Entre os que valorizam as experiências dos governos
progressistas e de esquerda iniciada em 1998, existem diferentes
pontos de vista, que dizem respeito não apenas às estratégias passadas, mas
também à qual deva ser a estratégia no período em que estamos e futuramente.
Estas diferentes visões às vezes são expressas num mesmo vocabulário (as
pessoas concordam quanto ao significado das categorias, conceitos e termos, mas
discordam no mérito), outras vezes são expressas através de vocabulários
distintos, em que uma mesma palavra ganha significados distintos ou
simplesmente não é adotada.
Neste texto entendemos “estratégia” com base no significado
originalmente militar da palavra, a saber: o conjunto de ações que
tem como propósito ganhar uma guerra.
Uma guerra é composta de várias batalhas. O conjunto de ações que tem
como propósito ganhar uma batalha é o que denominamos de tática.
O termo estratégia exige, portanto, uma definição preliminar: de
que “guerra” estamos falando?
Responder a esta questão implica em definir inimigos, aliados e
objetivos estratégicos.
No nosso caso, a “guerra” de que falamos é a luta entre a classe dos
trabalhadores assalariados e a classe dos empresários capitalistas.
Considero legítimo falar de “guerra”, não tanto para destacar o caráter
violento da luta, mas principalmente para acentuar o componente de dominação
envolvido no processo e para deixar claro que se pretende alterar a
relação fundamental entre as partes.
Embora capitalistas e assalariados existam há mais tempo, foi nos
séculos 19 e 20 que foi crescentemente predominando, no interior de cada país e
no conjunto do mundo, um tipo de sociedade baseado nas relações de produção entre
aquelas duas classes.
Hoje o chamado capitalismo é dominante, em escala local e global.
Evidentemente, nem o capitalismo é determinado apenas pela relação entre
capitalistas e assalariados; nem os destinos de cada sociedade e do mundo são
determinados apenas pelos rumos do capitalismo.
Mas ambos os fenômenos (capitalismo, luta de classes entre capitalistas
e trabalhadores) são variáveis fundamentais para compreender o conjunto dos
conflitos sociais dentro de cada país e o conjunto dos conflitos
internacionais.
Por isto escolhemos falar de uma classe determinada, ao invés de adotar
expressões como “o povo”, “os explorados”, “os oprimidos” ou “os excluídos”.
Tais categorias genéricas expressam fenômenos reais e tem utilidade analítica e
na retórica política, mas não seriam adequadas neste momento da exposição: o de
precisar o conteúdo das definições estratégicas mais gerais.
Portanto, compreendemos estratégia como o conjunto de ações
que a classe dos trabalhadores assalariados desenvolve para ganhar a guerra que
trava contra a classe dos capitalistas.
A classe dos trabalhadores assalariados não é homogênea: sua formação
(no duplo sentido: sua história e sua composição) varia de região para região,
e varia de época para época.
Em cada momento dado, há ao mesmo tempo diferentes classes trabalhadoras
assalariadas convivendo, assim como diferentes frações da classe trabalhadora
assalariada convivendo.
Isto pode ser nítido em âmbito internacional (os trabalhadores
assalariados do Brasil vis a vis os trabalhadores assalariados de outros países);
mas também ocorre em plano nacional, o que nem sempre é devidamente considerado.
A saber: a classe trabalhadora assalariada brasileira possui diferentes
“frações” internas, em função de fatores “objetivos” como a região, a idade, o
sexo, o ramo de atividade; e em função de fatores “subjetivos” como a
experiência adquirida na própria luta de classe.
Na prática, isto significa que quando nos referimos à “estratégia da
classe dos trabalhadores assalariados”, estamos nos referindo à estratégia que
defendemos deva ser assumida e praticada por esta classe, mas que nunca é a
estratégia de todos os integrantes da classe, pois sempre haverá diferenças no
interior da classe que resultarão em diferentes posições políticas, portanto
diferentes estratégias.
A mais geral destas diferenças políticas existentes no interior da
classe dos trabalhadores assalariados consiste no seguinte: em todo momento, o
conjunto da classe está submetida à exploração, mas apenas uma parte da classe
reage coletivamente a isto.
Quando ocorre, a reação coletiva pode ter dois propósitos fundamentais:
o de melhorar as condições de vida da classe, nos marcos do capitalismo; e/ou o
de “mudar de vida”, superando o capitalismo.
Ambos os propósitos (“melhorar a vida” ou “mudar de vida”) exigem
enfrentar o capitalismo. Os dois propósitos podem ser apresentados sob a forma
de raciocínios estratégicos, que historicamente foram denominados como
“estratégia reformista” e “estratégia revolucionária”.
Neste caso, a
denominação -- “reformista”, “revolucionário” -- diz respeito ao objetivo
final que se persegue, não aos caminhos utilizados.
É por isto que – na prática histórica – vemos pessoas que se definem
como revolucionárias dedicando a maior parte do seu tempo militante à educação
política, à luta sindical, à atividade parlamentar ou governamental.
E vemos, também, pessoas que se definem como reformistas envolvidas em
guerrilhas, guerras de libertação nacional e outros tipos de mobilizações
sociais e politicas extremamente radicais.
Há, no interior da classe trabalhadora, vários pontos de vista, vários
objetivos estratégicos, portanto várias estratégias.
Estas estratégicas desdobram-se, em alguns casos, em alianças com outras
classes. Por exemplo, alianças estratégicas com setores que mantém conflitos
com o capitalismo, como é o caso dos trabalhadores que são pequenos
proprietários, urbanos ou rurais, entre os quais também há quem se proponha
enfrentar o capitalismo, seja para conviver com ele em melhores condições, seja
para superá-lo.
Em tese, estas variadas estratégias podem ser concorrentes, mas não
precisam ser inimigas, uma vez são estratégias adotadas por diferentes frações
da classe dos trabalhadores assalariados.
Na prática, entretanto, ocorrem situações em que o conflito entre
diferentes estratégias transforma-se num conflito frontal. É o caso, por
exemplo, quando determinada estratégia conduz a alianças estratégicas com a
classe dominante.
Os componentes de uma estratégia
Sendo estratégia o nome que damos para o conjunto de ações
que a classe dos trabalhadores assalariados deve desenvolver para superar o
capitalismo, então estas ações podem ser definidas como basicamente
três: estudar, organizar e lutar.
O “estudar” significa fundamentalmente compreender o
funcionamento do capitalismo e o que entendemos por
superar o capitalismo.
Consideramos que este é o aspecto fundamental do debate estratégico.
A superação do capitalismo exige uma reorganização social profunda,
tendo como aspecto fundamental fazer com que os que produzem a
riqueza social decidam como produzir, o que produzir e como distribuir esta
riqueza social. É isto que entendemos por socialismo e, portanto,
quando nos referimos a superar o capitalismo estamos falando de construir o
socialismo.
Aceita esta premissa, então estratégia é o nome que damos para o
conjunto de ações que a classe dos trabalhadores assalariados deve desenvolver
para construir o socialismo.
Fica clara, nesta definição, que existe uma distinção formal entre o objetivo
final (construir o socialismo) e a estratégia
propriamente dita (o conjunto de ações).
Falamos de distinção formal, porque evidentemente há uma relação entre
meios e fins.
No que diz respeito ao objetivo final, ele pode ser entendido de duas
maneiras diferentes: 1) “construir o socialismo” como dar início à construção do
socialismo; 2) “construir o socialismo” como construir uma sociedade
socialista plena, portanto, superar completamente o capitalismo.
Esta distinção pode ser apresentada de duas maneiras, nos seguintes
termos: 1) transição ao socialismo e socialismo; 2) transição socialista e comunismo.
Pensar a estratégia tendo como objetivo final uma sociedade socialista
plena (aquilo que na tradição marxista classe se denomina comunismo) nos
colocaria diante do seguinte desafio: imaginar um processo em escala mundial,
com a duração de várias décadas ou séculos.
Como isto seria tão genérico quanto não operacional, preferimos pensar a
estratégia tendo como objetivo final iniciar a construção do socialismo
(ou, noutros termos, iniciar a transição socialista).
Portanto, entendemos por estratégia o conjunto de ações que a
classe dos trabalhadores assalariados deve desenvolver para iniciar a
construção do socialismo. Ou, dito de outra forma: para poder dar
início à transição socialista.
O que significa “construção do socialismo”?
Alguns compreendem que a construção do socialismo começa quando um
trabalhador adere à sua organização coletiva de classe, quando a classe
trabalhadora cria e fortalece estas organizações, quando a classe trabalhadora
consegue vitórias concretas na luta contra os capitalistas, vitórias que podem
ser econômicas, políticas, sociais, ideológicas, no plano nacional, regional ou
mundial.
Outros compreendem que a construção do socialismo supõe não apenas estas
atitudes e conquistas parciais, nos marcos do domínio capitalista, mas também
alterações mais profundas, que só são possíveis quando parcelas fundamentais da
vida social passem a ser controladas pela classe trabalhadora. O que supõe, em
maior ou menor medida, que a classe trabalhadora detenha um poder econômico e
político equivalente ao que hoje constitui monopólio da classe capitalista.
A rigor, a diferença fundamental entre estas duas abordagens reside no
tema do chamado poder de Estado. O que implica discutir a
força política relativa entre as classes sociais.
O poder é uma relação de força, portanto nenhuma classe ou setor de
classe detém todo o poder. Mas na maior parte do tempo, na maior parte das
sociedades, o poder é distribuído de maneira desigual entre os diferentes
setores sociais.
Detém o poder de Estado as classes ou setores de classe que controlam um
conjunto de mecanismos (produtivos, militares, comunicacionais, legislativos,
executivos, nacionais e internacionais) que permitem a estes setores manter
e/ou definir o rumo geral de funcionamento de uma dada sociedade.
Por exemplo: no Brasil, no dia 18 de agosto de 2016, a classe dos
capitalistas controla direta ou indiretamente o governo federal, a maior parte
dos governos estaduais e municipais, a maioria dos parlamentos em todos os
níveis, a maior parte do judiciário, a maior parte das polícias e forças
armadas, a maior parte das empresas privadas e também das empresas estatais, a
maior parte dos meios de comunicação, da indústria cultural e educacional.
Para construir o socialismo, a classe trabalhadora necessita do poder
necessário para alterar o funcionamento da sociedade. Isto supõe ampliar o
poder da classe trabalhadora e reduzir o poder da classe dos capitalistas.
Neste processo de ampliação/redução, há um momento fundamental: quando os
trabalhadores adquirem poder suficiente para manter e/ou definir o rumo geral
de funcionamento de uma sociedade. Quando chegamos neste momento, falamos que a
classe trabalhadora passou a deter o “poder de Estado”.
Por isto, ter o “poder de Estado” é um indicador fundamental, uma preliminar
para a construção do socialismo.
Por isto, podemos definir estratégia como o conjunto de ações
que a classe dos trabalhadores assalariados deve desenvolver para ter o poder
de Estado e iniciar a construção do socialismo.
Esta definição permite compreender (no sentido de “incluir no contexto”
e “dar significado”) o conjunto de ações que a classe dos trabalhadores
assalariados desenvolveu, nos diferentes países do mundo, ao longo dos séculos
19 e 20, bem como ao longo dos primeiros 16 anos do terceiro milênio, para construir suas
condições de poder (o que pode incluir tanto auto-organização quanto ocupação
de espaços no Estado) e/ou para conquistar o poder
revolucionariamente (organizando-se para derrotar o Estado vigente e construir
outro), assim como as várias situações híbridas e intermediárias de que a
história está feita.
Aqui vale retomar um assunto que provoca seguidas confusões: o duplo
sentido com o qual se utiliza, no debate estratégico, os termos “reformista” e
“revolucionário”.
Já dissemos antes que estes termos podem ser utilizados para definir o
objetivo final (“melhorar a vida” ou “mudar de vida”, capitalismo ou
socialismo). Já dissemos, também, que na prática histórica os que buscaram
estes diferentes objetivos muitas vezes trilharam os mesmos caminhos e
utilizaram os mesmos métodos. Portanto, tivemos revolucionários extremamente
moderados e reformistas extremamente radicais no que diz respeito às
formas de luta.
Ocorre que os termos “reformista” e “revolucionário” também são
utilizados para designar diferentes formas de conquistar o poder de Estado.
Neste caso, chama-se geralmente de “reformista” quem defende conquistar
o poder de Estado, ocupando espaços no seu interior (por exemplo, disputando
eleições, mas também organizando a classe trabalhadora e seus aliados para
pressionar e obter conquistas frente ao Estado capitalista).
E chama-se geralmente de “revolucionário” quem, participando ou não das
eleições e das lutas cotidianas da classe, considera que o “problema do poder”
só será resolvido através da destruição do Estado burguês e sua substituição
por outro de natureza distinta.
Devido a este duplo sentido, há correntes políticas e ideológicas que se
consideram como “reformistas revolucionárias”, ou seja, defendem que lutemos através
de meios reformistas para atingir um objetivo revolucionário.
Vejamos a seguir qual a implicação – na estratégia -- das diferentes
visões acerca de como lidar com o poder de Estado.
Já dissemos que estratégia é o conjunto de ações que a classe
dos trabalhadores assalariados deve desenvolver para ter o poder de Estado e
iniciar a construção do socialismo.
Nesta definição, ter o poder de Estado é uma preliminar. Como fazer
isto é a questão a ser respondida.
Para os que adotam uma resposta “reformista”, o como resulta
da acumulação progressiva de forças, que num determinado momento resultará em
que a classe trabalhadora detenha mais poder que a classe capitalista.
Não há, nesta visão acerca do processo, um momento fundamental,
transcendental, um ponto de ruptura. Podem até haver vários momentos de embates
profundos, de recuos e de avanços; mas o que predomina é a noção do acúmulo
progressivo.
Para os que adotam uma resposta “revolucionária”, a acumulação de forças
inclui dois momentos combinados, porém qualitativamente distintos. Um deles é o
de acúmulo progressivo de forças; mas quanto este acúmulo de forças chega
próximo de dotar a classe trabalhadora do poder de Estado, inaugura-se um novo
momento, uma nova etapa.
Neste momento/etapa, ou bem a classe trabalhadora conquista o poder, ou
bem ocorrerá um retrocesso na acumulação de forças.
Nesta visão, a conquista do poder não resulta de um acúmulo “gradual”,
mas sim de um salto, de uma ruptura, de uma mudança qualitativa.
Destas duas respostas decorrem diferentes implicações práticas e também
conceituais.
Para os “revolucionários”, a estratégia deve responder a duas questões:
quais as maneiras de acumular forças e quais as maneiras de conquistar o poder.
Já para os “reformistas”, a estratégia deve responder a uma única questão, pois
a maneira de acumular forças também é a maneira pela qual se consegue ter o poder.
Em alguns textos debatidos pelo Partido dos Trabalhadores nos anos 1980,
isto foi apresentado da seguinte forma: para os revolucionários, o poder deve
ser construído, mas também deve ser conquistado. Já para os reformistas, o
poder apenas se constrói (não existindo um momento especial onde se “toma” o
poder, quando se “assalta o Palácio de Inverno”).
Ao longo dos últimos 200 anos, em diferentes países do mundo a classe
trabalhadora construiu uma “modalidade” reformista e três “modalidades”
revolucionárias para tentar resolver o problema do poder.
A modalidade reformista foi uma combinação entre a organização da classe
(sindicatos, partidos, organizações populares diversas, e suas respectivas
alianças) e a conquista de espaços institucionais (executivos, legislativos,
democratização de outros aparatos de Estado).
Em nenhum país esta modalidade reformista de lidar com o problema do
poder resultou na/permitiu a construção do socialismo. Porém, em diversos
países esta modalidade reformista resultou na/permitiu a construção de melhores
condições de vida nos marcos do capitalismo.
Vale lembrar, entretanto, que a classe dominante destes países
geralmente se beneficiava da exploração imperialista sobre outros povos, o que
permitiu/facilitou concessões à sua própria classe trabalhadora. Donde resulta
um questionamento acerca de como se combinaram -- para viabilizar a melhoria
citada nas condições de vida nos marcos do capitalismo -- a luta por reformas e
a “gordura” disponível para a classe dominante.
Já as três modalidades revolucionárias foram: a insurreição urbana, a guerra (guerra
de guerrilhas, guerra popular prolongada, guerra de libertação nacional, guerra
de ocupação) e a “via chilena para o socialismo”.
Exceto o caso da Revolução Russa de 1917, todas as demais experiências
de construção do socialismo tiveram início na conquista do poder através de
guerras. E mesmo a experiência de 1917 ocorreu em meio a uma guerra mundial e
incluiu, depois da revolução, uma sangrenta guerra civil. Fatos que marcaram
profundamente as características das respectivas tentativas de construção do socialismo.
É importante, por outro lado, notar que a “via chilena” para o
socialismo não resultou na construção do socialismo em nenhum dos países em que
foi tentada.
A “via chilena” para o socialismo
A “via chilena”, como o nome sugere, foi elaborada e experimentada no
Chile, especialmente no período de governo da Unidade Popular (1970-1973).
Deixemos de lado as características especificamente chilenas e nos
concentremos no que é proposto por esta modalidade estratégica, enquanto
solução para o problema do poder: a ideia central é utilizar os mecanismos de
construção do poder (modalidade “reformista”), para possibilitar a conquista do
poder (modalidade “revolucionária”).
Dito de outra forma, fazer da disputa e da conquista
eleitoral de governos uma parte fundamental da disputa e da conquista do poder.
Os defensores da “via chilena” pretendiam, desta forma, resolver um
problema que provavelmente angustiou e segue angustiando muitos dos que se
pretendem revolucionários: como agir, do ponto de vista estratégico, em
sociedades ou em momentos históricos em que não estão ocorrendo, nem estão no
horizonte visível, processos revolucionários, crises revolucionárias,
revoluções.
A “via chilena” oferecia, em tese, a seguinte resposta: utilizar a
maioria eleitoral para viabilizar uma presença nos governos, governos que
protagonizariam mudanças tanto de ordem econômico-social quanto de ordem
política, mudanças que ao fim e ao cabo alterariam a natureza capitalista do
Estado e da sociedade.
Obviamente, os defensores da “via chilena” tinham consciência de que a
implementação desta estratégia provocaria uma reação por parte dos
capitalistas: a oposição, a sabotagem e no limite o golpe de Estado. Portanto,
uma questão implícita era como criar as condições para que esta reação não
tivesse êxito.
Uma primeira resposta era obter maiorias eleitorais, que permitisse
controlar os órgãos executivos e legislativos, a partir dos quais se promoveria
a democratização dos demais órgãos de Estado e/ou a convocação de processos
constituintes, que no limite permitiriam substituir, a partir de processos
eleitorais, o Estado capitalista por um Estado popular.
Uma segunda resposta era neutralizar os instrumentos que a classe
capitalista utiliza para fazer oposição, sabotar e dar golpes: o controle da
economia, o controle dos meios de comunicação e o controle das forças armadas.
Isto se traduzia na ampliação da presença do Estado na economia, na quebra do
controle capitalista sobre os meios de comunicação e na submissão das forças
armadas ao controle democrático.
Este aspecto teve grande importância no caso chileno, onde uma parcela
da esquerda acreditou que as forças armadas chilenas seriam fieis a uma suposta
tradição legalista e não apoiariam um golpe. Ilusões semelhantes sobre as
forças armadas também estiveram presentes noutros países, inclusive no Brasil.
O tema das forças armadas teve particular importância no caso venezuelano.
Lembramos que uma parcela das forças armadas apoiou um golpe contra
Chávez, enquanto outra parcela apoiou a reação popular contra o golpe, forçando
os golpistas a recuar e tornando possível uma reforma na instituição militar,
reforma que ajuda a entender por quais motivos, pelo menos até este
momento,
predomine nas forças armadas venezuelanas o apoio ao governo
popular.
Tanto no caso venezuelano quanto no chileno, entretanto, a sabotagem
econômica foi fundamental para o êxito (parcial ou total) da reação
capitalista. O que remete para uma complexa discussão sobre a relação entre
economia nacional e internacional, Estado e mercado.
Uma terceira resposta a como criar as condições para que a reação
capitalista não tenha êxito consiste em defender a construção de um “poder
popular” paralelo ao poder de Estado e/ou complementar ao governo popular.
É importante perceber que todas as respostas citadas têm, entre seus efeitos,
o de acelerar a reação capitalista. Fato que nos remete para
uma das principais dificuldades "práticas" da “via chilena”: o tempo.
Numa guerra ou numa insurreição, a classe capitalista tende a perder
completamente, ou quase, seus instrumentos de poder. Já na “via chilena”, a
classe capitalista mantém parte importante, maior ou menor, de seus
instrumentos de poder. E utiliza estes instrumentos para fazer oposição,
sabotagem e no limite promover golpes.
A questão, portanto, é saber se os instrumentos que a classe
trabalhadora vai conquistando, adquirindo e construindo através da combinação
entre eleições e auto-organização serão capazes de deter a oposição, a
sabotagem e o golpe.
Trata-se de uma “corrida contra o tempo”, que assume a forma de uma
disputa política e ideológica – geralmente denominada de “disputa de hegemonia”
e/ou de "guerra de posições"-- muito mais complexa do que a existente
nos processos de guerra e de insurreição.
As noções de "guerra de posições" e de "guerra de
movimentos" remetem a formas diferentes de travar o combate militar entre
dois exércitos. A guerra de movimentos se expressa, por exemplo, nos ataques
velozes da cavalaria (animal ou blindada). Já a guerra de posições teve sua
expressão típica nas trincheiras e casamatas, com longas esperas e avanços
lentos.
O termo "disputa de hegemonia " -- muito utilizado por Antonio
Gramsci e antes dele pelos revolucionários russos -- corresponde a uma atitude
presente em todas as modalidades utilizadas pela classe trabalhadora, ao longo
dos últimos 200 anos, para tentar resolver o problema do poder.
A disputa de hegemonia não acontece apenas nos momentos “pacíficos”, mas
também nas guerras e nas insurreições, que são expressões concentradas da luta
política. Portanto, nelas também ocorre a disputa de hegemonia (no sentido de
influência, convencimento, “quem dirige quem”).
Mas nestes casos, quando a luta de classe chega ao estágio da “batalha
final” pelo poder de Estado, a busca do “convencimento” tende a tornar-se
secundária frente ao confronto direto de forças
Portanto, o tema da disputa de hegemonia tem maior relevância nos
momentos de acúmulo de forças “pacífico” – momentos prévios à “tomada do poder”
ou posteriores a ele, neste segundo caso como parte da consolidação da nova
ordem política e social.
Por decorrência, a modalidade "reformista" para tentar
resolver o tema do poder (ou seja, aquilo que estamos chamando aqui de “via
chilena”), modalidade que pode ser apresentada como um processo mais ou menos
contínuo de acúmulo de forças, é aquela onde o tema da disputa de hegemonia tem
mais importância.
O ambiente em que as estratégias operam
Ao longo deste texto, utilizamos o termo estratégia em um duplo sentido:
como uma formulação teórica e como uma prática social.
A estratégia como prática social designa o sentido geral da ação
implementada -- durante longos períodos de tempo -- pelas diferentes forças
sociais e políticas. Não apenas o discurso que produzem, mas o conjunto de atos
que cometem. De forma análoga, a tática como prática social designa o sentido
geral da ação implementada durante períodos de tempo mais curtos.
Já a estratégia como formulação teórica é o “plano de ação” formulado pelos
dirigentes das diferentes forças políticas e sociais.
Todos conhecem a piada: ao ouvir as detalhadas orientações do técnico de
futebol, orientações que sempre terminavam com drible e bola na rede, o craque perguntou se o técnico havia
combinado com os adversários.
Sempre tende a haver alguma diferença entre o projeto e a ação real.
Esta diferença pode ter várias causas, mas a principal delas é que a ação real
se desenvolve em combate com outras forças sociais e políticas, portanto em
choque com outras estratégias, das quais surge uma resultante que sempre tende
a diferir das intenções e propósitos originais.
Falando em tese, a melhor estratégia é aquela que considera – nas suas
formulações e projeções – as potenciais decorrências do choque com as demais
forças políticas e sociais.
Uma das maneiras de tentar prever estas potenciais
decorrências futuras é o estudo da história, embora esta não se
repita nunca, motivo pelo qual os “modelos” tendem a ser muito enganosos.
Outra das maneiras de considerar estas potenciais decorrências futuras é
tentar detectar quais as tendências mais gerais de um período. Estas tendências
resultam de choques anteriores, que definem o quadro geral, a superfície, o
ambiente em que se travam as batalhas do presente.
Alguns autores e dirigentes dão a este contexto estratégico o nome de etapa e
consideram que a análise da etapa define os limites mínimos e máximos que uma
estratégia pode obter. Por exemplo: num contexto histórico de bipolaridade
entre URSS e EUA, todos os processos nacionais eram levados a “posicionar-se”
em relação aos polos. O que por exemplo “empurrava” em direção ao socialismo
processos que em outro contexto poderiam ter outros desdobramentos.
Nos dias de hoje, por exemplo, as variáveis mais gerais podem ser
resumidas assim:
a) defensiva estratégica da classe trabalhadora;
b) hegemonia do capitalismo;
c) crise do capitalismo;
d) declínio da potência hegemônica;
e) ascensão de outros polos de poder (como os BRICS);
f) disputa entre diferentes vias de desenvolvimento capitalista;
g) formação de blocos regionais;
g) hegemonia do neoliberalismo em âmbito regional;
h) disputa entre diferentes modelos de desenvolvimento nacional e
regional;
i) vitórias eleitorais e forte protagonismo dos governos progressistas
até 2006;
j) desde então, crescente contraofensiva das forças conservadoras.
No âmbito de cada sociedade, as variáveis estratégicas fundamentais são
as classes sociais. Motivo pelo qual há uma relação entre a taxa de êxito de
uma estratégia e a análise das classes e da luta de classes na qual ela está
baseada, bem como das decorrentes políticas de aliança (lembrando sempre que no
fundo das alianças políticas, entre partidos e organizações, estão classes
sociais cujos interesses são expressos por aquelas respectivas organizações e
partidos).
Uma terceira maneira de considerar na análise estratégica as potenciais
decorrências futuras é considerar quais as principais estratégias
que estão interagindo.
Em cada momento da história, em cada região do mundo, há várias
estratégias operando e em disputa, no plano nacional, regional e mundial,
expressando os interesses de Estados, classes e frações de classe e seus respectivos
instrumentos políticos.
Algumas destas estratégias são mais influentes do que outras. Desde
1998, por exemplo, podemos citar:
*no plano mundial, as estratégias operadas pelos Estados Unidos,
Alemanha, China e Rússia;
*no plano regional, as estratégias operadas pelos Estados Unidos, Brasil
e Venezuela;
*no plano nacional, as estratégias operadas, respectivamente, pelo PT e
PSDB.
Cada uma destas estratégias correspondia/corresponde, no plano da luta
política, aos interesses de diferentes setores sociais. Interesses que no plano
internacional apresentam-se com forma e conteúdo distintos, como interesses de
diferentes Estados.
Ao levar em consideração a análise histórica, a análise das variáveis
estratégicas e a análise das estratégias em operação, tentamos reduzir a
distância entre o plano e o que vai efetivamente ocorrer.
A estratégia frente ao neoliberalismo dos anos 1990
Cada país da América Latina e Caribe tem sua própria história,
irredutível e única.
Mas quando consideramos a região como um todo, especialmente a América
do Sul, percebemos a incidência de algumas características que conformam um ambiente
estratégico, ao mesmo tempo produto
da luta passada e contexto da luta
presente entre as forças sociais e políticas, bem como da luta entre os
Estados.
Estas características podem ser resumidas assim: 1) toda a região foi,
durante vários séculos, colônia de metrópoles europeias e até hoje mantém uma
relação dependente e subordinada aos principais centros
econômicos do mundo; 2) embora tenha assumido diferentes formas, da escravidão
ao assalariamento, o processo de exploração do trabalho na região sempre foi
extremamente intenso, com a decorrente desigualdade social;
3) em decorrência da dependência e da desigualdade, as diferentes classes
dominantes existentes na região a partir da colonização buscaram sempre restringir ao
máximo a participação política e a auto-organização das classes dominadas; 4) como
decorrência das anteriores, o enfraquecimento da dominação externa ampliava as
possibilidades de desenvolvimento, igualdade e democracia na região, por
exemplo no período 1789-1815 (independências) e 1914-1945 (industrialização);
5) portanto, a irredutibilidade das histórias nacionais combina-se com a
existência de “ciclos regionais”, em que diversos países experimentam processos
com características similares, por exemplo o ciclo populista, o ciclo
ditatorial, o ciclo neoliberal e o ciclo de governos progressistas.
No ambiente estratégico dos anos 1990, a maioria dos partidos e
organizações de esquerda da América Latina e Caribe foi convergindo na prática
e também no plano das formulações para uma estratégia que consistia -- malgrado
profundas diferenças históricas, sociais, políticas e ideológicas -- em buscar melhorar
a vida do povo através de políticas públicas que seriam implementadas a partir
de espaços legislativos e executivos conquistados através de processos
eleitorais.
Tais políticas públicas foram de diferentes tipos
(universais/distributivas ou focalizadas/compensatórias) e implementadas com
diferentes graus de confronto, negociação e aliança com as “elites” locais e
com os “imperialismos”.
Em alguns casos, aquelas políticas públicas foram precedidas ou
acompanhadas de processos constituintes, que resultaram em reformas importantes
e foram acompanhadas de uma retórica radicalizada, embora de fato não tenham implicado em
revoluções (ou seja, na expropriação econômica e política da classe
dominante).
Noutros casos, aquelas políticas públicas foram implementadas sem
processos constituintes, sem nenhuma tentativa de reforma nas estruturas
políticas, sociais e econômicas, no Estado e na relação entre as forças sociais,
além de acompanhadas de uma retórica que se jactava de sua “moderação”.
Apesar destas múltiplas e importantes diferenças, havia um núcleo comum,
o que permite dizer que estávamos diante de variantes de uma mesma
estratégia. Este núcleo consistia, como já foi dito, na implementação
de políticas públicas a partir de posições conquistadas
através de processos eleitorais.
Neste aspecto, esta estratégia e cada uma de suas variantes eram todas
elas profundamente diferentes da estratégia adotada – para ficarmos só neste
exemplo – pelos que dirigiram a Revolução Cubana de 1959.
No caso cubano tivemos a conquista do poder (e não do governo), pela
luta armada (não pela via eleitoral), a partir da qual se introduziram não
apenas outras políticas públicas, mas sim transformações no padrão de
desenvolvimento vigente até então em Cuba, mudanças que incluíram da reforma
agrária à transição socialista.
Os protagonistas da estratégia acima descrita -- estratégia adotada
especialmente entre 1998 e 2016 pela maior parte da esquerda latino-americana e
caribenha -- talvez não estejam de acordo com esta definição, mas podemos dizer
que a estratégia adotada nesta região e momento constitui uma modalidade da
“via chilena para o socialismo”, ressalvada pelo menos uma importante diferença:
no Chile o tema do socialismo era destacado explicitamente tanto pelo
presidente Salvador Allende quanto pelos principais partidos que integravam a
Unidade Popular.
Sucesso e limites da estratégia
A estratégia de melhorar a vida do povo através de políticas
públicas, que seriam implementadas a partir dos espaços legislativos e executivos
conquistados através de processos eleitorais atingiu, durante
certo tempo, o objetivo central a que se propunha. A saber: a vida do povo
melhorou devido às políticas adotadas pelos chamados governos progressistas e
de esquerda.
Isto ocorreu, em maior ou menor grau, em diferentes países e governos,
nos quais se adotaram diversas variantes (“carnívoras” ou “vegetarianas”)
daquela estratégia comum.
Além do objetivo de melhorar a vida do povo, objetivo este presente em
todas as variantes da estratégia citada, outros objetivos podem ter sido mais
ou menos atingidos (integração regional, ampliação da democracia, ampliação da
propriedade pública, acúmulo de forças em direção ao socialismo etc.).
Noutros termos: se a história tivesse tido fim em 2010, apesar dos
limites e contradições, o saldo seria claramente positivo em favor daquela
estratégia.
Entretanto, a partir de um determinado momento -- que variou de país
para país -- mas que em todos os casos ocorreu depois da crise internacional de
2007-2008, naqueles países onde foi aplicada aquela estratégia de melhorar
a vida do povo através de políticas públicas implementadas a partir dos espaços
legislativos e executivos conquistados através de processos eleitorais passou
a ocorrer o seguinte:
1. A vida do povo passou a melhorar cada vez menos;
2. A vida do povo passou a melhorar cada vez mais lentamente;
3. Em seguida, a vida do povo começou a piorar;
4. Tudo isto aconteceu antes que se tenha conseguido recuperar os
padrões de vida médios existentes antes da onda neoliberal;
5. Caiu a adesão popular às lideranças, partidos e governos que
implementavam aquelas políticas públicas;
6. O refluxo do apoio popular, somado à oposição dos que se contrapunham
àquelas políticas públicas, alterou a correlação de forças política nos espaços
legislativos e/ou executivos, possibilitando o regresso das forças políticas e
sociais que se opunham àquelas políticas públicas e à melhoria das condições de
vida do povo;
7. O regresso da antiga oposição é marcado não apenas por um retrocesso
social, mas também por um retrocesso econômico e por um retrocesso político
cujos limites e consequências ainda não estão totalmente claros.
Esgotamento da estratégia ou simples alternância?
Considerando a cronologia dos eventos, pode ser dito que os chamados
governos progressistas e de esquerda não conseguiram resolver os problemas
criados a partir da crise internacional de 2007-2008, especialmente aqueles
ligados a deterioração dos preços das commodities,
à dependência financeira e comercial, à força dos oligopólios – especialmente
estrangeiros – vis a vis o enfraquecimento das empresas estatais.
Entretanto, também pode ser dito que a incapacidade acima referida não é
apenas a causa, mas também a consequência de um conjunto de problemas que já
vinham se acumulando (fadiga de material, limites da estratégia adotada etc.),
incluindo nestes problemas políticas macroeconômicas que mantiveram a
predominância do setor agroexportador, o peso do setor financeiro etc.
A depender de como se compreenda o que foi descrito nos parágrafos
anteriores, a conclusão poderá ser uma das seguintes: 1) ou bem estamos diante
de uma derrota de natureza tática, devido a causas conjunturais e/ou erros
ocasionais; 2) ou bem estamos diante de uma derrota de natureza estratégica,
causada por mudanças nas condições estruturais nas sociedades e no mundo, bem
como por limites insuperáveis da própria estratégia.
Se estivermos diante de uma derrota tática (ou seja,
de uma derrota eleitoral das esquerdas), não se faz necessário alterar a
estratégia.
Mas se estivermos diante de algo mais profundo e mais grave do que uma
derrota eleitoral e tática, neste caso se coloca a necessidade de reavaliar a estratégia.
O fato de estarmos diante de algo mais profundo do que uma derrota
eleitoral e tática por si só não quer dizer que a estratégia adotada antes esteja
esgotada, superada, não seja adequada para o próximo período.
Para chegar a esta conclusão, de que se faria necessária uma nova
estratégia, distinta da adotada até agora, é necessário levar em consideração não
apenas o que ocorreu no período que se encerra, mas também as características do
período que se abre.
Sobre o que ocorreu no período que se encerra, há um aspecto destacado:
em que medida o sucesso da presente onda reacionária está vinculada aos limites
da própria estratégia adotada pela esquerda?
A este respeito, apontamos a seguir dois “efeitos colaterais” da própria
estratégia, mais exatamente consequências negativas decorrentes do seu
próprio sucesso:
1. Uma estratégia baseada apenas em políticas públicas tende a produzir
efeitos positivos decrescentes. Pois a base das políticas públicas é a
tributação, tributação que depende em última análise da rentabilidade do setor
privado, rentabilidade que tende a diminuir quando há uma elevação da
remuneração do trabalho, elevação da remuneração que tende a resultar – direta ou
indiretamente -- das políticas públicas. No caso dos países imperialistas, esta
dinâmica pode ser retardada devido à exploração de outras sociedades. Mas as
tentativas feitas pela socialdemocracia na Europa confirmam que mesmo nos
países centrais, o capitalismo suporta por algum tempo, mas não suporta por
muito tempo a ampliação do bem-estar e da democracia. Lá, assim como na América
Latina, podemos dizer que apenas com políticas públicas, sem reformas
que alterem a correlação de forças no interior do Estado, o padrão de
distribuição da riqueza e o modelo de desenvolvimento, não se
torna possível melhorar a vida do povo de maneira veloz, profunda e permanente;
2. Uma estratégia baseada em maiorias eleitorais tende, em parte pelos
motivos expostos acima, a produzir resultados eleitorais decrescentes. Devido
ao decréscimo na profundidade e na velocidade das mudanças, a partir de certo
momento cresce mais rápido o descontentamento do que a adesão; neste contexto,
a classe dominante tem maiores chances de organizar a reação, contando para
isto com os aparatos de poder que seguem em suas mãos.
Noutras palavras, uma estratégia que busca melhorar a vida do
povo através de políticas públicas implementadas a partir dos espaços
legislativos e executivos conquistados através de processos eleitorais, está
fortemente arriscada a perder estes mesmos espaços e, com isso, ver as
políticas públicas serem desmontadas antes que elas produzam efeitos de longa
duração. Como sabemos observando o conjunto das experiências de governos
progressistas latino-americanos, esta dinâmica também está presente -- embora
possa ser retardada -- naqueles casos em que houve processos constituintes, forte
participação popular e democrática no Estado, e/ou instrumentos estatais de forte
intervenção na produção econômica.
É importante perceber que os citados “efeitos colaterais” da estratégia,
consequências negativas decorrentes do seu próprio sucesso, atingiram e seguem
atingindo o conjunto da esquerda regional.
Seja onde foi adotada uma variante mais “confrontacionista”, seja onde
foi adotada uma variante mais “negociadora”, o processo desembocou na
deterioração das condições políticas, econômicas e sociais, em parte devido a
opções feitas pelos respectivos governos e seus apoiadores, em parte devido ao
fato da classe capitalista seguir controlando os meios econômicos e políticos,
assim como dispondo dos apoios internacionais necessários para reagir e criar a
deterioração citada, que por óbvio não se deu por combustão espontânea.
Em nenhum momento, é bom lembrar, as respectivas classes dominantes e
seus aliados internacionais abriram mão de utilizar um conjunto de instrumentos
econômicos e políticos para buscar deter e reverter a melhoria nas condições de
vida do povo. A reação adotou variadas formas, que foram da oposição
parlamentar até o golpe de Estado.
Que tenham mantido estes instrumentos sob seu controle não é um acaso,
nem uma concessão indevida, é uma consequência da própria estratégia adotada,
que em nenhuma hipótese previa a expropriação parcial
ou total de setores das classes dominantes.
Note-se que isto vale inclusive para os casos em que houve reformas
constitucionais: o fortalecimento dos instrumentos populares e democráticos de
intervenção econômica e política estatal convivia com a presença, maior ou
menor, dos instrumentos de poder político e econômico da classe dominante.
Se a análise anterior for correta, então a explicação fundamental para o
êxito da ofensiva reacionária reside na estratégia. Outros aspectos --como as
dificuldades sucessórias -- devem ser considerados, mas de forma subordinada.
Os países em que ainda existem governos progressistas não necessariamente
terão o mesmo destino daqueles onde a ofensiva reacionária teve pleno êxito.
Porém, aqueles governos progressistas passam agora a atuar num novo cenário
estratégico, tanto nacional quanto regional.
Já dissemos antes que uma das principais dificuldades "práticas"
da “via chilena” era o fator tempo. Pois bem: o fato de vários governos
progressistas terem existido ao mesmo tempo e terem se apoiado uns aos outros foi
um fator importante na extensão temporal destas experiências. Extensão que
poderia ser maior, se a integração tivesse sido mais veloz e mais efetiva.
A medida que a direita avança na Venezuela, Argentina e Brasil, podemos
dizer que estamos diante de uma contraofensiva reacionária,
conformando-se assim um novo ambiente estratégico na região e dentro de cada um
dos países.
A existência de um “eixo do mal” de governos reacionários e
conservadores terá maiores ou menores chances de êxito, a depender da respectiva
situação interna.
Defensiva estratégica
Quais as implicações estratégicas que podem ser extraídas desta
constatação? Entre as várias possíveis, destacaremos a seguir a "defensiva
estratégica".
Um período de defensiva não significa um período de passividade. Num
período de defensiva travam-se grandes lutas, se obtém vitórias e até avanços.
O que caracteriza um período como sendo de defensiva é o objetivo dele.
Num período de defensiva, nosso objetivo principal é defender as
conquistas antigas e recuperar o terreno perdido. Ou seja: os avanços parciais
visam recuperar o status quo ante, o que já tínhamos e agora perdemos.
A defensiva não dura para sempre. Uma situação de defensiva pode se
converter em uma situação de equilíbrio (relativo, como qualquer equilíbrio) e
este pode se converter numa situação de ofensiva estratégica.
O que permite a defensiva se converter em ofensiva é a mudança no estado
de ânimo da classe trabalhadora. E esta mudança ocorre em parte como reação à ação
dos inimigos e em parte por ação das diferentes vanguardas da classe, numa combinação
de elementos.
Evidente, se existe o propósito de criar as condições para sair de uma
situação de defensiva, então a ação das vanguardas deve ajudar a classe
trabalhadora a mudar seu estado de ânimo.
Para isto é preciso elaborar e saber diferenciar as propostas de curto,
médio e longo prazo. E para isto é preciso saber escolher muito bem as batalhas
que devem ser travadas em cada momento, levando em conta o ensinamento
implícito na famosa frase de Pinheiro Machado: “nem tão devagar que pareça afronta,
nem tão depressa que pareça medo".
E por isto é importante, especialmente porque estamos na defensiva, ser
o mais didático, paciente e correto no debate de ideias. Pois nos momentos de
defensiva, de recuo, de confusão, as forças inimigas ampliam sua influência
também no terreno das ideias.
Temas a debater
Portanto, além de debater a necessidade e o conteúdo de uma nova
estratégia, estamos chamados a debater quais as táticas adequadas para reagrupar
forças e retomar a ofensiva.
Trata-se, portanto, de reconhecer que entramos num período de defensiva
estratégia, que pode ser mais longo ou mais curto, com uma duração que depende
de um conjunto de variáveis, inclusive internacionais.
A conquista de maiorias eleitorais faz parte da disputa pelo poder, mas
não “resolve” a maior parte do “problema” do poder.
Em primeiro lugar, porque a classe dominante -- e seus partidos -- mantêm
seus direitos eleitorais e, portanto, minorias eleitorais mais ou menos
expressivas.
Além disso, há elementos de poder que não sofrem influência direta da
disputa eleitoral, tais como a ingerência externa, o poder econômico, o
oligopólio da mídia, o judiciário, as forças de segurança.
Embora não resolva o problema do poder, as vitórias eleitorais da
esquerda aguçam a disputa pelo poder, tornando mais violenta a disputa de
hegemonia cultural, comunicacional, ideológica, política e econômica.
Quando as forças reacionárias conseguem afastar a esquerda do governo
(seja pela via eleitoral ou do golpe, seja este clássico ou
jurídico-parlamentar), elas voltam dispostas a reduzir ao mínimo as
possibilidades de que a história se repita.
Inclusive porque as forças reacionárias aprenderam com as derrotas que
sofreram a partir de 1998; e também porque a situação do capitalismo as empurra
a adotar medidas para recompor rapidamente sua rentabilidade e controle,
medidas que só serão politicamente viáveis se forem acompanhadas de alterações
profundas na correlação de forças entre as classes; o que por sua vez as levará
a tentar fechar e colocar ferrolhos nas “portas” que permitiram à esquerda
acessar espaços executivos e legislativos, para implementar políticas públicas
que melhorassem a vida do povo.
Por tudo isso, a ofensiva reacionária não é apenas eleitoral: ela abre
um novo período estratégico, no qual a classe trabalhadora vive e viverá uma
situação tática mais difícil.
Reconhecer uma derrota estratégica implica, no caso, em reconhecer que
uma estratégia foi derrotada. Mas reconhecer a necessidade de uma nova
estratégia por si não reverte a derrota estratégica, não altera a correlação de
forças.
Noutras palavras, a correlação de forças atual impede o êxito parcial da
antiga estratégia; mas também dificulta a implementação de outras variantes
estratégicas, por exemplo aquelas baseadas em melhorar a vida do
povo através da combinação entre políticas públicas & reformas estruturais,
implementadas a partir da combinação entre a conquista de espaços legislativos
e executivos & a construção de uma hegemonia popular.
Neste emaranhado de variáveis, o aspecto ao qual devemos dar atenção principal
é o estado de ânimo, consciência, organização e mobilização das camadas
populares, especialmente da classe dos trabalhadores assalariados.
De maneira geral, faz-se necessário retomar a análise das classes
sociais, de seus interesses de médio e longo prazo, de como eles se articulam e
conflitam entre si, conformando diferentes padrões de desenvolvimento em âmbito
nacional, regional e mundial, diferentes níveis da realidade que mantém
inter-relação.
Além disso, faz-se necessário debater:
1) como travar a disputa pelo "poder econômico"?
2) como disputar a hegemonia ideológica sobre a sociedade?
3) qual a dimensão estratégica da luta contra a corrupção?
4) quais são as indispensáveis reformas democráticas no âmbito econômico, social, cultural e político?
Quando saímos do plano nacional e passamos a análise do plano regional,
a questão pode ser posta da seguinte forma: sem integração regional, não é
possível melhorar a vida do povo de maneira profunda, veloz e permanente.
Entretanto, qual padrão de integração regional é necessário, se falamos
em processos de mudança mais profundos, mais velozes e mais duradouros? Por
exemplo: como articular a integração entre Estados e a integração entre os
setores sociais comprometidos com os projetos de transformação?
Quando saímos do plano regional e passamos à análise do plano mundial, a
questão pode ser posta assim: como o processo de transformações nacionais e de
integração regional se articula com a “guerra” mundial entre diferentes
projetos de desenvolvimento?
Finalmente, é preciso investigar quais as decorrências da defensiva
estratégica sobre as organizações da classe, especialmente sobre aquelas que
foram hegemônicas no período estratégico que ora se encerra.
Comentário final
Quando perguntamos qual estratégia deve ser adotada frente à
situação aberta pela contraofensiva reacionária, partimos do
pressuposto de que ocorreram mudanças estruturais em âmbito mundial, regional e
no interior de cada sociedade, mudanças que tiveram como desdobramento a
criação de uma situação qualitativamente distinta da que existia anteriormente.
Se reduziu muito o espaço de êxito da estratégia que pretendia melhorar
a vida do povo através de políticas públicas implementadas a partir dos espaços
legislativos e executivos conquistados através de processos eleitorais.
Esta estratégia foi implementada por amplos setores: “reformistas” e
“revolucionários”, “social-democratas” e “socialistas-comunistas”. Mesmo forças
minoritárias que criticavam esta estratégia, na prática aderiram a ela. Também
por isto, o debate atual tem um componente imenso de confusão, sendo comum ver
determinados setores criticarem sem autocrítica aquilo de que fizeram parte,
apresentando os problemas como decorrência de falhas morais e éticas, falta de
coragem e vontade etc.
Por isto, é preciso fazer um esforço imenso para perceber a natureza
objetiva dos problemas enfrentados e buscar respostas que também tenham base
objetiva.
Em última análise, trata-se de responder, entre outras, questões como as
seguintes: quanto de reforma o capitalismo contemporâneo aceita;
e quanto de socialismo é necessário para viabilizar mesmo um “programa
mínimo” de reformas.