Lavra Palavra publicou, no dia 2
de maio de 2018, um interessante texto de Slavoj Zizek sobre Marx.
Intitulado “Marx
hoje: o fim está próximo… apenas não da forma que imaginávamos”, o texto
foi publicado originalmente por Philosophical Salon e traduzido para
o português por Daniel Alves Teixeira.
Segue o endereço onde o texto pode ser lido:
Comecemos pelo final, quando Zizek
fala da “relevância da crítica de Marx à economia
política em nossa era do capitalismo global”.
Segundo Zizek, a “crítica de Marx à economia
política” e “seus contornos da dinâmica capitalista”
são “totalmente atuais”.
Mais ainda: “é apenas hoje, com
o capitalismo global, que, em termos hegelianos, a
realidade chegou ao seu conceito”.
Entretanto, “neste exato momento de
plena atualidade a limitação tem que aparecer, o momento do triunfo é o da derrota.
Depois de superar os obstáculos externos, a nova ameaça vem de dentro,
sinalizando inconsistências imanentes. Quando a realidade alcança plenamente
seu conceito, esse conceito em si precisa ser transformado”.
Como literatura é ótimo, mas a
conclusão é a seguinte: “a solução marxista clássica fracassou, mas o problema
permanece”.
E segue: “o comunismo não
é hoje o nome de uma solução, mas o nome de um problema, o problema dos comuns
em todas as suas dimensões – os comuns da natureza como a substância de nossa
vida, o problema de nossos comuns biogenéticos, o problema de nossos bens
culturais ("propriedade intelectual") e, por último mas não menos
importante, os comuns como o espaço universal da humanidade do qual ninguém
deve ser excluído. Qualquer que seja a solução, ela terá que lidar com esses
problemas”.
Até aí, já chegaram as Forças Armadas
Revolucionárias da Colômbia, que agora se chama Força Alternativa Revolucionária
do Comum.
A questão, portanto, é entender o que
ele quer dizer com a frase: “a solução marxista clássica fracassou, mas o
problema permanece”. A resposta está no início do artigo.
Zizek, baseado em Cohen, enumera as
seguintes “características da noção marxista clássica da classe trabalhadora”:
1) ela constitui a maioria da
sociedade;
2) ela produz a riqueza da sociedade;
3) ela consiste nos membros
explorados da sociedade;
4) seus membros são as pessoas
necessitadas na sociedade.
Combinadas, estas características
resultariam (diz ele) em duas outras afirmativas:
5) a classe trabalhadora não tem nada
a perder com uma revolução;
6) ela pode e vai se envolver em uma
transformação revolucionária da sociedade.
Mas, segundo Zizek, “nenhuma das quatro
primeiras se aplica à classe trabalhadora de hoje”; por isso, as duas últimas
características não poderiam ser geradas.
Feita a ressalva de algum erro de
tradução, Zizek está errado. Aliás, ele intui isto, pois logo em seguida afirma
que “mesmo que algumas das características continuem a se aplicar a partes da
sociedade de hoje, elas não estão mais unidas em um único agente: as pessoas
necessitadas na sociedade não são mais os trabalhadores, etc.”.
Para economizar, vamos admitir que os
seis itens acima sejam mesmo a enumeração das “características da noção marxista
clássica da classe trabalhadora”.
A classe trabalhadora constitui a maioria da sociedade?
De que sociedade estamos
falando? Vamos pressupor que estamos falando da humanidade como um todo, neste
ano santo de 2018.
De que maioria estamos falando?
Relativa ou absoluta? Se estamos discutindo se é válido hoje o que Marx dizia
em 1848 ou em 1883, então a lógica indica que estamos falando de maioria
relativa.
E do que estamos falando, quando falamos
de classe
trabalhadora?
Seguro que estamos falando daquelas pessoas que vendem a
sua força de trabalho em troca de um salário. Mas não apenas dos que estão na
ativa, mas também dos aposentados que vivem de suas pensões ou do salário de
seus familiares. E também dos filhos e filhas que vivem do salário de seus parentes.
Pois bem: quem é a maioria
relativa da humanidade, hoje? Certamente não é composta por
capitalistas, por pessoas que vivem da riqueza extraída dos produtores. Será então
que a maioria é composta por pequenos proprietários? É muito provável que
fosse, antes do crescimento explosivo da China. Mas hoje, de quem é a maioria
relativa?
Vamos supor, novamente para
economizar, que houvesse no mundo um número igual de trabalhadores pequenos
proprietários e de trabalhadores assalariados. Pergunto: observado historicamente,
tomando como ponto de partida 1818 e como ponto de chegada 2018: quem cresceu?
A classe trabalhadora produz a riqueza da sociedade?
Já definimos antes “classe
trabalhadora” e “sociedade”. E “riqueza”? Como estamos falando, ao menos
supostamente, do “pensamento marxista clássico”, então por riqueza devemos
entender a totalidade das mercadorias cujos valores de uso atendem ao estômago e/ou
a fantasia.
No tempo de Marx, parte muito
importante da riqueza da scociedade humana não era produzida por trabalhadores
assalariados, mas sim por camponeses, artesãos pequeno proprietários e pelo
trabalho comunitário.
Portanto, novamente por razões de
simetria lógica, a definição só pode ser a seguinte: “a classe trabalhadora
assalariada produz a maior parte e/ou a parte mais importante da riqueza da
sociedade”?
E a resposta é ainda mais clara do
que a anterior: a maior parte da riqueza da sociedade humana atual é produto do
trabalho de assalariados.
A classe trabalhadora consiste nos membros explorados da sociedade?
Já definimos classe trabalhadora e
sociedade. Qual a definição de “explorados”? Novamente, se estamos falando de
algo que corresponda à definição clássica do marxismo, então estamos falando de
uma relação social entre os que trabalham/produzem e os que vivem do
trabalho/produção dos outros.
Não estamos falando de opressão. E
também não estamos falando que a exploração do trabalho assalariado seja a
única forma de exploração. Nos tempos de Marx, o trabalho pequeno proprietário
e o escravo e o servo eram igualmente explorados. Portanto, por analogia
lógica, a afirmação segue válida se ainda hoje os trabalhadores sejam
explorados, ainda que não sejam os únicos explorados.
Novamente a resposta é: a classe trabalhadora
faz parte dos membros explorados da sociedade.
Os membros da classe trabalhadora são as pessoas necessitadas na sociedade?
O que são “as pessoas necessitadas”?
Necessitadas do quê?
Novamente, nosso ponto de partida é
aceitar sem discutir que esta definição corresponda ao que Marx dizia em sua
época. Pois bem, já naquela época a classe trabalhadora não era homogênea, nem
permaneceu imutável, inclusive porque os socialistas e comunistas não se
limitaram a interpretar, mas lutaram por mudar o mundo.
Noutras palavras: a classe
trabalhadora realmente existente incluiu, em percentuais diferenciados em cada
época ou região, do pauperismo lumpen até a “aristrocracia proletária”. E ainda
hoje é assim. Com um detalhe fundamental: o característico, o mais frequente, o
mais universal ao longo da história do capitalismo não é a aristocracia operária.
E, nos tempos que vivemos, certamente não é.
A classe trabalhadora não tem nada a perder com uma revolução?
Lembremos: esta afirmação seria parte
do pensamento marxista clássico. Portanto, ela não pode ser tomada ao pé da
letra. A classe trabalhadora, numa revolução, perde parte de seus filhos e
filhas, mortos em combate. Portanto, quando se fala em “nada a perder”, o que
se quer dizer é que a classe (não cada indíviduo singular que a compõe) não tem
nada a perder, ou seja, não vai perder a sua posição social. Pois não tem como “cair
mais”, uma vez que já é a classe explorada.
Neste sentido, há alguma dúvida que a
afirmação segue válida? Aliás, se observarmos tudo o que ocorreu de 1818 até
hoje, a conclusão é: onde houve revolução, por mais tragédias que tenha havido,
a classe trabalhadora manteve ou ampliou suas posição social.
A classe trabalhadora pode e vai se envolver em uma transformação
revolucionária da sociedade?
Nos tempos de Marx, isto certamente
foi verdade. Mas também naqueles tempos, não era verdade para todos e cada um
dos integrantes singulares da classe trabalhadora, nem em cada país, nem em
escala mundial. E, se de novo observarmos o que se passou entre 1818 e 2018,
não houve uma única transformação revolucionária que não tenha “envolvido” a
classe trabalhadora.
Portanto, Zizek não está correto
quando diz que “nenhuma das quatro primeiras se aplica à classe trabalhadora de
hoje”; também não está correto quando diz que as “duas últimas características
não poderiam ser geradas”.
Qual a origem do erro? Uma
interpretação equivocada acerca da relação entre a capacidade de sobrevivência
do capitalismo e a capacidade de luta da classe trabalhadora. Que o capitalismo
tenha conseguido sobreviver, que a classe trabalhadora não tenha conseguido
triunfar, não decorre que a classe trabalhadora não seja capaz disso por razões
estruturais, genéticas.
O capitalismo
Zizek diz que “o impasse histórico
do marxismo reside não apenas no fato de que ele
contava com a perspectiva da crise final do capitalismo, e
portanto não conseguiu compreender como o capitalismo saiu
de cada crise fortalecido”.
O debate sobre o capitalismo, sua
crise e sua “crise final” é para lá de complexo, existindo tantas posições
diferentes defendidas por pessoas que se reclamavam do marxismo, que é um abuso
falar de “marxismo” no singular.
Ademais, se pesquisarmos a literatura
sobre a história do capitalismo e de suas crises, vamos encontrar diversas
explicações feitas por marxistas, que buscaram
compreender porque o capitalismo segue existindo, neste ano santo de 2018.
Zizek pode não concordar com nenhuma destas explicações, é direito dele, mas é
outro abuso dizer que nenhum dos “marxismos realmente existentes” foi capaz de “compreender”
por quais motivos o capitalismo segue existindo. E fortalecido!
Mas o maior abuso está na afirmação
inicial, acerca do “impasse histórico” do marxismo. Explico: se compreendermos
por marxismo a tradição inaugurada por Marx e Engels, então temos que lembrar
que esta tradição não se propunha apenas a interpretar, mas também a
transformar o mundo, especificamente no sentido de acabar com capitalismo e
construir o comunismo.
Assim, se as palavras fazem algum
sentido, e se a tradução é fiel ao autor, só faria sentido falar de“impasse
histórico” se as afirmações fundamentais feitas por Marx, Engels e seguidores
acerca do capitalismo estivessem globalmente equivocadas.
E quais são estas afirmações
fundamentais? O “segredo” do capitalismo, sua dinâmica da acumulação, sua
tendência à superação por outro modo de produção.
Nenhuma destas afirmações está
equivocada. Aliás, é o próprio Zizek, citando Streeck, quem confirma indiretamente
isto. E, se quisermos ir mais longe, já em 1848 a famosa nota de rodapé do
Manifesto Comunista admitia a possibilidade de destruição das classes em luta,
possibilidade que deu no famoso slogan difundido por Rosa Luxemburgo: “socialismo ou barbárie”.
Assim, a questão é, novamente citando
Streeck: estamos em meio a um “processo prolongado de decadência e
desintegração”. Existirá ou não um “agente para dar a esta decadência uma
reviravolta positiva e transformá-la em uma passagem para algum nível superior
de organização social”?
Esta questão não deve ser descrita
como um impasse histórico, mas sim como a missão histórica daqueles que se
pretendem orientados pelo marxismo. E, vale repetir, a possibilidade de que
ao final dê tudo errado não é alheia ao marxismo.
Uma crítica vintage
Zizek diz que “a visão de Marx era a de uma
sociedade gradualmente se aproximando de sua crise final, uma situação na qual
a complexidade da vida social é simplificada em um grande antagonismo entre
capitalistas e a maioria proletária. No entanto, mesmo uma rápida olhada
nas revoluções comunistas do século XX deixa claro que
essa simplificação nunca ocorreu”.
Vamos admitir, novamente por
economia, que Marx fosse mesmo autor e tomasse ao pé da letra, como fenômeno histórico
e político, não como descrição genérica de uma tendência de longo prazo, a ideia
da “simplificação”.
Pergunto: quem melhor demonstrou que
esta simplificação “nunca ocorreu” foram as “revoluções comunistas do século XX”?
A resposta é: não. Zizek confunde
aqui dois processos diferentes.
A expansão capitalista sempre gera
polarização. Esta polarização tende a ser mais aguda na periferia do que no
centro. Quanto mais próximo da periferia, maior a possibilidade da polarização
se converter numa ruptura, por dois motivos: classe dominante com maiores
dificuldades para dominar, classes dominadas com mais motivos para lutar.
Quando mais próximo do centro, menor a possibilidade da polarização se
converter numa ruptura. Neste caso, também por dois motivos: classe dominante
com maiores meios para dominar, classes dominadas com menos motivos para lutar.
Portanto, o “grande antagonismo entre
capitalistas e a maioria proletária” é uma simplificação de uma tendência realmente
existente. Com um detalhe interessante: em alguns momentos da história, este
antagonismo se torna grande inclusive no centro.
Vejamos agora o segundo assunto: as “revoluções comunistas do século XX”.
Vou dar de barato que por “revoluções
comunistas” se pretende designar revoluções dirigidas por comunistas. Estas
revoluções foram um combinado de pelo menos duas do que segue: revoluções dos
trabalhadores assalariados contra a dominação do capital, revoluções camponesas
ou burguesas tardias contra o feudalismo, revoluções nacionais contra o
imperialismo.
Por exemplo: a Revolução de Outubro. Zizek erra quando fala que ela "explicitamente tratou os camponeses como aliados secundários”. Pelo contrário: a tradição bolchevique é toda construída a partir do debate contra os populistas, e este debate girava ao redor da questão agrária e do papel do campesinato. Nesta questão, mencheviques e bolcheviques tinham opiniões muito diferentes. Exemplo disso é que na discussão sobre a revolução de 1905, Lenin defendia uma ditadura democrático revolucionária do campesinato e do operariado. Depois, a aliança operário-camponesa seria uma das grandes novidades de 1917, contrastando com a tradição obreirista da social-democracia alemã. Aqui Zizek talvez quisesse criticar o que ocorreu no final dos anos 1920, não da Revolução de Outubro de 1917.
Mas nem toda revolução do século XX
foi dirigida por comunistas. Cito, por exemplo, a mexicana e a iraniana. Mas as
que mudaram mais profundamente o século XX foram dirigidas por comunistas.
Dizer que estes foram “parasitas” é, para além de uma besteira retórica, uma
incompreensão profunda.
Pois a questão é: o fato de que uma
minoria tenha conseguido se converter em vanguarda de amplas maiorias revela
não que este minoria foi oportunista; mas sim que a “pauta” desta minoria tinha
aderência real. Dito de duas outras formas: a) as revoluções burguesas tardias empurram
o campesinato e as massas pobres urbanas para um radicalismo igualitarismo que
transborda inclusive seus interesses de pequenos proprietários; b) em certas
circunstâncias históricas, para derrotar o feudalismo e o imperialismo, é
preciso derrotar também o capital.
Claro, a tese de que os comunistas
foram parasitas que se aproveitaram de circunstâncias excepcionais ajuda a
fortalecer uma certa narrativa. Mas ela é duplamente equivocada, pois as
guerras nunca foram “excepcionais” no capitalismo do século XX.
Portanto, não é apenas o "problema" do comum que permanece.
(sem revisão)
Valter, falar de Marx nesses duzentos anos passando ao largo de Lênin, Stálin, Mao Tse Tung, Fidel, Ho Chi Min, Kim Il-sung, Samora Machel é piada de Trosko ou Gramisciano não achas?
ResponderExcluirEntretanto concordo com Zizek que muitos trabalhadores hoje se sentem empreendedores e isto retira sua radicalidade de despossuídos. Neste sentido não existe mais uma revolução automática.
ResponderExcluir