Lembra aquelas
livrinhos de bolso, com histórias de faroeste ou de espionagem. Eram muito
legais. Mas você lia um, lia todos.
Assim
parecem certas análises de quem se acha vocacionado a renovar a esquerda, quando
na verdade apenas opera nos marcos da “narrativa” da direita.
Segundo ele,
teremos pela frente “21 dias de enorme tensão”, mas derrotar
Bolsonaro “é possível, porque os resultados de ontem são uma aberração, fruto
de três erros grosseiros que é possível corrigir. Reparar estes equívocos – na
prática, com determinação e em curtíssimo prazo – será tarefa dificílima. Mas é
a única alternativa e, se concretizada com sucesso, permitirá trocar um funeral
pelas chances de reinvenção da esquerda”.
De saída, quero deixar claro que não acho que o
resultado do primeiro turno tenha sido uma “aberração”. O crescimento da
extrema-direita não é um raio em céu azul, mas sim um fenômeno mundial. Tratar
como “aberração” é não entender o que está se passando com as massas e com a democracia
política no mundo capitalista contemporâneo.
Mas vamos aos três equívocos citados por Antonio.
O primeiro deles teria sido a “recusa do PT a uma
frente antigolpe, fruto de um hegemonismo encruado e pueril”.
Como?
O PT recusou uma “frente antigolpe”?
Ah, entendi: quando Antonio Martins fala que
recusamos uma “frente antigolpe”, ele quer dizer que nós recusamos apoiar o
candidato que ele, Antonio, apoiou no primeiro turno.
Martins acha que este foi um “erro bizarro”, cometido
pelo PT.
Da minha parte, só posso dizer que a vida
demonstrou que a candidatura do PT tinha força para chegar aonde chegou, força esta
que não foi construída artificialmente, mas sim politicamente, ao longo de
décadas.
Martins acusa o PT de ter sabotado a candidatura de
Ciro Gomes. Petistas acusam Ciro de “n” outras coisas. Mas a questão é: a essa
altura do campeonato, qual o sentido de rememorar isto?
O que pretende Antonio Martins? Colocar a pasta de
volta no tubo? Manter acesos os ressentimentos?
O segundo equívoco teria sido “inteiramente
articulado com o anterior. Para inviabilizar uma frente antigolpe, que teria
dado à disputa eleitoral feição totalmente distinta, o PT tentou reduzir o
pleito a um plebiscito sobre o legado de Lula. Ao fazê-lo, esqueceu-se do
próprio sentido de ser da esquerda e voltou o debate político para a exaltação
passado, ao invés de projetá-lo para as possibilidades do futuro”.
Ou seja: o primeiro erro bizarro teria sido
defender o PT. E o segundo erro bizarro teria sido defender Lula. Como se vê,
um discurso parente daquele que vem da outra extremidade do espectro político.
Mas, claro, como já ocorreu outras vezes na
história de nosso país, gente de esquerda consegue dar mais verniz para teses
de direita.
Nas palavras de Antonio Martins: “A rememoração das
conquistas do passado até fazia sentido, como ponto de partida. (...) Mas o que
poderia ter durado três dias, quiçá uma semana, prolongou-se por um longo mês,
como se o candidato nada tivesse, ele mesmo, a dizer”.
Um longo mês?
Lula foi impedido de concorrer por uma decisão
arbitrária do STF. Esta decisão obrigou o PT a substituir a candidatura no dia
11 de setembro. Haddad virou candidato a presidente neste momento. E o primeiro
turno foi no dia 7 de outubro, menos de um mês depois.
Ademais, antes de ser candidato a presidente e
antes de ser candidato a vice, Haddad foi coordenador do programa de governo do
PT, aprovado numa reunião do Diretório Nacional realizado no dia 3 de agosto de
2018.
Sendo assim, como classificar a acusação a seguir,
contida no texto de Antonio Martins: “A recusa a assumir
propostas concretas corresponde a um velho cacoete petista: obter, via
eleições, um cheque em branco da população; acomodar-se com as deformações do
sistema institucional brasileiro, sem jamais ousar propor uma Reforma Política;
negociar a governabilidade do presidente em parceria com as maiorias
parlamentares que resultam destas deformações; e realizar, nestas condições, as
“reformas fracas” (para usar expressão de André Singer) que tais acordos
permitirem. Desta vez, porém, o primeiro efeito foi reacender e intensificar o
antipetismo. Fernando Haddad era, de fato, apenas um poste? Ao votar no
candidato, a população estaria transferindo sua vontade política a um partido
que muitos veem – correta ou incorretamente, não importa – como uma máquina de
aparelhamento do Estado?”
Recusa a assumir propostas concretas? Quem aprovou
no dia 3 de agosto um programa pode ser acusado disto?
Antonio Martins não para aí. Ele diz que um efeito
disto foi “reacender e intensificar o antipetismo. Fernando Haddad era, de
fato, apenas um poste? Ao votar no candidato, a população estaria
transferindo sua vontade política a um partido que muitos veem – correta ou
incorretamente, não importa – como uma máquina de aparelhamento do Estado?”
Como é???
“Não importa” se é verdade ou não que o PT é uma “máquina
de aparelhamento do Estado”???
Se há algo que devemos combater, nesses tempos de
ascensão do fascismo, é a postura segundo a qual não faria diferença, "não importa", se algo é
verdade ou não.
Faz diferença sim.
Importa sim.
O PT adotou uma linha política, que incluía defender
a candidatura Lula; e a candidatura Lula era, em certa medida, um programa em
si mesma, não por razões “afetivas”, mas porque Lula foi presidente do país por
8 anos e seu governo implementou políticas cuja defesa e proposta de retomada
são, em si, um “programa”; mas além disso, o PT formulou um programa de
governo, em que são propostas novidades em relação aos governos anteriores.
Antonio Martins desconhece isso tudo e vem falar de
“poste”.
Mas ele não para por aí.
Segundo Antonio Martins, “a pior consequência de
uma campanha Haddad voltada ao passado e à saudade foi dar a Jair Bolsonaro
condições de vestir a máscara do antisistema”.
Pergunto: Bolsonaro foi o primeiro político da
história do Brasil ou do mundo a encarar a persona do anti-sistema? Ou este
roteiro já foi adotado por outros, aqui no Brasil (Collor), noutros países (Trump)
e noutras épocas (Hitler)?
Resposta: Bolsonaro não foi o primeiro. Portanto, é
preciso no mínimo cautela antes de apontar o dedo para o PT. Até porque se pode, sem
querer, acabar no mesmo caminho que levou Marina, Alckmin e outros a dizer que
estamos diante de posturas que se alimentam reciprocamente.
Para que fique claro: Bolsonaro efetivamente teve
êxito em vestir a fantasia de anti-sistema. E acho que o PT e a candidatura
Haddad deveriam ter feito mais no sentido de desmascarar a fraude.
Mas, ao
contrário do que diz Antonio Martins, a presença de Lula na disputa (direta ou
indiretamente) ajudou a impedir que Bolsonaro ocupasse sozinho este espaço no
imaginário popular.
Falo mais a respeito do tema aqui: http://valterpomar.blogspot.com/2018/08/a-tripla-polarizacao.html
Assim, embora ache
que podíamos ter feito muito mais, fizemos bastante para impedir que o rótulo
de “antissistema” fosse apropriado apenas por Bolsonaro. E só não fizemos mais,
porque o sistema prendeu Lula.
Neste ponto, é bom
que se diga, estou de acordo com Antonio Martins: “Foi esta a
chave para sua vitória no primeiro turno. Dentre os que votaram em Bolsonaro,
há uma enorme maioria de não-fascistas. São, porém, eleitores muito descrentes
das instituições, da possibilidade de que estas assegurem os direitos
estabelecidos na Constituição, e, mais ainda, de que estabeleçam novas
garantias e conquistas. São pessoas ressentidas com uma elite supostamente
bem-pensante, mas que cuida apenas de seus próprios interesses e não se importa
com a degradação geral do país, desde que se mantenha acima da linha da
barbárie”.
Minha divergência surge
quando ele diz que: “Este imenso contingente de
eleitores, que deu vitória a Trump nos Estados Unidos e promoveu o Brexit no
Reino Unido, foi, no Brasil, entregue ao candidato fascista quando a esquerda
abriu mão da chance de encarnar ela própria a oposição ao sistema; voltou-se
apenas ao passado; e se recusou a oferecer, no futuro, uma perspectiva de
direitos e igualdade”.
No fundo, Antonio
Martins acha que podemos oferecer um futuro, desconsiderando o passado recente.
Talvez seja por isso que, depois de ter criticado tanto a postura dos governos Lula e
Dilma frente ao agronegócio, ele tenha se sentido confortável em votar no
primeiro turno em Ciro e sua vice Katia Abreu.
Mas, novamente,
estou de acordo com Antonio Martins quando ele diz que “Fernando Haddad precisa
produzir, o mais rápido possível, uma virada na campanha; um
fato político novo que impeça Jair Bolsonaro de continuar ostentando a máscara
antissistema”.
Minha divergência
reside, óbvio, em acreditar que isto será mais fácil de fazer se utilizarmos o
patrimônio simbólico de Lula. Pelo seguinte motivo: não basta “apresentar, nos
próximos dias ou horas, um conjunto de dez propostas muito concretas e claras,
que dialoguem com as dificuldades concretas vividas pela população após o golpe
e que seu adversário não possa responder – devido a seus compromissos com o
poder econômico, o programa neoliberal de seu guru Paulo Guedes ou as máfias
parlamentares”.
Note que várias das
propostas listadas por Antonio Martins (ver texto copiado ao final) já constam do programa apresentado pelo
PT. Algumas constavam do programa de Ciro Gomes. Mas uma questão é: não basta querer
colocar o debate programático no centro da disputa. Nem basta apresentar propostas ótimas. É
preciso arrancar a máscara do adversário (Bolsonaro é Temer) e também é preciso
que as pessoas acreditem que seremos capazes de implementar aquelas propostas. E nesta tarefa, reitero, considero que Lula (que Antonio Martins as vezes trata como “o
passado”) é essencial.
Sigamos para o
terceiro erro que, claro, como não, também teria sido cometido por nós do PT. O
erro, segundo Martins, seria “a tendência do PT ao hegemonismo. Fernando Haddad
precisaria acenar desde já, e sem rodeios, para a composição de um governo
plural”.
Acho muito
simpáticos vários dos nomes apresentados por Martins. Marina, por exemplo,
apesar de tudo, a prefiro conosco do que “neutra”. E concordo com ele que o
anúncio de uma “geringonça” pode ajudar.
Mans me causa espécie,
petista que sou, a acusação de “hegemonismo”. O PT realmente existente, não
este que o Antonio Martins tanto critica, fez mil e uma alianças para vencer
eleições e para governar, tanto em prefeituras, governos estaduais ou na
administração federal. Classificar isto de hegemonismo é a prova de que Antonio
dialoga com um tipo ideal que ele criou para raciocinar, não com o PT realmente
existente.
O problema que
temos é, na minha opinião, outro: precisamos de uma frente democrática e
popular, reunindo movimentos sociais, partidos de esquerda, lideranças
democráticas, mundo da arte e da cultura. Os ensaios neste sentido ainda são
ensaios. Mas para que isto funcione, não basta o PT querer. É preciso que todos
queiram. E é preciso que não se exija do PT que peça perdão por existir.
Porque, vamos
combinar, se é justo (e eu acho que é) dizer que a resiliência de Ciro foi
fundamental para garantir segundo turno, também é justo dizer que a resiliência
do PT foi pelo menos igualmente fundamental.
E, considerando tudo que dizem e
fazem contra o PT, que tenhamos chegado até aqui mereceria pelo menos uma
palavra gentil.
Antonio Martins não é capaz disto, porque ele está tomado de um
antipetismo que o levará, se não tomar cuidado, por caminhos indesejados por
ele mesmo.
Dois últimos
comentários.
E acho fantástico o título “três semanas para interromper um funeral”.
É um incrível ato falho. Afinal, segundo nos explica o pai dos burros consultado, funeral é “o conjunto das
cerimônias de sepultamento”. Ou seja, interromper o funeral é interromper o
sepultamento de alguém que já estaria morto.
Isto posto, quero dizer para Antonio Martins que, parafraseando Mark Twain, “as notícias
sobre a morte do PT são manifestamente exageradas".
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POR
É possível evitar a
grande ameaça. A condição é corrigir os três erros grosseiros que levaram ao
desastre de ontem e abrir caminho para uma reinvenção da esquerda
Por Antonio
Martins
1.
É nas grandes
derrotas que se enxergam os problemas ocultados por “sucessos” ilusórios; e que
se abre caminho para o novo. As dimensões do retrocesso de ontem, primeiro
turno das eleições gerais, dificilmente poderiam ser mais dramáticas. O circo
de horrores que já é o Congresso Nacional será piorado por uma bancada de extrema-direita.
O antes pequenino PSL, de Bolsonaro, passará de 7 para 51 deputados. Expoentes
da arrogância desvairada, como os irmãos Bolsonaro e a advogada Janaína
Paschoal, Kim Kataguiri e Alexandre Frota receberam enxurradas de votos,
enquanto Eduardo Suplicy, Dilma Rousseff e Lindberg Farias naufragaram. Exceto
no Nordeste, a boia de salvação que evitou uma catástrofe, o que se chama até
agora de “esquerda” não governará estado algum. O PCdoB e a Rede, ficaram
abaixo da cláusula de barreira e perderão acesso à TV e recursos do Fundo
Partidário. E no entanto, o pior não se deu. Depois de ter perdido por um tris a chance de eleger-se
presidente no primeiro turno, Jair Bolsonaro estava abatido e soturno ontem à noite, ao
gravar um pronunciamento a seus eleitores. Serão 21 dias de enorme tensão, mas
derrotá-lo é possível, porque os resultados de ontem são uma aberração, fruto
de três erros grosseiros que é possível corrigir. Reparar estes equívocos – na
prática, com determinação e em curtíssimo prazo – será tarefa dificílima. Mas é
a única alternativa e, se concretizada com sucesso, permitirá trocar um funeral
pelas chances de reinvenção da esquerda.
2.
A recusa do PT a
uma frente antigolpe, fruto de um hegemonismo encruado e pueril, foi, em ordem
cronológica, o primeiro dos três erros bizarros cometidos – e que é possível
agora corrigir. Há seis meses, quando o cenário eleitoral se conformava, o
governo Temer era um farrapo político. A agenda de retrocessos deixava claro o
sentido da tomada do poder por uma coalizão conservadora, em 2016. As pesquisas
de opinião mostravam que vasta maioria da opinião pública rechaçava pontos
essenciais da agenda imposta após a derrubada do governo legítimo – como as
privatizações, a contrarreforma trabalhista e a tentativa de desmonte do
sistema da Previdência. Os dois principais símbolos do poder ilegítimo – o
presidente e o Congresso – eram apoiados por menos de 10% da população.
Propor, como
decorrência, uma frente antigolpe teria enorme poder simbólico e mobilizador.
Permitiria ampliar a repolitização que se esboçava, transformar a campanha
eleitoral numa oportunidade para convocar as ruas, colocar na defensiva os
políticos conservadores e o poder econômico neoliberal. Mas, como ocorre com
todas as frentes, implicava não ter certeza sobre seu comando. Lula seria o
candidato natural a disputar a presidência. Mas diante de seu impedimento, a
condição era incerta. Líderes históricos do PT, como o agora senador Jacques
Wagner, propuseram que o partido cedesse o lugar Ciro Gomes, que somava
consistência política e forte apelo eleitoral.
O medo de perder o
protagonismo levou o PT a sabotar a possibilidade. Ao longo dos meses seguintes
a ideia de uma frente antigolpe (que o PCdoB enunciou, mas da qual abriu mão
rapidamente) foi não apenas esquecida, mas ativamente sabotada. O comando
petista trabalhou com empenho para impedir que Ciro se articulasse com setores
do “centrão” e, em seguida, até mesmo para que ele tivesse apoio do PSB. Esta
ação tirou-lhe tempo de TV e palanque nos Estados. Cada manobra era celebrada
por parte dos petistas, nas redes sociais, como sinal de sabedoria política. Os
pretextos apresentados são risíveis. Ciro não teria comparecido a São Bernardo
do Campo, nos dias que antecederam a prisão de Lula… como se as decisões
políticas pudessem ser guiadas pelo cumprimento das regras de boas maneiras.
Foi apenas graças à resiliência impressionante do candidato do PDT, ao longo da
campanha, que a sabotagem não permitiu a Bolsonaro liquidar a disputa
presidencial já no primeiro turno.
3.
O segundo erro
grosseiro está inteiramente articulado com o anterior. Para inviabilizar uma
frente antigolpe, que teria dado à disputa eleitoral feição totalmente
distinta, o PT tentou reduzir o pleito a um plebiscito sobre o legado de Lula.
Ao fazê-lo, esqueceu-se do próprio sentido de ser da esquerda e voltou o debate
político para a exaltação passado, ao invés de projetá-lo para as
possibilidades do futuro.
A rememoração das
conquistas do passado até fazia sentido, como ponto de partida. Milhões de
eleitores se emocionaram com as imagens que comparavam a melhora das condições
de vida, na era Lula, com as portas de aço do comércio se fechando agora, sinal
da recessão. Mas o que poderia ter durado três dias, quiçá uma semana,
prolongou-se por um longo mês, como se o candidato nada tivesse, ele mesmo, a
dizer.
A recusa a assumir
propostas concretas corresponde a um velho cacoete petista: obter, via
eleições, um cheque em branco da população; acomodar-se com as deformações do
sistema institucional brasileiro, sem jamais ousar propor uma Reforma Política;
negociar a governabilidade do presidente em parceria com as maiorias
parlamentares que resultam destas deformações; e realizar, nestas condições, as
“reformas fracas” (para usar expressão de André Singer) que tais acordos
permitirem. Desta vez, porém, o primeiro efeito foi reacender e intensificar o
antipetismo. Fernando Haddad era, de fato, apenas um poste? Ao
votar no candidato, a população estaria transferindo sua vontade política a um
partido que muitos veem – correta ou incorretamente, não importa – como uma
máquina de aparelhamento do Estado?
4.
Mas a pior
consequência de uma campanha Haddad voltada ao passado e à saudade foi dar a
Jair Bolsonaro condições de vestir a máscara do antissitema. Paralisado, o
candidato do PT foi incapaz de desafiar a casta política, suas ações e suas misérias.
A direita tradicional, umbilicalmente ligada a Temer, ao Congresso e ao golpe,
evidentemente não poderia fazê-lo. Todo o imenso espaço político da contestação
a uma “democracia” que empobrece e humilha a maior pare dos brasileiros caiu no
colo do ex-capitão.
O caráter grotesco
desta apropriação basta para demonstrar a estupidez da tática que prevaleceu
entre a esquerda. Jair Bolsonaro integra o partido que seguiu de modo mais
canino as orientações de Michel Temer. Seu programa expressa a adesão mais
completa ao programa das grandes corporações. Seus vínculos com a casta
política e seus métodos odiados são tão profundos que ele não se envergonha de
reconhecer que se beneficia de verba pública para receber auxílio-moradia
superior a R$ 4 mil, possuindo imóvel próprio, e de alardear que usou dinheiro
do contribuinte para “comer gente”. A este personagem deprimente, permitiu-se
que aparecesse com o rótulo de “antissistema”…
Foi esta a
chave para sua vitória no primeiro turno. Dentre os que votaram em Bolsonaro,
há uma enorme maioria de não-fascistas. São, porém, eleitores muito descrentes
das instituições, da possibilidade de que estas assegurem os direitos
estabelecidos na Constituição, e, mais ainda, de que estabeleçam novas
garantias e conquistas. São pessoas ressentidas com uma elite supostamente
bem-pensante, mas que cuida apenas de seus próprios interesses e não se importa
com a degradação geral do país, desde que se mantenha acima da linha da
barbárie. Este imenso contingente de eleitores, que deu vitória a Trump nos
Estados Unidos e promoveu o Brexit no Reino Unido, foi, no Brasil, entregue ao
candidato fascista quando a esquerda abriu mão da chance de encarnar ela
própria a oposição ao sistema; voltou-se apenas ao passado; e se recusou a
oferecer, no futuro, uma perspectiva de direitos e igualdade.
5.
O caminho para
evitar a conquista do aparato de Estado pelo fascismo, e para abrir espaço a
uma nova esquerda, começa por enfrentar este último erro gravíssimo. Para que
tenha alguma chance, Fernando Haddad precisa produzir, o mais rápido possível,
uma virada na campanha; um fato político novo que impeça Jair
Bolsonaro de continuar ostentando a máscara antissistema.
Uma forma
concretíssima de fazê-lo seria apresentar, nos próximos dias ou horas, um conjunto
de dez propostas muito concretas e claras, que dialoguem com as dificuldades
concretas vividas pela população após o golpe e que seu adversário não possa
responder – devido a seus compromissos com o poder econômico, o programa
neoliberal de seu guru Paulo Guedes ou as máfias parlamentares.
O conjunto pode
incluir, por exemplo: a) a retomada da política de valorização real do salário
mínimo e da bolsa-família, interrompido por Temer; b) a revogação da Emenda
Constitucional 95 e um plano de reforço financeiro ao SUS e de reinício da
expansão das universidades federais; c) a renegociação da dívida das dezenas de
milhões de brasileiros que se encontram negativados no SPC, como proposto por
Ciro Gomes; d) os primeiros passos de uma Reforma Tributária, com a isenção de
Imposto de Renda para salários até cinco mínimos, taxação dos lucros,
dividendos e grandes fortunas; e) a revogação dos leilões de entrega do Pré-Sal
a petroleiras estrangeiras; f) o reinício das demarcações das terras indígenas
e quilombolas e a volta de critérios sérios para licenciamento das obras de
infraestrutura, como querem Marina Silva e os ambientalistas; g) a revisão dos
privilégios odiosos de que desfrutam os parlamentares e juízes, tais como
auxílio-moradia, as férias longuíssimas, as diárias polpudas, o subsídio a
Saúde e Educação privadas; h) uma Reforma Agrária que implique, além da
concessão de lotes aos sem-terra, a revisão do modelo agrícola com ênfase no
cooperativismo, na policultura, no orgânico e na limitação do uso de venenos.
Medidas como estas
permitem reparar o segundo erro catastrófico cometido até agora: o de voltar a
campanha para o passado. Propostas de maneira enfática no programa eleitoral,
nas ruas, nas entrevistas à imprensa e nos debates, estas medidas são a melhor
fórmula para chamar Bolsonaro ao debate político, do qual ele tenta a todo
custo se esvair. Reproduzidas de maneira popular, difundidas nas ruas e nas
redes, criarão um constrangimento ao ex-capitão. Seu programa de
ultraliberalismo o impede de concordar com elas; sua vinculação com os setores
mais fisiológicos da casta política, também. Mas como dizê-lo, sem despir a
máscara de antissistema que tanto o beneficia?
6.
A correção dos dois
primeiros erros políticos permite tocar num terceiro: a tendência do PT ao
hegemonismo. Fernando Haddad precisaria acenar desde já, e sem rodeios, para a
composição de um governo plural. Não significa “chamar o Meirelles”, ou
ventilar um ministro da Fazenda que corteje a aristocracia financeira. Isso não
traria voto algum e permitiria a Bolsonaro identificar seu oponente com o
sistema – ou, ao menos, neutralizar o desgaste que pode sofrer ao manter a seu
lado um banqueiro neoliberal como Paulo Guedes.
Trata-se, ao
contrário, de acenar com uma espécie de “geringonça brasileira”, de coalizão
firme entre os partidos de esquerda e centro-esquerda, capaz de indicar
claramente um novo rumo. Implica convidar Ciro Gomes para que,
num ministério do Planejamento reforçado (inclusive com o BNDES), articule o
enorme esforço de reflexão necessário para desenhar e começar a aplicar um novo
projeto de desenvolvimento. Significa convocar desde já gente como Guilherme
Boulos e Ermínia Maricato, e sugerir-lhes que construam um
programa pelo Direito à Cidade, contra a ditadura do automóvel e a especulação
imobiliária. Equivale a reinserir no governo as correntes ambientalistas
que Marina Silva em certo momento representou. Inclui lançar
acenos ao setor democrático que ainda resta no PSDB, convocando por
exemplo Bresser Pereira para a formulação macroeconômica
ou Paulo Sérgio Pinheiro (que atuou nos governos FHC) para a
política de Justiça e Direitos Humanos. Envolve desenvolver políticas de
Segurança Pública, retomando um esforço que a esquerda abandonou e
restabelecendo a colaboração com formuladores como Luiz Eduardo Soares ou Ibis
Pereira.
7.
Compromissos claros
com propostas de futuro. Abertura para um governo compartilhado com outras
forças democráticas. Uma postura assim criaria um conjunto de fatos novos na
eleição. Permitiria retomar as ruas, acenando não apenas aos que já apoiam
Haddad, mas aos que se mobilizaram por Ciro, Boulos e Marina. Dialogaria, em
especial, com os movimentos (os feminismos, o antirracismo, os sindicatos, o
ambientalismo e tantos outros) e coletivos que, agindo autonomamente, tornaram
possível, por exemplo, as gigantescas manifestações #elenão, em todo o país.
Mudaria o cenário de uma eleição até agora fúnebre. Seria suficiente para a
vitória? É impossível assegurar – mas certamente prepararia e vertebraria a
resistência, em caso de vitória de Bolsonaro.
Seria uma ruptura
nítida com o que o petismo significou até agora – em especial em sua fase
governista. Abriria caminho para uma renovação da esquerda. É algo possível –
como mostra, por exemplo, a transformação que Jeremy Corbyn lidera, há dois
anos, no Partido Trabalhista inglês.
Fernando Haddad estará à altura de
algo semelhante? Ou sucumbirá, sem nada criar, ao destino que hoje parece o
mais provável?