terça-feira, 16 de agosto de 2016

Estratégia em debate

Entre os que valorizam as experiências dos governos progressistas e de esquerda iniciada em 1998, existem diferentes pontos de vista, que dizem respeito não apenas às estratégias passadas, mas também à qual deva ser a estratégia no período em que estamos e futuramente.

Estas diferentes visões às vezes são expressas num mesmo vocabulário (as pessoas concordam quanto ao significado das categorias, conceitos e termos, mas discordam no mérito), outras vezes são expressas através de vocabulários distintos, em que uma mesma palavra ganha significados distintos ou simplesmente não é adotada.

Neste texto entendemos “estratégia” com base no significado originalmente militar da palavra, a saber: o conjunto de ações que tem como propósito ganhar uma guerra

Uma guerra é composta de várias batalhas. O conjunto de ações que tem como propósito ganhar uma batalha é o que denominamos de tática.

O termo estratégia exige, portanto, uma definição preliminar: de que “guerra” estamos falando? 

Responder a esta questão implica em definir inimigos, aliados e objetivos estratégicos.

No nosso caso, a “guerra” de que falamos é a luta entre a classe dos trabalhadores assalariados e a classe dos empresários capitalistas.

Considero legítimo falar de “guerra”, não tanto para destacar o caráter violento da luta, mas principalmente para acentuar o componente de dominação envolvido no processo e para deixar claro que se pretende alterar a relação fundamental entre as partes.

Embora capitalistas e assalariados existam há mais tempo, foi nos séculos 19 e 20 que foi crescentemente predominando, no interior de cada país e no conjunto do mundo, um tipo de sociedade baseado nas relações de produção entre aquelas duas classes.

Hoje o chamado capitalismo é dominante, em escala local e global.

Evidentemente, nem o capitalismo é determinado apenas pela relação entre capitalistas e assalariados; nem os destinos de cada sociedade e do mundo são determinados apenas pelos rumos do capitalismo.

Mas ambos os fenômenos (capitalismo, luta de classes entre capitalistas e trabalhadores) são variáveis fundamentais para compreender o conjunto dos conflitos sociais dentro de cada país e o conjunto dos conflitos internacionais.

Por isto escolhemos falar de uma classe determinada, ao invés de adotar expressões como “o povo”, “os explorados”, “os oprimidos” ou “os excluídos”. Tais categorias genéricas expressam fenômenos reais e tem utilidade analítica e na retórica política, mas não seriam adequadas neste momento da exposição: o de precisar o conteúdo das definições estratégicas mais gerais.

Portanto, compreendemos estratégia como o conjunto de ações que a classe dos trabalhadores assalariados desenvolve para ganhar a guerra que trava contra a classe dos capitalistas.

A classe dos trabalhadores assalariados não é homogênea: sua formação (no duplo sentido: sua história e sua composição) varia de região para região, e varia de época para época.

Em cada momento dado, há ao mesmo tempo diferentes classes trabalhadoras assalariadas convivendo, assim como diferentes frações da classe trabalhadora assalariada convivendo.

Isto pode ser nítido em âmbito internacional (os trabalhadores assalariados do Brasil vis a vis os trabalhadores assalariados de outros países); mas também ocorre em plano nacional, o que nem sempre é devidamente considerado.

A saber: a classe trabalhadora assalariada brasileira possui diferentes “frações” internas, em função de fatores “objetivos” como a região, a idade, o sexo, o ramo de atividade; e em função de fatores “subjetivos” como a experiência adquirida na própria luta de classe.

Na prática, isto significa que quando nos referimos à “estratégia da classe dos trabalhadores assalariados”, estamos nos referindo à estratégia que defendemos deva ser assumida e praticada por esta classe, mas que nunca é a estratégia de todos os integrantes da classe, pois sempre haverá diferenças no interior da classe que resultarão em diferentes posições políticas, portanto diferentes estratégias.

A mais geral destas diferenças políticas existentes no interior da classe dos trabalhadores assalariados consiste no seguinte: em todo momento, o conjunto da classe está submetida à exploração, mas apenas uma parte da classe reage coletivamente a isto.

Quando ocorre, a reação coletiva pode ter dois propósitos fundamentais: o de melhorar as condições de vida da classe, nos marcos do capitalismo; e/ou o de “mudar de vida”, superando o capitalismo.

Ambos os propósitos (“melhorar a vida” ou “mudar de vida”) exigem enfrentar o capitalismo. Os dois propósitos podem ser apresentados sob a forma de raciocínios estratégicos, que historicamente foram denominados como “estratégia reformista” e “estratégia revolucionária”.

Neste caso, a denominação -- “reformista”, “revolucionário” -- diz respeito ao objetivo final que se persegue, não aos caminhos utilizados.

É por isto que – na prática histórica – vemos pessoas que se definem como revolucionárias dedicando a maior parte do seu tempo militante à educação política, à luta sindical, à atividade parlamentar ou governamental.

E vemos, também, pessoas que se definem como reformistas envolvidas em guerrilhas, guerras de libertação nacional e outros tipos de mobilizações sociais e politicas extremamente radicais.

Há, no interior da classe trabalhadora, vários pontos de vista, vários objetivos estratégicos, portanto várias estratégias.

Estas estratégicas desdobram-se, em alguns casos, em alianças com outras classes. Por exemplo, alianças estratégicas com setores que mantém conflitos com o capitalismo, como é o caso dos trabalhadores que são pequenos proprietários, urbanos ou rurais, entre os quais também há quem se proponha enfrentar o capitalismo, seja para conviver com ele em melhores condições, seja para superá-lo.

Em tese, estas variadas estratégias podem ser concorrentes, mas não precisam ser inimigas, uma vez são estratégias adotadas por diferentes frações da classe dos trabalhadores assalariados.

Na prática, entretanto, ocorrem situações em que o conflito entre diferentes estratégias transforma-se num conflito frontal. É o caso, por exemplo, quando determinada estratégia conduz a alianças estratégicas com a classe dominante.

Os componentes de uma estratégia

Sendo estratégia o nome que damos para o conjunto de ações que a classe dos trabalhadores assalariados deve desenvolver para superar o capitalismo, então estas ações podem ser definidas como basicamente três: estudar, organizar e lutar

O “estudar” significa fundamentalmente compreender o funcionamento do capitalismo e o que entendemos por superar o capitalismo.

Consideramos que este é o aspecto fundamental do debate estratégico.

A superação do capitalismo exige uma reorganização social profunda, tendo como aspecto fundamental fazer com que os que produzem a riqueza social decidam como produzir, o que produzir e como distribuir esta riqueza social. É isto que entendemos por socialismo e, portanto, quando nos referimos a superar o capitalismo estamos falando de construir o socialismo.

Aceita esta premissa, então estratégia é o nome que damos para o conjunto de ações que a classe dos trabalhadores assalariados deve desenvolver para construir o socialismo.

Fica clara, nesta definição, que existe uma distinção formal entre o objetivo final (construir o socialismo) e a estratégia propriamente dita (o conjunto de ações). 

Falamos de distinção formal, porque evidentemente há uma relação entre meios e fins.

No que diz respeito ao objetivo final, ele pode ser entendido de duas maneiras diferentes: 1) “construir o socialismo” como dar início à construção do socialismo; 2) “construir o socialismo” como construir uma sociedade socialista plena, portanto, superar completamente o capitalismo. 

Esta distinção pode ser apresentada de duas maneiras, nos seguintes termos: 1) transição ao socialismo e socialismo; 2) transição socialista e comunismo.

Pensar a estratégia tendo como objetivo final uma sociedade socialista plena (aquilo que na tradição marxista classe se denomina comunismo) nos colocaria diante do seguinte desafio: imaginar um processo em escala mundial, com a duração de várias décadas ou séculos.

Como isto seria tão genérico quanto não operacional, preferimos pensar a estratégia tendo como objetivo final iniciar a construção do socialismo (ou, noutros termos, iniciar a transição socialista).

Portanto, entendemos por estratégia o conjunto de ações que a classe dos trabalhadores assalariados deve desenvolver para iniciar a construção do socialismo. Ou, dito de outra forma: para poder dar início à transição socialista.

O que significa “construção do socialismo”?

Alguns compreendem que a construção do socialismo começa quando um trabalhador adere à sua organização coletiva de classe, quando a classe trabalhadora cria e fortalece estas organizações, quando a classe trabalhadora consegue vitórias concretas na luta contra os capitalistas, vitórias que podem ser econômicas, políticas, sociais, ideológicas, no plano nacional, regional ou mundial.

Outros compreendem que a construção do socialismo supõe não apenas estas atitudes e conquistas parciais, nos marcos do domínio capitalista, mas também alterações mais profundas, que só são possíveis quando parcelas fundamentais da vida social passem a ser controladas pela classe trabalhadora. O que supõe, em maior ou menor medida, que a classe trabalhadora detenha um poder econômico e político equivalente ao que hoje constitui monopólio da classe capitalista.

A rigor, a diferença fundamental entre estas duas abordagens reside no tema do chamado poder de Estado. O que implica discutir a força política relativa entre as classes sociais. 

O poder é uma relação de força, portanto nenhuma classe ou setor de classe detém todo o poder. Mas na maior parte do tempo, na maior parte das sociedades, o poder é distribuído de maneira desigual entre os diferentes setores sociais.

Detém o poder de Estado as classes ou setores de classe que controlam um conjunto de mecanismos (produtivos, militares, comunicacionais, legislativos, executivos, nacionais e internacionais) que permitem a estes setores manter e/ou definir o rumo geral de funcionamento de uma dada sociedade.

Por exemplo: no Brasil, no dia 18 de agosto de 2016, a classe dos capitalistas controla direta ou indiretamente o governo federal, a maior parte dos governos estaduais e municipais, a maioria dos parlamentos em todos os níveis, a maior parte do judiciário, a maior parte das polícias e forças armadas, a maior parte das empresas privadas e também das empresas estatais, a maior parte dos meios de comunicação, da indústria cultural e educacional.

Para construir o socialismo, a classe trabalhadora necessita do poder necessário para alterar o funcionamento da sociedade. Isto supõe ampliar o poder da classe trabalhadora e reduzir o poder da classe dos capitalistas. Neste processo de ampliação/redução, há um momento fundamental: quando os trabalhadores adquirem poder suficiente para manter e/ou definir o rumo geral de funcionamento de uma sociedade. Quando chegamos neste momento, falamos que a classe trabalhadora passou a deter o “poder de Estado”.

Por isto, ter o “poder de Estado” é um indicador fundamental, uma preliminar para a construção do socialismo.

Por isto, podemos definir estratégia como o conjunto de ações que a classe dos trabalhadores assalariados deve desenvolver para ter o poder de Estado e iniciar a construção do socialismo.

Esta definição permite compreender (no sentido de “incluir no contexto” e “dar significado”) o conjunto de ações que a classe dos trabalhadores assalariados desenvolveu, nos diferentes países do mundo, ao longo dos séculos 19 e 20, bem como ao longo dos primeiros 16 anos do terceiro milênio, para construir suas condições de poder (o que pode incluir tanto auto-organização quanto ocupação de espaços no Estado) e/ou para conquistar o poder revolucionariamente (organizando-se para derrotar o Estado vigente e construir outro), assim como as várias situações híbridas e intermediárias de que a história está feita.

Aqui vale retomar um assunto que provoca seguidas confusões: o duplo sentido com o qual se utiliza, no debate estratégico, os termos “reformista” e “revolucionário”.

Já dissemos antes que estes termos podem ser utilizados para definir o objetivo final (“melhorar a vida” ou “mudar de vida”, capitalismo ou socialismo). Já dissemos, também, que na prática histórica os que buscaram estes diferentes objetivos muitas vezes trilharam os mesmos caminhos e utilizaram os mesmos métodos. Portanto, tivemos revolucionários extremamente moderados e reformistas extremamente radicais no que diz respeito às formas de luta.

Ocorre que os termos “reformista” e “revolucionário” também são utilizados para designar diferentes formas de conquistar o poder de Estado.

Neste caso, chama-se geralmente de “reformista” quem defende conquistar o poder de Estado, ocupando espaços no seu interior (por exemplo, disputando eleições, mas também organizando a classe trabalhadora e seus aliados para pressionar e obter conquistas frente ao Estado capitalista).

E chama-se geralmente de “revolucionário” quem, participando ou não das eleições e das lutas cotidianas da classe, considera que o “problema do poder” só será resolvido através da destruição do Estado burguês e sua substituição por outro de natureza distinta.

Devido a este duplo sentido, há correntes políticas e ideológicas que se consideram como “reformistas revolucionárias”, ou seja, defendem que lutemos através de meios reformistas para atingir um objetivo revolucionário.

Vejamos a seguir qual a implicação – na estratégia -- das diferentes visões acerca de como lidar com o poder de Estado.

Já dissemos que estratégia é o conjunto de ações que a classe dos trabalhadores assalariados deve desenvolver para ter o poder de Estado e iniciar a construção do socialismo.

Nesta definição, ter o poder de Estado é uma preliminar. Como fazer isto é a questão a ser respondida.

Para os que adotam uma resposta “reformista”, o como resulta da acumulação progressiva de forças, que num determinado momento resultará em que a classe trabalhadora detenha mais poder que a classe capitalista.

Não há, nesta visão acerca do processo, um momento fundamental, transcendental, um ponto de ruptura. Podem até haver vários momentos de embates profundos, de recuos e de avanços; mas o que predomina é a noção do acúmulo progressivo.

Para os que adotam uma resposta “revolucionária”, a acumulação de forças inclui dois momentos combinados, porém qualitativamente distintos. Um deles é o de acúmulo progressivo de forças; mas quanto este acúmulo de forças chega próximo de dotar a classe trabalhadora do poder de Estado, inaugura-se um novo momento, uma nova etapa.

Neste momento/etapa, ou bem a classe trabalhadora conquista o poder, ou bem ocorrerá um retrocesso na acumulação de forças.

Nesta visão, a conquista do poder não resulta de um acúmulo “gradual”, mas sim de um salto, de uma ruptura, de uma mudança qualitativa.

Destas duas respostas decorrem diferentes implicações práticas e também conceituais.

Para os “revolucionários”, a estratégia deve responder a duas questões: quais as maneiras de acumular forças e quais as maneiras de conquistar o poder. Já para os “reformistas”, a estratégia deve responder a uma única questão, pois a maneira de acumular forças também é a maneira pela qual se consegue ter o poder.

Em alguns textos debatidos pelo Partido dos Trabalhadores nos anos 1980, isto foi apresentado da seguinte forma: para os revolucionários, o poder deve ser construído, mas também deve ser conquistado. Já para os reformistas, o poder apenas se constrói (não existindo um momento especial onde se “toma” o poder, quando se “assalta o Palácio de Inverno”).

Ao longo dos últimos 200 anos, em diferentes países do mundo a classe trabalhadora construiu uma “modalidade” reformista e três “modalidades” revolucionárias para tentar resolver o problema do poder.

A modalidade reformista foi uma combinação entre a organização da classe (sindicatos, partidos, organizações populares diversas, e suas respectivas alianças) e a conquista de espaços institucionais (executivos, legislativos, democratização de outros aparatos de Estado).

Em nenhum país esta modalidade reformista de lidar com o problema do poder resultou na/permitiu a construção do socialismo. Porém, em diversos países esta modalidade reformista resultou na/permitiu a construção de melhores condições de vida nos marcos do capitalismo.

Vale lembrar, entretanto, que a classe dominante destes países geralmente se beneficiava da exploração imperialista sobre outros povos, o que permitiu/facilitou concessões à sua própria classe trabalhadora. Donde resulta um questionamento acerca de como se combinaram -- para viabilizar a melhoria citada nas condições de vida nos marcos do capitalismo -- a luta por reformas e a “gordura” disponível para a classe dominante.

Já as três modalidades revolucionárias foram: a insurreição urbana, a guerra (guerra de guerrilhas, guerra popular prolongada, guerra de libertação nacional, guerra de ocupação) e a “via chilena para o socialismo”.

Exceto o caso da Revolução Russa de 1917, todas as demais experiências de construção do socialismo tiveram início na conquista do poder através de guerras. E mesmo a experiência de 1917 ocorreu em meio a uma guerra mundial e incluiu, depois da revolução, uma sangrenta guerra civil. Fatos que marcaram profundamente as características das respectivas tentativas de construção do socialismo.
É importante, por outro lado, notar que a “via chilena” para o socialismo não resultou na construção do socialismo em nenhum dos países em que foi tentada.

A “via chilena” para o socialismo

A “via chilena”, como o nome sugere, foi elaborada e experimentada no Chile, especialmente no período de governo da Unidade Popular (1970-1973).

Deixemos de lado as características especificamente chilenas e nos concentremos no que é proposto por esta modalidade estratégica, enquanto solução para o problema do poder: a ideia central é utilizar os mecanismos de construção do poder (modalidade “reformista”), para possibilitar a conquista do poder (modalidade “revolucionária”). 

Dito de outra forma, fazer da disputa e da conquista eleitoral de governos uma parte fundamental da disputa e da conquista do poder.

Os defensores da “via chilena” pretendiam, desta forma, resolver um problema que provavelmente angustiou e segue angustiando muitos dos que se pretendem revolucionários: como agir, do ponto de vista estratégico, em sociedades ou em momentos históricos em que não estão ocorrendo, nem estão no horizonte visível, processos revolucionários, crises revolucionárias, revoluções.

A “via chilena” oferecia, em tese, a seguinte resposta: utilizar a maioria eleitoral para viabilizar uma presença nos governos, governos que protagonizariam mudanças tanto de ordem econômico-social quanto de ordem política, mudanças que ao fim e ao cabo alterariam a natureza capitalista do Estado e da sociedade.

Obviamente, os defensores da “via chilena” tinham consciência de que a implementação desta estratégia provocaria uma reação por parte dos capitalistas: a oposição, a sabotagem e no limite o golpe de Estado. Portanto, uma questão implícita era como criar as condições para que esta reação não tivesse êxito.

Uma primeira resposta era obter maiorias eleitorais, que permitisse controlar os órgãos executivos e legislativos, a partir dos quais se promoveria a democratização dos demais órgãos de Estado e/ou a convocação de processos constituintes, que no limite permitiriam substituir, a partir de processos eleitorais, o Estado capitalista por um Estado popular.

Uma segunda resposta era neutralizar os instrumentos que a classe capitalista utiliza para fazer oposição, sabotar e dar golpes: o controle da economia, o controle dos meios de comunicação e o controle das forças armadas. Isto se traduzia na ampliação da presença do Estado na economia, na quebra do controle capitalista sobre os meios de comunicação e na submissão das forças armadas ao controle democrático.

Este aspecto teve grande importância no caso chileno, onde uma parcela da esquerda acreditou que as forças armadas chilenas seriam fieis a uma suposta tradição legalista e não apoiariam um golpe. Ilusões semelhantes sobre as forças armadas também estiveram presentes noutros países, inclusive no Brasil.

O tema das forças armadas teve particular importância no caso venezuelano. 

Lembramos que uma parcela das forças armadas apoiou um golpe contra Chávez, enquanto outra parcela apoiou a reação popular contra o golpe, forçando os golpistas a recuar e tornando possível uma reforma na instituição militar, reforma que ajuda a entender por quais motivos, pelo menos até este momento, predomine nas forças armadas venezuelanas o apoio ao governo popular.

Tanto no caso venezuelano quanto no chileno, entretanto, a sabotagem econômica foi fundamental para o êxito (parcial ou total) da reação capitalista. O que remete para uma complexa discussão sobre a relação entre economia nacional e internacional, Estado e mercado.

Uma terceira resposta a como criar as condições para que a reação capitalista não tenha êxito consiste em defender a construção de um “poder popular” paralelo ao poder de Estado e/ou complementar ao governo popular.

É importante perceber que todas as respostas citadas têm, entre seus efeitos, o de acelerar a reação capitalista. Fato que nos remete para uma das principais dificuldades "práticas" da “via chilena”: o tempo

Numa guerra ou numa insurreição, a classe capitalista tende a perder completamente, ou quase, seus instrumentos de poder. Já na “via chilena”, a classe capitalista mantém parte importante, maior ou menor, de seus instrumentos de poder. E utiliza estes instrumentos para fazer oposição, sabotagem e no limite promover golpes.

A questão, portanto, é saber se os instrumentos que a classe trabalhadora vai conquistando, adquirindo e construindo através da combinação entre eleições e auto-organização serão capazes de deter a oposição, a sabotagem e o golpe.

Trata-se de uma “corrida contra o tempo”, que assume a forma de uma disputa política e ideológica – geralmente denominada de “disputa de hegemonia” e/ou de "guerra de posições"-- muito mais complexa do que a existente nos processos de guerra e de insurreição. 

As noções de "guerra de posições" e de "guerra de movimentos" remetem a formas diferentes de travar o combate militar entre dois exércitos. A guerra de movimentos se expressa, por exemplo, nos ataques velozes da cavalaria (animal ou blindada). Já a guerra de posições teve sua expressão típica nas trincheiras e casamatas, com longas esperas e avanços lentos.

O termo "disputa de hegemonia " -- muito utilizado por Antonio Gramsci e antes dele pelos revolucionários russos -- corresponde a uma atitude presente em todas as modalidades utilizadas pela classe trabalhadora, ao longo dos últimos 200 anos, para tentar resolver o problema do poder. 

A disputa de hegemonia não acontece apenas nos momentos “pacíficos”, mas também nas guerras e nas insurreições, que são expressões concentradas da luta política. Portanto, nelas também ocorre a disputa de hegemonia (no sentido de influência, convencimento, “quem dirige quem”).

Mas nestes casos, quando a luta de classe chega ao estágio da “batalha final” pelo poder de Estado, a busca do “convencimento” tende a tornar-se secundária frente ao confronto direto de forças

Portanto, o tema da disputa de hegemonia tem maior relevância nos momentos de acúmulo de forças “pacífico” – momentos prévios à “tomada do poder” ou posteriores a ele, neste segundo caso como parte da consolidação da nova ordem política e social. 

Por decorrência, a modalidade "reformista" para tentar resolver o tema do poder (ou seja, aquilo que estamos chamando aqui de “via chilena”), modalidade que pode ser apresentada como um processo mais ou menos contínuo de acúmulo de forças, é aquela onde o tema da disputa de hegemonia tem mais importância.

O ambiente em que as estratégias operam

Ao longo deste texto, utilizamos o termo estratégia em um duplo sentido: como uma formulação teórica e como uma prática social.

A estratégia como prática social designa o sentido geral da ação implementada -- durante longos períodos de tempo -- pelas diferentes forças sociais e políticas. Não apenas o discurso que produzem, mas o conjunto de atos que cometem. De forma análoga, a tática como prática social designa o sentido geral da ação implementada durante períodos de tempo mais curtos.

Já a estratégia como formulação teórica é o “plano de ação” formulado pelos dirigentes das diferentes forças políticas e sociais.

Todos conhecem a piada: ao ouvir as detalhadas orientações do técnico de futebol, orientações que sempre terminavam com drible e bola na rede, o craque perguntou se o técnico havia combinado com os adversários.

Sempre tende a haver alguma diferença entre o projeto e a ação real. Esta diferença pode ter várias causas, mas a principal delas é que a ação real se desenvolve em combate com outras forças sociais e políticas, portanto em choque com outras estratégias, das quais surge uma resultante que sempre tende a diferir das intenções e propósitos originais.

Falando em tese, a melhor estratégia é aquela que considera – nas suas formulações e projeções – as potenciais decorrências do choque com as demais forças políticas e sociais.

Uma das maneiras de tentar prever estas potenciais decorrências futuras é o estudo da história, embora esta não se repita nunca, motivo pelo qual os “modelos” tendem a ser muito enganosos.

Outra das maneiras de considerar estas potenciais decorrências futuras é tentar detectar quais as tendências mais gerais de um período. Estas tendências resultam de choques anteriores, que definem o quadro geral, a superfície, o ambiente em que se travam as batalhas do presente.

Alguns autores e dirigentes dão a este contexto estratégico o nome de etapa e consideram que a análise da etapa define os limites mínimos e máximos que uma estratégia pode obter. Por exemplo: num contexto histórico de bipolaridade entre URSS e EUA, todos os processos nacionais eram levados a “posicionar-se” em relação aos polos. O que por exemplo “empurrava” em direção ao socialismo processos que em outro contexto poderiam ter outros desdobramentos.

Nos dias de hoje, por exemplo, as variáveis mais gerais podem ser resumidas assim:

a) defensiva estratégica da classe trabalhadora;
b) hegemonia do capitalismo;
c) crise do capitalismo;
d) declínio da potência hegemônica;
e) ascensão de outros polos de poder (como os BRICS);
f) disputa entre diferentes vias de desenvolvimento capitalista;
g) formação de blocos regionais;
g) hegemonia do neoliberalismo em âmbito regional;
h) disputa entre diferentes modelos de desenvolvimento nacional e regional;
i) vitórias eleitorais e forte protagonismo dos governos progressistas até 2006;
j) desde então, crescente contraofensiva das forças conservadoras.

No âmbito de cada sociedade, as variáveis estratégicas fundamentais são as classes sociais. Motivo pelo qual há uma relação entre a taxa de êxito de uma estratégia e a análise das classes e da luta de classes na qual ela está baseada, bem como das decorrentes políticas de aliança (lembrando sempre que no fundo das alianças políticas, entre partidos e organizações, estão classes sociais cujos interesses são expressos por aquelas respectivas organizações e partidos).

Uma terceira maneira de considerar na análise estratégica as potenciais decorrências futuras é considerar quais as principais estratégias que estão interagindo.

Em cada momento da história, em cada região do mundo, há várias estratégias operando e em disputa, no plano nacional, regional e mundial, expressando os interesses de Estados, classes e frações de classe e seus respectivos instrumentos políticos.

Algumas destas estratégias são mais influentes do que outras. Desde 1998, por exemplo, podemos citar:

*no plano mundial, as estratégias operadas pelos Estados Unidos, Alemanha, China e Rússia;

*no plano regional, as estratégias operadas pelos Estados Unidos, Brasil e Venezuela;

*no plano nacional, as estratégias operadas, respectivamente, pelo PT e PSDB.

Cada uma destas estratégias correspondia/corresponde, no plano da luta política, aos interesses de diferentes setores sociais. Interesses que no plano internacional apresentam-se com forma e conteúdo distintos, como interesses de diferentes Estados.

Ao levar em consideração a análise histórica, a análise das variáveis estratégicas e a análise das estratégias em operação, tentamos reduzir a distância entre o plano e o que vai efetivamente ocorrer.

A estratégia frente ao neoliberalismo dos anos 1990

Cada país da América Latina e Caribe tem sua própria história, irredutível e única.

Mas quando consideramos a região como um todo, especialmente a América do Sul, percebemos a incidência de algumas características que conformam um ambiente estratégico, ao mesmo tempo produto da luta passada e contexto da luta presente entre as forças sociais e políticas, bem como da luta entre os Estados.

Estas características podem ser resumidas assim: 1) toda a região foi, durante vários séculos, colônia de metrópoles europeias e até hoje mantém uma relação dependente e subordinada aos principais centros econômicos do mundo; 2) embora tenha assumido diferentes formas, da escravidão ao assalariamento, o processo de exploração do trabalho na região sempre foi extremamente intenso, com a decorrente desigualdade social; 3) em decorrência da dependência e da desigualdade, as diferentes classes dominantes existentes na região a partir da colonização buscaram sempre restringir ao máximo a participação política e a auto-organização das classes dominadas; 4) como decorrência das anteriores, o enfraquecimento da dominação externa ampliava as possibilidades de desenvolvimento, igualdade e democracia na região, por exemplo no período 1789-1815 (independências) e 1914-1945 (industrialização); 5) portanto, a irredutibilidade das histórias nacionais combina-se com a existência de “ciclos regionais”, em que diversos países experimentam processos com características similares, por exemplo o ciclo populista, o ciclo ditatorial, o ciclo neoliberal e o ciclo de governos progressistas.

No ambiente estratégico dos anos 1990, a maioria dos partidos e organizações de esquerda da América Latina e Caribe foi convergindo na prática e também no plano das formulações para uma estratégia que consistia -- malgrado profundas diferenças históricas, sociais, políticas e ideológicas -- em buscar melhorar a vida do povo através de políticas públicas que seriam implementadas a partir de espaços legislativos e executivos conquistados através de processos eleitorais.

Tais políticas públicas foram de diferentes tipos (universais/distributivas ou focalizadas/compensatórias) e implementadas com diferentes graus de confronto, negociação e aliança com as “elites” locais e com os “imperialismos”.

Em alguns casos, aquelas políticas públicas foram precedidas ou acompanhadas de processos constituintes, que resultaram em reformas importantes e foram acompanhadas de uma retórica radicalizada, embora de fato não tenham implicado em revoluções (ou seja, na expropriação econômica e política da classe dominante).

Noutros casos, aquelas políticas públicas foram implementadas sem processos constituintes, sem nenhuma tentativa de reforma nas estruturas políticas, sociais e econômicas, no Estado e na relação entre as forças sociais, além de acompanhadas de uma retórica que se jactava de sua “moderação”.

Apesar destas múltiplas e importantes diferenças, havia um núcleo comum, o que permite dizer que estávamos diante de variantes de uma mesma estratégia. Este núcleo consistia, como já foi dito, na implementação de políticas públicas a partir de posições conquistadas através de processos eleitorais.

Neste aspecto, esta estratégia e cada uma de suas variantes eram todas elas profundamente diferentes da estratégia adotada – para ficarmos só neste exemplo – pelos que dirigiram a Revolução Cubana de 1959.

No caso cubano tivemos a conquista do poder (e não do governo), pela luta armada (não pela via eleitoral), a partir da qual se introduziram não apenas outras políticas públicas, mas sim transformações no padrão de desenvolvimento vigente até então em Cuba, mudanças que incluíram da reforma agrária à transição socialista.

Os protagonistas da estratégia acima descrita -- estratégia adotada especialmente entre 1998 e 2016 pela maior parte da esquerda latino-americana e caribenha -- talvez não estejam de acordo com esta definição, mas podemos dizer que a estratégia adotada nesta região e momento constitui uma modalidade da “via chilena para o socialismo”, ressalvada pelo menos uma importante diferença: no Chile o tema do socialismo era destacado explicitamente tanto pelo presidente Salvador Allende quanto pelos principais partidos que integravam a Unidade Popular.

Sucesso e limites da estratégia

A estratégia de melhorar a vida do povo através de políticas públicas, que seriam implementadas a partir dos espaços legislativos e executivos conquistados através de processos eleitorais atingiu, durante certo tempo, o objetivo central a que se propunha. A saber: a vida do povo melhorou devido às políticas adotadas pelos chamados governos progressistas e de esquerda.

Isto ocorreu, em maior ou menor grau, em diferentes países e governos, nos quais se adotaram diversas variantes (“carnívoras” ou “vegetarianas”) daquela estratégia comum.

Além do objetivo de melhorar a vida do povo, objetivo este presente em todas as variantes da estratégia citada, outros objetivos podem ter sido mais ou menos atingidos (integração regional, ampliação da democracia, ampliação da propriedade pública, acúmulo de forças em direção ao socialismo etc.).

Noutros termos: se a história tivesse tido fim em 2010, apesar dos limites e contradições, o saldo seria claramente positivo em favor daquela estratégia.

Entretanto, a partir de um determinado momento -- que variou de país para país -- mas que em todos os casos ocorreu depois da crise internacional de 2007-2008, naqueles países onde foi aplicada aquela estratégia de melhorar a vida do povo através de políticas públicas implementadas a partir dos espaços legislativos e executivos conquistados através de processos eleitorais passou a ocorrer o seguinte:

1. A vida do povo passou a melhorar cada vez menos;

2. A vida do povo passou a melhorar cada vez mais lentamente;

3. Em seguida, a vida do povo começou a piorar;

4. Tudo isto aconteceu antes que se tenha conseguido recuperar os padrões de vida médios existentes antes da onda neoliberal;

5. Caiu a adesão popular às lideranças, partidos e governos que implementavam aquelas políticas públicas;

6. O refluxo do apoio popular, somado à oposição dos que se contrapunham àquelas políticas públicas, alterou a correlação de forças política nos espaços legislativos e/ou executivos, possibilitando o regresso das forças políticas e sociais que se opunham àquelas políticas públicas e à melhoria das condições de vida do povo;

7. O regresso da antiga oposição é marcado não apenas por um retrocesso social, mas também por um retrocesso econômico e por um retrocesso político cujos limites e consequências ainda não estão totalmente claros.

Esgotamento da estratégia ou simples alternância?

Considerando a cronologia dos eventos, pode ser dito que os chamados governos progressistas e de esquerda não conseguiram resolver os problemas criados a partir da crise internacional de 2007-2008, especialmente aqueles ligados a deterioração dos preços das commodities, à dependência financeira e comercial, à força dos oligopólios – especialmente estrangeiros – vis a vis o enfraquecimento das empresas estatais.

Entretanto, também pode ser dito que a incapacidade acima referida não é apenas a causa, mas também a consequência de um conjunto de problemas que já vinham se acumulando (fadiga de material, limites da estratégia adotada etc.), incluindo nestes problemas políticas macroeconômicas que mantiveram a predominância do setor agroexportador, o peso do setor financeiro etc.

A depender de como se compreenda o que foi descrito nos parágrafos anteriores, a conclusão poderá ser uma das seguintes: 1) ou bem estamos diante de uma derrota de natureza tática, devido a causas conjunturais e/ou erros ocasionais; 2) ou bem estamos diante de uma derrota de natureza estratégica, causada por mudanças nas condições estruturais nas sociedades e no mundo, bem como por limites insuperáveis da própria estratégia.

Se estivermos diante de uma derrota tática (ou seja, de uma derrota eleitoral das esquerdas), não se faz necessário alterar a estratégia.

Mas se estivermos diante de algo mais profundo e mais grave do que uma derrota eleitoral e tática, neste caso se coloca a necessidade de reavaliar a estratégia.

O fato de estarmos diante de algo mais profundo do que uma derrota eleitoral e tática por si só não quer dizer que a estratégia adotada antes esteja esgotada, superada, não seja adequada para o próximo período.

Para chegar a esta conclusão, de que se faria necessária uma nova estratégia, distinta da adotada até agora, é necessário levar em consideração não apenas o que ocorreu no período que se encerra, mas também as características do período que se abre.

Sobre o que ocorreu no período que se encerra, há um aspecto destacado: em que medida o sucesso da presente onda reacionária está vinculada aos limites da própria estratégia adotada pela esquerda? 

A este respeito, apontamos a seguir dois “efeitos colaterais” da própria estratégia, mais exatamente consequências negativas decorrentes do seu próprio sucesso:

1. Uma estratégia baseada apenas em políticas públicas tende a produzir efeitos positivos decrescentes. Pois a base das políticas públicas é a tributação, tributação que depende em última análise da rentabilidade do setor privado, rentabilidade que tende a diminuir quando há uma elevação da remuneração do trabalho, elevação da remuneração que tende a resultar – direta ou indiretamente -- das políticas públicas. No caso dos países imperialistas, esta dinâmica pode ser retardada devido à exploração de outras sociedades. Mas as tentativas feitas pela socialdemocracia na Europa confirmam que mesmo nos países centrais, o capitalismo suporta por algum tempo, mas não suporta por muito tempo a ampliação do bem-estar e da democracia. Lá, assim como na América Latina, podemos dizer que apenas com políticas públicas, sem reformas que alterem a correlação de forças no interior do Estado, o padrão de distribuição da riqueza e o modelo de desenvolvimento, não se torna possível melhorar a vida do povo de maneira veloz, profunda e permanente;

2. Uma estratégia baseada em maiorias eleitorais tende, em parte pelos motivos expostos acima, a produzir resultados eleitorais decrescentes. Devido ao decréscimo na profundidade e na velocidade das mudanças, a partir de certo momento cresce mais rápido o descontentamento do que a adesão; neste contexto, a classe dominante tem maiores chances de organizar a reação, contando para isto com os aparatos de poder que seguem em suas mãos.

Noutras palavras, uma estratégia que busca melhorar a vida do povo através de políticas públicas implementadas a partir dos espaços legislativos e executivos conquistados através de processos eleitorais, está fortemente arriscada a perder estes mesmos espaços e, com isso, ver as políticas públicas serem desmontadas antes que elas produzam efeitos de longa duração. Como sabemos observando o conjunto das experiências de governos progressistas latino-americanos, esta dinâmica também está presente -- embora possa ser retardada -- naqueles casos em que houve processos constituintes, forte participação popular e democrática no Estado, e/ou instrumentos estatais de forte intervenção na produção econômica.

É importante perceber que os citados “efeitos colaterais” da estratégia, consequências negativas decorrentes do seu próprio sucesso, atingiram e seguem atingindo o conjunto da esquerda regional.

Seja onde foi adotada uma variante mais “confrontacionista”, seja onde foi adotada uma variante mais “negociadora”, o processo desembocou na deterioração das condições políticas, econômicas e sociais, em parte devido a opções feitas pelos respectivos governos e seus apoiadores, em parte devido ao fato da classe capitalista seguir controlando os meios econômicos e políticos, assim como dispondo dos apoios internacionais necessários para reagir e criar a deterioração citada, que por óbvio não se deu por combustão espontânea.

Em nenhum momento, é bom lembrar, as respectivas classes dominantes e seus aliados internacionais abriram mão de utilizar um conjunto de instrumentos econômicos e políticos para buscar deter e reverter a melhoria nas condições de vida do povo. A reação adotou variadas formas, que foram da oposição parlamentar até o golpe de Estado.

Que tenham mantido estes instrumentos sob seu controle não é um acaso, nem uma concessão indevida, é uma consequência da própria estratégia adotada, que em nenhuma hipótese previa a expropriação parcial ou total de setores das classes dominantes.

Note-se que isto vale inclusive para os casos em que houve reformas constitucionais: o fortalecimento dos instrumentos populares e democráticos de intervenção econômica e política estatal convivia com a presença, maior ou menor, dos instrumentos de poder político e econômico da classe dominante.

Se a análise anterior for correta, então a explicação fundamental para o êxito da ofensiva reacionária reside na estratégia. Outros aspectos --como as dificuldades sucessórias -- devem ser considerados, mas de forma subordinada.

Os países em que ainda existem governos progressistas não necessariamente terão o mesmo destino daqueles onde a ofensiva reacionária teve pleno êxito. Porém, aqueles governos progressistas passam agora a atuar num novo cenário estratégico, tanto nacional quanto regional.

Já dissemos antes que uma das principais dificuldades "práticas" da “via chilena” era o fator tempo. Pois bem: o fato de vários governos progressistas terem existido ao mesmo tempo e terem se apoiado uns aos outros foi um fator importante na extensão temporal destas experiências. Extensão que poderia ser maior, se a integração tivesse sido mais veloz e mais efetiva.

A medida que a direita avança na Venezuela, Argentina e Brasil, podemos dizer que estamos diante de uma contraofensiva reacionária, conformando-se assim um novo ambiente estratégico na região e dentro de cada um dos países.

A existência de um “eixo do mal” de governos reacionários e conservadores terá maiores ou menores chances de êxito, a depender da respectiva situação interna.

Defensiva estratégica

Quais as implicações estratégicas que podem ser extraídas desta constatação? Entre as várias possíveis, destacaremos a seguir a "defensiva estratégica".

Um período de defensiva não significa um período de passividade. Num período de defensiva travam-se grandes lutas, se obtém vitórias e até avanços.

O que caracteriza um período como sendo de defensiva é o objetivo dele.

Num período de defensiva, nosso objetivo principal é defender as conquistas antigas e recuperar o terreno perdido. Ou seja: os avanços parciais visam recuperar o status quo ante, o que já tínhamos e agora perdemos.

A defensiva não dura para sempre. Uma situação de defensiva pode se converter em uma situação de equilíbrio (relativo, como qualquer equilíbrio) e este pode se converter numa situação de ofensiva estratégica.

O que permite a defensiva se converter em ofensiva é a mudança no estado de ânimo da classe trabalhadora. E esta mudança ocorre em parte como reação à ação dos inimigos e em parte por ação das diferentes vanguardas da classe, numa combinação de elementos.

Evidente, se existe o propósito de criar as condições para sair de uma situação de defensiva, então a ação das vanguardas deve ajudar a classe trabalhadora a mudar seu estado de ânimo.

Para isto é preciso elaborar e saber diferenciar as propostas de curto, médio e longo prazo. E para isto é preciso saber escolher muito bem as batalhas que devem ser travadas em cada momento, levando em conta o ensinamento implícito na famosa frase de Pinheiro Machado: “nem tão devagar que pareça afronta, nem tão depressa que pareça medo".

E por isto é importante, especialmente porque estamos na defensiva, ser o mais didático, paciente e correto no debate de ideias. Pois nos momentos de defensiva, de recuo, de confusão, as forças inimigas ampliam sua influência também no terreno das ideias.

Temas a debater

Portanto, além de debater a necessidade e o conteúdo de uma nova estratégia, estamos chamados a debater quais as táticas adequadas para reagrupar forças e retomar a ofensiva.

Trata-se, portanto, de reconhecer que entramos num período de defensiva estratégia, que pode ser mais longo ou mais curto, com uma duração que depende de um conjunto de variáveis, inclusive internacionais.

A conquista de maiorias eleitorais faz parte da disputa pelo poder, mas não “resolve” a maior parte do “problema” do poder.

Em primeiro lugar, porque a classe dominante -- e seus partidos -- mantêm seus direitos eleitorais e, portanto, minorias eleitorais mais ou menos expressivas.

Além disso, há elementos de poder que não sofrem influência direta da disputa eleitoral, tais como a ingerência externa, o poder econômico, o oligopólio da mídia, o judiciário, as forças de segurança.

Embora não resolva o problema do poder, as vitórias eleitorais da esquerda aguçam a disputa pelo poder, tornando mais violenta a disputa de hegemonia cultural, comunicacional, ideológica, política e econômica.

Quando as forças reacionárias conseguem afastar a esquerda do governo (seja pela via eleitoral ou do golpe, seja este clássico ou jurídico-parlamentar), elas voltam dispostas a reduzir ao mínimo as possibilidades de que a história se repita.

Inclusive porque as forças reacionárias aprenderam com as derrotas que sofreram a partir de 1998; e também porque a situação do capitalismo as empurra a adotar medidas para recompor rapidamente sua rentabilidade e controle, medidas que só serão politicamente viáveis se forem acompanhadas de alterações profundas na correlação de forças entre as classes; o que por sua vez as levará a tentar fechar e colocar ferrolhos nas “portas” que permitiram à esquerda acessar espaços executivos e legislativos, para implementar políticas públicas que melhorassem a vida do povo.

Por tudo isso, a ofensiva reacionária não é apenas eleitoral: ela abre um novo período estratégico, no qual a classe trabalhadora vive e viverá uma situação tática mais difícil.

Reconhecer uma derrota estratégica implica, no caso, em reconhecer que uma estratégia foi derrotada. Mas reconhecer a necessidade de uma nova estratégia por si não reverte a derrota estratégica, não altera a correlação de forças.

Noutras palavras, a correlação de forças atual impede o êxito parcial da antiga estratégia; mas também dificulta a implementação de outras variantes estratégicas, por exemplo aquelas baseadas em melhorar a vida do povo através da combinação entre políticas públicas & reformas estruturais, implementadas a partir da combinação entre a conquista de espaços legislativos e executivos & a construção de uma hegemonia popular.

Neste emaranhado de variáveis, o aspecto ao qual devemos dar atenção principal é o estado de ânimo, consciência, organização e mobilização das camadas populares, especialmente da classe dos trabalhadores assalariados.

De maneira geral, faz-se necessário retomar a análise das classes sociais, de seus interesses de médio e longo prazo, de como eles se articulam e conflitam entre si, conformando diferentes padrões de desenvolvimento em âmbito nacional, regional e mundial, diferentes níveis da realidade que mantém inter-relação.

Além disso, faz-se necessário debater:

1) como travar a disputa pelo "poder econômico"?

2) como disputar a hegemonia ideológica sobre a sociedade?

3) qual a dimensão estratégica da luta contra a corrupção?

4) quais são as indispensáveis reformas democráticas no âmbito econômico, social, cultural e político?

Quando saímos do plano nacional e passamos a análise do plano regional, a questão pode ser posta da seguinte forma: sem integração regional, não é possível melhorar a vida do povo de maneira profunda, veloz e permanente.

Entretanto, qual padrão de integração regional é necessário, se falamos em processos de mudança mais profundos, mais velozes e mais duradouros? Por exemplo: como articular a integração entre Estados e a integração entre os setores sociais comprometidos com os projetos de transformação?

Quando saímos do plano regional e passamos à análise do plano mundial, a questão pode ser posta assim: como o processo de transformações nacionais e de integração regional se articula com a “guerra” mundial entre diferentes projetos de desenvolvimento?

Finalmente, é preciso investigar quais as decorrências da defensiva estratégica sobre as organizações da classe, especialmente sobre aquelas que foram hegemônicas no período estratégico que ora se encerra.

Comentário final

Quando perguntamos qual estratégia deve ser adotada frente à situação aberta pela contraofensiva reacionária, partimos do pressuposto de que ocorreram mudanças estruturais em âmbito mundial, regional e no interior de cada sociedade, mudanças que tiveram como desdobramento a criação de uma situação qualitativamente distinta da que existia anteriormente.

Se reduziu muito o espaço de êxito da estratégia que pretendia  melhorar a vida do povo através de políticas públicas implementadas a partir dos espaços legislativos e executivos conquistados através de processos eleitorais.

Esta estratégia foi implementada por amplos setores: “reformistas” e “revolucionários”, “social-democratas” e “socialistas-comunistas”. Mesmo forças minoritárias que criticavam esta estratégia, na prática aderiram a ela. Também por isto, o debate atual tem um componente imenso de confusão, sendo comum ver determinados setores criticarem sem autocrítica aquilo de que fizeram parte, apresentando os problemas como decorrência de falhas morais e éticas, falta de coragem e vontade etc.

Por isto, é preciso fazer um esforço imenso para perceber a natureza objetiva dos problemas enfrentados e buscar respostas que também tenham base objetiva.

Em última análise, trata-se de responder, entre outras, questões como as seguintes: quanto de reforma o capitalismo contemporâneo aceita; e quanto de socialismo é necessário para viabilizar mesmo um “programa mínimo” de reformas.



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