(...)
Voltando ao texto do Ricardo Antunes: seu objetivo é
compreender por que vem ocorrendo uma relativa desmobilização da sociedade
brasileira e, em particular, dos organismos de representação da classe
trabalhadora.
A questão traz, implícito, o seguinte raciocínio: o nível e
a forma de mobilização existente entre o final dos anos 70 e o final dos anos
80 são paradigmáticos.
Infelizmente, este raciocínio é falso. O normal, o padrão, o
paradigma, não é a luta intensa, a mobilização intensa, a organização intensa,
a politização intensa.
O normal é a relativa desmobilização.
A questão traz implícita, também, uma certa mitificação
sobre o que de fato ocorreu nos anos 70 e 80.
Exemplo clássico: é verdade que houve avanços significativos
na luta pela autonomia e liberdade dos sindicatos. Mas é bom lembrar, sempre é
bom lembrar, que o novo sindicalismo que predominou nos anos 80 não foi o das
oposições sindicais, mas sim o sindicalismo tipo ABC, do qual Lula é o exemplo
principal: alguém que virou diretor e virou presidente do sindicato, a partir
de uma diretoria convencional, para não dizer pelega.
Juntando os dois raciocínios: os anos 80 foram uma exceção
na história do Brasil, na história da esquerda brasileira e na história do
sindicalismo brasileiro, um período no qual setores formados principalmente na
luta sindical foram empurrados para uma ação política.
Nos anos 90, quando a exceção refluiu, aqueles setores
voltaram para seu leito natural, para seu comportamento normal. Foi esta
esquerda anos 90 (normal) que chegou ao governo em 2002.
Onde está a diferença entre isto que estou falando e aquilo
que Antunes fala? Poderia resumir a diferença nas aspas. Vejam o que ele diz: a
vitória da “esquerda” no Brasil ocorria quando ela estava mais fragilizada,
menos respaldada nos pólos centrais que lhe davam capilaridade, como a classe
operária industrial, os assalariados médios e os trabalhadores rurais.
Veja: quem ganhou as eleições de 2002 foi a esquerda
realmente existente. E ganhamos entre outros motivos porque esta esquerda
estava respaldada nos pólos centrais que lhe davam capilaridade, como a classe
operária industrial, os assalariados médios e os trabalhadores rurais.
Ao usar aspas na palavra esquerda, ao duvidar do respaldo
que o PT tinha em 2002 (e segue tendo) na classe trabalhadora, Antunes revela
que ele trabalha com conceitos apriorísticos, não com as classes realmente
existentes, na luta de classes realmente existente.
Qual é o problema deste tipo de análise?
O problema não está no excesso de adjetivos. O problema está
em que ela nos remete para um beco sem saída.
Pois uma coisa é dizer que ganhamos as eleições de 2002 num
cenário completamente diferente de 1989, com um PT completamente diferente, com
uma classe trabalhadora completamente diferente, com um cenário internacional e
nacional totalmente diferente.
Outra coisa é não aceitar, não perceber que, apesar disto
tudo, a realidade segue contraditória.
Se o PT é o Partido da Ordem, o PSDB é o que
mesmo? Se o Brasil estava desertificado em 2002 e o PT desvertebrado, por
qual motivo contabilizamos alguns progressos na vida da classe trabalhadora, de
2003 até hoje?
Na análise, como na realidade, a quantidade se transforma em qualidade. Uma
coisa é listar todos os fenömenos conservadores que atingiram o mundo, o Brasil
e o PT nos anos 90. Outra coisa é recusar-se a ver o óbvio: que apesar disto
tudo, apesar de todos estes fenômenos, ainda sim conseguimos impedir o
neoliberalismo de ir até o fim, conseguimos impor derrotas eleitorais a eles,
conseguimos reverter parcialmente algumas políticas etc.
Vejam a síntese que Antunes faz do governo Lula: sua
política econômica ampliou a hegemonia dos capitais financeiros; preservou a
estrutura fundiária concentrada; deu incentivo aos fundos privados de pensão;
determinou a cobrança de impostos aos trabalhadores aposentados, o que
significou uma ruptura com parcelas importantes do sindicalismo dos
trabalhadores, especialmente públicos, que passaram a fazer forte oposição ao
governo Lula.
Suponhamos que isto tenha sido 100% assim. Pergunto: foi só
isso?
Antunes sabe muito bem que não foi só isto. Mas vejamos o
que ele diz: A sua alteração mais significativa, no segundo mandato, foi uma resposta
à crise política aberta com o mensalão, em 2005. Era necessário que o novo
governo ampliasse sua base de sustentação, desgastada junto a amplos setores da
classe trabalhadora organizada. Foi então que ocorreu uma alteração política
importante: o governo ampliou o programa Bolsa-Família, uma política social de
perfil claramente assistencialista, ainda que de grande amplitude, que atinge
mais de 12 milhões de famílias pobres com renda salarial baixa e que por isso
recebiam um complemento salarial. E foi esta política social – assumida como
exemplo pelo Banco Mundial – que ampliou significativamente a base social de
apoio a Lula, em seu segundo mandado. Ela atingia os setores mais pauperizados
e desorganizados da população brasileira, que normalmente dependem das
políticas do Estado para sobreviver.
O parágrafo anterior está fundamentalmente errado.
O erro fundamental está no seguinte: depois de 2005, o
governo Lula promoveu uma inflexão na política macroeconômica, reduzindo as
concessões ao setor neoliberal e ampliando as políticas de corte
desenvolvimentista.
A bolsa-família faz parte destas políticas, mas está longe
de ter sido a política mais relevante, nem macroeconomicamente, nem
microeconomicamente. O relevante foi a política de elevação do salário mínimo,
com impacto nas aposentadorias, mais a geração de empregos, mais a
formalização.
Os dados comprovam isto. Mas admitir isto contradiz a tese,
tão adorada pelos esquerdistas e pelos tucanos, segundo a qual a popularidade
de Lula provém do assistencialismo.
Mas como não dá para negar a realidade, Antunes concede que em
comparação ao governo de FHC, a política de aumento do salário mínimo, ainda
que responsável por um salário vergonhoso e inconcebível para uma economia do
porte da brasileira, significou efetivos ganhos reais em relação ao governo
tucano.
Antunes também reconhece que, em 2007/08, o
governo tomou medidas claras no sentido de incentivar a retomada do crescimento
econômico (...) expandindo fortemente o mercado interno brasileiro.
Mas, insisto: a quantidade se converte em qualidade. Ao
superestimar o papel do bolsa família (ou seja, daquilo que Antunes chama de
assistencialismo) e ao subestimar o papel do emprego, do salário mínimo e do
reajuste nas aposentadorias, Antunes chega a conclusões políticas equivocadas
sobre o governo Lula.
Uma destas conclusões, também implícita, é a seguinte: como
os pilares da tragédia brasileira não foram tocadas pelo governo Lula, como a
classe trabalhadora está supostamente em luta contra estes pilares, logo a classe trabalhadora só não se chocou contra
o governo Lula porque as direções sindicais foram cooptadas.
Veja: a cooptação sindical pelo Estado é a regra, no Brasil,
desde os anos 30. Apesar disto, em várias conjunturas o movimento sindical cumpriu
um papel firme em defesa da classe trabalhadora. E, em todas as conjunturas, a
classe trabalhadora sofreu mais pela ausência dos sindicatos (mesmo que
cooptados) do que pela presença deles.
Evidente que devemos lutar por um sindicalismo independente
do Estado. Mas atenção: frente a política sindical neoliberal, a postura
hegemônica no governo Lula é um avanço relativo, não um retrocesso.
Podemos e devemos dizer que está muito, muito longe, do que
defendemos. Mas eu prefiro um governo que reconhece e repassa verbas para o
movimento sindical, do que um governo que tem como política sistemática
asfixiar e destruir o movimento sindical.
Por fim um detalhe curioso: Antunes, assim como a Veja, não
gosta de que centenas de ex-sindicalistas passaram a participar, indicados pelo
governo, do conselho de empresas estatais e de ex-estatais, com remunerações
polpudas.
Eu acho que as remunerações polpudas deveriam ser cortadas e
são sim um fator de corrupção pessoal, política e ideológica. Mas não acho que
seja um defeito do governo Lula indicar ex-sindicalistas para cargos
importantes. O defeito é o oposto: ter mantido tantos tucanos, tantos
direitistas, tanta gente ligada ao empresariado.
Por fim: Antunes fala que para a retomada de um
sindicalismo de classe e de esquerda, há um bom caminho a percorrer. Mas talvez
seu primeiro desafio seja criar um pólo sindical, social e político de base que
não tenha medo de oferecer ao país um programa de mudanças profundas, capazes
de iniciar a desmontagem das causas estruturantes da miséria brasileira e de
seus mecanismos de preservação da dominação.
Certamente temos um bom caminho a percorrer.
Uma analogia: trata-se de fazer existir, nos dias de hoje,
exista um pólo sindical, social e político que cumpra papel semelhante ao que
cumpriu o ABC no final dos anos 70.
Mas para que isto ocorra, o primeiro desafio não
é o de ter uma vanguarda que não tenha medo.
O primeiro desafio é o de perceber que, como nos anos 70,
uma nova vanguarda vai surgir das lutas da classe trabalhadora realmente
existente. E não da classe trabalhadora dos nossos sonhos, na conjuntura dos
nossos sonhos.
(...)
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