As direitas e o golpe no Brasil
(Roteiro para fala na mesa-redonda de 29 de abril)
Agradeço o convite para participar desta mesa-redonda sobre as direitas e o golpe no Brasil.
Tendo em vista o que foi dito recentemente por Ayres Brito (“pausa democrática”) e por Bolivar Lamounier, começo explicando por qual motivo estamos diante de um golpe.
A legislação brasileira prevê a possibilidade de impeachment apenas em caso de “crime de responsabilidade”. Segundo a acusação aceita pela Câmara dos Deputados, o "crime de responsabilidade" que a presidenta Dilma Rousseff teria cometido consiste em créditos suplementares e pedaladas fiscais.
Tal acusação é uma fraude. O Advogado Geral da União já demonstrou, sem ter sido refutado, que não houve crime de responsabilidade. Lembrou, também, que o vice-presidente, a maioria dos atuais governadores e o ex-presidente FHC cometeram os mesmos atos pelos quais a presidenta é acusada.
Impeachment sem crime de responsabilidade é golpe. No regime político brasileiro, não existe terceiro turno da eleição presidencial. Se o parlamento (usando o impeachment como pretexto) transforma-se em câmara revisora, substituindo quem foi eleito por quem é do gosto da maioria parlamentar, estaremos de volta à República Velha.
A Câmara dos Deputados sabe que a presidenta Dilma Rousseff não cometeu nenhum crime. Tanto é assim, que a maioria dos que votaram a favor do impeachment não se deu ao trabalho de mencionar a existência do crime de responsabilidade.
Quase todos os que votaram a favor do impeachment gastaram seus segundos de "fama" acusando a presidenta Dilma Rousseff, o ex-presidente Lula e o Partido dos Trabalhadores de todo tipo de barbaridade. Acusações que seriam cabíveis (verdadeiras ou não) numa campanha eleitoral, mas não são legítimas nem legais como justificativas ou argumentos de um impeachment.
Além disso, há inúmeros indícios de que muitos parlamentares votaram a favor do impeachment na expectativa de interromper as investigações em curso sobre eles no âmbito da Operação Lava Jato e/ou devido a gestões empresariais pouco republicanas.
Há elementos de sobra para o Supremo Tribunal Federal interromper o processo, seja por conta da inépcia da acusação, da condução do processo, da motivação e conteúdo da maioria dos votos. Mas até agora a maioria dos ministros togados preferiu não agir em defesa da Constituição, mostrando que há diversos ramos do Estado envolvidos no atual golpe.
Na ausência de crime de responsabilidade, impeachment é um golpe contra a soberania popular. Um golpe parlamentar, em que a maioria do parlamento usurpa um direito que é da maioria da população: o de escolher quem preside o país e com qual programa.
Vale dizer que os golpistas não estão esperando: tanto no Senado quanto na Câmara dos Deputados, estão sendo aprovados projetos de orientação neoliberal e conservadora, que alteram o regime de partilha, o papel das estatais, a CLT etc.
Por ser um golpe parlamentar, não é um golpe menos perigoso, como pode constatar quem acompanhou as declarações de voto de mais de três centenas de parlamentares.
A votação ocorrida na Câmara dos Deputados, especialmente a justificativa de cada voto, foi uma autópsia ao vivo e em cores do sistema político brasileiro.
Os que votaram contra o impeachment justificaram seu voto com dois argumentos básicos: a defesa da democracia e a defesa da classe trabalhadora. Lançaram mão, portanto, de argumentos de natureza pública.
Já os que votaram a favor do impeachment usaram e abusaram de referências a Deus, a suas famílias, bem como ao desejo de destruir a esquerda.
Lançaram mão, portanto, de argumentos fundamentalistas, patrimonialistas, machistas, homofóbicos, fascistas, apologistas da tortura e da ditadura. O comportamento da maioria dos parlamentares foi simplesmente repulsivo.
Ficou explícito o confronto entre duas visões de mundo, duas concepções de Brasil e duas formas diferentes de conceber a política e a representação popular. Uma de esquerda e outra de direita, no sentido mais amplo e clássico da palavra: a postura frente a igualdade e a liberdade.
Embora o golpismo seja “de direita”, os golpistas são muitos e as direitas são várias, como bem alerta o título da nossa mesa-redonda.
Por isto, é importante fazer uma análise da coalizão golpista que vá além do gangster e do conspirador, vá além das aparências ideológicas e políticas e indique sua base de classe, suas expressões políticas e seus objetivos estratégicos, bem como as implicações que isto tem para a esquerda, tanto do ponto de vista tático quanto estratégico.
Do ponto de vista social, há três setores favoráveis ao golpe parlamentar:
a) setores da classe trabalhadora insatisfeitos com a política recessivas do governo Dilma. Estes setores não estão mobilizados, acompanham à distância e começam a perceber que um governo golpista afetará para pior as condições de vida do povo;
b) setores da classe trabalhadora insatisfeitos com as políticas inclusivas do governo Lula. Estes setores (geralmente denominados de “classe média tradicional”) são a tropa de choque do golpismo;
c) o grande capital, nacional e estrangeiro. Este setor é a cabeça real do movimento golpista, como se pode perceber pela movimentação extraordinária de jatinhos privados no aeroporto de Brasília, na véspera da votação do impeachment na Câmara dos Deputados;
Do ponto de vista político –portanto das “direitas” no sentido estrito da palavra-- o golpe envolve:
d) setores do aparato de Estado, especialmente na Polícia Federal, no Ministério Público e na Justiça Federal, com ramificações em outros setores, como se pode perceber pelo boicote ativo ou passivo às determinações do governo;
e) os partidos institucionais de centro-direita, com destaque para o PMDB e o PSDB;
f) uma direita de tipo fascista, que começa a ganhar cada vez mais peso institucional, como se pode ver nos apoios a facínoras como Jair Bolsonaro;
g) as igrejas conservadoras, que desde 2003 vieram constituindo uma bancada própria no parlamento e uma imensa força política e ideológica;
h) o oligopólio midiático, tendo a Globo como cabeça.
Uma questão importante é saber como se constituiu esta coalizão golpista e como ela converteu-se, mesmo que seja momentaneamente, em majoritária na sociedade brasileira.
O impeachment faz parte de uma contraofensiva conservadora iniciada em 2011, com ramificações internacionais e que já obteve importantes vitórias na América Latina e Caribe, especialmente na Argentina e Venezuela.
É evidente a participação nesta contraofensiva, explícita ou implícita, dos Estados Unidos, inclusive no fornecimento de informações aos condutores da Operação Lava Jato.
No caso do Brasil, esta contraofensiva possui três objetivos:
a) realinhamento com os Estados Unidos, afastando-nos dos Brics e da integração regional;
b) redução do salário e da renda dos setores populares, diminuindo as verbas das políticas sociais, alterando a legislação trabalhista, reduzindo direitos, não reajustando salários e pensões, provocando desemprego e arrocho;
c)diminuição das liberdades democráticas, criminalizando a política, os movimentos sociais e os partidos de esquerda, partidarizando a justiça, ampliando o terrorismo policial-militar especialmente contra os pobres, moradores de periferia e negros, subordinando o Estado laico ao fundamentalismo religioso, agredindo os direitos das mulheres, dos setores populares, dos indígenas.
Desde 2011, estes setores implementaram duas táticas que se combinavam e alimentavam mutuamente.
A primeira delas consistia em derrotar Lula, o PT e o governo Dilma, empurrando este último a abandonar o programa vitorioso nas eleições de 2014, provocando recessão e descontentamento popular, divisão e desgaste na esquerda, conduzindo-nos assim para uma derrota nas eleições de 2016 e 2018.
A outra tática residia em destruir Lula, o PT e o governo Dilma, através da Operação Lava Jato, de uma brutal campanha midiática e de medidas visando antecipar o fim do governo, via processo no Tribunal Superior Eleitoral ou através de impeachment no Parlamento.
Por razões que posso abordar no debate, desde que Lula aceitou o convite para compor o ministério de Dilma, os diferentes setores da oposição de direita unificaram-se em torno desta segunda tática, empurrando o país para uma crise política e institucional similar a que caracterizou o período 1954-1964.
Ainda que setores da direita possam estar apostando no impeachment exclusivamente por oportunismo tático e sem necessariamente tirar daí conclusões estratégicas, o fenômeno de conjunto tem uma dimensão que precisa estar clara para nós: do ponto de vista de amplos setores do grande capital, é preciso superar os parâmetros dentro dos quais o país vem movendo-se desde a Constituição de 1988, desde a CLT e num certo sentido desde o ciclo de industrialização pós-1930.
Como a esquerda não quer e não pode compactuar com isto (apesar dos esforços feitos por figuras como Antonio Palocci e Nelson Barbosa) e como a esquerda venceu quatro eleições presidenciais seguidas, segmentos crescentes da classe dominante e de sua direção política (“as direitas”) chegaram a conclusão de que a esquerda não pode governar, não pode disputar eleições com chance de vitória, não pode sequer existir.
O golpe, portanto, não é um detalhe, uma casualidade, uma artimanha.
Mesmo que tenhamos êxito em derrotar o impeachment no Senado, a luta contra o golpismo terá continuidade, pois o "chip golpista" (ou seja, a ruptura com a institucionalidade democrática) está no DNA das elites: ficou adormecido por algum tempo e agora foi ativado por uma determinada conjuntura internacional e nacional.
A partir de 2011, a confluência entre a crise internacional, a dinâmica da economia nacional e as contradições político-sociais acumuladas em duas gestões presidenciais conduziram a um acirramento da luta de classes no país.
Esse acirramento assumiu diferentes formas, algumas aparentemente confusas (como as oscilações da política econômica do primeiro mandato de Dilma ou as jornadas de junho de 2013), outras cada vez mais nítidas (como o segundo turno de 2014 e as manifestações pró/contra impeachment).
O acirramento da luta de classes é ao mesmo tempo causa e efeito do impasse estratégico em que está metida a sociedade brasileira: o que está em questão é o conjunto da obra, ou seja, a definição do padrão de desenvolvimento que o Brasil vai seguir nos próximos anos e décadas.
Neste contexto, para materializar seus propósitos estratégicos a classe dominante precisa golpear profundamente as forças de esquerda, os setores populares, democráticos e progressistas em geral.
O impeachment é parte deste movimento, que não se limita a ele. Inclui também ações judiciais contra as esquerdas políticas e sociais, condução coercitiva e prisão de lideranças, constrangimento midiático e financeiro, combinado a repressão por parte das forças de segurança e paramilitares.
Por isto, tanto em caso de vitória quando de derrota na luta contra o impeachment, a tendência seguirá sendo de aprofundamento dos conflitos políticos e sociais. Também por isto é importante derrotar o impeachment: para que o governo possa ser, não um instrumento nas mãos da direita, mas um instrumento nas mãos da esquerda.
Parte da esquerda brasileira ainda não se deu conta das implicações estratégicas do golpismo.
Depois do mais longo período de liberdades democráticas da história do Brasil, uma parte da esquerda esqueceu (ou deixou adormecido) o que sabemos (e já sabíamos) sobre o compromisso das classes dominantes com a democracia.
Hoje, enquanto a direita radicaliza no discurso e na prática antidemocrática, a esquerda reafirma seu compromisso com as liberdades democráticas. Isto é correto, por razões de princípio, estratégicas e táticas.
Incorreto é alimentarmos ilusões no compromisso da classe dominante com a legalidade e a institucionalidade, como aquele acontece com boa parte dos discursos em defesa do “Estado de direito”, da “democracia como valor universal” e dos “objetivos republicanos” da Operação Lava Jato.
Acontece que não basta que a esquerda tenha disposição democrática. O “jogo democrático” exige pelo menos dois participantes. E para que a democracia fosse realmente um “valor universal”, seria necessário que a classe dominante tivesse algo mais do que um compromisso formal, episódico e circunstancial com ela.
A medida que a oposição de direita usa a institucionalidade contra a democracia, a esquerda precisa defender as liberdades democráticas agindo contra as instituições golpistas. O que nos remete para um debate acerca da estratégia adotada pelo PT desde 1995 e aprofundada a partir de 2003, estratégia baseada na conciliação de classes e na superestimação da luta institucional. Mas este tema escapa dos propósitos desta mesa redonda.
Entendo que as direitas estão muito próximo de obter uma vitória estratégica.
A batalha contra o golpe parlamentar (impeachment) tem três etapas, cujas datas aproximadas são: 1) até o dia 11 de maio, quando o Senado deve votar se instala ou não o processo de impeachment contra a presidenta Dilma Rousseff; 2) o processo propriamente dito, que pode durar entre alguns dias até seis meses, período em que o governo será do conspirador; 3) após o julgamento e até a eleição de 2018.
A oposição possui maioria simples no Senado. Portanto, será preciso um enorme esforço para impedir que eles iniciem o processo contra a presidenta Dilma Rousseff.
Ajuda nisto as diferenças e problemas existentes entre os golpistas:
a) apesar do refluxo na mobilização de rua, a batalha pela opinião pública e pelas ruas deixou de ser um passeio para a oposição;
b) a capacidade de mobilização da esquerda é maior do que eles pensavam e, mesmo que não seja capaz de deter o impeachment, poderá dificultar a governabilidade dos golpistas;
c) um governo encabeçado por Temer e Cunha tem um DNA corrupto e corruptor, ajudando a desmascarar a hipocrisia do argumento utilizado contra o PT;
d) não haverá como esconder que um governo resultante de um golpe parlamentar significa um retrocesso para um país que há muitos anos elege diretamente seu presidente;
e) para agradar seus financiadores, um governo Temer-Cunha, com maior ou menor celeridade, com ou sem demagogias de início, terá que aprofundar a recessão e avançar sobre os direitos sociais, o que vai gerar resistência popular e impactos eleitorais;
f) não há unidade, nas oposições de direita, acerca da tática e da candidatura presidencial em 2018, ao tempo em que Lula persiste como forte referência do campo democrático, popular e progressista. (Motivo pelo qual a direita está decidida a liquidar esta "ameaça", custe o que custar).
Não devemos minimizar nem superestimar os problemas e contradições existentes na oposição de direita.
Como já foi dito, apesar do crescimento da mobilização popular, a maioria do povo e da classe trabalhadora ainda não está engajada em defesa da democracia, o que ajuda os golpistas.
Por outro lado, o crescimento do desemprego poderá ser utilizado, pelo Capital e por um cada vez mais provável governo Temer, para chantagear a classe trabalhadora, seja no sentido de derrubar os princípios da CLT (colocando o negociado acima do legislado e generalizando a terceirização), seja no sentido de fazer a reforma da previdência.
Além disso, o grande capital em geral e o imperialismo tem tanto interesse em liquidar a esquerda, que não devemos subestimar sua capacidade de manobra.
Portanto, embora os golpistas estejam comprometidos com um pacote de maldades, isto não quer dizer que haverá imediatamente uma reação à altura por parte dos setores populares, seja antes da votação no Senado, seja imediatamente depois.
Aliás, é bom lembrar que um governo golpista poderá tentar imputar suas maldades à suposta herança maldita que teriam recebido dos governos encabeçados pelo PT, contando para reforçar esta "narrativa" com a ajuda da barragem publicitária do oligopólio da mídia.
Entretanto, tudo levado em conta, é preciso lutar “casa-a-casa” contra os golpistas, pois quanto maior for nossa resistência agora, mais fácil será a retomada posterior. As eleições de 2016 são parte desta luta.
Caso o golpe tenha sucesso, caberá avaliar qual deve ser nossa tática durante o processo no Senado e frente ao governo golpista, momento que pode coincidir com as Olimpíadas e a campanha das eleições municipais.
Desde já podemos dizer que faremos de tudo para impedir que o governo golpista cumpra o mandato para o qual ele não foi eleito. Neste contexto, será imperativo defender que se devolva ao povo uma decisão que só ele tem legitimidade para adotar. Há várias formas de fazê-lo, entre as quais a convocação de uma Assembleia Constituinte que faça uma reforma política, a eleição de um novo Congresso Nacional e do presidente da República. Hoje, entretanto, o governo e as forças que o defendem não podem adotar argumentos que enfraqueçam sua legalidade e legitimidade; nem podemos considerar “democráticas” eleições que ocorram num ambiente de efetiva “exceção”.
Um comentário final: a ofensiva da direita transformou em pó as interpretações da “ultraesquerda” e dos “ultramoderados”. Embora pareçam antagônicas, ambas interpretações são simétricas, pois acreditavam que o capital, o oligopólio da mídia e a direita seriam tolerantes com a presença do PT no governo federal.
Para a ultraesquerda, o PT seria um instrumento da classe dominante. Para os ultramoderados, o PT estaria demonstrando como salvar o capitalismo brasileiro de si mesmo.
Acontece que, apesar de ter conciliado com o grande capital, com a direita e com o oligopólio da mídia, o PT continuou sendo um estranho no ninho. A classe dominante nunca apreciou sua presença no governo, nem as importantes, porém estruturalmente tímidas, políticas que colocamos em prática desde 2003. A classe dominante nos suportou por um breve tempo, enquanto a correlação de forças impunha e enquanto a relação custo-benefício justificava. Ou seja, mais ou menos até o final de 2010.
Agora será possível, além de derrotar a contraofensiva conservadora, criar as condições para uma ofensiva da esquerda? Não há como saber.
Mas sabemos que, em caso de derrota, um preço muito alto será pago pela classe trabalhadora, no Brasil e região. Motivo pelo qual temos o dever de continuar lutando. Sendo importante, para o êxito desta luta, estudar a situação mundial como um todo, em particular a ofensiva das direitas em países da região, como Argentina e Venezuela.
Sobre a região, faço as seguintes observações.
Primeiro, ficou evidente a falsidade, da “teoria” acerca das “duas esquerdas”, uma “carnívora” e a “vegetariana”. Não porque não existam várias esquerdas latino-americanas, mas porque aquela “teoria” ocultava ou minimizava a existência de uma dinâmica comum a todas as esquerdas regionais. Tão comum que o retrocesso atinge as mais variadas expressões do ciclo de governos progressistas e de esquerda na América Latina e Caribe.
Segundo, ficou evidente a inconsistência tanto daqueles que consideravam que os governos “progressistas e de esquerda” faziam parte da arquitetura neoliberal e imperialista, quanto daqueles que consideravam que a “fórmula” econômica e política adotada pelos governos “progressistas e de esquerda” era no fundamental imune a retrocessos e não deveria sofrer alterações.
Terceiro, ficou evidente o equívoco daqueles que inicialmente subestimaram a contraofensiva da direita regional. Esta teve crescente êxito. No âmbito econômico-social, pressionando, sabotando e revertendo processos e conquistas. No terreno ideológico, contendo, desmoralizando e dividindo os oponentes. E no que diz respeito ao desempenho político-eleitoral, parte da direita regional aprendeu as lições das derrotas sofridas a partir de 1998 e, sempre “combinando formas de luta” (inclusive o paramilitarismo), quase ganhou as eleições presidenciais de 2014 no Brasil, ganhou as eleições presidenciais na Argentina, ganhou as eleições legislativas na Venezuela, venceu o plebiscito na Bolívia e está muito perto de conquistar – via golpe parlamentar – a “joia da coroa”.
Acontece que Argentina, junto com Brasil e Venezuela, cumpriam papel decisivo no processo de integração regional, constituindo a retaguarda estratégica de cada uma das esquerdas da região. Portanto, a alteração do quadro político nestes países altera a dinâmica da integração regional.
Independente dos motivos específicos, táticos, conjunturais, episódios e as vezes “pessoais” envolvidos em cada situação nacional, há um processo regional e mundial que devemos levar em consideração.
Em escala mundial, as grandes variáveis são: a defensiva estratégica da classe trabalhadora, desde o fim da URSS; a decorrente hegemonia capitalista, numa intensidade superior a de outras épocas da história; a profundidade da crise capitalista, consequência combinada das outras duas variáveis; o declínio da hegemonia dos Estados Unidos e o esforço brutal que eles estão fazendo para interromper e reverter este declínio; a disputa entre diferentes formas de capitalismos, e não entre capitalismo e socialismo, como sendo o fio condutor das grandes disputas mundiais; a formação de blocos regionais, principalmente como reação defensiva aos processos citados; e, por fim, mas não menos importante, uma tendência a instabilidade, a crises e a conflitos cada vez mais profundos.
Em escala regional, alguns dos elementos a considerar são:
a) o impacto da situação mundial, especialmente da crise, sobre a região;
b) a ação dos Estados Unidos: recuperará sua hegemonia global? Concentrará energias na sua hegemonia regional? Esgotará suas energias no conflito interno ao próprio país?
c) o comportamento do grande capital latinoamericano, em especial dos setores transnacionalizados.
Sabíamos que do “humor” do grande capital dependeria a estabilidade da via eleitoral e a solidez dos governos pluriclassistas.
Ou, invertendo o raciocínio, sua falta de “humor” levaria a uma radicalização das condições da luta de classe na região e em cada país.
O que vem ocorrendo nos últimos anos resolveu grande parte da discussão sobre a conduta deste grande capital frente aos governos progressistas e de esquerda, frente aos processos regionais de integração, assim como sobre a existência de uma burguesia regional disposta a competir com as burguesias metropolitanas, capaz de aspirar um papel protagonista no cenário mundial.
Aliás, a discussão sobre as "direitas" não pode servir de biombo: o que realmente estamos discutindo é a postura do grande capital, não apenas de seus funcionários.
d) além dos três elementos antes tratados, há que se discutir também a capacidade e disposição dos setores hegemônicos da esquerda regional --partidos políticos, movimentos sociais, intelectualidades e governos.
Independente da discussão sobre “narrativas e responsabilidades”, que inclui o debate sobre o programa, a estratégia e a tática das diferentes esquerdas regionais, é preciso reconhecer que está se encerrando um período no qual foi possível utilizar a presença em vários governos nacionais para aprofundar a integração regional, ampliar a soberania nacional, democratizar a política, melhorar o bem-estar social e gerar desenvolvimento econômico, mas sem alterar os padrões estruturais de dependência externa, concentração de propriedade e poder vigentes na região há mais de um século.
Dito de outra forma: está chegando ao fim a tentativa de realizar um ciclo de desenvolvimento capitalista com reformismo social e político sob hegemonia da esquerda.
Está chegando ao fim por obra e graça de uma reação do grande capital, do imperialismo e de seus aliados. Reação frente a qual a esquerda não conseguiu, ao menos até agora, opor uma resistência exitosa.
Caso efetivamente o processo chegue ao fim, o mais provável é que vivamos um ciclo de restauração regional, que pode ter curta ou média duração, ciclo que poderá assumir diferentes formas e nos quais a esquerda manterá maiores ou menores espaços nacionais e regionais.
Se isto acontecer, para melhor resistir e para preparar a contraofensiva, as esquerdas terão que fazer um balanço do ocorrido. Balanço no qual não se deve repetir o erro cometido por alguns nos anos 1990, quando no balanço do colapso da União Soviética, muitos jogaram fora a criança junto com a água de banho (sem falar na postura dos que saudavam a queda da URSS como manifestação de uma revolução política dos trabalhadores).
As direitas nos atacam por conta de nossas qualidades. Entretanto, seu deriva, em boa medida, de nossos defeitos e insuficiências. Os obstáculos são muitos e o tempo é curto. Mesmo assim, ao menos para nós que ajudamos a construir, que valorizamos e que queremos preservar e dar continuidade à experiência encabeçada pelo Partido dos Trabalhadores desde os anos 1980 e expressa pelo Foro de São Paulo a partir dos anos 1990, não existe alternativa justa e boa a não ser lutar, deter a ofensiva da direita, ganhar um tempo para respirar, reorganizar as forças e voltar a avançar.