo fervor da construção de uma literatura genuinamente americana, que ele defendia quase como anunciadora de formação da jovem nação.
Ao defender a criação de uma identidade própria, para a literatura americana, sem desdenhar da literatura inglesa do Século XIX, Melville lembra que os julgamentos do presente, centrados nas tensões do presente, nem sempre são os que fazem história e diz: "Não devemos nos esquecer de que, em sua própria época, Shakespeare não era Shakespeare, mas somente o sr. William Shakespeare da hábil e florescente firma Condell, Shakespeare e Co., proprietários do Globe Theatre de Londres."
Lembro este episódio literário, a partir deste grande autor que também diz, no mesmo ensaio, que "aquele que nunca fracassou em alguma parte, tal homem não pode ser grande, o fracasso é a verdadeira prova de grandeza". É uma frase que poderia servir para muita gente em todas as épocas, inclusive a presente, mas lembro-a, agora, com vínculo a duas opções políticas, feitas por dois líderes importantes do campo da esquerda, no Brasil, deputado Alessandro Molon e Senador Randolfe Rodrigues. Ambos deixaram os seus respectivos partidos e optaram pela Rede, da ex-Senadora Marina Silva, recentemente registrada.
Tanto o deputado Molon, como o Senador Randolfe - pelo que conheço de ambos - não estão fazendo esta opção por oportunismo ou vantagens políticas pessoais. São homens de esquerda, que se opuseram à natureza dos ajustes ortodoxos do Governo atual e que, me custa a crer o contrário, não estariam se trasladando para um campo político que caracterizou as últimas intervenções de Marina Silva, no cenário nacional: o campo demo-tucano, das reformas liberais, combinadas com a crescente vontade de desestabilizar e derrubar uma Presidente legitimamente eleita. Este campo, na minha opinião, jamais seria o campo destes dois quadros da esquerda que, independentemente de divergências, até ontem eram respeitados e elogiados por todos nós.
Se bem conheço os personagens deste cenário, ambos devem ter feito algum tipo de negociação política com Marina, de que a sua nova Rede não seria furada por "palometas", que abririam rombos pelos quais transitariam acordos com a direita e com a centro-direita, como ocorreu recentemente nas eleições presidenciais. Posso estar enganado, mas se este acordo ocorreu de maneira formal, Marina Silva, a quem conheço há décadas, sendo uma pessoa de caráter, como efetivamente o é, cumprirá o ajuste. E aí teremos um novo cenário partidário no país, que poderá permitir coalizões mais orgânicas e frentes mais programáticas, que até poderiam ser testadas, em algumas cidades, em 2016.
Temos assistido na vida democrática recente, as composições políticas mais esdrúxulas, as frentes mais atípicas, as coalizões mais originais, que às vezes redundam em cenários econômicos positivos, às vezes dramaticamente negativos para o país. Ocorre que este cenário histórico está chegando ao fim e os problemas que o mundo atravessa e o país atravessa, passam a dividir de forma mais clara, as posições de esquerda e direita, que se defrontam com um dilema que pode ser uma esfinge: a única forma de sair crises como a presente é pela via da destruição das conquista sociais, dos choques de desemprego e de sugamento das energias produtivas através dos juros altos?
A resposta a este dilema é que vai caracterizar, daqui para diante, as posições democráticas de esquerda e progressistas no país. Temos que buscar, nos diferentes espectros partidários, lideranças, grupos políticos, partidos, frações de partidos, que estejam dispostos a acordar um novo programa econômico e social, baseado na soberania alimentar, no crescimento com emprego, na sustentabilidade ambiental, na participação popular na gestão pública, na soberania nacional e no bloqueio à privatização do Estado para as forças do rentismo e do conservadorismo.
Se estou certo, na minha análise - posso estar redondamente equivocado - Molon e Randolfe não estão abandonando o barco da esquerda, mas procurando construir algo dentro de outros barcos. Parodiando Melville, barcos dos quais eles ainda não são capitães, mas podem vir a sê-lo, como Shakespeare, que não era Shakespeare na sua época. Talvez fracassem, mas, se mantidas as suas intenções originais, seu fracasso será uma prova de grandeza.

sexta-feira, 25 de setembro de 2015

Quais lições chegam da Inglaterra?

Fiquei extremamente contente com a eleição de Jeremy Corbyn, novo líder do Labour.


Mas não tiro daí as conclusões expostas por Leopoldo Vieira, em artigo que pode ser lido ao final e também no endereço http://www.teoriaedebate.org.br/index.php?q=materias/politica/licoes-que-chegam-da-inglaterra-e-o-pt

Na minha opinião, Vieira faz deduções incorretas. Vou dar exemplos.

1) Vieira diz que ao eleger Jeremy Corbyn como líder, "o Labour mostra que o caráter de massas do partido é a solução".

Pergunto: e a eleição de Tony Blair mostrou o quê? 

Que o Labour então não era de massas? 

Ou que o caráter de massas pode ser acompanhado de diferentes linhas políticas?

Na verdade, o "caráter de massas" de um partido, tomado em si mesmo, não explica a política deste partido.

A idéia de que a forma de organização define a política é típica das seitas esquerdistas.

Curiosamente, algumas pessoas que migraram da ultra-esquerda para o centro-direita trouxeram junto esta concepção e, agora no oposto do espectro político-ideológico, continuam tratando as formas organizativas como um valor "em si".

2)Vieira diz que a eleição de  Corbyn demonstra "que partidos nacionais, populares, de base laboral profunda, antigos podem se reinventar e, quando o fazem, têm um impacto muito mais transcendente do que o mero surgimento de forças alternativas a eles próprios".

A conclusão é unilateral.


Todo partido pode se reinventar.

O próprio Labour se "reinventou" na época de Blair, indo para a direita.

Naquela ocasião, o "impacto transcendente" foi ver o Labour converter-se num instrumento do neoliberalismo.

Agora ainda é cedo para falar em "impacto transcendente" da eleição de Corbyn.

Seja o que for que aconteça na Inglaterra, cabe perguntar: o caso do Labour pode servir de base para uma frase tão generalizadora acerca dos "partidos nacionais, populares, de base laboral profunda, antigos"?

Na minha opinião, não.

Aliás, quem conhece a história do Labour sabe que ele sempre foi um caso extremamente singular.

O problema é que Vieira constrói seu raciocínio de trás para frente, mais ou menos como fazem os editores de Veja, que adotam uma tese e mandam os repórteres garimpar "aspas" para "sustentar" esta tese pré-concebida.

Ou seja, o que o preocupa não é estudar a experiência concreta do Labour, mas sim buscar pontos de apoio para uma opinião prévia segundo a qual é mais importante "reinventar" os partidos tradicionais do que apostar no "surgimento de forças alternativas".

Eu sou petista e luto para que o PT supere a crise atual. E estou convencido de que se o PT não tiver êxito, viveremos um longo e reacionário recesso até que surja uma alternativa.

Mas nunca usaria o Labour, muito menos um episódio na vida do Labour, para sustentar teoricamente meu ponto de vista.

Aliás, nos anos 1980 e 1990 era muito comum em certos grupos de ultra-esquerda o abuso de "paralelismos" históricos deste tipo.

3) Vieira diz que em julho deste ano, escreveu para Teoria e Debate um artigo sobre o plebiscito grego no qual afirmava que "a vitória do ‘não’ no referendo grego, no último 5 de julho, não levou a Grécia ao socialismo, como fantasiaram alguns, mas à negociação de condições melhores de seu resgate, o que pode abrir um ciclo de vitórias para as novas (e velhas, porém, renovadas) forças populares europeias".


Não vou discutir as fantasias dos outros.


Mas pergunto: o que aconteceu na vida real?

Na vida real, não houve "condições melhores de seu resgate".

Pelo contrário, o acordo assinado pelo Syriza é sob vários aspectos mais agressivo contra a soberania nacional grega e mantém a regressão social.

Nestas condições, vincular a presença e ação do Syriza no governo a um futuro "ciclo de vitórias" para as forças populares europeias é excesso de otimismo.

Aliás, achar que da Europa possa surgir a luz é, na melhor das hipóteses, uma concessão tardia ao eurocentrismo.

No que toca a Europa, o argumento poderia ser outro, do tipo: as mesmas condições que geraram o Syriza também estão presentes em outros países e poderão gerar efeitos similares.

Mas não é isto que Vieira diz. Suas generalizações são indevidas.

4) Vieira diz que a vitória de Corbyn é uma "lição e tanto para quem analisa a esquerda mundial sob uma visão doutrinária baseada em epítetos, dogmas e preconceitos teóricos"

Confesso que não compreendi o argumento.


A esquerda brasileira e mundial não é composta de dois grupos: "os esquerdistas" e a "turma da linha justa".

A esquerda brasileira e mundial é composta de muitos e diferentes setores, para além da dicotomia acima.

Além disso, o doutrinarismo, os dogmas e preconceitos não são exclusividade do esquerdismo.

O caso brasileiro --e inclusive o caso petista-- demonstram que também existe um doutrinarismo de direita, que insiste em mater a estratégia e o programa errado, mesmo que todos os fatos indiquem a necessidade de mudar de linha.

Neste sentido, a vitória de Corbyn poderia ser um sinal -- para os dogmáticos de direita-- que a saída pode estar na esquerda. 

Mas não é isto que Vieira quis dizer, salvo engano da minha parte.

5) Vieira diz que "não foi nenhum grupo propagandista de extrema esquerda ou uma "novidade conectada" que renovou as esperanças dos trabalhadores britânicos, (...) Foi o velho trabalhismo, centenário, profundamente vinculado ao mundo do trabalho e de massas". 

Opa, opa, opa: espero que Vieira tenha alguma razão.


Mas para que ele tenha razão, é preciso que o Labour sob nova direção conquiste maioria entre os trabalhadores. E isto ainda não aconteceu.

Para exemplificar: mesmo que a esquerda do PT vença as próximas eleições internas, muito terá que ser feito para o PT reconquistar a classe trabalhadora. Porque o estrago foi e continua sendo enorme.

6) Vieira diz que "partidos nacionais, populares, de base laboral profunda, antigos podem se reinventar – vide o Partido Justicialista, na Argentina, antes das novas promessas do Labour – e, quando o fazem, têm um impacto muito mais transcendente do que o mero surgimento de forças alternativas a eles próprios".


Esta frase poderia ter sido escrita pelo Conselheiro Acácio, pois é óbvio que se um grande partido vira à esquerda, o efeito disto tende a ser maior no curto prazo do que o causado pelo surgimento de forças alternativas.

Mas este raciocínio não diz absolutamente nada sobre o que pode/tende a acontecer em cada caso concreto.

Para isto, é preciso fazer análise concreta da situação concreta.

Até porque, para cada grande partido que vira à esquerda, temos outro tanto de exemplos de partidos grandes que não conseguem fazer isto.

A impressão que fica é que Leopoldo está tão preocupado com o que dizem e fazem "grupos minoritários" -- que ele não diz quais são-- que ele força a mão na realidade para tentar manufaturar argumentos em favor da opção por disputar o PT.

Como disse antes, minha opção é disputar o PT. Mas os argumentos em favor disto precisam ser construídos a partir da análise da nossa realidade, inclusive da trajetória do PT e da classe trabalhadora brasileira.

7) Vieira diz que o ocorrido pode "mais do que incentivar novos agrupamentos críticos à austeridade, pode reencantar o Partido da Social-Democracia Alemã, quiçá o próprio Partido Socialista francês, além de dar maior ímpeto e coragem ao Partido Democrático da Itália – todos com a mesma natureza do Labour. Além do que, tratando-se do principal aliado global dos EUA, pode influenciar na remodelagem do Partido Democrata americano".

Vieira deve ter visto o passarinho azul antes de escrever estas frases: seu entusiasmo é verdadeiramente emocionante.


Do meu lado, só posso dizer que a relação entre o Labour e os partidos citados é um pequeno aspecto da relação mantida entre a política inglesa e a política dos EUA, da França e da Alemanha.

E esta relação responde a estímulos que passam principalmente por outras varíaveis (dinâmica da economia mundial, escolhas geopolíticas etc.).

É um erro simplificar e reduzir isto a influências entre partidos.

8) Vieira diz que "antes que alguém brade que se tratou de uma vitória "da esquerda" contra a direita partidária e comece a fazer analogias imprecisas, como quando confundiram o Syriza com partidos e agrupamentos críticos à condução do PT, é importante destacar o centro do programa escolhido junto com Corbyn: aumento do investimento do Estado". 

Aqui a coisa fica ao mesmo tempo mais clara e mais divertida.


É óbvio que a esquerda do PT achou triplamente positiva a vitória de Corbyn. Primeiro, em si. Em segundo lugar, porque é um alento para nossa luta aqui. E em terceiro lugar porque ajuda a questionar algumas certezas da esquerda não-petista.

É óbvio, também, que não devemos fazer analogias imprecisas, a começar pelas cometidas pelo próprio Vieira e já comentadas antes.

O divertido, contudo, é apoiar o argumento no programa de Corbyn:aumento do investimento do Estado, que Vieira diz ser "o consenso mundial das esquerdas".

Quero mudar para o universo paralelo em que Vieira transita, pois neste aqui nunca houve e não há "consenso mundial das esquerdas".

Vejamos o tema "aumento do investimento do Estado": qual Estado? Que tipo de investimento? A serviço de qual estratégia?

Especialmente depois da campanha eleitoral de 2014 -- em que nossa candidata falou em gerar empregos, retomar o bem-estar e atacar as desigualdades, nem que a vaca tussa e ajuste é coisa de tucano --para depois fazer o que está fazendo, é preciso ir além das obviedades e frases feitas.

Por outro lado, no debate petista, é a chamada esquerda do Partido que mais insiste acerca do papel do Estado. Atitude que tem analogia com a postura do Corbyn. Mas esta analogia Vieira não destaca...

9) Vieira diz que "a vitória de Corbyn tenha sido das bases contra a burocracia partidária e seus equívocos".

É adorável esta linha de argumentação, que noutros tempos chamaríamos de sofisma.


Fica mais claro o objetivo de Vieira quando se lê o seguinte: esta"vitória foi facilitada pela mudança no sistema de votação do partido. Desta vez, o voto, antes restrito aos filiados, estendeu-se aos simpatizantes e valeu a lógica do "uma pessoa, um voto", e não mais a distribuição de pesos para os setores sindical e parlamentar. Disso se reforçou o partido-movimento efetivo, não o partido "estado de espírito", muitas vezes confundido com o primeiro conceito".

Se eu entendi o que Vieira quis dizer (embora eu tenha dificuldade de entender algumas de suas frases e raciocínios), ele acredita que ampliar o eleitorado interno (por exemplo, criando o PED ou eliminando a cobrança como condição de votar) favorece as bases contra a burocracia partidária.

Aqui está o raciocínio de Vieira: "Não foi um aggiornamento em torno de quadros, intelectuais e dirigentes. Isso diz algo sobre o PT atual e dos resultados do seu V Congresso, em Salvador (BA), quando foi rechaçada a ideia de que o grande Partido dos Trabalhadores e do povo sucumbisse a um clube de lideranças autoproclamadas ilibadas capazes de conduzi-lo para os desafios da grave conjuntura política brasileira".

Vieira confunde várias coisas no raciocínio acima.

O que foi rechaçado no Congresso de Salvador, por 55% dos delegados e delegadas, foi uma crítica clara e explicita à política econômica do governo Dilma. O que isto tem que ver com o assunto das "lideranças autoproclamadas ilibadas"?

O que também foi rechaçado no Congresso de Salvador? O fim do PED. Foi mantido o sistema atual, que na prática vem contribuindo e muito para que a "burocracia partidária" controle o resultado das eleições internas, com direito a lances que lembram o que ocorria com o sistema eleitoral da República Velha no Brasil.

Achar que isto é positivo, que isto (PED) vai dar naquilo (Corbyn) é uma hipótese, que só poderia ser defendida analisando a experiência recente do PT. Coisa que Vieira não faz.

10) Vieira afirma que o "Syriza deu o máximo exemplo ao PT sobre como enfrentar os impasses da crise política, com diálogo e participação social".

Independente da opinião que tenhamos sobre o que ocorreu nos últimos meses na Grécia, é óbvio que a situação de lá envolve particularidades e dificuldades tão grandes, que converter em "máximo exemplo" para nós é cometer erro de método similar ao que Vieira atribui à ultra-esquerda, acerca do mesmíssimo Syriza.


Claro, o Syriza e a valentia do povo grego devem ser estudadas, há muito o que aprender com elas. Mas daí a transformar em modelo...

11) Vieira diz que "o Labour mostrou, inequivocamente, que o caráter de massas de um partido é solução e deve ser expandido associadamente à sua estrutura profissional interna, não o inverso. Somando as duas lições, grega e britânica, o refrão é "não às soluções tecnocráticas" e não à burocratização traficada como "partido militante"."

Eu não tenho o conhecimento que o Vieira deve ter, acerca da situação inglesa, para usar a palavra "inequivocamente" sobre o presente e o futuro do Labour.

Mas quanto ao passado, é inequívoco que o mesmíssimo Labour foi, até há pouco, colonizado pelos neoliberais.

Portanto, insisto, as formas organizativas de um partido (massas, quadros, militantes, processos eleitorais, relação direção/base) não determinam de per si a política deste partido. 

Quanto as soluções tecnocráticas e a burocratização traficada como partido militante, não sei bem do que Vieira fala, mas sei bem o quanto certos "burocratas" do nosso partido gostam de encher a boca para falar de democracia de massas. 

Mas aí lembro do Vaccarezza e do André Vargas e de como eles financiavam a democracia de massas que eles diziam defender.

12) Vieira diz que "parece que voltou a funcionar a velha alquimia do socialismo europeu, essencial em suas origens, de converter a maioria social trabalhadora em maioria política, mas através de agentes oriundos da própria classe". 

Novamente: preciso saber onde voa o passáro azul que funciona como musa do Vieira. 
Pois mesmo dizendo que "parece", só tal musa justifica o excesso de otimismo de falar da "velha alquimia". 

Por favor, observemos friamente a situação de conjunto da política europeia e da esquerda daquele continente. 


E lembremos de um passado não tão distante, os anos 1980, em que o neoliberalismo dominava ao "Norte" da Europa em certos países e partidos, ao mesmo tempo que ao "Sul" da Europa partidos socialistas chegavam ao governo, despertando esperanças que logo se converteram em decepção.

Adoraria que fosse verdade, mas observando os fatos me soa como um exagero (tipicamente esquerdista, aliás) dizer que "Corbyn é a antessala da renovação das esquerdas europeias". Aliás, lembrem-se das esperanças despertadas por Ken, o Vermelho?


13) Por fim, Vieira fala que a trajetória do PT "foi feita promovendo, consolidando e desenvolvendo o que Gramsci chamava de "intelectuais orgânicos", que não são o mesmo que "intelectuais de esquerda" ou intelectuais filiados ou explicitamente simpatizantes do partido, mas atores e atrizes oriundos da própria classe trabalhadora, que conseguem cumprir os papéis de organização e formulação da classe, libertando-a da dependência em relação aos intelectuais "importados" de outras origens sociais, embora ideologicamente de esquerda. O PT tornou possível, por sua origem e seu êxito como força política alternativa viável, que trabalhadores se tornassem gestores públicos e legisladores".


Quem dera fosse verdade.


Mas, infelizmente, a "intelectualidade orgânica" da classe trabalhadora brasileira me parece muito mais débil do que Vieira descreve. 

Noutros tempos, nossas debilidades foram minimizadas pela situação "vento a favor". Hoje, em que tantos ventos sopram contra, as debilidades ficaram evidentes e se acentuam.

O fenômeno é agravado pela crise do grupo majoritário do PT. 

Parte da intelectualidade orgânica vinculada a este setor do Partido está silenciando, talvez devido a dificuldade de entender o que está ocorrendo -- como aquilo deu nisso? -- e para apontar rumos futuros.

Tomado de conjunto, o contexto atual torna ainda mais difícil a formação de uma "nova geração" de intelectuais orgânicos. Entre outros motivos, porque mudou a classe trabalhadora, mudou nossa relação com a classe trabalhadora e mudou -- para muitos de nós, ao menos-- o lugar de onde refletimos sobre a realidade: tantos anos de governo tem seu preço.

Tudo isto certamente explica, mas não justifica, a reflexão feita por Vieira, neste e noutros textos.

Por fim, falando de lições da Inglaterra, lembro-me de uma: nos anos 1980, eu era professor no Instituto Cajamar, por lá passou ninguém mais, ninguém menos, do que o Eric Hobsbawn. 

No debate após sua palestra alguém perguntou: "professor Hobsbawn, qual é a estratégia para nós aqui no Brasil?" A resposta dele foi mais ou menos assim: "não faço a menor idéia, só voces podem responder esta pergunta".







http://www.teoriaedebate.org.br/index.php?q=materias/politica/licoes-que-chegam-da-inglaterra-e-o-pt

As lições que chegam da Inglaterra e o PT

Ao eleger Jeremy Corbyn como líder, o Labour mostra que o caráter de massas do partido é a solução
O deputado de esquerda, eleito com 59,9% dos votos internos, derrotou as forças de centro e do novo trabalhismo de Tony Blair. Tal desempenho mostra que partidos nacionais, populares, de base laboral profunda, antigos podem se reinventar e, quando o fazem, têm um impacto muito mais transcendente do que o mero surgimento de forças alternativas a eles próprios

Em julho deste ano, escrevi para Teoria e Debate um artigo (http://www.teoriaedebate.org.br/?q=materias/politica/os-verdadeiros-ensinamentos-que-vem-da-grecia) sobre o plebiscito grego no qual afirmava que "a vitória do ‘não’ no referendo grego, no último 5 de julho, não levou a Grécia ao socialismo, como fantasiaram alguns, mas à negociação de condições melhores de seu resgate, o que pode abrir um ciclo de vitórias para as novas (e velhas, porém, renovadas) forças populares europeias".

Pois bem. Eis que Jeremy Corbyn, deputado de esquerda, foi eleito líder do Partido Trabalhista inglês com 59,5% dos votos internos, superando rivais de centro, mas um em especial: Liz Kendall, ligada ao Novo Trabalhismo do ex-primeiro-ministro Tony Blair, que marcou reles 4,5%. O sufrágio ocorreu na semana passada.

Uma lição e tanto para quem analisa a esquerda mundial sob uma visão doutrinária baseada em epítetos, dogmas e preconceitos teóricos. Não foi nenhum grupo propagandista de extrema esquerda ou uma "novidade conectada" que renovou as esperanças dos trabalhadores britânicos, somando-se ao novo impulso para uma esquerda realmente de esquerda na Europa, que promova uma "Europa melhor", como registrou Corbyn. Foi o velho trabalhismo, centenário, profundamente vinculado ao mundo do trabalho e de massas. Um partido nacional e popular, estruturado sobre as lides laborais, mas portador de uma azeitada máquina eleitoral não de hoje – serviu tanto a Clement Attlee, que organizou o Estado de Bem-Estar Social do país derrotando ninguém menos do que Winston Churchill imediatamente ao pós-Guerra, como ao neoliberalismo mitigado de Blair e Giddens, que contagiou os membros da Internacional Socialista no Velho Continente e fez da social-democracia um arremedo, como o visto no poder francês atual ou como sócio minoritário de Angela Merkel, na Alemanha.

Partidos nacionais, populares, de base laboral profunda, antigos podem se reinventar – vide o Partido Justicialista, na Argentina, antes das novas promessas do Labour – e, quando o fazem, têm um impacto muito mais transcendente do que o mero surgimento de forças alternativas a eles próprios e ao que é, suposta e muitas vezes existente apenas na fantasia pós-graduada, seu "espírito social", desgarrado de sua estrutura propriamente dita, a ser fagocitado por este ou aquele "herdeiro legítimo" do tido e havido defunto político organizado como grupos minoritários e, quase sempre, relegados à margem dentro da própria tradição que reivindicam.

Não à toa, o ministro de Defesa de David Cameron, Michael Fallon, afirmou que o “trabalhismo é agora um risco grave para a segurança de nossa nação, a segurança de nossa economia e a segurança de todas as famílias”. Ele sabe que a mensagem do Labour não tem comparação com o impacto provocado por Podemos e Syriza em sua abrangência popular europeia e geopolítica. Sabe que, mais do que incentivar novos agrupamentos críticos à austeridade, pode reencantar o Partido da Social-Democracia Alemã, quiçá o próprio Partido Socialista francês, além de dar maior ímpeto e coragem ao Partido Democrático da Itália – todos com a mesma natureza do Labour. Além do que, tratando-se do principal aliado global dos EUA, pode influenciar na remodelagem do Partido Democrata americano, que, segundo Paul Krugman, vai apostar numa polarização ideológica com os Republicanos, pondo na mesa o papel do Estado no desenvolvimento econômico e social e em outras relações com a América Latina. Temas "perigosos" como o fim dos bombardeios ao Estado Islâmico no Iraque e na Síria, desarmamento nuclear e diálogo com a Argentina com relação às ilhas Malvinas podem mudar o mundo muito mais do que se imagina.

Mas, antes que alguém brade que se tratou de uma vitória "da esquerda" contra a direita partidária e comece a fazer analogias imprecisas, como quando confundiram o Syriza com partidos e agrupamentos críticos à condução do PT, é importante destacar o centro do programa escolhido junto com Corbyn: aumento do investimento do Estado. Este vem se consolidando como o consenso mundial das esquerdas, inspirado por Krugman, Stiglitz e Piketty, no sentido de gerar empregos, retomar o bem-estar e atacar as desigualdades. Sem falar em Lula, antes de todos estes, que empunhou essa bandeira em seus governos e atraiu a atenção do mundo.

Fazendo uma analogia com o cenário brasileiro, o confronto esquerdaversus direita que marcou a disputa no Labour – com êxito da primeira – disse respeito a uma polarização entre a base militante (não apenas filiada) e a coluna vertebral do trabalhismo inglês, o movimento sindical, contra o Labour em seu último governo, com Blair e sua política social-liberal, amparada numa inteligência tecnocrática supostamente neutra.

Só que essa política era amplamente pactuada com a expressão parlamentar do Labour. Logo, é absolutamente incorreto que se diga que a vitória de Corbyn tenha sido das bases contra a burocracia partidária e seus equívocos, por meio de um ajuntamento de correntes antimajoritárias.

O fato é que o Novo Trabalhismo, por sua práxis, deslocou-se organicamente do autêntico Labour do movimento operário e de sua militância diversificada em temas, lutas e opiniões. Destaco isso porque a vitória foi facilitada pela mudança no sistema de votação do partido. Desta vez, o voto, antes restrito aos filiados, estendeu-se aos simpatizantes e valeu a lógica do "uma pessoa, um voto", e não mais a distribuição de pesos para os setores sindical e parlamentar. Disso se reforçou o partido-movimento efetivo, não o partido "estado de espírito", muitas vezes confundido com o primeiro conceito.

Ou seja: o Labour, que já era um partido inquestionavelmente de massas em sua estrutura e funcionamento e em influência política, radicalizou esse processo e, com isso, logrou se reinventar. Não foi umaggiornamento em torno de quadros, intelectuais e dirigentes. Isso diz algo sobre o PT atual e dos resultados do seu V Congresso, em Salvador (BA), quando foi rechaçada a ideia de que o grande Partido dos Trabalhadores e do povo sucumbisse a um clube de lideranças autoproclamadas ilibadas capazes de conduzi-lo para os desafios da grave conjuntura política brasileira.

Se o Syriza deu o máximo exemplo ao PT sobre como enfrentar os impasses da crise política, com diálogo e participação social, o Labour mostrou, inequivocamente, que o caráter de massas de um partido é solução e deve ser expandido associadamente à sua estrutura profissional interna, não o inverso. Somando as duas lições, grega e britânica, o refrão é "não às soluções tecnocráticas" e não à burocratização traficada como "partido militante".

Por fim, outra decisão tomada nas internas do Labour é muito significativa sobre esses processos de reinvenção de partidos nacionais, populares de massas: neste momento em que a Europa discute a crise migratória, cuja amplitude já transformou o perfil demográfico dos países europeus e a composição de sua classe trabalhadora, o candidato à prefeitura de Londres em 2016 será Sadiq Khan, um imigrante paquistanês.
Parece que voltou a funcionar a velha alquimia do socialismo europeu, essencial em suas origens, de converter a maioria social trabalhadora em maioria política, mas através de agentes oriundos da própria classe. Nisso também se parece com o PT, cuja trajetória foi feita promovendo, consolidando e desenvolvendo o que Gramsci chamava de "intelectuais orgânicos", que não são o mesmo que "intelectuais de esquerda" ou intelectuais filiados ou explicitamente simpatizantes do partido, mas atores e atrizes oriundos da própria classe trabalhadora, que conseguem cumprir os papéis de organização e formulação da classe, libertando-a da dependência em relação aos intelectuais "importados" de outras origens sociais, embora ideologicamente de esquerda. O PT tornou possível, por sua origem e seu êxito como força política alternativa viável, que trabalhadores se tornassem gestores públicos e legisladores.

Corbyn é a antessala da renovação das esquerdas europeias num sentido bem mais transcendente: da antiausteridade que velejou o sucesso eleitoral do Podemos e do Syriza rumo a se tornarem playersefetivos do jogo de poder, tendo de administrar governabilidades e propostas concretas para a tomada dos grandes partidos nacionais, operários e populares do Velho Continente.
Está em jogo, assim, uma nova forma – popular, coletiva, criativa, política – de encontrar soluções para a crise europeia, em oposição ao modelo tecnocrático, por exemplo, de Mario Monti, o funcionário da JP Morgan tornado primeiro-ministro italiano, que contamina gestões socialistas hodiernas, como a do presidente François Hollande, egresso da Escola Nacional de Administração da França (ENA).



Leopoldo Vieira foi coordenador do Monitoramento Participativo do PPA 2012-2015 e do programa de governo sobre desenvolvimento regional da reeleição da presidenta Dilma 

quarta-feira, 23 de setembro de 2015

João Pedro Stédile

Na noite de 22 de setembro de 2015, no aeroporto de Fortaleza, João Pedro Stédile foi vítima de uma agressão.

Os detalhes da agressão foram filmados e divulgados, através das redes sociais, pelos próprios agressores.

Quem assiste aos cerca de 6 minutos do vídeo divulgado percebe que faltou pouco para a agressão virar um linchamento.

Minha solidariedade ao companheiro João Pedro e a companheira que o escoltou.

João Pedro é um símbolo. Como Lula é um símbolo.

Por isto a bomba no Instituto Lula. Por isto a agressão a João Pedro (precedida, como lembra a nota divulgada pela direção nacional do MST, pela campanha "Vivo ou morto").

A agressão a João Pedro merece resposta imediata.

Os governos federal e estadual, a polícia, a justiça e o Ministério Público tem a obrigação de --cada qual no seu papel-- identificar e punir os responsáveis.

O conjunto dos movimentos sociais e partidos de esquerda tem a obrigação de fazer um ato público unificado, entre outras coisas para lembrar que por trás de cada um dos fascistas de aeroporto, há mandantes e autores intelectuais que devem ser desmascarados e responsabilizados.

E, acima de tudo, a ficha precisa cair.

É extremamente didático que, na mesma noite em que os vetos presidenciais eram mantidos no Congresso, tenha ocorrido a agressão contra João Pedro. É mais um sinal, entre tantos, de que a crise política transborda a institucionalidade e está se convertendo noutra coisa.

Para alguns setores da direita, não se trata apenas de afastar Dilma, inviabilizar o PT e criminalizar Lula. Os cavernícolas querem sangue. Seu alimento é a inação e pusilanimidade que prevalecem em parte do lado de cá. A estes e a todos nós, vale lembrar: bons modos nunca derrotaram fascistas.







domingo, 20 de setembro de 2015

13 pontos sobre a situação política e as tarefas do Partido

Ao presidente Rui Falcão

Reafirmando os termos da resposta ao convite para participar do Conselho Consultivo da Presidência Nacional do PT, apresento a seguir minha opinião sobre a situação política e as tarefas do Partido.


Para não repetir o que argumentei em vários textos recentes*, organizei os argumentos deste com base no debate travado na recente reunião do conselho curador da FPA.   

1. Estamos sendo vítimas de uma operação de “cerco e aniquilamento”.  Não estamos “apenas” diante do risco de perder o governo, agora ou em 2018. Nem “apenas” de levar uma sova nas municipais de 2016, apesar da ótima decisão do STF acerca do financiamento empresarial. Nem “apenas” diante da tragédia de ver nosso governo implementar, em crescente medida, o programa dos derrotados em 2014. Muito mais grave do que isto, estamos ameaçados de assistir a um retrocesso geral nas liberdades democráticas, nas condições de vida da classe trabalhadora e na política externa. Em particular, nosso Partido dos Trabalhadores e sua principal liderança estão sob ameaça de desmoralização e interdição.

2. Estamos sob ataque múltiplo. Não existe uma única operação conduzida por uma única direita. O grande capital, o oligopólio da mídia, a oposição de direita e inclusive setores da base do governo parecem cada vez mais unificados quanto aos objetivos finais (realinhar o país com os EUA, desfazer as conquistas populares, interditar a esquerda). Mas eles ainda estão divididos quanto ao que fazer de imediato. Moro, Cunha, Renan, Temer, Aécio, Serra, Alckmin etc. jogam papéis e expressam interesses diferentes, motivo pelo qual apostam em roteiros diferenciados. Mas isto, que poderia ser um fator positivo a nosso favor, converte-se na prática numa dificuldade adicional, uma vez que não existe de nossa parte uma política coordenada e centralizada de defesa. O que fica particularmente claro na nossa atitude (ou falta de) frente a berlusconiana Operação Lava Jato.

3. A manutenção da atual política econômica sabota o apoio popular ao governo. É muito difícil termos êxito na defesa do governo e das liberdades democráticas, contra as diferentes alternativas golpistas (impeachment, novas eleições, posse do vice, parlamentarismo), sem que ocorra uma alteração imediata na política econômica. É muito difícil engajar amplos setores populares em nossa defesa, se as ações do governo contribuem para a recessão e o desemprego. É praticamente impossível reavivar o apoio entusiasmado dos setores democráticos, quando os fatos apontam no sentido de que o governo desrespeitou o voto popular, aplica o programa dos derrotados, comete “estelionato eleitoral” como se diz cada vez mais. Lutaremos contra o golpismo em qualquer caso, mas a política econômica reduz as chances de êxito, tanto agora quanto depois.

4.Nosso problema não é de “narrativa”. Ganhamos quatro eleições presidenciais seguidas, não apenas devido aos nossos feitos, mas também devido à narrativa que contamos a respeito. Acontece que ganhamos a eleição em 2014 falando uma coisa e iniciamos o governo fazendo exatamente o contrário.  Quais as causas disto? Não basta falar da crise internacional, da oposição de direita, dos erros do PT e da presidenta Dilma. Há outro aspecto fundamental: o esgotamento da estratégia de conciliação. Por isto, o que teria dado certo em 2003 não dará certo em 2015. Sem mudar de estratégia, sem abandonar a conciliação e as ilusões nos inimigos, a política de “apoiar e empurrar o governo” (para citar palavras ditas em recente reunião da FPA) vai resultar apenas e tão somente em patinar.

5. Não basta mudar a política econômica, é preciso mudar o conjunto da política. Mas insistir na atual política econômica, convertendo o ministro Joaquim Levy (e os setores do grande Capital que ele representa) em fiador de nossa continuidade no governo, arrasta o governo, o PT e Lula para o fundo do poço.  Os fatos já demonstraram que o ajuste não resolve a questão fiscal nem contém a inflação, pelo contrário.  Além disto, o ajuste derruba o crescimento, provoca desemprego, reduz políticas sociais e salários. Cria um ambiente hostil para o governo e também hostil para uma possível candidatura Lula em 2018. A popularidade da principal liderança popular do país terá muita dificuldade de resistir aos efeitos combinadas da atual política econômica, dos ataques da mídia e da Operação Lava Jato.

6.É preciso “romper o cerco”. Para usar uma analogia militar: se ficarmos onde estamos, seremos destruídos. É preciso mudar de posição. Isto parece arriscado e é. Mas muito mais arriscado é o imobilismo. Romper o cerco exige escolher o ponto por onde vamos tentar escapar. Em minha opinião, o ponto onde podemos romper o cerco com mais chances de êxito –tanto imediato quanto posterior-- é a política econômica. É preciso mudar imediata e radicalmente a política econômica. Mudar a política envolve alto risco, mas a alternativa em curso é muitas vezes pior. Sem outra política econômica, tão cedo não haverá reversão do quadro de recessão e desemprego.  Quem acha errado dar “cavalo de pau” na política econômica precisa lembrar que isto significa apenas e tão somente desfazer o cavalo de pau dado após a eleição, na contramão da opinião majoritária no eleitorado. Por outro lado, é preciso lembrar os efeitos positivos – tanto econômicos quanto políticos—da inflexão que fizemos depois de 2005 e da reação que tivemos frente a crise de 2008. Lá foi necessária uma inflexão. Agora será preciso algo mais. Por fim: sem mudar a política, não há como mudar o discurso atual, que piora o que já é ruim, que joga para baixo nosso ânimo.

7.É possível fazer diferente. Embora vá ser muito difícil, não é verdade que não tenhamos força para fazer diferente. Muito menos é verdade que não saibamos o que fazer. Sem prejuízo de discutir a proposta econômica debatida pela CUT e a que vem sendo debatida com a participação da FPA, no curto prazo o que necessitamos é – em grande medida-- retomar, aprofundar e principalmente atualizar um caminho que já começamos a trilhar antes e ideias que foram apresentadas durante a campanha de 2014. Do ponto de vista emergencial, trata-se de reduzir a taxa de juros, alongar o pagamento da dívida pública, estabelecer controle de câmbio, lançar mão das reservas internacionais, tributar fortemente as grandes fortunas, cumprir o orçamento, retomar o papel da Petrobrás e do Minha Casa Minha Vida. Numa palavra, parar o ajuste e colocar o Estado à serviço do crescimento com e através da distribuição de renda. Quanto ao desenho geral de nossa alternativa: a) sem indústria forte e tecnologicamente avançada, não há como implementar nosso programa e estratégia; b) sem um setor financeiro poderoso e público, não teremos capital para fazê-lo; c) sem resolver a questão agrária e universalizar as políticas sociais, será impossível conciliar desenvolvimento econômico com elevação do bem-estar social; d) sem fazer tudo isto junto e misturado, será impossível no médio prazo derrotar a direita e sua ofensiva contra as liberdades democráticas conquistadas pela classe trabalhadora, nem tampouco sustentar uma política externa soberana e de integração regional.

8.Ao mesmo tempo que buscamos convencer o governo a mudar de política, o Partido precisa subir muito o tom contra o golpismo. Para além do que se faça no Congresso Nacional para garantir uma minoria de parlamentares que impeça a aprovação do impeachment; para além das mobilizações que a Frente Brasil Popular está convocando; é preciso que o PT deixe claro para nossa base social e militante que estamos sob risco iminente. Temos que desencadear esta semana uma vigília permanente em defesa das liberdades democráticas e contra o golpismo. Ao mesmo tempo, precisamos fazer a direita perceber que haverá muita resistência. Gestos simbólicos – como esvaziar os “pixulecos” -- devem ser estimulados publicamente. Nossos parlamentares precisam mudar de postura e dar exemplo de combatividade. Não podemos deixar nenhum ataque sem resposta. E basta de ilusões acerca do que está em jogo, não apenas em relação ao governo, mas também em relação ao PT e Lula. É verdade que não estamos em 1947 nem em 1964; mas também é verdade que nas duas ocasiões a maior parte da esquerda demorou muito a perceber qual a real disposição da direita, o que contribuiu para o desfecho.

9.Do ponto de vista institucional, a resistência inclui mudar a postura política e pública do governo. Um exemplo: a presidenta não apenas precisa vetar o financiamento empresarial, mas ir a público deixar claro os motivos. E devemos nos preparar para a reação de Cunha et caterva à decisão do STF, reação que será muito dura e envolverá chantagem política.  Outro exemplo: ou o ministro da Justiça muda ou muda o ministro da Justiça. Não é possível aceitar impassível o comportamento predominante em setores da Justiça, do MP e da Polícia Federal, em conluio com determinados meios de comunicação, a começar por conhecida empresa criminosa que se fantasia de revista semanal. A atitude do Ministro da Justiça não é republicana, nem democrática, nem imparcial: se fosse, deveria garantir o acesso público a todas as informações, não assistir impassível o vazamento seletivo para as Veja da vida, nem o comportamento partidarizado de setores da PF, do MP e da Justiça.

10. O PT precisa reocupar espaço, tomar partido nos grandes debates, opinar e inclusive disputar o governo. Entre as muitas coisas que devem ser feitas, cito uma: construir imediatamente uma “agência de notícias”, articulada com as várias iniciativas de comunicação da Frente Brasil Popular, com a Rede Brasil Atual, com a imprensa sindical e popular. Basta de reclamar que o PIG não divulga o nosso ponto de vista, façamos nós por nossas mãos o que pode, deve e precisa ser feito. Mas para isto a política de comunicação do Partido precisa ser outra, completamente diferente da atual. Vale dizer, contudo, que o principal problema de comunicação do PT está na linha política (ou na falta de linha) adotada.

11.Aos inimigos nada, mas aos nossos amigos devemos desculpas e explicações. A direita nos ataca por nossos acertos e deles não temos que fazer autocrítica. Mas amplos setores democráticos e populares estão decepcionados conosco devido aos nossos erros, ao que fizemos e deixamos de fazer. É para estes setores democráticos e populares que estamos devendo uma autocrítica, principalmente devido à promiscuidade com a direita e suas práticas; bem como devido à insistência na já citada estratégia de conciliação.  O PT não deve temer autocrítica. O que não faremos – ao contrário do que a direita pede e alguns ensaiam-- é pedir desculpas pelo que fizemos de certo, pedir desculpas pelo que somos, pedir desculpas por nossa história.

12.Temos que ampliar a presença do PT na construção da Frente Brasil Popular. Parte do êxito da Frente Brasil Popular dependerá de ampliarmos o engajamento da CUT, da UNE, do MST, do PT e do PCdoB. De imediato devemos jogar muito peso na mobilização do dia 3 de outubro, relacionada à defesa da Petrobrás. Na mesma linha, devemos dar toda atenção para o próximo Congresso nacional da CUT, cuja posição frente à conjuntura tem sido globalmente correta e continuará sendo extremamente importante.

13.Resumidamente: para derrotar a direita, é preciso derrotar a inação e a alienação.  A alienação dos que minimizam os riscos e a inação dos que acham que a situação estaria tão ruim, que seria melhor não se mexer. É fato que a situação mudou para pior, desde o início do ano. Nosso partido deve reconhecer esta mudança e convocar um encontro nacional extraordinário: com outra linha e outro comportamento, temos como vencer mais uma vez.

Saudações petistas

Campinas, 20 de setembro

Valter Pomar


*suponho que você já conheça os textos “O que não fazer” (http://www.valterpomar.blogspot.com.br/2015/08/contribuicao-ao-seminario-de.html); “O Partido dos Trabalhadores precisa defender outro caminho” (http://www.valterpomar.blogspot.com.br/2015/09/o-partido-dos-trabalhadores-precisa.html); e “Contribuição à discussão” (http://www.valterpomar.blogspot.com.br/2015/09/contribuicao-discussao.html). Neles desenvolvo melhor as questões tratadas nesta contribuição ao conselho consultivo da presidência do Partido.


quinta-feira, 17 de setembro de 2015

Contribuição à discussão

(distribuída por ocasião da reunião ordinária ampliada do Conselho Curador da Fundação Perseu Abramo, dia 18/9/2015)

Agradecendo a oportunidade e tendo em vista aproveitar ao máximo o tempo, encaminho por escrito minha contribuição à reunião que visa “debater o papel e as tarefas da FPA no próximo período, tendo em vista os desafios especiais da conjuntura e os objetivos para os quais a Fundação Perseu Abramo foi criada”.

O convite sugere três eixos centrais de discussão: “1) o fortalecimento da democracia e a defesa do pensamento de esquerda; 2) a contribuição para a formulação de um modelo de desenvolvimento com redução das desigualdades econômicas e sociais; 3) a análise do Estado e a contribuição para o aprimoramento dos instrumentos de gestão”.

Da minha parte, “traduzo” assim os três eixos propostos: 1) a estratégia, 2) o programa e 3) a ação do governo.

É a partir desta tradução que vou buscar responder o que foi perguntado: “a) Quais os principais desafios para o campo de esquerda e para o PT em particular em cada um desses temas? b) O que a FPA deve fazer visando contribuir para a superação desses desafios, tanto no curto quanto no médio e no longo prazos?”.

Sobre a estratégia

Ao longo dos anos 1980, o PT desenvolveu uma estratégia baseada em três eixos: 1) a luta e a organização social, 2) a disputa eleitoral e o exercício de mandatos institucionais, 3) o desenvolvimento de uma cultura de massas democrática e socialista.

No contexto dos anos 1980, esta estratégia nos permitiu uma acumulação de forças muito rápida e quase ganhamos a presidência da República em 1989.

Ao longo dos anos 1990, já num ambiente de ofensiva neoliberal e de crise do socialismo soviético, o PT reformulou sua estratégia, mantendo o tripé já citado, mas agora enfatizando a disputa eleitoral e o exercício de mandatos institucionais.

A partir de 2003, o PT dobrou a aposta nesta versão reformulada da sua estratégia original.

Os seguidos alertas de que a desproporcional ênfase institucional estava fazendo nossa estratégia perder vigência foram desconsiderados ou minimizados, muitas vezes sob o “argumento” de que reelegemos Lula em 2006, elegemos Dilma em 2010 e a reelegemos em 2014. E de que teríamos tempo para “depois”, “em seguida”, “noutro momento”, fazer os devidos ajustes.

Hoje, treze anos depois, numa situação internacional e nacional muito diferente da vigente nos períodos anteriores, não há como negar o esgotamento da estratégia adotada.

Não estamos “apenas” diante do risco de perder o governo em 2018 (e de levar uma sova nas municipais de 2016, apesar da ótima decisão do STF acerca do financiamento empresarial). Nem estamos “apenas” diante da tragédia de ver nosso governo implementar, em crescente medida, o programa dos derrotados em 2014. Muito mais grave do que isto, estamos ameaçados de sofrer um retrocesso geral nas liberdades democráticas, nas condições de vida da classe trabalhadora e na política externa do Brasil.

Por isto, não quero limitar a reflexão aos termos propostos: “fortalecimento da democracia e defesa do pensamento de esquerda”. Claro que devemos fortalecer as liberdades democráticas e defender a cultura socialista, democrática, popular, progressista. Mas o que precisa ser debatido neste momento é algo ao mesmo tempo mais amplo e mais preciso, a saber: qual deve ser a nossa estratégia?

Usando os termos utilizados por um famoso socialdemocrata no início do século XX: qual o nosso caminho para o poder?

Como ontem deixamos para amanhã o que podíamos ter tentado resolver anteontem, hoje somos obrigados a reformular a estratégia e ao mesmo tempo defender o acumulado contra uma brutal ofensiva das direitas, do grande capital e do oligopólio da mídia.

É difícil fazer as duas tarefas ao mesmo tempo, porque o “acumulado até agora” inclui diversos aspectos (determinadas alianças, concessões programáticas, modelos de funcionamento e organização) que precisam ser alterados.

É difícil assoviar e chupar cana ao mesmo tempo. É difícil mudar de bitola com o trem em alta velocidade. Mas se não conseguirmos dar conta das duas tarefas ao mesmo tempo, poderemos nos ver diante de uma das seguintes alternativas: 1) “perder” o PT; 2) “perder” o governo; 3) “perder” governo e partido, possibilidade que, em boa parte devido às escolhas feitas por quem hoje controla ambas instituições, constitui um cenário cada vez  mais provável.

Se a situação chegasse ao ponto de tornar inevitável uma escolha de Sofia, tratar-se-ia de “salvar o PT”; mas também neste caso os danos ao Partido teriam sido tão brutais, que tornariam muito difícil o dia seguinte.

Por tudo isto, devemos fazer um enorme esforço – intelectual e prático— para achar um caminho que nos permita ao mesmo tempo reformular a estratégia e escapar do cerco da direita. 

Este caminho existe, embora ele seja estreito e cheio de perigos: passa por dar cavalo de pau na política econômica, fortalecer a Frente Brasil Popular e recuperar os vínculos com a classe trabalhadora.


Reitero apenas que considero ser este o principal desafio para o campo de esquerda e para o PT em particular: o debate estratégico.

E o que a FPA deveria fazer visando contribuir para a superação desse desafio?

No curto prazo, assumir este como principal desafio e convertê-lo em eixo vertebrador do conjunto de suas atividades.

No médio prazo, fomentar nossa produção intelectual acerca do capitalismo do século XXI, das tentativas de construção do socialismo no século XX e das diferentes estratégias da classe trabalhadora (no Brasil e no mundo, no século passado e nesse).

Destaco, particularmente, a discussão acerca das classes e da luta de classes no Brasil do século XXI.

Considero que parte importante dos nossos descaminhos estratégicos reside numa compreensão incorreta acerca dos reais interesses do empresariado capitalista brasileiro, seus vínculos com o capital transnacional e financeiro, sua postura frente à ampliação das liberdades democráticas e do bem estar-social da classe trabalhadora.

Quanto ao “longo prazo”, deixo para os que estiverem vivos. E passo para o segundo ponto indicado para debate, na versão “traduzida”.

Sobre o programa

Mutação similar à ocorrida no âmbito da estratégia petista, também ocorreu no terreno do programa.

Nos anos 1980, construímos um programa democrático-popular & socialista.

Nos anos 1990, reduzimos muito os teores socialistas de nosso programa, ao tempo que enfatizamos os elementos antineoliberais.

Durante a campanha de 2002, mais exatamente com a aprovação da Carta aos Brasileiros, “demos” mais um passo na alteração do programa: nosso programa continuaria antineoliberal, mas agora a superação do neoliberalismo não se daria através da ruptura proposta por Celso Daniel, mas sim através da transição defendida por Palocci.

Foi este o programa que orientou nossa ação de governo, desde 2003 e até 2015, seja no período em que predominou o social-liberalismo estilo Palocci, seja nos momentos de inflexão “crescimentista”: a tentativa de conciliar os interesses das camadas populares com a manutenção dos interesses das frações empresariais mais beneficiadas pelo neoliberalismo. (Um efeito colateral desta opção foi dar base material para o ódio de parcelas dos setores médios. Outro foi a persistência da influência neoliberal em diversas áreas, não apenas no paradigmático Banco Central, mas também na previdência pública, saúde, educação, C&T...)

Seria perfeitamente “aceitável” algum tipo de conciliação com frações do grande empresariado. Mas com o tempo ficou claro que não se tratava apenas de uma conciliação tática, nem mesmo estratégica. A verdade é que alguns setores do PT e da esquerda brasileira sofreram uma metamorfose programática, teórica, ideológica. E o efeito disto sobre o Partido – tomado de conjunto -- foi retroceder décadas na maneira de relacionar as tarefas democráticas e nacionais com as tarefas socialistas.

Para aqueles que apontam as semelhanças entre nossa conjuntura e a de 1964, recomendo também notar as semelhanças entre o pensamento político que atualmente hegemoniza o PT e certas ilusões de classe vigentes no pensamento da esquerda trabalhista e comunista nos anos 1950 e 1960.

Infelizmente, vários de nós tentaram dissimular este retrocesso com jogos de palavra, apresentando nossas realizações desde 2003 como algo muito mais profundo.

O irônico é que setores da oposição de direita realmente acreditam que fizemos ou tentamos fazer uma “revolução” democrática e/ou socialista. Mas estes setores da direita contam em seu favor --no cerco que promovem contra nós-- com o fato de que, na vida real, não fizemos nenhuma reforma estrutural.

Não se trata apenas da relação convencional de “reformas de base”, mas também de nossa atitude frente ao oligopólio da mídia, às Forças Armadas, aos povos indígenas, à violência sistêmica das Polícias Militares contra os jovens negros moradores das periferias, à defesa dos direitos das mulheres, dos LGBT, da laicidade do Estado. Nestas e noutros questões, à ofensiva reacionária da direita corresponde muitas vezes uma atitude defensiva e inclusive o retrocesso de nossa parte, ou mais precisamente de parte de nós.

Adiciono outro exemplo de retrocesso cultural: a chamada “política econômica”, que alguns seguem achando tratar-se de matéria para economistas. Cito a frase proposta para nossa reflexão: ”modelo de desenvolvimento com redução das desigualdades econômicas e sociais”.

Estou seguro de que todos/as percebemos que nosso problema programático reside exatamente em construir um padrão de desenvolvimento que vá muito além de “reduzir” as desigualdades. Assim como estou convicto de que a esquerda brasileira já formulou muito a respeito de como fazê-lo. Sendo assim, se hoje somos obrigados a revisitar formulações deste tipo, é talvez porque –- como disse acima—sofremos um imenso retrocesso, ao mesmo tempo em que a realidade se alterou muito.

Em parte devido a esta alteração, destaco quatro temas (articulados entre si) que na minha opinião carecem de formulação no curto e médio prazo. Refiro-me ao setor financeiro, a industrialização, a questão agrária e a universalização das políticas sociais.

Sem indústria forte e tecnologicamente avançada, não há como implementar um programa e uma estratégia democrático-popular e socialista. Sem um setor financeiro poderoso e público, não teremos capital para fazê-lo. Sem resolver a questão agrária e universalizar as políticas sociais, será impossível conciliar desenvolvimento econômico com elevação do bem-estar social. E sem tudo isto junto e misturado, será impossível no médio prazo derrotar a direita e sua ofensiva contra as liberdades democráticas conquistadas pela classe trabalhadora, nem tampouco sustentar uma política externa soberana e de integração regional.

Lendo os programas elaborados recentemente, por economistas de esquerda vinculados à CUT e ao PT, percebo que nossas formulações a respeito daqueles quatro temas continuam privilegiando fórmulas gradualistas, que parecem razoáveis, mas que são totalmente utópicas, porque no limite supõem a cooperação do inimigo. 

Formular um programa econômico de curto e médio prazo equacionando de maneira politicamente realista (o que em vários casos é o mesmo que dizer: de forma não-gradualista) aquelas questões constituiria, na minha opinião, uma grande contribuição que a FPA poderia dar para a esquerda brasileira.

Sobre o governo

Os primeiros nove meses do segundo mandato Dilma condensaram todos os defeitos e nenhuma das virtudes de nossa atual estratégia e programa. Noutras palavras, de tanto insistirmos na transição lenta segura e gradual em direção a um novo modelo de desenvolvimento, caímos numa capitulação lenta, dolorosa e infernal frente ao programa neoliberal.

Algumas de minhas opiniões acerca da situação e do que fazer no curto prazo estão nos textos cujo link indiquei anteriormente. Assim, vou me deter aqui num aspecto específico do problema, a saber: como articular nossa presença no governo com a disputa do poder.

A ofensiva da direita é forte, entre outros motivos, porque durante 13 anos não utilizamos adequadamente nossa presença no governo para ampliar o poder da classe trabalhadora e dos setores populares em geral. Ao contrário da lenda, nada ou quase nada fizemos para reduzir os instrumentos de poder real da classe dominante. 

Embora pareça paradoxal, não o é. Afinal, a conversão estratégica e programática explicada anteriormente estava em função do objetivo de ser governo, não a serviço do objetivo de ser poder.

Não foram poucas as vezes, aliás, em que a demanda por medidas mais ousadas no terreno da comunicação, da segurança, da justiça etc. era contida com frases aparentemente inteligentes e profundas do tipo: “vamos com calma, pois não fizemos uma revolução”. Frase que as vezes vinha acompanhada --como mais uma prova do ecletismo que nos coloniza— da crença de que o PT havia “chegado ao poder” em 2002. Mutatis mutandis, hoje ouvimos críticas segundo as quais o PT teria “abandonado um projeto de país, para assumir um projeto de poder”.

O que espanta nas frases acima e noutras similares não é a repulsa por Lenin, mas sim o desconhecimento de Maquiavel, que já constatara ser muito mais difícil fazer reformas, pois estas atraem mais rápido o desgosto dos prejudicados do que o apoio dos beneficiados. Adaptando para o nosso caso, infinitamente mais difícil é fazer mudanças.

O tema do poder envolve, mas não se limita à questão da revolução. Aliás, não importa como articulemos mentalmente “reforma” com “revolução”: ou enfrentamos o tema do poder, ou qualquer projeto de transformação do Brasil estará fadado a ser derrotada.

Uma dificuldade adicional – do ponto de vista cultural-- é que nossa chegada ao governo federal não apenas transferiu para lá um bom número de nossos quadros, não apenas deslocou para a administração federal a direção real de nossas ações, mas também alterou substancialmente nossa maneira coletiva de ver os processos de transformação social. Não se trata de falta de formação: trata-se de deformação no ponto de vista.

O que só reforça a importância do Partido – e, no caso, a Fundação tem relevante papel nisto— produzir um balanço de nossa ação de governo e uma proposta de ação futura, balanço e proposta que estejam articulados não sob a forma de “listas de realizações”, mas sim pelo objetivo de discutir o que fizemos e o que devemos fazer, a partir do governo, na disputa pelo poder.

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Em resumo, penso que a FPA deve priorizar três grandes temas: as classes e a luta de classes no Brasil; o desenvolvimentismo democrático-popular e socialista; a construção do poder popular.

Independentemente das diferenças de visão que temos -- no Partido, na Fundação e no conjunto da esquerda brasileira --, acerca das questões que abordei anteriormente, bem como nos dois textos citados, o que me parece fundamental é: não basta derrotar o cerco da direita; é preciso derrotar as causas que estão levando este cerco a ter êxito. E a principal destas causas está entre nós: a insistência numa estratégia, num programa e num comportamento partidário e governamental que não estão à altura do momento.

Ou reconhecemos isto e tomamos as devidas medidas com a mais absoluta urgência, ou nosso partido poderá se converter no que foram o PTB e o PCB após o golpe de 1964: sombras de seu próprio passado.

O preço que o PT, o conjunto da esquerda, os setores populares e os setores democráticos e progressistas na América Latina pagariam por algo deste tipo seria tão alto e tão duradouro, que não temos o direito de cometer este erro.

Mais uma vez obrigado pela oportunidade de contribuir neste debate.


Valter Pomar, 17 de setembro de 2015

VERSÃO NÃO REVISADA SUJEITA A ALTERAÇÕES