No nono
episódio da primeira temporada de Casa de Papel, o personagem Berlim diz que “a
ética é importante. Mas a estética, também”.
A frase me
veio à cabeça ao ler a entrevista do companheiro José Dirceu à jornalista
Monica Bergamo, concedida no dia 18 de abril e publicada no jornal Folha
de S. Paulo no dia 20 de abril.
Trata-se da entrevista de alguém disposto a continuar travando o bom combate em
defesa das posições que ele considera justas. Hoje, mais do que nunca, esta
postura altiva é fundamental.
Várias
passagens da entrevista mostram que José Dirceu sabe que é personagem de uma grande
tragédia, no sentido grego da palavra; e que sua trajetória ainda
renderá muitas análises, biografias, romances e, como ele mesmo diz, “até um
filme”.
É possível
que só as próximas gerações da esquerda brasileira tenham o distanciamento
histórico necessário para analisar esta dimensão “ética” e “estética” de um
processo histórico que, ademais, ainda está em curso.
Afinal, companheiros de Partido e contemporâneos de várias situações podemos,
com muita facilidade, cair ou na hagiografia ou no “ajuste de contas”.
Entretanto,
nós que estamos militando aqui e agora não temos como deixar de fazer a análise
política das opções que nos levaram à presente derrota, materializada entre
outras coisas na prisão de Lula, de Dirceu e de Palocci (cito este último,
pedindo licença para a ética e para a estética, inclusive para lembrar que em
todo bom enredo, há sempre um personagem execrável).
A entrevista
concedida por Dirceu contribui em alguma medida para esta análise. Claro que
uma entrevista publicada na grande imprensa contém inúmeras limitações. Entre
elas, de espaço. Segundo me disseram a entrevista teria durado cerca de quatro
horas, portanto muita coisa deve ter sido cortada. Além disso, sempre existe a possibilidade
da edição ter alterado ênfases e opiniões. Isto só o próprio Dirceu pode dizer.
De toda
forma, a entrevista tal como foi publicada já faz parte do debate político
acerca dos rumos do Brasil, da esquerda brasileira e do PT. Por isso, mas também
por prezar e respeitar a correta posição de Dirceu, de continuar participando
da luta e do debate político, vale a pena estudar e comentar o que foi
publicado.
Como já
lembramos acima, logo nas primeiras respostas Dirceu afirma que vai ler,
estudar e “continuar fazendo política”, mesmo na “hipótese” de – palavras da
jornalista -- “entrar agora na cadeia para não sair nunca mais”.
Muitas das respostas publicadas são dedicadas a relatar e analisar temas do cotidiano do sistema prisional, a
avaliar a situação e atitudes de outros presos, inclusive de Lula, a quem
recomenda “conviver com outras pessoas, pensar o país, pensar no que está
acontecendo. Ele não está proibido de fazer política só porque está preso”.
Dirceu
considera que ”a resistência simbólica foi necessária. E nós ganhamos essa
batalha política e midiática”. E agrega: “Eu fiz da minha vida praticamente o
Lula. E me mantive leal a ele. Não faltaram oportunidades, amigos e
companheiros que me empurravam para romper com ele, em vários episódios. Mas eu
sempre achei que a obra do Lula, a liderança dele, o que ele fez pelo país,
compensava qualquer outra coisa”.
Acerca de si
mesmo, Dirceu diz ter o “apoio da quase absoluta maioria da militância do PT
porque ela é generosa. E essa solidariedade não é porque todos concordam com
minhas ideias nem pelo que fiz na minha vida profissional recente. É pelo que
eu fiz pelo PT, pelo Brasil, pelo Lula. É pelo que eu represento”.
Fala que
“não deveria ter feito consultoria. Ela cria um campo nebuloso entre os meus
interesses como consultor e o interesse público”. Confessa que às vezes fica dividido sobre o
tema e conclui dizendo que, na verdade, foi “condenado por razões políticas. Eu
não fui condenado pelas consultorias que prestei”.
Neste
momento da entrevista publicada, a jornalista pergunta o seguinte: “Lula fez um governo
aprovado por 83% dos brasileiros. Por outro lado, desvios de milhões foram
comprovados. O fato de vocês terem financiado campanhas com dinheiro de
estatais e caixa dois não seria razão para um arrependimento, uma autocrítica?”
Dirceu
responde que “nós temos que denunciar o que fizeram conosco, e não foi por
causa de nossos erros. O legado do Lula, o nascente estado de bem-estar social
que ele consolidou, está sendo todo desmontado. Estão desfazendo a era Lula
como quiseram desfazer a era Getúlio”.
Segundo
Dirceu, “estamos do lado certo e o saldo de tudo o que fizemos é fantástico”. E
engata o seguinte raciocínio: “a Igreja Católica Apostólica Romana tem uma
história de crimes contra a humanidade. Não vou nem falar das Cruzadas ou da
Inquisição. Se eu for olhar para ela, vou mandar prender todos os padres e
bispos porque a pedofilia é generalizada. Ou não é? Mas é a Igreja Católica
Apostólica Romana. A vida é assim. O mundo é assim. O PT cometeu erros? Muitos.
Mas tem uma coisa: o lado do PT na história, o nosso lado, é o lado do povo, do
Brasil”.
Não pretendo
aqui comentar esta “análise comparada” entre a atuação de um Partido e de uma
Igreja. Apenas quero destacar que, ao menos para os petistas que destacam a necessidade
de fazer autocrítica e reconhecer erros, não se trata de buscar absolvição para
garantir a vida eterna. Nosso objetivo é mais chão: corrigir os erros, para
reduzir as chances de sermos derrotados da próxima vez em que tentarmos.
Indo ao
ponto. Logo depois da digressão sobre a Igreja Católica, Monica Bergamo
pergunta a Dirceu: “Não tinha outro jeito de financiar campanha?” Dirceu
responde: “Tem: o autofinanciamento com apoio popular. Mas, nas condições que
estávamos enfrentando, era impossível fazermos isso”.
E por qual
motivo, segundo Dirceu, era impossível?
Diz ele:
“porque a dinâmica da vida política, do sistema, é essa. A solução seria
financiamento público com lista [partidária]. O PT lutou, o Lula lutou também
por isso. Mas ninguém quis fazer”.
Não sei se a
edição prejudicou a exposição do ponto de vista de Dirceu. Ele diz que
tentamos fazer financiamento público, mas “ninguém” – ou seja, a maioria dos
partidos burgueses – quis fazer.
Mas o fato é que não tentamos fazer
autofinanciamento popular. E se não tentamos, como podemos dizer que não era
possível?
Não se trata
de um tema do passado. Hoje, mais do que antes, é preciso tentar viabilizar o
autofinanciamento. Mas isso não ocorrerá se a direção partidária achar que “nas
condições que [estamos] enfrentando, [é] impossível fazermos isso”.
Outra
passagem importante da entrevista é quando Monica Bergamo pergunta se Dirceu
alguma vez “imaginou que a história terminaria com o senhor e o Lula presos?”
Dirceu
responde que “a tentativa de derrubar o nosso governo eu sempre imaginei”. Em
seguida ele fala de vários casos em que houve golpes e conclui dizendo que “só
derrotamos tentativas de golpe quando a gente tem armas. Estou falando sério”.
A jornalista
pergunta: “Mas essa seria uma possibilidade?” E Dirceu responde: “A solução
hoje é igualzinha à que eles fizeram. Desestabilizaram o governo Dilma.
Impediram que ela aprovasse uma pauta de ajustes. Colocaram milhões de pessoas
na rua e buscaram uma solução legal. Nós devemos fazer a mesma coisa”.
A jornalista
insiste: “E têm força para isso?” E Dirceu responde: “Temos. Pode demorar dois,
quatro, seis anos, mas temos”.
Talvez por
conta da edição, neste ponto da entrevista perguntas e respostas misturam duas questões. Uma
questão é o que faremos para derrubar o governo golpista. Outra questão é o que
deveríamos ter feito para nosso governo não ser derrubado por um golpe.
Sobre esta
segunda questão, Dirceu afirma que “só derrotamos tentativas de golpe quando a
gente tem armas. Estou falando sério”.
Não tenho
dúvida de que Dirceu está falando sério. E não tenho dúvida de que, no limite,
as armas pesam. Mas antes das armas, outros fatores pesam: a maioria
parlamentar, o sistema judiciário, os meios de comunicação, a capacidade de
mobilização popular...
E a verdade
é que, em cada uma destas frentes, inclusive no trato com as forças armadas e
as polícias militares, prevaleceu no PT e em nossos governos uma postura que,
direta ou indiretamente, contribuiu para a situação em que estamos hoje.
Esta
postura, baseada numa visão estratégica segundo a qual seria possível fazer
mudanças sem rupturas, precisa ser superada. Ou então reconquistaremos o
governo e seremos novamente derrubados, e assim sucessivamente.
Dirceu prevê
que “o país vai ter um longo ciclo de lutas. Mas primeiro é ganhar a eleição.
No segundo turno, se as esquerdas se unirem, teremos força para isso”.
É verdade
que haverá um longo ciclo de lutas e também é verdade que devemos buscar ganhar
a eleição. Mas ganhar as eleições presidenciais de 2018 é uma hipótese,
reforçada pelas pesquisas. O golpismo opera pesado contra isto e, portanto, uma
derrota também é uma hipótese, reforçada pela prisão de Lula.
Na hipótese
de uma vitória nossa, o golpismo vai tentar impedir a posse, o que vai colocar
a luta de classes um patamar acima. Por outro lado, quais seriam os
desdobramentos de uma derrota?
Dirceu
certamente tem muito a dizer a respeito destas questões. É muito provável que parte
do que ele tenha falado a respeito na entrevista, tenha sido cortado pela edição. O
que foi publicado, entretanto, não aborda todas as hipóteses que devemos
considerar, já que nossa tática eleitoral em 2018 deve servir tanto para vencer
e governar em condições distintas de 2003-2016, quanto servir para acumular
forças para uma oposição radical a um governo golpista “eleito” por uma fraude.
Dirceu deixa
claro que seu candidato “é o Lula. Nós temos que lutar pela liberdade dele,
mantê-lo como candidato e registrá-lo em agosto”. Mas logo em seguida, a
entrevista atribui a ele a seguinte afirmação: “daqui a 60 dias, o Lula vai
tomar a decisão do que fazer, consultando a executiva, os deputados”.
Se esta
passagem da entrevista corresponde mesmo ao que Dirceu pensa e falou a respeito, então
a conclusão é a de que Lula será candidato até a impugnação. Depois disso, “Lula
vai transferir de 14% a 18% de votos para o candidato que ele apoiar”.
Ou seja: se
a candidatura Lula for impugnada, o PT apoiará outro nome, que será decidido
por Lula após escutar a executiva e deputados.
Espero
sinceramente que esta passagem da entrevista tenha sido editada. E que Dirceu
considere outras hipóteses, não apenas esta. E que considere, também, todos os
desdobramentos de uma tática que aceite participar de uma eleição fraudada.
Desdobramentos que podem resultar em situações muito mais bizarras do que votar
em Joaquim Barbosa num eventual segundo turno.
Sobre as
dificuldades de transferir votos para outra candidatura, no caso de Lula estar
preso, Dirceu diz ser “a coisa mais fácil que tem. É só ele falar o que ele
pensa”. Chega até a dizer que “o lado de lá tem a TV Globo, o aparato judicial
militar e o poder econômico. Mas está mais desorganizado e enfraquecido do que
nós”.
Que o
golpismo está dividido, isto é verdade. Mas esta divisão, ao menos até o
momento, não impediu nossa derrota em grande parte das batalhas travadas desde
2015. Se não quisermos ser derrotados de novo, é melhor não subestimar os
riscos. E um dos riscos que temos pela frente é legitimar uma fraude.
Frente a
isto, vale a pena debater todas as hipóteses e não descartar a priori nenhuma,
mesmo que pareça “impossível fazermos”. E vale, também, não cair na inocência
de achar que os golpistas que colocaram Lula na cadeia estão
"desorganizados" e "enfraquecidos".
Isto estaria
perto da verdade se estivéssemos diante de uma eleição normal. Mas estamos
diante de uma eleição em tempos de golpe. Quando, frente a um povo que aprendeu
a usar o voto como arma, os golpistas apelam para outro tipo de armas, a
começar pela fraude.
Íntegra da
entrevista publicada
Folha - Como o senhor se sente hoje, prestes a ser
preso de novo?
Dirceu - O
país vive uma situação de insegurança e instabilidade jurídica, de violação dos
direitos e garantias individuais. O aparato judicial policial se transformou em
polícia política.
Como a minha
vida é o PT e o projeto que o Lula lidera, eu tenho que me preparar para
continuar fazendo política. Eu não posso me render ao fato de que vou ser preso.
O senhor
está com 72 anos e foi condenado a 41 anos de prisão. Estamos falando de um
regime fechado de sete anos.
É. E eles
acabaram com a progressão penal. Você só pode ser beneficiado se reparar o dano
que dizem ter causado. E como, se todos os seus bens estão bloqueados? Acabaram
com o indulto [para crimes de colarinho branco]. Vamos cumprir a pena toda.
Então o
senhor pode entrar agora na cadeia para não sair nunca mais?
É uma
hipótese.
E como se
sente?
Não muda
nada. Preso ou aqui fora, vou fazer tudo o que eu fazia: ler, estudar e fazer
política.Eu tenho que cumprir a pena. Eu não posso brigar com a cadeia. O preso
que briga com a cadeia cai em depressão, começa a tomar remédio.
Os presos
antigos, de forma jocosa mas a sério, quando veem um de nós não aceitando...
porque é duro perder a liberdade. Quer dizer, não perde porque não perde a
liberdade de criar, de pensar, e também não perde o afeto, o amor. Milhões de
pessoas vivem numa condição subumana por causa da pobreza, da exploração. E
criam, né? Fazem música, arte, criam os filhos, batalham.
Mas eles
[presos antigos] dizem [para quem chega na cadeia]: "Já chorou bastante?
Já rezou? Já chamou mamãe? Já leu a Bíblia? Então agora, cidadão, começa a
trabalhar! Arruma emprego aqui dentro pra fazer remissão [da pena]. Estuda,
viu?
Outra coisa:
arruma a tua cela. Transforma aquilo num mocozinho seu, num apartamentinho, põe
fotografia da tua filha, põe a bandeira do teu time. Limpa ela direitinho,
melhora o que você come. Joga futebol. Porque você vai ficar aqui quatro anos.
[Aumentando o tom de voz]. Tá entendendo o que eu tô te falando? Ou você quer
ficar igual àqueles lá? [referindo-se a presos deprimidos].
Aquilo ali é
três Frontais [remédio para ansiedade] por dia. Olha como ele já tá andando
durinho. É o crack em parte que queimou a cabeça dele. Mas o resto é a
depressão.
O senhor
ouviu esses conselhos quando entrou no sistema penitenciário?
Ouvi. Eu
cheguei muito deprimido no CMP [Complexo Médico Penal de Pinhais, em Curitiba].
A minha filha estava denunciada —depois ela foi inocentada—, o meu irmão estava
preso.
Eu tomava
indutor do sono. Mas logo parei. Fui buscar emprego na biblioteca. Li cem
livros no um ano e nove meses em que fiquei lá.
Outros
presos vão trabalhar na lavanderia, consertam roupa, outros vão para a censura
para ver se os Sedex [enviados pelas famílias] estão dentro da norma,
orientados por um agente.
E eu virei,
né? Todo sábado e domingo, quando fazíamos almoços coletivos, eu também
escrevia as minhas memórias, na cela, à mão.
E como era a
convivência com Eduardo Cunha?
Normal. Você
está preso. Convive com [condenados pela lei] Maria da Penha, com um pedófilo
condenado a cem anos de prisão. Ele é o chefe de um setor. É uma pessoa normal,
quieta.
A primeira
reação é "não vou falar nunca com ele". Depois de três anos, minha
cara, não adianta. Tem que falar.
Lá tá todo
mundo na mesma m., entendeu? Há uma solidariedade. "Vamos evitar que o
velhinho pegue sarna, vamos limpar a cela dele, vamos levar ele para tomar
banho".
Se contamina
uma cela, pode contaminar todas as 32 celas da galeria, com sarna, com pulga.
Temos que cuidar para que todo mundo ferva a água.
E o Eduardo
Cunha?
Ele é muito
disciplinado. Dedica uma parte do tempo para ler a Bíblia, frequenta o culto.
Conhece a Bíblia profundamente. E em outra parte do tempo se dedica a ler os
processos.
É uma
convivência normal. Vamos limpar os banheiros? Vamos. Vamos lavar os corrimões?
Vamos.
Tem que
limpar o xadrez todos os dias, lavar as portas e a galeria, para evitar
doenças. Nós ficamos na sexta galeria, [que abriga] os presos da Lava Jato,
Maria da Penha, advogados, empresários, alguns condenados por crimes sexuais.
São 60 presos, separados dos 700 [do complexo penal].
Falavam de
política?
Falávamos.
Sempre tem uma hora em que um preso joga xadrez, dominó, o outro toca música,
ou está acabando de almoçar, voltando do trabalho. Nessas horas você sempre
conversa.
E todo mundo
é inocente, né? O cara matou a avó, fritou o gato dela, comeu. Mas ele começa a
conversar com você e a reclamar que é inocente.
Ficam mais
tempo trancados ou circulando?
Ficamos na
tranca quando tem rebelião no sistema porque se tem em uma cadeia pode ter na
outra. No dia a dia, levantamos às 6h30. Os carros chegam entregando o café da
manhã. São muito barulhentos. Todo mundo acorda. Aí sai da cela. Quem tem que
trabalhar vai trabalhar.
Às 11h30,
chega o almoço. Tudo lá é simples, mas honesto. A comida é simples —de pensão,
de quartel—, mas honesta. A roupa de cama é simples, mas honesta. Às 13h30,
alguns presos vão ao médico, outros ao parlatório [falar com os advogados].
Todos podem ir na biblioteca retirar um livro.
Desce no
pátio duas horas por dia para jogar futebol e tomar sol. E volta. Desce uma vez
por semana para ver a família. E volta. Por três, quatro, dez anos, você passa
a maior parte do tempo numa galeria de 120 m por 30 m com várias celas. Essa é
a realidade do preso.
E as visitas
da família?
Você não
pode receber a tua família mal. A gente briga muito com os outros presos:
"Tua família não pode te ver assim. Fique melhor. Se arruma. Levante o
ânimo. Imagine como vai ficar a tua mãe".
E, se a
família chega chorando, o preso volta da visita, deita na cama e cai. É duro
ver a família indo embora. É duro. Muitos choram.
O senhor
conviveu com Antonio Palocci?
Estive com
ele uma só vez, na Polícia Federal. Foi quando ele me disse —ele usou esta
expressão: "o Leo [Pinheiro, ex-executivo da OAS] vai salgar o Lula [o
empreiteiro revelou à Justiça que pagou a reforma do tríplex do petista]".
E me disse
que ele mesmo ia relatar, em depoimento, como era o caixa dois no Brasil. Deu a
entender que ia falar do sistema bancário, eu entendi que ia falar da TV Globo.
E fiquei apreensivo. Voltei e conversei com o Eduardo [Cunha] e com o [João]
Vaccari [ex-tesoureiro do PT que está preso]: "Tô achando que o Palocci
vai fazer delação".
Os dois
ficaram indignados comigo. Principalmente o Eduardo, que disse: "Eu
convivi com ele. Em hipótese nenhuma". Eu deixei para lá.
É verdade
que o marqueteiro João Santana contou para o senhor que delataria?
O que
fizeram com a Mônica [Moura], mulher dele, foi terror psicológico. Colocaram
ela na triagem de Piraquara, uma das piores penitenciárias do Paraná,
totalmente dominada pelo crime.
Colocar na
triagem significa o seguinte: te colocam numa cela pequena, sem luz, sem nada.
Te dão a comida pela bocuda. Sai para tomar banho dez minutos e volta. Em dois
dias você faz delação, né?
E isso não é
uma tortura psicológica?
Ele falou
para mim depois, um pouco como desabafo, angustiado: "Não tenho
condição". Preocupado, né? Porque as pessoas têm vergonha de fazer
delação.
Eu falei:
"João Santana, da minha parte você vai continuar tendo o meu respeito.
Essa é uma questão de vocês". Já os empresários têm as razões deles,
salvar a empresa, o patrimônio, os empregos.
O senhor
também conviveu com o Marcelo Odebrecht.
Ele ficava
sozinho numa cela. É afável, educado. Mas tem uma vida muito própria. Faz
ginástica oito, dez horas por dia. Então não convive, né? Todo mundo sabia que
ele era assim e todo mundo respeitava.
Ele se
comportou muito bem. Até poderia ser de maneira diferente, pelo que
representava. Mas ali é todo mundo igual. Preso não aceita [comportamento
diferente]. Quando você entra no sistema, tem que pôr na cabeça o seguinte:
"Eu sou preso. Aqui eu sou igual a todo mundo". Os presos te
respeitam se eles veem que você é um deles.
Como vê a
perspectiva de Lula ficar preso sozinho? Ele suporta o isolamento?
Como o
tratamento é respeitoso e ele recebe advogados todos os dias, e a família uma
vez por semana, vai se adaptando.
O pior para
ele já aconteceu: a indignidade de ser condenado e preso injustamente. Depois
disso, tem que se adaptar às condições e transformar elas em uma arma para
você. Esse é o pensamento. Mas eu acho que raramente um ser humano suporta
ficar um ano num banheiro e quarto vendo três vezes por dia alguém trazer
comida para ele.
Agora surgiu
a ideia de o Lula ir para um quartel. Seria pior ainda. Porque eles não que em
ninguém lá. A função do quartel não é ser presídio. Ele vai ficar mais isolado.
E ele não
consegue?
Eu acho que
ele não deve. É uma questão política. Ele deve conviver com outras pessoas,
pensar o país, pensar no que está acontecendo. Ele não está proibido de fazer
política só porque está preso.
Se o Lula
vier para a sexta galeria [unidade do complexo penal em que Dirceu ficou
detido], verá que é uma convivência normal. É muito raro ter um incidente. E na
prisão você conversa, aprende muita coisa. As pessoas têm muito o que ensinar.
Às vezes
você acredita no mito que criam sobre você. Que você é especial, que teve uma
vida, no meu caso, que dá até um filme. Mas você começa a conversar com um
preso comum, e descobre que é fantástica a vida de cada um lá.
O que o
senhor sentiu quando viu Lula sendo preso?
Eu sou muito
frio para essas questões, sabe? Acho que ele fez o que tinha que fazer, aquela
resistência simbólica foi necessária. E nós ganhamos essa batalha política e
midiática.
Mas nada
mexeu com o senhor?
Eu fiz da
minha vida praticamente o Lula. E me mantive leal a ele. Não faltaram
oportunidades, amigos e companheiros que me empurravam para romper com ele, em
vários episódios. Mas eu sempre achei que a obra do Lula, a liderança dele, o
que ele fez pelo país, compensava qualquer outra coisa. Então eu não dei
importância. Depois de uma semana, já não lembrava.
Em 2011, eu
estava num barco alugado, pescando, e recebi um telefonema com a informação de
que o Lula estava com câncer. Eu chorei. Me deu a sensação de que poderia ser o
começo do fim da vida do Lula. Mas agora, como já passei três vezes pela
prisão, é diferente.
Você tem que
lutar por todos os meios, legais e políticos, para ser solto. Mas sempre tenho
a ideia de que, se souber levar a prisão, ela pode se transformar numa melhora
para você mesmo. De estudo, de pesquisa, de reflexão.
Em algum
momento dessas reflexões na prisão o senhor concluiu que errou e cometeu
crimes?
Eu não
cometi crimes. Não há nenhuma prova, nenhum empresário ou diretor afirmando que
eu pedi alguma coisa na Petrobras. O que eu errei? Na minha relação com [o
lobista e delator] Milton Pascowitch. Eu comprei um imóvel, financiei, paguei a
entrada.
Ele reformou
o imóvel. Eu não paguei. Foi um erro meu. Eu não poderia ter estabelecido essa
relação.
Era um
empréstimo não declarado. Que virou propina. Foi uma relação indevida. Admito.
Mas não criminosa.
O senhor já
disse que a militância é solidária mas que vocês cometeram muitos erros.
Eu estava
falando de mim. Eu sempre digo: eu tenho apoio da quase absoluta maioria da
militância do PT porque ela é generosa. E essa solidariedade não é porque todos
concordam com minhas ideias nem pelo que fiz na minha vida profissional
recente. É pelo que eu fiz pelo PT, pelo Brasil, pelo Lula. É pelo que eu
represento.
Querer ser
consultor e ganhar dinheiro foi um erro?
Eu não
queria ganhar dinheiro. Eu queria sustentar a minha defesa e a minha vida
política. Eu não tenho patrimônio. A casa da minha mãe eu tinha comprado antes,
o apartamento do meu irmão foi financiado.
Eu tenho R$
2.000 na minha conta. É só ver como eu vivo, no apartamento da minha sogra. É
só perguntar para o prédio sobre o IPTU. Vai na escola da minha filha perguntar
sobre a mensalidade.
Quais foram
os erros que o senhor cometeu então?
Eu não
deveria ter feito consultoria. Ela cria um campo nebuloso entre os meus
interesses como consultor e o interesse público. Eu ficava me lamentando:
"Por que eu fui fazer essa coisa [consultoria] com a Engevix [pela qual
foi condenado]?"
O Vaccari
falava: "Para com isso, Zé Dirceu. Você não foi condenado por isso".
Depois fui condenado em outro processo sem ter nada a ver com nada. E o Vaccari
falou: "Tá vendo?".
Então eu às
vezes fico dividido. E concluo que na verdade eu fui condenado por razões
políticas. Eu não fui condenado pelas consultorias que prestei.
Lula fez um
governo aprovado por 83% dos brasileiros. Por outro lado, desvios de milhões
foram comprovados. O fato de vocês terem financiado campanhas com dinheiro de
estatais e caixa dois não seria razão para um arrependimento, uma autocrítica?
Nós temos
que denunciar o que fizeram conosco, e não foi por causa de nossos erros. O
legado do Lula, o nascente estado de bem-estar social que ele consolidou, está
sendo todo desmontado. Estão desfazendo a era Lula como quiseram desfazer a era
Getúlio.
Eu faço o
balanço histórico: estamos do lado certo e o saldo de tudo o que fizemos é
fantástico. Eu vou dizer uma coisa para você: a Igreja Católica Apostólica
Romana tem uma história de crimes contra a humanidade.
Não vou nem
falar das Cruzadas ou da Inquisição. Se eu for olhar para ela, vou mandar
prender todos os padres e bispos porque a pedofilia é generalizada. Ou não é?
Mas é a Igreja Católica Apostólica Romana. A vida é assim. O mundo é assim.
O PT cometeu
erros? Muitos. Mas tem uma coisa: o lado do PT na história, o nosso lado, é o
lado do povo, do Brasil.
Não tinha
outro jeito de financiar campanha?
Tem: o
autofinanciamento com apoio popular. Mas, nas condições que estávamos
enfrentando, era impossível fazermos isso. Porque a dinâmica da vida política,
do sistema, é essa. A solução seria financiamento público com lista
[partidária]. O PT lutou, o Lula lutou também por isso. Mas ninguém quis fazer.
Alguma vez o
senhor imaginou que a história terminaria com o senhor e o Lula presos?
A tentativa
de derrubar o nosso governo eu sempre imaginei. Toda vez que no Brasil há um
crescimento muito grande das forças políticas sociais, populares, de esquerda,
nacionalistas, progressistas, democráticas, isso acontece.
De 1946 a
1964, o Brasil viveu sob expectativas de golpe contra governos trabalhistas,
getulistas. O Juscelino [Kubitschek] só tomou posse porque o [marechal Henrique
Teixeira] Lott deu o contragolpe.
Só teve a
posse do Jango porque [Leonel] Brizola se levantou em armas. Aliás, só
derrotamos tentativas de golpe quando a gente tem armas. Estou falando sério.
Mas essa
seria uma possibilidade?
A solução
hoje é igualzinha à que eles fizeram. Desestabilizaram o governo Dilma.
Impediram que ela aprovasse uma pauta de ajustes. Colocaram milhões de pessoas
na rua e buscaram uma solução legal. Nós devemos fazer a mesma coisa.
E têm força
para isso?
Temos. Pode
demorar dois, quatro, seis anos, mas temos. Você não desmonta a estrutura de
bem-estar social que o país tem sem consequências. As forças políticas e
sociais vão ganhando consciência. Vão surgindo novas lideranças, novos
movimentos.
O país vai
ter um longo ciclo de lutas. Mas primeiro é ganhar a eleição. No segundo turno,
se as esquerdas se unirem, teremos força para isso.
Quem o
senhor coloca como esquerda?
Os
candidatos do PSOL, do PC do B, o PT, o PDT e o PSB.
O senhor
então inclui o ex-ministro do STF Joaquim Barbosa, hoje no PSB?
É um
candidato que pode ser cooptado pela direita. Mas pode ser que não. É uma
incógnita.
O senhor
votaria nele no segundo turno contra alguém da direita?
Bem, essa
hipótese... vamos esperar. O meu candidato é o Lula. Nós temos que lutar pela
liberdade dele, mantê-lo como candidato e registrá-lo em agosto.
Se não
fizermos isso, será um haraquiri politico. Nós dividiremos o PT em quatro ou
cinco facções. Nós temos que manter o partido unido. Daqui a 60 dias, o Lula
vai tomar a decisão do que fazer, consultando a executiva, os deputados.
Como ele
fará uma consulta de dentro da prisão?
Da prisão
você consulta quem quiser. Lula vai transferir de 14% a 18% de votos para o
candidato que ele apoiar.
De dentro da
prisão?
É a coisa
mais fácil que tem. É só ele falar o que ele pensa.
Mas a gente
sabe o trabalho que deu para ele transferir votos em outras eleições. Ele
aparecia na TV todos os dias, viajava pelo país.
Sabe qual é
a diferença de 2014? É que o lado de lá tem a TV Globo, o aparato judicial
militar e o poder econômico. Mas está mais desorganizado e enfraquecido do que
nós.
Eu tenho
confiança de que o fio da história do Brasil não é o fio das forças da direita.
O fio da história do Brasil é o fio que nós representamos.